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5 2 FUNDAMENTOS DA SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO A Sociologia surge do movimento de pensar e questionar a realidade social, no momento em que a vida da sociedade europeia do final do século XVIII está marcada pela desagregação de seus valores e de suas crenças tradicionais, em consequência das transformações produzidas pela constituição da modernidade, baseada no primado da razão como meio de interpretação dessa realidade. A Sociologia é uma ciência que nasce da contradição entre o novo e o velho; entre, de um lado, a ênfase no desenvolvimento do progresso – proporcionado pelo avanço das ciências naturais e a consequente introdução de inovações tecnológicas, fundamentais à consolidação do capitalismo, com o crescimento industrial resultante das mudanças significativas no modo de produção e de consumo, na composição do mercado de trabalho e nas relações de trabalho e de produção – e, de outro lado, a tentativa de restabelecimento da ordem social, subvertida em seus valores fundamentais (PILETTI , N.; PRAXEDES, W., 2010). A Sociologia como ciência surgiu no século XIX, momento de desenvolvimento do método científico em outros setores do conhecimento humano. Ela tinha como preocupação aplicar o ponto de vista científico à observação e à explicação dos fenômenos sociais e buscou compreender as transformações sociais provocadas pelas Revoluções Industrial e Francesa. A Sociologia parte da noção de que a vida humana em sociedade está sujeita a uma ordem social e procura compreender as regularidades e as leis que regem as relações entre os homens. Papel inicial da Sociologia Sob inspiração das ciências da natureza, concebia-se que o conhecimento científico nas ciências sociais deveria dar aos homens o controle de sua sociedade e de sua história assim como a física e a química lhes possibilitaram o controle das forças naturais. Os pioneiros e fundadores da Sociologia aspiravam também fazer do conhecimento sociológico um instrumento de ação e pretendiam modificar a própria sociedade em que viviam. 6 A constituição da Sociologia como ciência Desde a sua criação, a Sociologia preocupa-se com a definição do seu objeto de pesquisa e os métodos de análise para não se confundir com o senso comum. A Sociologia como ciência utiliza-se de pesquisas quantitativas, levantamento de dados empíricos e técnicas de observação da realidade. Análise consistente do material, que possibilite a outros pesquisadores a reprodução e a validação dos mesmos resultados. Os precursores da Sociologia Embora não seja possível um único indivíduo fundar um campo inteiro de estudo, havendo muitos colaboradores no pensamento sociológico, atribui-se especial proeminência a Augusto Comte (1798-1857). Para Comte, o papel da Sociologia seria explicar as leis do mundo social, assim como as ciências da natureza explicam o mundo físico. Comte formulou a lei dos três estágios do conhecimento humano: o teológico, o metafísico e o positivo. A lei dos três estágios de Augusto Comte Estágio teológico: o pensamento humano era guiado por ideias religiosas e pela crença de que a sociedade era expressão da vontade divina. Estágio metafísico: se desenvolveu no período da Renascença, em que a sociedade passou a ser vista em termos naturais e não sobrenaturais. Estágio positivo: anunciado pelas descobertas de Galileu e Newton, conduziu ao estímulo da aplicação de técnicas científicas para a compreensão do mundo social. A sociologia é vista como a última ciência a se desenvolver por ser a mais complexa de todas as ciências (PILETTI , N.; PRAXEDES, W., 2010). 7 A institucionalização da Sociologia Émile Durkheim (1858-1917) foi um dos precursores da Sociologia como ciência. Foi influenciado pelo pensamento de Augusto Comte, porém considerava suas ideias especulativas demais. Durkheim procurou dar uma base empírica para o conhecimento sociológico. Para Durkheim, o princípio básico da Sociologia era “estudar os fenômenos como coisas”. Com isso queria dizer que a vida social pode ser analisada de forma tão rigorosa quanto os objetos ou fenômenos da natureza. Para Durkheim, as sociedades têm uma realidade própria – a sociedade é mais do que ações e interesses de seus membros individuais. A Sociologia, como ciência, passou a ocupar um espaço na universidade em 1887, quando Émile Durkheim passou a lecionar na Universidade de Bourdeux e criou a primeira cátedra desta ciência na França. Em 1902, Durkheim transferiu-se para a Universidade Sorbonne, em Paris, onde contribuiu para a formação de inúmeros cientistas sociais reunidos em um grupo que ficou conhecido como Escola Francesa de Sociologia. A constituição da Sociologia como ciência Wright Mills (2009), no texto “A promessa”, afirmou que os seres humanos envolvidos na vida cotidiana tendem a ter uma visão limitada dos horizontes sociais, pois sua visão de mundo social se encontra restrita aos ambientes mais próximos. A sociologia é uma ciência que adota um olhar mais amplo sobre o mundo social e, dessa forma, permite aos seres humanos compreenderem a relação entre suas vidas individuais com os contextos sociais mais amplos. Segundo Giddens (2012), sob a perspectiva prática, a Sociologia permite a compreensão das diferenças culturais entre os grupos sociais. Permite uma análise precisa dos resultados das ações políticas e possibilita que os indivíduos tenham uma maior autocompreensão do seu papel na sociedade. Portanto... A Sociologia é uma ciência que surge no século XIX em um contexto de transformações históricas profundas na sociedade europeia e tem como objeto de 8 estudo o homem e suas interações sociais. Seus precursores foram Augusto Comte e Émile Durkheim. A educação em perspectiva sociológica A educação é um objeto privilegiado da Sociologia. O ato de educar é concebido, ao mesmo tempo, a base da conservação da ordem e o esteio de suas mais radicais transformações. (PILETTI; PRAXEDES, 2010, p. 11). Questões sociais como: que tipo de educação deve existir? Quais são os conhecimentos que o sistema educacional deve garantir a todos os cidadãos? A educação das classes dominantes deve ser igual à educação dos segmentos pobres da população? Como garantir essa igualdade? Percebe-se que os temas que permeiam o debate na área educacional são os mesmos presentes no debate político e social contemporâneo, evidenciando a estreita ligação entre os problemas da sociedade e os problemas da educação. Tendências no desenvolvimento da sociologia da educação Ao analisar o desenvolvimento dos estudos sociológicos sobre educação, Antônio Cândido identifica diversos focos sobre os quais a educação pode ser estudada na Sociologia: a) A primeira é sobretudo uma reflexão sobre o caráter social do processo educativo, seu significado como sistema de valores e sua relação com as concepções e as teorias do homem. Nessa perspectiva, a educação é vista como processo de socialização do indivíduo para a vida em sociedade. Esse é o ponto de partida da análise de Émile Durkheim. b) A linha pedagógico-sociológica desenvolveu-se, principalmente, nos Estados Unidos, onde procurou efetuar o estudo dos aspectos sociais da educação a fim de obter o bom funcionamento da escola. Seu foco é o estudo dos grupos sociais, formas de interação, a relação da escola com a comunidade, entre outros. Essa concepção tem como pano de fundo o “culto à eficiência” escolar. A sociologia é 9 concebida como componente da pedagogia e da administração escolar. Essa área tem sido cultivada por educadores como ramo da ciência da educação. c) A terceira linha é devida a sociólogos ou a educadores de orientação sociológica, que veem a sociologia educacional como ramo da sociologia, não da ciência da educação.Preocupa-se com a função social da educação e com a solução dos problemas educacionais. Fonte: www.brasilescola.uol.com.br 3 AS ORIGENS DA SOCIOLOGIA 3.1 A formação da sociologia e a identificação de seus objetos As reflexões sobre o comportamento humano sempre estiveram presentes em sociedades e comunidades ao redor do mundo e ao longo do tempo, em épocas e configurações sociais distintas. As pinturas rupestres feitas em cavernas e elaboradas por hominídeos expressavam as formas de organização dos grupos 10 sociais que surgiam, as caças, os perigos vividos, os espaços visitados, as viagens empreendidas. As representações pictóricas podem datar do período Paleolítico, que se estendeu da origem do homem até 10.000 a.C. Ou seja, o desejo de expressar, gravar e compreender a história humana está presente entre indivíduos desde os primórdios das organizações sociais mais elementares. É possível que a identificação do indivíduo como parte de um grupo seja um fator preponderante para a inclinação à reflexão a respeito dos contextos em que o grupo se insere. A expressão livre dos laços entre humanos deu espaço à reflexão, elaborada pelos filósofos da Antiguidade Clássica, sobre a pureza, a moral e a função de cada comportamento. Esse tipo de pensamento norteou as leituras sobre interações sociais até meados do século XVIII. O Iluminismo, também chamado de Século das Luzes, trouxe novas possibilidades de interpretação da natureza do comportamento humano. Nesse período, passa-se a considerar a complexidade das relações humanas, normalmente baseadas na estrutura de organização política do Estado. Mas são as rápidas transformações decorrentes da Revolução Industrial as responsáveis pelo grande interesse em medir, projetar e identificar formas de relações e comportamentos sociais. Devido à Revolução, se altera o modo de produção, consumo e organização social e política. E isso tem um motivo: o caos e os desequilíbrios sociais, desencadeados por situações nunca antes conhecidas. Por isso, pensadores passaram a observar os comportamentos sociais em busca de uma resposta para as transformações que se sucediam. (MARTINS, J. S; ECKERT, C; NOVAES, S. C; 2005). As dinâmicas sociais passaram a ser foco não apenas de observação, mas de estudo. Por que essas dinâmicas acontecem da forma como acontecem? Quais são os elementos que incidem sobre as organizações sociais? Quais elementos as tornam estáveis, lineares, ou quais incitam o desejo por ruptura, por revoluções? E, para os pensadores cujos trabalhos deram origem à sociologia, a questão preponderante era: como reorganizar ou reestabelecer as sociedades após o caos? Esses são alguns dos questionamentos que nortearam a definição de metodologias para a observação e a análise de dinâmicas sociais e que culminaram na delimitação de um campo científico específico, a sociologia. A ciência das relações 11 sociais nasce com o estigma de pousar o olhar sobre um objeto instável, abstrato, difícil de ser controlado. Por isso, alguns autores que analisaram brilhantemente seus contextos sociais e históricos tiveram seus estudos utilizados como base para a construção da sociologia como campo científico, e seus métodos foram considerados integrantes do aporte que deu origem a essa área de estudo. Entre eles, destacam-se Auguste Comte, Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber. Desses autores, apenas Karl Marx não define claramente etapas ou métodos de análise e interpretação de interações sociais com o objetivo de criar uma abordagem científica a ser retomada por futuros pesquisadores. Mas a forma de organização de sua leitura sobre as estruturas sociais oferece tantos dados para o fortalecimento da sociologia como ciência que sua obra se equipara, nesse sentido, às dos outros três estudiosos. (SILVA, 2005). A seguir, você vai conhecer melhor a contribuição de cada um deles para o estabelecimento e o fortalecimento da sociologia como campo científico. Tenha em mente que, com exceção de Durkheim e Weber, os autores mais importantes para a formação das teorias sociológicas clássicas não faziam parte da mesma geração e analisavam contextos sociais, políticos e históricos distintos. Auguste Comte (1798–1857) O francês Auguste Comte inicia seus estudos na Escola Politécnica ainda adolescente, mas há uma pausa entre o início de seus estudos e a sua conclusão. Tal pausa foi causada pelo fechamento temporário da Escola e depois por sua expulsão. Após concluir os estudos, ele vive uma grave crise psicológico-emocional e se afasta da pesquisa por algum tempo. Sua primeira obra, Plano de Trabalho Científico para Reorganizar a Sociedade, realizada em 1822, demonstra como imaginava recompor a sociedade num período de intensas rupturas, em que a Europa vivia alternâncias de poder entre regimes despóticos e revoluções. Comte foi secretário e amigo do Conde de Saint-Simon, nobre francês teórico do socialismo utópico. Contudo, rompeu com o Conde após alguns anos, por não considerar definitivas as suas teorias sobre as organizações sociais. O positivismo comtiano define os parâmetros empíricos para a observação das dinâmicas sociais. Além disso, é a teoria que define o objeto sociológico como elemento próprio da ciência. 12 Para Comte, se existiam leis que regiam as ciências naturais, também existiam leis que regiam os objetos sociais. Para conhecê-las, as etapas empíricas da observação à comparação deveriam ser respeitadas. Foi Comte o teórico que definiu o termo “sociologia”. (SILVA, 2005). Fonte: www.tomlivre/auguste-comte.br Karl Marx (1818–1883) De origem judaica, o alemão Karl Marx estudou direito, filosofia e história, concluindo o doutorado ainda bem jovem, aos 23 anos. Voltado à filosofia hegeliana, o jovem Marx escrevia artigos jornalísticos que questionavam a organização política alemã e enfatizavam o aporte democrático. Por isso, foi expulso e se mudou para a França, onde conheceu Engels. Seu posicionamento político o levou a ser expulso também da França, então ele foi para a Inglaterra, onde permaneceu até a sua morte. O primeiro trabalho em que aparece sua marca metodológica mais importante para a sociologia, o materialismo histórico, é O Manifesto do Partido Comunista, escrito em parceria com Friedrich Engels, em 1848. O materialismo histórico é uma teoria que entende que as relações entre a produção e o consumo 13 de mercadorias é o que determina as estruturas e organizações sociais. Por isso, as grandes transformações históricas foram pautadas pela alteração na forma de produção, do feudalismo para o mercantilismo e depois para o capitalismo. Para Marx, o capitalismo causaria tensões ininterruptas entre as classes, trabalhadores e burgueses, e essas tensões levariam à tomada de poder pelos trabalhadores, que colapsariam o sistema e estabeleceriam o comunismo. Para o autor, a marcha para o comunismo era inevitável, por isso o materialismo histórico possui um viés determinista. (SILVA, 2005). Fonte: www.jornal.usp.br Émile Durkheim (1858–1917) O francês Émile Durkheim também tinha origem judaica, mas declarava não praticar nenhuma religião. Assim como Marx, estudou filosofia, porém seus trabalhos se voltavam inteiramente à definição das metodologias de pesquisas e aportes técnicos da sociologia. Sua carreira acadêmica se inicia com estudos voltados para a ciência da educação. Criador da chamada “escola de sociologia francesa”, Durkheim foi o primeiro acadêmico a ocupar a cátedra de ciências sociais na Universidade de Sorbonne. Durkheim dialoga em seus trabalhos com Comte e Marx, mas tem um alinhamento maior com as teorias positivistas. Ele compreende que a 14 sociologiatem objetos próprios e diferentes daqueles do direito, da filosofia e da economia. Mas, diferente de Comte, Durkheim não acreditava em leis sociais, e sim na determinação de métodos e etapas para a observação, a classificação e a comparação dos fenômenos sociais, o que constituiria a verdadeira ciência sociológica. A tipificação de comportamentos é um dos elementos usados pelo pensador para chegar à observação científica dos fenômenos sociais. (SILVA, 2005). Fonte: www. historiaonline.com.br Max Weber (1864–1920) O alemão Max Weber estudou história, economia e direito. Sua origem foi intelectualmente privilegiada, já que, como filho de um político do Partido Nacional Democrata alemão, pôde ter contato com estudiosos e intelectuais de seu tempo. Weber foi para os Estados Unidos durante a Primeira Guerra Mundial. Lá, passou a analisar aspectos de uma sociedade capitalista, comparando-os às estruturas tradicionais morais e culturais da Alemanha, cuja corrupção ou enfraquecimento 15 durante a República de Weimar o preocupava. Weber transcende o positivismo de Comte, o materialismo de Marx e o funcionalismo de Durkheim, mas admite as contribuições de cada um desses aportes, dialogando com seus teóricos em alguns trabalhos. O pensador alemão criou a chamada sociologia compreensiva, um método de análise que compreende as construções simbólicas de maneira subjetiva. Ou seja, é um método que admite que o aparato sistêmico de significação de fenômenos sociais é o que dá sentido à ação, e ele pode ser diferente em contextos sociais, políticos e históricos distintos. Por isso, Weber contraria o determinismo do materialismo histórico de Marx e a impossibilidade de transcendência das estruturas sociais de Durkheim. Para ele, o espaço que Marx deu aos conflitos entre classes como motor da história foi dado aos processos de racionalização dos fenômenos sociais, em associação às dinâmicas de dominação social. Comte viveu todo o processo de erosão do poder da nobreza e da monarquia francesa, bem como os impactos resultantes dos movimentos que culminaram na Revolução Francesa, na ruptura da monarquia e na constituição da república no país. Revoluções não são transições, não são alterações que ocorrem aos poucos; não há espaço ou tempo para acomodações de mudanças. Para que eclodam, é preciso que haja um momento anterior de caos. E os momentos subsequentes à ruptura e à instalação de um novo modelo de organização política e social costumam também ser pautados por desorganização e incerteza. (SILVA, 2005). Para Comte, porém, independentemente dos objetivos de um movimento político e das alterações que ele poderia trazer às organizações sociais, deveria haver espaço para se pensar em planejamento social e organização, pilares que construiriam o bem-estar social. A racionalidade deveria nortear as ações e, assim, estabeleceriam-se planos e etapas que ordenariam e manteriam seguras e controladas quaisquer alterações na organização social. Como você viu, Marx, Weber e Durkheim buscavam compreender as causas e consequências das interações sociais. Eles verificavam o modo como tais interações se conectavam com um contexto histórico comum e avassalador para as estruturas tradicionais de organização social: a modernidade. Por isso, alguns elementos estão presentes nas abordagens desses autores. Entre eles, você pode considerar: as características estruturais e a expansão do capitalismo, o processo de urbanização, a expansão da produção, a saturação do consumo doméstico e as 16 expansões territoriais. Essas transformações deram novas formas e sentidos às interações sociais. Os mesmos elementos também tiveram impacto na organização, na estrutura e na função do Estado, de modo que a democracia e o liberalismo são pautas para as análises sociológicas. (SILVA, 2005). Fonte: www.todamateria.com.br Como você pode perceber, a sociologia percorreu um longo caminho para se estabelecer. Ela se fortaleceu a partir de teóricos com formação em áreas diversas, que procuraram explicar ou dar sentido ao caos social que acreditavam existir, ou às transformações que vivenciaram. Sua origem, portanto, é resultado de um processo de construção de leituras sociais de aproximadamente um século. Seu objeto de estudo, porém, é algo mais claro de se observar nesse processo. A sociologia deixa de lado os impactos das organizações do Estado ou de elementos sobrenaturais para se concentrar nas práticas sociais que permitem a manutenção, a organização ou a ruptura de sistemas de organização social, política e econômica. 17 3.2 A realidade e a perspectiva sociológica A definição da realidade e as interações estabelecidas dependem, para a sociologia, das leituras possíveis para cada indivíduo. Essas possibilidades seriam delimitadas pelas técnicas e comportamentos definidos e adquiridos pelo convívio com o grupo social de origem. Veja, por exemplo, a pesquisa sociológica sobre a memória realizada por Silva (2005). Ao se inserirem numa sociedade que preza mais os valores de troca do que os valores de uso dos objetos, os sujeitos da pesquisa perderam o objetivo principal da feitura de cerâmica e, com ele, a matéria-prima das lembranças. Não estavam mais no lugar onde nasceram e, se a sociabilidade se ancorava nas relações de reconhecimento e pertencimento, desejar os mesmos utensílios utilizados pela comunidade local era uma forma de não ficar à margem. Além disso, o espaço do assentamento já não era o mesmo do passado; não havia homogeneidade na origem dos moradores. Eles vinham do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, do interior de estados do Nordeste, especialmente Bahia, Pernambuco e Alagoas, e de estados do Centro-Oeste e do Sul do País, como Mato Grosso do Sul e Paraná. Essa gama de origens diferentes fomentava conflitos e grupos rivais se punham em atrito devido ao “desconhecimento prévio”. Assim, Silva (2005) observou dois desafios metodológicos. O primeiro desafio era fazer com que os depoentes compartilhassem o mesmo objetivo da pesquisa: o resgate da memória. Aqui está o ponto-chave que torna essa pesquisa tão interessante. A socióloga despiu-se dos conceitos amplamente difundidos sobre o distanciamento demandado do pesquisador e adotou uma metodologia que aproximava pesquisador e pesquisado por meio do diálogo. A situação que inicialmente causou estranhamento e desconfiança por parte dos sujeitos da pesquisa, especialmente dos líderes políticos (que tendiam a generalizar as falas e, com isso, elevavam o risco de enviesar a pesquisa), mostrou-se eficiente quando a autora seguiu um conceito de W. Mills que ela mesma cita em seu texto: a imaginação sociológica tornou-se sua guia. Tomando o diálogo como fonte de troca e saberes, Silva (2005) ministrou uma palestra aos alunos do curso noturno do assentamento. Ela falou sobre a memória e a sua importância para o processo de reconstrução da identidade e mesmo para a constituição dos alunos como sujeitos históricos de uma nova história. Já o segundo 18 desafio girava em torno do caráter teórico-metodológico da pesquisa. Como interpretar narrativas orais, interpretar silêncios, identificar esquecimentos ou resistências? Como transformar falas em dados a serem analisados, constituintes de uma trajetória? Como afirma Benjamin (1994): A alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles definem uma prática. Essa prática deixou de nos ser familiar. O papel da mão no trabalho produtivo tornou-se mais modesto e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora vazio. (Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente com seus gestos apreendidosna experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito.) A interpretação é de que a relação entre pesquisado e pesquisador é artesanal, é feita pelo trabalho das mãos. Inseridos num meio em que o objetivo era a produção dos objetos, os depoentes talvez se expressassem mais espontaneamente. Se a ideia inicial da oficina de cerâmicas em argila se mostrou infrutífera, o mesmo não aconteceu com a oficina de fuxicos (pequenos círculos de tecido franzido nas bordas por meio de um alinhavado simples que se assemelham a pequenas flores e são matéria-prima para colchas, tapetes, toalhas e almofadas artesanais, entre outros produtos). Nessa oficina, aprendendo uma arte nova, ou relembrando os ensinamentos das mães e avós, as mulheres do assentamento viram-se num ambiente em que as memórias puderam emergir por meio das canções entoadas na execução do trabalho, que as lembravam de sua terra de origem, suas famílias, suas tradições. O estudo da história de uma vida não é a finalidade da sociologia. Ele leva à construção da noção de trajetória como uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) em um espaço de devir e submetido a transformações incessantes. Os acontecimentos biográficos definem-se antes como “alocações” e como “deslocamentos” no espaço social, isto é, nos diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição dos diferentes tipos de capital que estão em jogo no campo considerado. Assim, diferente das biografias comuns, a trajetória descreve a série de posições sucessivamente ocupadas pelo mesmo indivíduo em estados sucessivos do campo social. 19 É apenas nas estruturas de um campo que se define o sentido dessas posições sucessivas: as atitudes, o trabalho e tudo aquilo que torna o campo interessante o suficiente para ser objeto de uma pesquisa. A coerência teórica dessa metodologia se dá pelo fato de que o tempo do devir social dos indivíduos e dos grupos já está estruturado por normas, definições sociais, representações ou oportunidades típicas socialmente condicionadas de desenvolvimento ou de orientação biográfica. Apesar de muito elucidativas, é preciso estar atento ao fato de que as biografias, autobiografias e histórias de vida não revelam toda a vida de um indivíduo, mas apenas uma versão selecionada de como ele deseja se apresentar. Naturalmente, esse não é um processo descartável, já que também é importante conhecer e verificar as interpretações que as pessoas fazem de sua própria experiência para explicar parte do comportamento social. (CANDIDO, 2006). Uma das maiores dificuldades das ciências humanas ao se estabelecerem como disciplinas foi a criação e a adequação de ferramentas metodológicas para tratar de seus objetos de pesquisa. A ideia era que, ao mesmo tempo em que normatizassem a produção científica e acadêmica, as ferramentas também legitimassem tais disciplinas, mostrando normatização e controle da pesquisa. Havia grande dificuldade em mostrar que, embora afastadas das ciências naturais, necessitando de abordagens diferentes, as ciências cujos objetos eram os homens e seus pensamentos, suas construções e interações sociais, podiam ser confiáveis; a volatilidade do objeto consistia mais em uma oportunidade do que em um problema. Foi preciso construir modelos de certa forma rígidos, que conferissem legitimidade às pesquisas das novas disciplinas que se formavam — por muitas vezes, a quebra desses modelos mostrava certos vieses nas pesquisas. Depois da criação da sociologia como disciplina, ocorreu o processo de distinção entre ela e as demais ciências, a partir da formulação de metodologias próprias ainda no século XIX. A interdisciplinaridade é retomada a partir de fins do século XX, tornando as análises mais ricas e aprofundadas. Mas qual é a trajetória da sociologia como disciplina? De acordo com Candido (2006), pode-se dividir o processo de constituição da sociologia brasileira como ciência em dois períodos. No primeiro, entre 1880 e 1930, a sociologia seria “[...] praticada por intelectuais não especializados, interessados principalmente em formular princípios teóricos ou interpretar de modo global a sociedade brasileira” 20 (CANDIDO, 2006, documento online). Nesse período, não haveria ensino nem pesquisa empírica acerca de aspectos delimitados da realidade contemporânea. O segundo período se construiria após a década de 1940, e nesses 10 anos entre uma fase e outra é que a sociologia se incorpora ao ensino superior e passa a ser tratada como instrumento de análise social. Nessa fase, surgem os primeiros sociólogos de formação brasileira, que fomentam o segundo período da sociologia no País. Ainda segundo Candido (2006), a sociologia como campo científico sofre duas influências tão decisivas que a marcam permanentemente: a do direito e a do evolucionismo. No século XIX, o esforço de compreender o Estado, o universo econômico e as estruturas políticas do País foi, essencialmente, do jurista, que o autor determina como “[...] o intérprete por excelência da sociedade, que o requeria a cada passo e sobre a qual estendeu o seu prestígio e maneira de ver as coisas” (CANDIDO, 2006, p. 273). Contudo, [...] como as teorias dominantes na segunda metade do século se achavam marcadas pelo surto científico de então, notadamente a Biologia, que saiu dos laboratórios para se divulgar de maneira triunfante, os juristas mergulharam na fraseologia científica e se aproximaram, neste terreno, dos seus pares menos aquinhoados, médicos e engenheiros, que com eles formavam a tríade dominante da inteligência brasileira. Vemos então, na Sociologia, os juristas inaugurarem uma orientação cientificista, como se dizia, que contou desde logo com a cooperação de engenheiros e sobretudo médicos. A sociologia brasileira formou-se, portanto, sob a égide do evolucionismo e recebeu dele as preocupações e orientações fundamentais, que ainda hoje marcam vários dos seus aspectos (CANDIDO, 2006, p. 273). De fato, os pensadores mais influentes do período, como Sílvio Romero e Fernando de Azevedo, tiveram e assumiram influência darwinista e jurista. Azevedo, um dos fundadores da disciplina no Brasil, foi influenciado por um caldo de cultura científica — que ia dos juristas aos filósofos, passando pelos defensores da biologia. No texto A Ciência da Humanidade: Sociologia... Seu lugar entre a ciência, seu método, pode-se perceber em Sílvio Romero a influência evolucionista, a partir da óptica jurista de análise social. O direito constitui-se de fatos observáveis: as leis. Mas as leis existem para regimentar uma sociedade, um corpo social que age, vive e discute; que, portanto, está em constante movimento. Num Estado, cidadãos estão sob suas leis, mas as leis não são as mesmas em países diferentes, nem se apresentam a todos os cidadãos da mesma maneira. A ciência jurídica, portanto, pode ser subdividida em vários ramos, que entram numa 21 mesma variável geral: a sociologia. Mas a sociologia é uma ciência? Esse questionamento sobre a legitimidade da sociologia como ciência é para onde o olhar de Romero (2001) se direciona, criticando os opositores da “ciência da sociedade”. O maior crítico da sociologia brasileira é o poeta e jurista Tobias Barreto. A crítica do jurista sergipano estaria especialmente desenvolvida em “estudos alemães” e é apresentada no ensaio Variações antissociológicas. Seus argumentos contrários à “ciência da sociedade” eram os seguintes: estudo dos fenômenos sociais culminaria numa “pantosofia” (uma ciência do “tudo”), que não é compatível com o espírito humano; culminaria também em sociolatria, ou seja, a exaltação da grandeza humana, algo que para Barreto era inconciliável com uma ciência social; a liberdade invalidaria a sociologia: “Enquanto não se provar que a vontade humana é uma forçanatural [...] como o calor e a eletricidade, a sociologia nada vale” (BARRETO, 1962, p. 42); se a sociologia trata da sociedade, então seu objeto seria uma abstração sem objetivo e haveria tantas sociologias quanto existem grupos sociais; homem, família e Estado não poderiam ter explicações e mecanismos, como existem nos objetos das ciências naturais; a sociologia derivaria da ideia errada de que a sociedade é um indivíduo diferente do Estado, assim sociologia e ciência política seriam ciências diferentes; para Barreto (1962), a mania da “lei”, que regularia normas e épocas, exposta com a estatística como prova para o fenômeno social, não provaria nada; emparelhamento da sociologia com as ciências naturais não funcionaria, pois não há uma ciência da natureza parecida com o que a sociologia procurava ser em relação à sociedade. Segundo Romero (2001, p. 54), 22 “[...] não há dúvida de que o jurista de Estudos de Direito tem em grande parte razão. Mas não se deve concluir do abuso para a condenação geral da coisa. Porque alguns fantasistas andam por aí a inventar engraçadas e insustentáveis leis sociológicas”. O trabalho do pesquisador está em constante construção e transformação. O objeto demanda sempre uma forma de olhar única, particular. Assim, transportar métodos de análises conhecidos, eficazes anteriormente, nem sempre mostra-se eficiente. Mas o trabalho dos sociólogos que se seguiram à delimitação do campo científico mostra que, muito mais do que encaixar um objeto num tipo de abordagem ou análise preexistente, é ofício do pesquisador procurar, desbravar, produzir novos meios de se chegar ao seu tema, ao seu objeto. 3.3 Ciências naturais e sociologia: o trabalho de Spencer na legitimação do campo sociológico É interessante você observar que os pensadores da sociologia empreenderam uma luta árdua para desenvolver metodologias próprias, e a ciência política trava hoje a mesma batalha. Definida por alguns autores apenas como um desdobramento ou uma ramificação da sociologia, já que seu foco é uma parte importante da estrutura de qualquer sociedade (o Estado e as relações sociais que advêm dele), a ciência política busca ainda hoje estabelecer metodologias particulares, que a legitimem como ciência diversa da sociologia. Nesse caminho, muitos criticam seus pensadores por utilizarem métodos quantitativos e estatísticos em demasia, como numa clara oposição às experiências qualitativas mais utilizadas pela sociologia contemporânea, transformando-a, talvez, numa ciência “dura”. Mas, se para se opor à sociologia é preciso adotar metodologias quantitativas, isso não poderia classificar a ciência política quase como uma ciência matemática? É possível relacionar o modo como a ciência política trabalha hoje para se diferenciar da sociologia com o modo como a sociologia trabalhou para se diferenciar das ciências naturais no século XIX. Naquele período, a classificação das ciências se dava em função de uma suposta complexidade, como no modelo a seguir: 1. Matemática 2. Astronomia 23 3. Física 4. Biologia 5. Sociologia Aqui, a sociologia já se encaixava no plano das ciências, mas no menor grau de complexidade. Para Spencer, o quadro não se definia em ordem de importância, mas da seguinte maneira: 1. ciências abstratas 2. ciências abstrato-concretas 3. ciências concretas Ou seja, para Spencer, haveria particularidades em cada ciência provenientes da natureza de seus objetos, mas o rigor metodológico asseguraria a sua classificação como ciência. Por isso, não poderia haver ciência mais ou menos complexa, mais ou menos importante, ainda que houvesse diferenças ocasionadas pelos objetos de estudo. (AUGUSTINHO, 2018) O evolucionismo moderno quebrou essas barreiras, como mostra Spencer na sua delimitação dos processos do método de pesquisa: 1. observação 2. observação artificial 3. experimentação 4. comparação 5. classificação 6. indução 7. dedução O autor definiu e categorizou passos e assegurou que não haveria outros, nem ciência que não precisasse deles. E a sociologia não fugiria à regra. Spencer relata que, como cientista e sociólogo, seu objeto foi o próprio ato de observar e desenvolver o método da sociologia. A partir de comparações com temas e objetos da física, da biologia, da astronomia, da anatomia e da química, ele chegou à 24 conclusão que buscava: o método da sociologia é o mesmo de todas as outras ciências. Como você viu, a sociologia surgiu como uma “resposta científica” às questões sociais que emergiram no século XIX, especialmente com o desenrolar da Revolução Industrial. (ROMERO, 2001). A sociedade em crise, desorganizada e em situação de caos, levou pensadores a trabalharem numa resposta, numa saída para os problemas sociais como a fome, a violência e o desemprego. Comte e Durkheim trabalharam para que a ciência pudesse dar respostas e direções para o restabelecimento da ordem. Já Marx viu no caos a expressão de que as sociedades estavam inevitavelmente se transformando, e o despertar das classes trabalhadoras levaria o processo em direção ao comunismo mais objetivo. Mas todos os teóricos se fundamentaram nos diálogos com os parâmetros empíricos das ciências naturais para a definição das práticas de análise dos fenômenos sociais, pavimentando o caminho para os chamados “sociólogos profissionais” do século XX. Fonte: www.mundociencia.com.br
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