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Realização 
Mundo ao contrário 
Produção Executiva 
Ivana Portella 
Wagner Lima 
(Casca de Rosca Produções) 
Produtora associada 
Isabel Lito 
Assessoria geral 
Eduardo Katz 
Orientação técnica e afetiva 
Adriana Schneider Alcure 
Revisão 
Daniel Bueno Guimarães 
Acervo Fotográfico 
Celso Pereira 
Capa 
Tangerina.ag 
Direção de arte 
Duda Simões 
Rafael Doria 
Diagramação 
Lilian Carvalho 
Editores 
Marcio Libar 
Adriana Schneider Alcure 
Eduardo Katz 
Produtor Gráfico 
Marcelo Macedo 
Impressão 
Barra Quatro Gráfica
 
_____________________________________________________ 
Libar, Marcio, 1966 
A Nobre Arte do Palhaço / Marcio Libar. – Rio de Janeiro: 
Marcio Lima Barbosa, 2008 
ISBN 978-85-907996-0-3 
1.Artes Cênicas e Recreativas I. Título 
CDD 792 
_____________________________________________________ 
 
 
 
 
 
PETROBRAS 
Vinte anos depois de ter escolhido ser ator, me tornei palhaço e ao mesmo tempo 
uma espécie de militante dessa linguagem realizando espetáculos, encontros, 
oficinas e palestras. Sou um mero aprendiz dessa arte e tenho consciência que o 
apogeu do palhaço só é atingido com a própria velhice. Este livro conta um pouco 
da história desse aprendizado até aqui. 
Nesses últimos 20 anos, o palhaço, assim como as artes circenses, voltaram a 
povoar o nosso imaginário artístico ganhando mais espaço nas mídias, nas 
universidades, festivais do gênero e publicações diversas. Assim como esta que 
tenho a honra de trazer até vocês. 
Posso garantir, com toda a tranqüilidade, que a cena circense brasileira 
contemporânea acontece devido ao esforço e talento de cada um de seus fazedores, 
amantes, estudiosos e adeptos. Na condição de maior patrocinadora de cultura no 
país, a PETROBRAS reconhece nesses loucos e apaixonados militantes da alegria 
uma sólida e responsável parceria que permite a afirmação de sua missão e a 
propagação de seus valores mais nobres. 
Marcio Libar 
 
 
AGRADECIMENTOS 
Este livro é meu presente pelos 20 anos do Teatro de Anônimo. 
Além de ser muito grato a cada uma das pessoas citadas neste livro, gostaria ainda 
de agradecer a outras pessoas que apesar de não terem sido citadas no livro, fazem 
parte dessa história. Vanessa Damasco e Mônica Muller, minhas primeiras 
produtoras e Marcos Correia e Hannah, que criaram a marca ODNUM e que juntos 
me ajudaram a criar e conceituar o projeto Mundo ao Contrário. 
A Fabio Freitas, Reinaldo Fachini e Fabrício Dornelles, meus primeiros assistentes 
estagiários, hoje palhaços profissionais e cada um com seu próprio projeto 
autônomo. 
A Luiz André Alvim (Alf), que sempre esteve a meu lado não apenas como criador 
de luz, mas também com seu olhar de ator e que muitas vezes me fez refletir sobre 
os caminhos do meu espetáculo. 
A meu amigo Sidney Cruz, o interlocutor mais polêmico e chato com quem tenho o 
prazer de tratar das coisas do teatro. 
A Rafael Doria, Duda e Junior Simões da Tangerina, meus parceiros de conceitos e 
direção de arte. 
A Isabel Lito, que me incentivou a escrever um livro sobre mim e não sobre a 
história do Teatro de Anônimo. 
Ao meu parceiro Eduardo Katz, que esteve junto na empreitada do livro desde o 
início, fazendo entrevistas, transcrevendo e inclusive me motivando nos momentos 
em que pensei em desistir. 
A Renata Leite, minha parceira nessa vida, eterna e paciente incentivadora do meu 
trabalho como um todo. 
A OlíviaVon Der Weid, a primeira a dizer que eu deveria escrever minhas 
experiências, nunca aceitando um não como resposta, e Beatriz Fialho, que além de 
terem toda a paciência para agüentar minhas inseguranças como escritor diletante, 
leram, opinaram e muitas vezes corrigiram textos que eu mandava aleatoriamente, 
mesmo antes de o livro ter um corpo definido. 
Ao fotógrafo, parceiro e amigo de tantos Celso Pereira, que vem registrando com 
beleza e precisão através de sua lente grande parte da história recente do circo no 
Rio de Janeiro. 
Ao meu parceiro de última hora Daniel Bueno Guimarães, que além de fazer a 
revisão foi o primeiro a nos dar a dimensão real da importância e da qualidade do 
material que tínhamos em mãos. 
E à memória da minha prima/irmã, Eliane Moreira Lima da Silva. 
 
 
APRESENTAÇÃO 
 
Conheci o Marcio em março de 2004, quando participei da oficina “A Nobre Arte”. 
Aquilo me marcou profundamente.Vinha de uma experiência vigorosa com o 
Grupo Tá na Rua e encontrei então uma nova linguagem, a do palhaço, que 
representou para mim um contraponto, um lugar para a delicadeza, o pequeno, o 
mínimo. Conheci a filosofia do idiota e comecei a ver o ridículo com outros olhos. 
Em seguida, vi o espetáculo O Pregoeiro, no qual o riso e as lágrimas se misturam. 
Passei a ter o Marcio como referência na minha formação. 
Em junho de 2006 colei grau em Artes-Cênicas na Uni-Rio. Nessa época, esbarrei 
com ele num bar na Gávea. Contei que estava me formando e que adoraria 
trabalhar com ele. Poucas semanas depois ele me conta que acabara de começar a 
escrever um livro e que eu poderia participar desse processo. Passei a ser um 
assistente direto na reflexão sobre o material, na concepção do livro, colaborando 
na redação, na pesquisa e na produção. Tive o privilégio, junto com a Dri, de 
dividir com o Marcio o desafio de escrever o seu primeiro livro. 
Um ano e meio depois, creio que temos um material muito rico sobre a formação 
do ator, a filosofia do riso e, sobretudo, a luta pela sobrevivência. Como sobrevive 
o artista no Brasil? O palhaço arregala os olhos e gira a palma das mãos para cima, 
assumindo ridiculamente a sua dúvida. O ator forma grupos, vira produtor, 
pesquisador, professor, diretor, iluminador, contra-regra; vira palhaço; vira 
escritor. Arregaça as mangas e sobrevive. Ri. Chora. Somos artistas! Boa leitura. 
Eduardo Katz 
 
 
De reverências, referências e revelações: o triunfo do palhaço. 
Foi em 2006, depois de 6 ou 7 garrafas de vinho tendo a madrugada chuvosa de 
Paris como cenário, que o Marcio me contou de seu desejo de escrever um livro. 
Embalados pela borracheira mística de Dionísio e Exu imaginamos, sem imaginar, 
quase tudo que nessas páginas se concretiza. Com a crença no poder da oralidade e 
na certeza de que cada ser humano vivente nessa terra tem uma história fascinante e 
única a ser contada, seguimos trôpegos. 
Escolhas foram feitas já no início: o investimento no tom confessional puxado da 
memória, a liberdade dos contadores de “causos”, porque em primeira pessoa do 
singular e do plural, porque tudo aconteceu de fato. Essa foi a opção certeira, o 
mapa da mina: escolher o acontecido como protagonista. A escrita do passado com 
os olhos do presente, mas não conclusiva, pois os episódios narrados dariam conta 
apenas de uma parte do caminho, afinal o palhaço precisa ainda envelhecer, por 
isso neste livro não encontraremos soluções, nem teorias. 
Na verdade, sabemos, é fato notório, que nas entrelinhas de uma biografia há 
conteúdos sociais, culturais e históricos que passam ao largo da História Oficial, 
mas que dão conta das múltiplas faces da realidade pela força da experiência. Este 
procedimento não é novo, pois a História Oral vem consolidando seu lugar de 
legitimidade junto às “altas ciências” há décadas. Assim, este livro pode ser lido de 
diversas maneiras. 
Uma camada conta a história de um homem qualquer e sua trajetória profissional, a 
busca, e por isso é relevante entendermos quem é esse narrador, de onde ele vem, o 
que deseja e como nos vai contar suas peripécias. No pano de fundo desse roteiro 
— afinal como se diz “nossas histórias dariam filmes” — nos deparamos com 
fatos, transformações e indagações da cena artística, cultural e social carioca das 
últimas décadas, refletidas por alguém que tem a política como vocação e nasceu 
com o tino dos falastrões, a perspicácia dos pregoeiros. 
Mas a leitura que mais me encantou, me encanta e que me orientou na minha 
função de orientadora edesorientadora de nosso escritor é que este é um livro sobre 
o palhaço. Ou melhor, sobre o aprendizado de um palhaço na virada do século 
XXI, com todos os componentes maravilhosos que a contemporaneidade nos 
obriga. Nesse sentido, o estado permanente de aprendiz que é exigido do palhaço, 
faz desse livro uma reverência aos mestres da palhaçaria do nosso tempo, que por 
sua vez encarnam a herança, são os portadores de uma arte milenar, plena de 
dádivas, transmitida através da observação, da oralidade e do suor. Este livro é 
também um apanhado de referências, a identificação dos parceiros, o pagamento de 
uma parte da dívida com a história do palhaço e a arte da palhaçaria, que vem 
sendo, precisa ser e ainda será contada. 
A revelação da experiência desse aprendizado é um brinde à transmissão dos 
saberes e aos encontros, um convite a que todos contem as suas histórias. Este livro 
é mais uma contribuição, um apanhado de fontes para os apaixonados, os 
diletantes, os curiosos, os fazedores dessa nobre arte. Mas como o palhaço nos 
ensina a não levar essa vida a sério, abram seus corações, porque no fim, Marcio se 
revelou um escritor nato e o que temos nas mãos é um livro recheado de aventuras 
como as melhores ficções. Aqui é o próprio picadeiro, está tudo exposto, aliás esse 
é o truque: arte e vida, pessoa e personagem, perdas e triunfos, passado, presente e 
futuro, tudo junto. 
Adriana Schneider Alcure 
 
Li A Nobre arte do palhaço com a curiosidade de uma criança com um 
brinquedo novo. 
E para cada página virada, surpreendentemente, vi o brinquedo se desdobrar em 
tramas e cenários que revelavam diversas perspectivas e personagens. Marcio 
Libar, sem perder o ritmo e o rumo de uma estrada sinuosa, conduz seus leitores no 
caminho que ele mesmo percorreu durante várias fases do aprendizado e 
aprimoramento da arte do palhaço, iniciando com a narração de suas origens, suas 
escolas e seus mestres, entrando na lona do circo, invadindo o picadeiro e vestindo 
a roupa e o nariz de palhaço. 
Este livro é muito mais que uma biografia, ele representa a jornada de um homem 
comum em busca de sua essência. E nesse caminho ele revela vários nascimentos: 
o do Teatro de Anônimo, o do Anjos do Picadeiro, o do amor pelo palhaço, um 
amor confesso de uma nova geração, agora não mais a das grandes famílias 
mambembes, mas a dos que se aventuram em diversas escolas, seja a rua, sejam os 
retiros com mestres tradicionais, sejam as escolas especializadas. E com uma 
riqueza de detalhes capaz de fazer inveja a qualquer romancista, vivemos juntos, 
nas paginas mais emocionantes do livro, o nascimento de Cuti-Cuti, plasmado n„o 
da costela de um homem, nem do sopro de um Todo-poderoso, mas da entrada nos 
locais mais escondidos e inacessíveis da matéria humana: da poÁa de baba do 
choro mais irracional, da calda das mascaras aparentes, da revelaÁ„o do que È 
mais verdadeiro na personalidade. 
 
Como Montaigne, embora sem se isolar na torre, foi justamente na busca mais 
profunda de si mesmo, que o homem encontrou seu outro, seu duplo, a porção que 
geraria o artista autêntico. Para Marcio Libar, não basta ser palhaço, é preciso ter 
acesso à verdade e assim o ser verdadeiramente. Essa a condição para encontrar o 
caminho próprio que levará ao alto da montanha, sem medo dos riscos e aceitando 
qualquer perda, pois depois que se perdeu tudo não se tem mais nada a temer. 
O nascimento do palhaço não encerra o livro, seu amadurecimento, pautado pela 
inquietude própria do artista e o interesse contínuo na pesquisa, revela toda uma 
rede da troca forjada pelos palhaços dessa geração que está fazendo a história do 
circo e da comicidade hoje. Este o maior desdobramento do livro: ao escrever sua 
história, Marcio Libar deixa um documento de uma geração audaciosa, 
transgressora e ao mesmo tempo profundamente conhecedora da melhor tradição 
circense. 
Dá gosto ler A nobre arte do palhaço. Marcio Libar construiu uma trama com 
evoluções de cenas, clímax e tudo o mais que há nos melhores livros de ficção. 
Quando nos damos conta de que é tudo pautado sobre acontecimentos reais, 
admiramos ainda mais esse livro pela maneira que seu autor encontrou para narrar 
o vivido. 
Ieda Magri
 
 
 
SUMÁRIO 
PRÓLOGO, 
1° PARTE — MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA, 
1. De onde venho, 
2. Visconde de Cairu: teatro na escola, 
3. Calouste Gulbenkian: escola de teatro, 
4. Teatro de Anônimo: minha escola, 
5. Flávio Nascimento: o cambono peripatético, 
2o PARTE — O CIRCO CHEGOU!, 
6. Pepe Nuiiez: o corsário espanhol, 
7. Escola de Circo, 
8. Tchesco e Xuxu: palhaço de circo ou de teatro?, 
9. A fita , 
10. Aldeia de Arcozelo: roda saia, gira vida, 
3a PARTE — E O PALHAÇO, O QUE É?, 
11. Julio e Sérgio, 
12. Os Parlapatões, 
13. E nasce a Cia do Público, 
14. Retiro do Lume: a iniciação, 
15. Abduzido pela comédia, 
4a PARTE — PALHAÇARIA, 
16. Nani Colombaioni: o velho mestre, 
17. Tortell Poltrona: o furioso catalão, 
18. Chacovachi: o palhaço do terceiro mundo, 
19. Ano 13,165 
20. Leo Bassi: o incendiário, 
21. Jango Edwards e o Riso da Terra, 
22. O perdedor, 
E AGORA?, 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PRÓLOGO 
Abril de 2006. Era a primeira viagem com o Teatro de Anônimo 
desde que eu saíra do grupo. Faltava mais ou menos uma hora para 
começar o espetáculo quando chegamos ao Teatro Princesa Grace, situado num 
privilegiado mirante sobre a baía de Monte Cario. Resolvemos fazer um pit stop 
para curtir aquele pôr do sol antes de irmos para o camarim. O hotel ficava a uns 
dez minutos de caminhada, subindo pelas curvas estreitas do famoso circuito de 
rua da Fórmula 1. O Principado de Mônaco é um pequeno país e um paraíso fiscal 
com a maior quantidade de casarões, lojas chiques, hotéis, cassinos e iates 
luxuosos por metro quadrado que eu já vi. Tudo isso incrustado de botox, 
brilhantes, Porsches, Ferraris, loiras e silicones. Não necessariamente nessa ordem, 
é claro. 
Um estranho luxo, principalmente aos olhos dos três cariocas suburbanos que 
transitavam por aquela cenografia: João Artigos, negro alto, cabelos curtos e 
costeletas aparadas no meio do rosto, fazendo a linha black is beautiful; Shirlinha 
(Britto), baixinha de expressivos olhos verdes e uma enorme juba meio sarará ao 
melhor estilo black power, e eu, o típico mameluco atarracado, cabeçudo, perna 
curta, olhos claros e longos cabelos rastafari. 
Não que nos sentíssemos marinheiros de primeira viagem; ao contrário, já éramos 
parceiros de longa data, com muitas viagens e turnês no Brasil e no exterior. 
Porém, nenhum lugar é igual a Mônaco. Dava a impressão de que a qualquer 
momento uma voz em off gritaria: “Corta!”, e tudo voltaria ao normal. Também 
não era nosso primeiro festival fora do Brasil, mas o fato de ser o primeiro em 
caráter competitivo gerava uma ansiedade diferente, principalmente pelo glamour 
que envolve a apresentação numa Noite de Gala especialmente dedicada aos 
palhaços, e ainda por cima tendo como curadora a Princesa Stéphanie. Sabe aquele 
orgulho que em geral acomete um preto, suburbano, “terceiro-mundista”? Pois é, 
eu estava imbuído dele. Estávamos tirando a maior onda. 
Desde dezembro de 2005, quando eu soube que tínhamos sido selecionados para o 
Festival de Montecarlo, eu dizia para a galera: “Periga a gente ganhar essa 
porra!”. E é claro que eu era zoado. Na verdade, eu não sabia se aquela sensação 
era fruto de minha intuição ou de uma consciência que acabei adquirindo em vinte 
anos de carreira, quinze deles militando exclusivamente na arte do palhaço. Depois 
de um tempo participando de festivais do gênero, você acaba criando referências 
sobre alguns trabalhos contemporâneos, e suas formas de atuação e estilos de jogo. 
 
Alguns eu tive oportunidade de ver e até de conhecer pessoalmente. Outros eu 
conheci através de vídeos ou de comentários de outros profissionais, já quesão 
raríssimas as publicações sobre o tema. Ser palhaço é uma ciência, mas geralmente 
não é assunto para cientistas. 
Na visão mais cosmopolita e globalizada de uma pessoa que vive num grande 
centro como eu, até arriscaria dizer que não há um palhaço profissional, 
independente do país em que atue, que não tenha sequer ouvido falar da 
genialidade de um Grock, de um Charlie Rivel, um Joe Jackson Jr., ou de famílias 
como os Fratelini e os Colombaioni. Sem contar os que foram imortalizados pelo 
cinema, como Chaplin, Buster Keaton, Laurel e Hard, os Irmãos Marx e muitos 
outros. E bem verdade que os muitos palhaços espalhados pelo interior e pelas 
periferias deste Brasil, que aprenderam o ofício com os mais velhos na dureza da 
luta pela sobrevivência, provavelmente nunca ouviram falar em algum desses 
grandes ícones internacionais. Mas posso garantir que teria me feito falta se eu não 
houvesse tido a oportunidade de conhecer os grandes mestres do nosso povo, como 
Mestre Zezito, Colorai, Trepinha, Chupetin, Cuxixo, Biriba, Biribinha, e tantos 
outros gênios da arte do riso e da brincadeira. 
Distraído, olhando o sol descendo na baía, inspirei fundo a maresia 
deixando o peito se encher num misto de emoção e orgulho por estar participando 
daquela noite. Seriam premiados os melhores do ano, entre palhaços de várias 
partes do mundo. Sorri só de imaginar a possibilidade de ganhar. Cheguei até a me 
arrepiar. Estava curtindo a sensação de fazer parte do tal mundo dos palhaços e não 
iria fugir à responsabilidade de mandar bem. Achava que podia ganhar este 
prêmio: o Nariz de Ouro. Passava detalhes do número na minha cabeça. Imaginava 
o teatro de 500 lugares lotado, a gargalhada explodindo após uma gag executada no 
tempo perfeito. Absorvido pelo clima, lembrava-me do velho Nani Colombaioni. 
Foi Colombaioni que nos fez atentar para o estilo de jogo cômico clássico; foi ele 
que nos transmitiu um saber tradicional composto de segredos, macetes e truques 
guardados a sete chaves por essa família de palhaços italianos cuja história remonta 
à própria commedia dell’arte. A experiência que eu e João vivemos com Nani em 
1998 tinha marcado definitivamente meu entendimento sobre o palhaço. Foi a 
partir daí que passei a compreender o palhaço na sua dimensão de arte e ofício 
clássicos e a entender o tempo de ação cênica específica desse tipo de palhaçaria. 
Claro que aprendi e continuo aprendendo com vários outros mestres, como 
Chacovachi, Leo Bassi, Tortell Poltrona e Jango Edwards, além de parceiros 
brasileiros da minha própria geração, como Hugo Possolo, Alexandre Roit, Sérgio 
Machado (Séjo Séjo) ejulio Adrião. Eu jamais teria o meu palhaço Cuti-Cuti, por 
 
exemplo, se não tivesse passado pelo “Retiro de Iniciação ao Cloum do LUME”. 
Nossa! Como sou grato aos meus “Messieures” Simi (Carlos Simioni) e Rick 
(Ricardo Puccetti), por terem me revelado este tesouro que é o Cuti. Todos eles são 
muito caros para mim, mas o Nani foi e sempre será a semente original. 
À noite apresentaríamos Um, two, trois, número que havíamos 
criado há uns doze anos. Posso dizer que foi com esse número que nós três 
aperfeiçoamos nosso trabalho de palhaço. Criamos a cena em 1994, quando o 
grupo fez uma imersão de quarenta dias na Aldeia de Arcozelo, da FUNARTE, sob 
a orientação do espanhol Pepe Nunes. O número não tem fala, é uma comédia 
física, visual, totalmente inspirada nas gags tradicionais dos velhos palhaços. Fez 
parte do espetáculo Roda Saia Gira Vida (1994) e, depois da experiência com 
Nani, passou a ser também a base do espetáculo In Conserto (1998). A cena já 
funcionava há quatro anos, mas depois que passou pela revisão do velho mestre 
adquiriu contornos de arte refinada. Por isso mesmo acabou se justificando a sua 
inclusão em dois de nossos espetáculos, mesmo que em versões diferentes. 
Pensando bem, era mais de uma década aperfeiçoando o 
número, e não tinha como não funcionar naquela noite. 
Recordar sua evolução me dava segurança de que realmente poderíamos 
surpreender o júri. O sol já se punha no horizonte quando decidimos entrar e descer 
para o camarim. Nossas coisas já estavam arrumadas desde o ensaio técnico que 
havíamos feito à tarde. Tinha sido nessa hora que, além de conhecermos as 
dependências do teatro, também tivemos a oportunidade de ver nossos 
concorrentes ensaiando, bem como eles a nós. 
Foi depois desse momento que notei uma pequena mudança por parte de alguns 
palhaços mais velhos em relação a nós. 
Não que nos tratassem mal; ao contrário, sempre foram extremamente gentis e 
simpáticos desde o primeiro contato. Porém, percebi que quando viram nosso 
ensaio passaram a nos enxergar como concorrentes, e não mais como uns palhaços 
brasileiros dispostos apenas a adquirir experiência. Na ocasião, tínhamos resolvido 
fazer um ensaio para valer, buscando atuar dentro do tempo exigido pelo 
regulamento, que não poderia exceder a dez minutos, sob o risco de vermos as 
cortinas se fecharem conosco ainda em cena. 
Acredito que tenham se surpreendido quando viram que trazíamos em nossa 
bagagem um tipo de clown que quase já não existe mais, que é coisa rara, mesmo 
em território europeu. Nós estávamos lá representando a palhaçaria clássica, como 
legítimos herdeiros da mais pura tradição italiana, temperada com o swing 
 
afro-carioca. 
E claro que tudo isso poderia ser puro preconceito ou até mesmo uma espécie de 
ressentimento da minha parte. Na verdade, acho que já era a adrenalina batendo. O 
instinto de sobrevivência me mobilizando e aguçando, me instigando e me dando 
gana de arrebentar, nem que para isso fosse necessário levar a concentração ao 
máximo e fazer a melhor apresentação de nossas vidas. 
Já no nosso camarim (cada concorrente tinha o seu) trocando de roupa, era 
engraçado perceber que nem João e nem Shirley estavam vivendo isso com a 
mesma competitividade que eu. De minha parte, fazia o possível para 
contaminá-los com a minha pilha, afinal de contas para que minhas pretensões se 
concretizassem seria fundamental que o trio estivesse totalmente imbuído do 
mesmo espírito. Ou seja, ganhar o Nariz de Ouro, o mais cobiçado prêmio da noite. 
Coloquei-me, sem constrangimentos, no papel de motivador; como uma espécie de 
Bernardinho, de Felipão. Como dizem os alpinistas: “Pra mim, só o cume 
interessa... 
Fora os prêmios de Nariz de Ouro, Prata e Bronze, porém, mais tarde soubemos 
que também estaria em disputa o Prêmio Especial do Cirque du Soleil. Embora um 
prêmio a mais em jogo aumentasse as nossas chances de levar algum, nunca me 
ocorreu que nossa estética pudesse agradar ao jurado do Soleil. Como se tratava de 
um Prêmio Especial concedido pelo que é considerado o maior circo da atualidade, 
ele acabava sendo o prêmio mais cobiçado por todos. Até porque poderia gerar 
contrato de trabalho. Quem sabe? 
O diretor de palco avisou que o show iria começar. Nós éramos 
os últimos, o que por um lado era bom, pois estaríamos frescos na memória dos 
jurados, mas por outro lado poderíamos pegar uma plateia cansada de ver tantos 
números, mesmo porque inevitavelmente algumas gags acabam se repetindo. 
Trancamo-nos em nosso camarim, de onde podíamos ver as outras apresentações 
por um pequeno monitor. E claro que não conseguimos ficar ali na frente da TV o 
tempo todo. Circulávamos pelos corredores e, sempre que eu podia, ia até as coxias 
ver um número e ouvir o riso da plateia. Sempre com aquela inevitável vontade de 
cagar. 
Quando faltavam dois números antes do nosso voltamos para o camarim para uma 
concentração final. Falamos de como deveríamos estar atentos e curtir cada detalhe 
do jogo. Ajustamos uma ou outra gag, conferimos os objetos e pronto. Era só 
esperar nossa vez. Adrenalina a mil. E o coração? Naqueles breves minutos que 
antecederam nossa entrada, lembro que me dirigi ao João, segurei suas mãos, olhei 
 
fundo nos seus olhos, e disse: “Vamos fazer essa pelo Nani”. Ele sorriuconfiante, 
e fortaleceu: “Pelo Nani”. Shirley se aproximou de nós, fechamos a roda, fizemos 
nosso axé, e eu dei a voz de comando: “Vamos matar esses filhos da puta de rir". 
Abraçamo-nos e fomos para os nossos lugares, motivados e emocionados. Chegou 
a nossa vez. It's show time! 
A música animada do nosso número entrou, e João botou a 
cara na cortina de fundo num foco feito apenas para ele, 
invadindo o palco e puxando palmas ritmadas da plateia que o acompanhava sem 
cerimônias. Golaço! Bangu 1 x 0. O Nego entrou confiante. Por trás da cortina eu 
podia ver sua sombra regendo o público com desenvoltura, ora baixando, ora 
intensificando o calor das palmas. Meu coração parecia que ia sair pela boca no 
máximo da adrenalina. Num gesto preciso, João interrompeu a música e as palmas 
a um só tempo, como sempre. Para minha surpresa, não sobrou nenhuma palma 
para que ele pudesse repreender o espectador como gosta de fazer. Ainda bem, 
porque nessas horas o João sempre se empolga e isso poderia gastar um tempo 
precioso que certamente faria falta lá na frente. Bom sinal. Mantendo o silêncio e a 
expectativa do público, encerrou seu equilíbrio com o guarda-chuva com um 
sonoro “Olé!”, fazendo o aplauso explodir como de costume. Era a minha deixa. 
Agora e na hora de nossa morte... Amém! 
Entrei com passos débeis carregando minha mala e o acordeom de João e parei na 
sua frente, roubando-lhe os aplausos. Antes que eu me empolgasse no jogo com o 
público, João prendeu meu braço esquerdo com a alça do guarda-chuva e me puxou 
para o seu lado. Com a força do puxão dei uma volta em torno do seu corpo, até ser 
parado por ele de costas para a plateia. Ainda com a alça do guarda-chuva, ele me 
prendeu pelo tornozelo, virando-me agora de frente. Impulsionado pela força do 
giro, pisei em seu pé esquerdo, apoiando em seguida o estojo pesado do acordeom 
em seu pé direito e fazendo-o gritar de dor. Então João tirou o sapato, e quando o 
público viu a luva de látex que imita seus dedos esmagados, explodiu na 
gargalhada. Bangu 2 x 0 . 
A precisão e o frescor com que foi executada a primeira seqüência do número, 
associados à reação positiva da plateia, nos deram a certeza de que realmente 
estávamos numa noite iluminada. Daí para frente é difícil explicar o que aconteceu. 
O que eu sei é que tudo fluiu perfeitamente: as gags aconteciam no tempo justo, 
tudo dava certo, o público ria de cada bobagem, as entradas e intervenções da 
Shirley eram precisas, e isso nos incendiava em cena. A onda foi tão boa e intensa 
que, ao final, quando saímos tocando, fomos acompanhados pelas palmas da 
plateia que, por sorte, abafaram a rateada que demos nos últimos acordes. 
 
Saímos de cena com uma ótima sensação. Mas eu não tinha certeza 
se tínhamos sido os mais aplaudidos ou os que mais haviam arrancado risos da 
plateia. Agora estávamos nas mãos do júri que tinha se reunido para decidir a 
premiação. Na hora prevista, o diretor organizou uma fila por ordem de entrada nas 
coxias e foi aí que vi chegar a Princesa Stéphanie e sua comitiva. Lembro de sorrir 
para ela e ser correspondido com carinho, afinal de contas tinha sido ela 
pessoalmente a responsável pelo nosso convite, conforme ficamos sabendo quando 
lá chegamos. Linda. A música do RPM não me saía da cabeça: “Stéphanie de 
Mônaco, / aqui estou, / inteiro ao seu dispor... 
Entrou o pessoal do cerimonial, a comitiva da princesa, e em seguida chamaram ao 
palco os palhaços da noite. Só aí pude perceber o batalhão de fotógrafos e 
cinegrafistas que ocupavam o fundo da elegante plateia, à altura de uma noite 
clássica de gala. A parada era séria mesmo. Lembro de ter cochichado com João ao 
meu lado: “Se a gente levar o bronze tá maneiro”. Ele riu da minha angústia, 
afinal, eu que tanto tinha falado em vencer estava ali me conformando com 
qualquer prêmio. 
Nesse momento, foi chamado ao palco o Ives, diretor de casting do Cirque du 
Soleil para entregar o tão cobiçado Prêmio Especial. Fez sua fala institucional em 
francês, parabenizando todos os concorrentes da noite, e anunciou como vencedor: 
Teatro de Anônimo do Brasil. “Caraça!”, gritei e fui à frente receber o troféu, 
voltando em seguida para abraçar o João e a Shirley. Bangu 3 x 0 . Goleada. 
Depois foi anunciado o Nariz de Bronze para o casal de alemães, uma excelente 
dupla, seguidora da escola do palhaço russo Slava. Na minha opinião, eles eram 
fortes candidatos ao primeiro prêmio. Quando vi que eles eram os terceiros, virei 
para o João e disse: “Fodeu, nem o bronze! ".João ficou sério até que anunciaram 
que o ganhador do Nariz de Prata era o Teatro de Anônimo do Brasil. Pulamos de 
alegria e nos abraçamos. Dos quatro prêmios em disputa estávamos levando dois. 
Bangu campeão. 
O primeiro colocado foi o francês Rafistal. Magro, calvo, pouco mais de 50 anos, o 
cara é uma fera, e acabou levando também o Prêmio do Júri Popular. Ele também 
usava fraque preto e tinha executado, assim como nós, um número musical de 
estrutura clássica em que o palhaço se atrapalha em suas ações e objetos até 
conseguir tocar o instrumento. Comentei depois com Rafistal o quão curioso era o 
fato de os prêmios terem sido divididos entre uma dupla, um trio e um solo, sendo 
que os dois primeiros homenageavam a palhaçaria clássica. “Escolheram o 
palhaço de sempre", disse Rafistal, com um sorriso que revelava seu orgulho de ser 
representante da velha escola. Eu compartilhava seu sentimento. 
 
Depois da comemoração num restaurante (chique, é claro) e 
de virarmos muito champanhe, fomos caminhando para o hotel, felizes da vida, 
comentando a façanha. Andando novamente pela madrugada fria de primavera eu 
me vi tomando distância e olhando com admiração para os meus parceiros de vida, 
arte e ofício. Pensava na trajetória que estávamos construindo. Pensava no que 
aqueles prêmios poderiam representar para o ofício no Brasil. 
Desde que tínhamos começado a realizar o “Anjos do Picadeiro — Encontro 
Internacional de Palhaços”, que acontece bienalmente, fomos criando um 
intercâmbio permanente entre os palhaços daqui e de outros países, e com isso 
passamos a ter acesso aos principais trabalhos da atualidade, o que gerou uma 
grande oportunidade de evolução. Hoje eu me arriscaria a dizer que alguns 
trabalhos realizados no Brasil não deixam a desejar em nada aos dos centros mais 
tradicionais dessa arte, seja na Europa ou nas Américas. 
Já de volta ao quarto, ainda havia muita adrenalina para conseguir dormir. Depois 
das últimas piadinhas e papos antes de pegarmos no sono — pois apesar de todo o 
luxo do festival, estávamos os três enfiados num quarto minúsculo — fiquei ali 
repassando na cabeça as imagens daquela noite gloriosa, tentando registrar na 
memória cada detalhe para que nada, nunca mais, me fugisse. 
Nesse momento senti uma nostalgia e me dei conta de que tinha sido em 1996 que 
realizamos o primeiro “Anjos do Picadeiro”, há dez anos atrás. Também percebi 
que vinte anos tinham se passado desde que eu tinha convidado meus amigos para 
criar o Teatro de Anônimo. Comecei a me dar conta da coincidência das datas 
(2006, 1996, 1986) e do fato de um ciclo estar se completando. Qual seria a melhor 
maneira de registrar isso? Quem sabe um livro? Sim, mas... não tenho idade nem 
histórico suficiente para fazer algo biográfico, muito menos sou historiador, 
antropólogo ou teatrólogo para me arvorar a escrever sobre cultura popular ou 
teatro, e muito menos filósofo para escrever algum tratado sobre o riso. Quem sabe 
dou entrevista e depois transcrevo. Mais fácil. Já era tarde, adormeci pensando 
nisso. 
Acordamos cedo, pois antes de ir para o aeroporto precisávamos pegar o cachê. 
Shirley voltaria direto para o Brasil, enquanto João iria encontrar com Leo Bassi 
em Palma de Mallorca, na Espanha, para ensaiar seu novo espetáculo, Homem 
Bomba. Eu iria até Paris para encontrar minha companheira Renata que 
permanecera em Portugal, onde eu tambémtinha estado antes de seguir para 
Mônaco. E assim nos despedimos com a sensação de missão cumprida. 
 
Chegando a Paris, liguei para a minha amiga Dri (Adriana 
Schneider), que estava passando uma temporada de um ano e meio na Alemanha 
desenvolvendo sua tese de doutorado, e que na ocasião estava na França, estudando 
no Instituto Internacional de Marionete, em Charleville-Mézières. Foi nesse 
encontro, depois de uma noite em que matamos seis garrafas de vinho, que falamos 
da idéia do livro. Foi ali, na Cidade Luz, que a Dri me deu a luz de que eu não 
deveria fazer o livro dando entrevistas, pois eu teria plenas condições de escrevê-lo 
em forma de depoimento, narrando a trajetória de meu aprendizado. Não sei como 
ela me convenceu disso. Deve ter sido por causa do vinho. Enfim, aceitei o desafio 
desde que ela fosse minha orientadora, e bêbados brindamos pela enésima vez, 
antes de sairmos trôpegos pelas ruas de Paris. 
 
 
 
 
Mãe, Pai, Wagner, no colo, Fábio e Marcio, em primeiro plano
 
 
1. DE ONDE VENHO 
 
13 de Fevereiro de 1966, 40 anos antes, alto verão carioca. 
Nasci com o sol em Aquário, ascendente em Sagitário, lua em Touro, e sou filho de 
Omolu nesse mundo e no outro. Fui batizado na Igreja de São Tiago, na Praça de 
Inhaúma, um mês e treze dias depois, exatamente no dia do primeiro aniversário do 
meu irmão mais velho, Fábio, e da famosa enchente de 1966, uma chuva que 
deixou a cidade em estado de calamidade pública. A igreja estava em obras, e a 
chuva era tanta que eu recebi a benção debaixo de um guarda-chuva. Devido à 
confusão para sair do táxi, quando minha mãe foi olhar para ver como eu estava 
deu de cara com meus sapatinhos de bebê: ela estava me segurando de cabeça para 
baixo. Foi assim que saí do meu batizado: vendo o mundo ao contrário. 
Cresci uma criança meiga, daquelas que conversam com as visitas. Passei grande 
parte da infância dentro de casa, jogando futebol de botão com meus dois irmãos, 
Fábio e Wagner. Passava horas a fio trancado no quarto, brincando com os bonecos 
do Forte Apache do General Custer. Acho que não ia para a rua para não mexerem 
comigo. Além de meigo, eu era frouxo e medroso. 
Bolival Moreira Lima da Silva (1909-1988): seu Boliva, meu avô 
Negro carioca, criado em Santa Cruz, volta e meia o velho repetia aquela mesma 
história com sua fala mansa e pausada: “Com nove anos já trabalhava na ‘tripa 
seca ’fazendo lingüiça. Fedia! Com doze eu já era tecelão, trabalhava na Fábrica 
Bangu. Quando passava na rua as pessoas cochichavam: aquele menino ali é 
tecelão! Comecei cedo... ”, dizia rindo de si mesmo. Casou aos 23 anos com 
Izaltina, e no mesmo ano nasceu sua filha Dagmar. Cinco anos depois, veio a Nilce, 
minha mãe. Montou a biblioteca do Clube de Engenharia como funcionário e mais 
tarde contraiu uma úlcera ao ser substituído por uma bibliotecária diplomada; sinal 
dos tempos. 
Também tocou cavaquinho nas festas da Penha e nos quintais das casas, flanou 
pelo centro da cidade, crescendo junto com ele, percebendo sua transformação ao 
longo das décadas: “Agora veja você, antigamente pras pessoas virem na cidade 
botavam chapéu. Tinha que usar chapéu!’’, ele costumava falar num tom 
saudosista e com uma ponta de indignação. Com o suor do trabalho construiu sua 
 
própria casa e formou as filhas professoras. E aquela casa de vila sem calçamento, 
na Rua Paquequer 270, casa 17, no pé do Morro dos Urubus, no Bairro da 
Abolição, foi a primeira a ter telefone, televisão, rádio-vitrola e alguns discos e 
livros. Às vezes, vovô entrava na sala arrastando os chinelos e com dois pares de 
óculos, um por cima do outro “para enxergar melhor”, lia um verbete de dicionário, 
uma frase ou uma curiosidade qualquer. Outras vezes, punha um disco de Orlando 
Silva, Nelson Gonçalves, Ataulfo Alves e comentava sobre a vida e a carreira 
daqueles cantores. Ele adorava o Martinho da Vila e ria muito com a música O 
pequeno burguês, que dizia: “...felicidade, passei no vestibular, / mas a faculdade 
é particular... ”. 
Foi nosso tutor depois da morte do meu pai, quando eu tinha seis anos, e cumpriu 
bem seu papel. Apresentou-nos ao carnaval da Avenida Rio Branco e gostava que a 
gente se fantasiasse de “bate-bola” todo ano. Nunca deixava de pegar o trem até o 
matadouro de Santa Cruz para comprar bexiga de boi. Sentava no quintal e enchia 
as três bolas pacientemente soprando por um tubo feito com o talo da mamona, 
para que cada um dos netos pudesse sair batendo pela rua mascarado de Clóvis. Fez 
a gente gostar de futebol. Passamos várias tardes de domingo no Maracanã. Pagou 
aulas de capoeira para mim desde que eu tinha 13 anos a contragosto da minha 
mãe, que tinha medo. 
Eu e meus irmãos gostávamos de fazer umas brincadeiras com ele. Por exemplo, 
toda vez que a gente percebia que ele estava se aprontando para sair, algum de nós 
perguntava de longe: “Vo! Vai aonde?”. E a gente ria esperando a resposta que 
vinha sempre naquele tom calmo e inabalável: “Na rua...”. Era só ele responder 
para que um de nós completasse: “Volta que horas?”. E ele arrematava: “Não sei, 
ainda não fui!”. Como a gente se divertia com isso! 
Ao morrer, aos 79 anos, além do patrimônio material que construiu, deixou um 
terno de linho branco e uma pasta com algumas fotos, documentos e recortes de 
jornal. Esses recortes traziam as cartas que ele escrevia para os políticos da Capital 
Federal para reclamar de projetos de lei ou de algum buraco na calçada. Fazia isso 
naturalmente, sem glamour e sem alarde; era simples exercício de cidadania. Foi a 
pessoa mais importante na minha vida. Minha mãe diz que eu estou virando meu 
avô. Sonho sempre com ele. 
Izaltina de Moraes Lima (1913-1987): 
Dona Nina, minha avó 
Mato-grossense de Corumbá, Dona Nina era filha de militar e descendente de 
índios criada em fazenda. Várias vezes a ouvi dizer, com os olhos marejados: 
 
“Minha mãe casou duas vezes com militar. A guerra acabou com tudo que a gente 
tinha. Eu era pequena e via minha mãe entregando punhados de jóias pra uma 
agiota lá de Cascadura em troca de umas moedas pra comprar comida”. Era culta 
e sempre encontrava tempo para se manter informada lendo jornal na varanda, no 
intervalo entre uma tarefa e outra no lar. Gostava de cantar. Tinha sido pastorinha 
nas festas populares e quermesses de sua juventude. Dizem que seu irmão, o 
“Moraisinho”, era um excelente pandeirista de chorinho. 
Cozinhava cantando; limpava cantando; mas não sei se foi feliz. Passou uma vida 
inteira trabalhando em casa. Trabalho que não pára nunca e se repete todos os dias 
em longas jornadas entre cozinhar, lavar, passar, limpar e arrumar. E assim passou 
sua vida: criando as filhas e ajudando na criação dos netos até a sua morte. Isso sem 
contar os anos a fio à frente de uma máquina de costura fazendo fardas para os 
pracinhas da Segunda Guerra para ajudar no orçamento da casa. 
Com tudo isso, ainda teve tempo para perceber a minha crise na adolescência e 
perguntar: “O que você quer fazer, meu filho? O que você realmente ama?”. Olhei 
para ela e disse com o único fio de certeza que tinha até naquele momento: “Quero 
fazer teatro, vó”. Ela ouviu e saiu sem dizer nem que sim nem não. Deve ter 
pensado: “Que merda!”, mas foi ela que pagou durante um ano o primeiro e único 
curso de teatro que eu fiz na vida, com uns caraminguás que ela conseguia poupar 
todo mês da aposentadoria. 
No meio do curso, talvez sentindo alguma dificuldade em continuar pagando as 
mensalidades, veio novamente até mim com um jeito de quem não quer nada, e 
comentou: “Parece que abriu uma escola de circo lá na Praça da Bandeira, a 
formação é de quatro anos, isso é bom porque você podería pelo menos se formar 
em alguma coisa. Diz que dão até almoço”. Do alto da minha arrogância juvenil 
olhei para ela com desdém, e disse: “Não quero ser palhaço não vó, quero ser 
ator!”. Que idiota! Ela tinha sacado o que eu só entendería muitos anosdepois. 
Deve ter dado boas gargalhadas lá de cima. 
Dagmar Moreira Lima da Silva (1932-1979): 
Tia Dag, minha dinda 
Tia Dag sempre teve a saúde frágil, talvez por ter nascido de sete meses, no mesmo 
ano em que os pais se casaram. Mesmo assim, era uma mulher incrível; a casa 
sempre se enchia de alegria quando ela chegava. Gostava dos esportes e das artes. 
Sabia desenhar e me ensinou a gostar de desenhar também, elogiando-me e 
dizendo que eu levava jeito. Fez-me ainda curtir o cinema e ver filmes de gente 
grande ainda em menino. Foi com ela que pela primeira vez eu ouvi falar de arte e 
 
artistas. A Dag me apresentou James Dean, Elvis Presley, Marlon Brando, e muitos 
outros. Mas me pergunto, por que registrei na memória principalmente os ícones 
que representam rebeldia juvenil? Engraçado, sempre gostei dessas coisas de 
gangue, gângster, gangsta. Acho que porque eu era frouxo quando criança. A dinda 
deixou a gente cedo, aos 47 anos. Como ela me fez falta. Principalmente no 
momento em que decidi realmente que seria artista. Depois que ela morreu, parei 
de desenhar. 
Nilce Lima Barbosa: Dona Nice, minha mãe 
Professora aposentada após 35 anos de magistério. Foi normalista e se formou nos 
anos dourados, quando ser professora ainda conferia status social. Como optou por 
não fazer faculdade logo após o Normal, acabou nem vendo e nem vivendo a 
mobilização estudantil, a ação dos diretórios acadêmicos, a realidade da ditadura. 
Nunca ouvi falar na palavra ditadura durante toda a minha infância. Não se tocava 
nesse assunto lá em casa. 
Casou-se em 1964 e ficou viúva em 1972 de Luis Gonzaga Barbosa, que nasceu em 
Natal e morreu afogado num rio na cidade de Santarém. Não foi nenhum foragido 
político; era dono de farmácias e andava se escondendo lá pelo Norte por passar 
remédios de venda proibida. Eram anos lisérgicos e parece que acabou o dinheiro 
que sustentava os “hômi”. Minha mãe ficou só com os três filhos: o mais velho 
Fábio, com apenas sete anos, eu, praticamente da mesma idade, e o caçula Wagner, 
três anos mais novo que eu. Voltou para a casa dos pais depois de viúva, até que 
conseguiu construir a sua própria bem ao lado da deles, com uma significativa 
ajuda de meu avô, é claro. Até hoje, mais de trinta anos depois, ainda não 
conseguiu receber a pensão a que teria direito. 
Passou a maior parte de sua vida nas salas de aula. Sempre lecionou em favelas ou 
perto delas. Aos 40 anos resolveu estudar para tentar o vestibular para pedagogia 
na perspectiva de poder almejar outros cargos dentro do magistério. Lembro da 
festa que foi, quando ela chegou em casa, gritando: “Passei pra UERJ!”, e ficou 
abraçada ao vovô e à vovó emocionada. Porém, com três filhos pra criar e educar, 
uma rotina de sala de aula com duas matrículas em escolas diferentes que 
ocupavam todas as manhãs e as tardes, fazer uma faculdade à noite se tornou uma 
missão impossível. Mas ela ficou feliz por ter provado a si mesma, mais uma vez, a 
sua capacidade, e pela possibilidade de usar a experiência como exemplo na 
educação de seus filhos. 
Mesmo trabalhando, nunca foi ausente; sempre serviu o jantar na mesa e nunca 
deixou de fazer uns quitutes, doces e salgados nos fins de semana para agradar e 
 
demonstrar carinho pelos filhos. Adora cantar: tem voz de pastorinha e vasto 
repertório. Gosta de fazer citações poéticas e de recitar passagens dos Lusíadas de 
Camões. Mulher de muita fé e de espiritualidade evoluída. Dedica sua vida aos 
santos e orixás da umbanda e do candomblé; uma devota fiel. Nossa casa sempre 
foi cheia de agregados. Sempre teve um sofá, um canto, uma comida para quem 
estivesse precisando se encostar por ali até que a sorte melhorasse. Mãe nesse 
mundo e no outro, no mundo visível e invisível, cuida do axé e da proteção de toda 
a família, amigos e conhecidos. Ensinou a ler e escrever muitos brasileiros. 
Abolição é um bairro do subúrbio da Central, situado entre O 
grande Méier e Madureira na Avenida Suburbana, atual Av. Dom Helder 
Câmara. Ali, brinquei na rua e joguei minhas peladas; fui às primeiras festinhas; 
dei meus beijos na boca e meus amassos; corri atrás de doce de Cosme e Damião; 
brinquei de roda e dancei quadrilha; passei anelzinho e dei meu primeiro beijo na 
boca brincando de “pêra-uva-maça-salada-mista”; zoei e fui zoado pelos amigos de 
esquina; briguei, apanhei e bati; toquei samba nos botecos e calçadas; conheci 
sambistas, compositores, malandros, valentes, brigões e marginais que eram 
diferentes dos de hoje; fui a festas de santo; toquei atabaque em giras de umbanda. 
Foi lá que aprendi a sonhar, inventar, mentir e sentir muita saudade do futuro. 
Aliás, pensar no futuro sempre foi a minha brincadeira preferida. 
Abolição também significa o fim de alguma coisa. Uma vez, quando ouvi na 
rádio-vitrola do meu avô um samba que terminava dizendo “Santos Dumont, o Pai 
da aviação, / e Castro Alves, poeta da Abolição, /acordem heróis...”, fiquei ao 
mesmo tempo espantado e orgulhoso. Moleque ainda, não associava que a letra se 
referia à Abolição da Escravatura. Quando encontrei meu amigo Funé na rua, fui 
logo dizendo: 
— Aí Funé, sabia que Castro Alves é da Abolição? 
— O quê? — perguntou o neguinho no susto. 
— Sabia que Castro Alves nasceu na Abolição? 
— E quem é Castro Alves, mané? 
— O poeta, pô! — respondí meio constrangido diante da ignorância do 
moleque, sem me dar conta da minha própria. 
Outro dia, aleatoriamente, contei mais de vinte colegas ou 
conhecidos meus de infância e de pré-adolescência que 
foram assassinados porque viraram policiais ou bandidos, quando não 
 
policiais bandidos. Fomos crianças e brincamos de “polícia e ladrão” na mesma 
comunidade, mas eles estavam mais próximos do morro do que eu. Floje as 
pessoas falam dos meninos de rua,mas na minha infância os temidos eram os 
moleques de morro. Era comum ouvir: “Cuidado com ele que ele é moleque de 
morro!”. Nós, ao contrário, éramos uma espécie de ricos dos pobres; estávamos 
mais próximos da família, enquanto eles eram criados soltos. Muitos deles não 
tiveram o mesmo acesso à informação e a mesma estrutura e proteção afetiva que 
eu e meus irmãos tivemos. 
Alguns tiveram que trabalhar duro desde cedo para ajudar no orçamento da casa, 
desanimando rápido dos estudos; outros conviveram com famílias desestruturadas 
pelo alcoolismo e pela ausência paterna por motivos de trabalho excessivo ou por 
abandono do lar. A precariedade financeira, a proximidade da boca de fumo e a 
tentação das drogas e do tráfico eram os mesmos problemas sociais crônicos que 
conhecemos e vemos todos os dias no noticiário. Mas eu sei que cada um deles 
tinha um sonho. 
E claro que para cada vinte mortos no crime sobrevivem centenas de pessoas 
humildes e dignificadas pelo trabalho, e que constituíram suas famílias e levam sua 
vida com honestidade. De qualquer forma, olhando para trás, vejo que apesar de ter 
crescido num ambiente hostil — que nos dias de hoje seria um paraíso — eu e 
meus irmãos conseguimos sobreviver. Tivemos algum acesso à informação e ao 
estudo. Bem, nenhum dos três conseguiu sequer terminar o segundo grau fora do 
supletivo, mas muito mais por falta de vergonha na cara do que por esforço da 
família. Um absurdo! 
Ainda hoje me pego pensando: por que dentre todas aquelas pessoas da minha 
infância só eu virei artista? Talvez por alguma combinação genética, pela 
influência dos astros ou orixás. Talvez pela curiosidade natural estimulada pela 
minha família, por minha mãe professora, pelo senso de cidadania e justiça do meu 
avô, pela alegria e leveza poética das cantigas e histórias que a vovó contava, ou, 
quem sabe ainda, pelos filmes antigos que ainda menino assistia ao lado da Tia 
Dag, tomando um lanche reforçado de Coca-Cola e pão com mortadela.Trago 
comigo os valores de cada um deles. 
Em 1976, com 10 anos, cursando a quarta para quinta Serie, 
durante uma pelada na hora do recreio, numa entradamais dura, sem querer, acabei 
derrubando o Maizena, negro retinto “porradeiro” e folgado, o mais temido da 
escola. O negro se levantou revoltado e disse a sentença temida: “Te pego lá fora". 
Não me lembro de ter brigado na rua até aquela idade. Meu medo foi tão grande 
que não consegui prestar mais atenção em mais nada até o fim do dia. 
 
Como o conflito se deu na hora do recreio a notícia se espalhou, e na saída da aula 
havia uma plateia do lado de fora disposta a ver sangue. Para minha sorte, Maizena 
ainda não tinha saído. Disfarçadamente fui tomando rumo em direção à minha casa 
quando ouvi alguém da torcida dizer: “Vai fugir, mulherzinha?”. Disfarcei meu 
medo na voz embargada e disse que não. 
Não podia me render. Não podia ficar como covarde. Além disso, mesmo que eu 
conseguisse fugir, no outro dia eu teria que voltar à escola. Cedo ou tarde a peleja 
aconteceria. Estava me sentando no pára-choque de um fusca a uns cem metros da 
porta da escola quando vi o negro sair. Meu coração parecia querer saltar pela boca. 
Lembro dele se aproximando de mim e de meu pavor aumentando. 
Quando parou diante de mim e ameaçou dizer a primeira palavra, fui tomado pelo 
desespero e voei em seu pescoço. Com o braço esquerdo imobilizei-o numa 
gravata e com a mão direita enchi os cornos do negro de porrada, que sequer teve 
tempo de reagir. Grudei nele como um cachorro raivoso e não o soltei de medo que 
ele conseguisse me pegar. Fiquei ali batendo e rezando para que separassem a 
briga. Depois que separaram, o negro estava zonzo e com a testa inchada de tanta 
porrada. Explodi num choro convulsivo e fui chorando da escola até em casa, 
seguido por alguns colegas que não entendiam porque tanto choro se eu havia 
ganho a briga. 
No dia seguinte, as pessoas me olhavam de forma diferente, afinal de contas eu 
havia metido a porrada no cara mais temido da escola. Eu havia ganhado moral. Já 
estava curtindo aquela sensação de poder quando, na hora do recreio, o negro 
Maizena passou por mim e disse, fazendo chacota para todo mundo ouvir: “Foi pra 
casa chorando!”, e caiu na gargalhada. Indignado, eu retruquei: “Te meti a 
porrada, neguinho!”. Ele respondeu na lata: “Mas foi você que saiu chorando”. 
Olhei indignado para os meus colegas em volta, até que um deles virou para mim 
um pouco sem graça, e disse: “Você bateu, mas chorou”. Depois desse dia entendi 
na pele o ditado machista que diz que “homem que é homem não chora”; entendi 
que para ser respeitado eu tinha que ser bom de briga, bom de bola e bom com as 
mulheres. Minha inocência estava perdida aos 10 anos de idade. Depois desse dia, 
só me lembro de ter chorado daquele jeito uns dez anos depois, nas areias de 
Copacabana, sozinho e escondido do mundo. 
O 638, linha Marechal Hermes-Praça Saens Pena, foi o Ônibus 
que eu mais peguei na vida. Comecei indo no sentido Marechal, quando 
fiz a sétima e oitava séries no Colégio Luciano de Oliveira, em Cascadura. Lá eu 
tive, aos 14 anos, o primeiro contato com o teatro através do professor Ronaldo. 
 
Fizemos A bruxinha que era boa, de Maria Clara Machado. Foi aquele professor de 
Educação Artística, muito baixinho e magrelo, que disse que eu tinha talento para 
a coisa (a culpa foi dele!). Circular de ônibus ou trem pela cidade era normal: uma 
pelada em Santa Cruz, uma roda de capoeira em Caxias, um aniversário em 
Madureira, uma festa junina em Quintino. Para ir à praia na Barra ou na Zona Sul 
eram duas conduções, sempre. As vezes, algum raro compromisso me fazia ir até à 
Cidade. Porque quando a gente ia para o centro dizia que ia "lá na Cidade”, como 
se estivesse fora dela. Agora eu estava pegando o “trezoitão” no sentido contrário, 
em direção ao Méier, bairro onde fica o Colégio Estadual Visconde de Cairu. 
 
2. VISCONDE DE CAIRU: 
TEATRO NA ESCOLA 
 
Era uma segunda-feira qualquer de março de 1982, cinco para as 
sete da manhã, e era meu primeiro dia de aula no Colégio Estadual Visconde de 
Cairu. O colégio era gigante e amarelo: tinha cinco andares e mais ou menos dez 
salas de aula por piso, um ginásio coberto com uma quadra taqueada e outra de 
cimento ao ar livre. O colégio era bom em todas as modalidades de esporte e 
quando disputava os torneios colegiais sempre conquistava medalhas. Até em 
xadrez, tênis de mesa e corrida, o Cairu levava medalha. O laboratório de química, 
a oficina de mecânica e a oficina de construção civil ficavam quase sempre 
ociosos, depois que os cursos técnicos profissionalizantes deixaram de existir 
naquele mesmo ano de 1982 devido a uma reforma no ensino. Uma perda 
irreparável. Os três turnos somavam mais de três mil alunos. Ah, e o colégio 
também tinha um grupo de teatro e um coral. 
Era meu primeiro contato com uma realidade tão grande e diversificada. Jovens de 
bairros do subúrbio da Central, da Leopoldina e até da Baixada Fluminense 
prestavam um concurso para conquistar o direito de ali estudar e passar vários anos 
de suas vidas. Todos começando a construir seus sonhos, vivendo suas 
inquietações e incertezas, e com os hormônios em explosão. Aquilo tudo era muito 
grande, parecia um bairro, uma comunidade, um microcosmo da sociedade. E 
cheio de regras e regulamentos que estavam ali para serem transgredidos pelos 
menos conservadores e mais inconformados por natureza. Estava com 16 anos, e 
uma nova realidade se apresentava para mim com toda força. Não deu outra, pirei 
 
geral. 
Eram tantas atividades extracurriculares, do esporte às artes, que assistir às aulas 
era um verdadeiro sacrifício. O universo fora da sala era infinitamente mais 
interessante e instigante para mim do que qualquer matéria ensinada nas “aulas”. 
Acabei me tornando um matador de aulas profissional. O desvio começou com as 
peladinhas na quadra de cimento ao ar livre e degringolou de vez quando entrei 
para o teatro da escola. 
Conhecí o Teatro do Cairu um ano antes de fazer parte do 
grupo. Meu irmão Fábio, que tinha entrado para o Colégio um ano antes de mim, 
e que nunca havia sido de gostar de teatro, comentou um dia em casa que tinha 
visto uma peça. Acabou me convidando para assistir ao espetáculo de fim de ano 
no sábado, um dia reservado para familiares e convidados. Acho que foi a primeira 
vez que vi uma peça, e aquilo tudo me pareceu muito profissional, embora eu 
soubesse que se tratava de um grupo amador. 
A peça era Tistu, o menino do dedo verde. Contava a história de um menino que 
gostava mais era de dormir, como eu. Sua família, que não entendia a preguiça do 
menino, acabou colocando-o em contato com o jardineiro “Bigode”, acreditando 
que o velho podia lhe ensinar algumas coisas sobre a vida. Era um mestre. E aí que 
o velho descobre que o menino tem um talento especial. Ele tinha o polegar verde e 
tudo que tocava virava flor. O menino enchia de flor toda a cidade, escolas, 
fábricas etc. No final, o menino desaparecia e vinha então uma grande revelação: 
Tistu era um anjo. Chorei no final, tentando disfarçar a emoção, e saí dali com a 
certeza de que se eu conseguisse passar na prova do Cairu eu faria parte daquilo. 
Assim que começou o ano me inscreví no teatro. Quando entrei ali 
me senti como se estivesse penetrando em um universo paralelo. Era um palco 
pequeno com chão de madeira, com uma saída de cena de cada lado mas sem 
coxias, e os camarins no subsolo, para onde se descia por duas escadas em curva 
nas laterais da plateia. A plateia tinha dois pisos, com velhas cadeiras de madeira 
dessas que levantam o assento. As que quebravam eram imediatamente 
substituídas por cadeiras comuns. Aquele teatro não podia se dar ao luxo de 
desperdiçar nenhum lugar, pois as sessões estavam sempre lotadas e cada estréia 
mobilizava realmente todas as turmas nos três turnos. Parecia até dia de jogo no 
“Maraca”. O equipamento de som e os refletores de lata eram super precários, mas 
cumpriam o seu papel. 
O Áureo Vilhena era o diretor. O coroa parecia um Papai Noel: tinha bigode,barbas brancas e bochechas rosadas. Por trás dos óculos, seus olhos estavam 
 
sempre brilhando, como se enxergasse algo que ninguém via.Talvez estivesse 
vislumbrando as cenas do próximo espetáculo, já que eles costumavam acontecer 
todo final de semestre. Quando acabava um já começava a produção de outro. 
Ex-seminarista, formado em filosofia e contratado exclusivamente para cuidar 
daquele teatro, Áureo iniciou centenas, talvez milhares de jovens durante o tempo 
em que esteve ali. Tenho certeza que mesmo os que não se tornaram profissionais 
— a grande maioria — passaram a enxergar a vida de outra forma e devem ter 
sentido muita saudade daquele clima. 
Áureo adorava encher a boca para dizer que o Jorge Fernando, ator e diretor da 
Rede Globo, começara a fazer teatro ali, com ele. Isso nos orgulhava por tabela. 
Especialista em trabalhos de colagens e esculturas em papel, suas peças eram ricas 
do ponto de vista plástico e cenográfico. Era realmente criativo e de bom gosto. O 
espaço reservado para os camarins era quase um mini-museu do Imagem, nome do 
grupo de teatro do Cairu. Reunia acervo de fotos, adereços e figurinos de todos os 
espetáculos realizados, tudo cuidado por Áureo. Engraçado como aquela memória 
inspirava em todos uma sensação de honra e responsabilidade. Sensação de 
pertencimento, saca? 
Esse clima mágico que tem o teatro me contaminou desde o primeiro dia que entrei 
ali. Algo me pegou por vários sentidos: pela visão, pelo olfato, pelo tato e pelo 
contato com as pessoas. Não sei, mas parecia que esse contato fazia todos se 
tornarem um pouco diferentes, por mais que aquele fosse um mero teatro de escola. 
Foi ali que eu conheci uma rapaziada antenada, regada à literatura, cinema, música, 
poesia e, lógico, muitos papos existenciais. Eu não conversava sobre aqueles 
assuntos nas esquinas da Abolição. E claro que havia os subgrupos e as tribos, 
principalmente numa galera que reunia 60, 70 adolescentes de diversas famílias, 
bairros, tendências, estilos e comportamentos. Mas as diferenças se acabavam no 
momento de botar a mão na massa, de ensaiar, construir e apresentar o espetáculo. 
Aquilo sim era a magia. Era o melhor lugar do mundo para ficar. Isso é que era 
vida: teatro, futebol, beijo na boca e festinha. Aula que é bom, patavina. 
O próximo espetáculo seria sobre Vinícius de Moraes, uma 
colagem de suas músicas e poemas cantados e recitados no palco. Passava muito 
tempo ali dentro, mas como ainda era calouro certamente ficaria apenas no coro ou 
pegaria uma participação pequena. Esta era a regra: os melhores papéis ficavam 
sempre para os alunos do terceiro e do segundo anos, salvo alguns talentos que 
pudessem se revelar, mas isso era raro. Não os talentos, que eram muitos, difíceis 
eram as oportunidades. 
Um dia, com os ensaios rolando, o Áureo me viu tocando um tantã de bobeira no 
 
camarim com a galera em volta cantando. Também conhecido como tambôra, esse 
instrumento se assemelha a um atabaque. Sua afinação emite um som grave que faz 
a marcação no pagode de mesa substituindo o surdão, só que o som é tirado com as 
mãos, sem a necessidade da maceta. Eu gostava de tocar tantã nas rodinhas de 
samba na minha área, no boteco do Ruy na esquina da minha rua e nas calçadas 
com os colegas. Mesmo em casa havia alguns instrumentos que eu e meus irmãos 
tocavamos às vezes, com minha mãe cantando nas festinhas da família, e quando 
faltava luz. 
Ele gostou de me ver tocar e me botou para acompanhar a Teka, uma amiga da 
galera baixinha, gorda e oxigenada, e de voz potente e cristalina. Num outro 
momento da peça, em que seria cantada a música Berimbau, de Vinícius e Baden, 
eu pude revelar meus dotes de capoeirista e acabei ganhando outra participação 
especial. Ganhei destaque na peça graças à minha cultura de rua. Na montagem do 
semestre seguinte, eu tive texto para falar e acho até que mandei bem. 
Mandei bem no teatro, mas fui reprovado no primeiro ano. As 
notas em história, geografia e literatura até que eram boas, mas em compensação as 
de matemática, química e física eram tão ruins que perdi qualquer esperança em 
aprender aquelas coisas que me pareciam totalmente abstratas e inúteis. 
Olhava para o quadro negro, para o professor falando e não ouvia nada. Minha 
cabeça estava lá fora: no pátio, no teatro, na esquina onde bebíamos cerveja depois 
da aula, ou simplesmente perdida em algum lugar do futuro. Quando minha 
atenção voltava à aula, eu me perguntava: “Quando eu vou usar essas equações e 
fórmulas na minha vida?’’. Era só um pensamento, porque eu também não tinha 
coragem de falar isso para os meus colegas que aos trancos e barrancos acabavam 
passando de ano. Mas eu não conseguia. 
Minha atenção não estava ali. 
A crescente sensação de frustração e inutilidade foi me afastando cada vez mais da 
sala de aula e me jogando mais intensamente no convívio social exterior. Dentro da 
sala eu me sentia um burro; lá fora eu me sentia querido e aceito. Naquele segundo 
ano eu devo ter respondido à chamada umas dez vezes apenas. Em compensação, 
joguei muita pelada; namorei muito; fui chefe de torcida da escola em diversos 
torneios; dei “dois” nos fundos da escola; organizei excursões, festas; tomei porres 
homéricos e liderei o trote nos calouros. Era o cão. 
Como nunca estava na sala de aula podia conhecer e interagir com gente de todos 
os turnos: a galera do handebol, do vôlei, do coral, os blacks, os caretas, os 
malditos, só nunca tive muita paciência para os playboys, mas esses também não 
 
eram muitos. Teve época em que eu chegava na escola de manhã e só voltava para 
casa à noite. Com isso, acabei me tornando muito popular na escola. 
Chamavam-me de “Feroz”: era ao mesmo tempo amado e temido, querido e 
odiado, marginal e bandido para uns e a alegria da galera para outros. Não deu 
outra: repeti pelo segundo ano consecutivo. 
Comecei a ser caçado pela Coordenação. Só no meu terceiro ano, em 1984, que o 
conselho de classe percebeu que minha entrada era registrada na caderneta mas eu 
nunca aparecia nas fichas de chamada. Ou seja, não freqüentava as aulas mas 
estava sempre na escola. A ordem era me barrar na entrada, pegar minha caderneta 
e me levar à Direção. Boatos sinistros começaram a circular a meu respeito, e um 
mito se formou em torno de mim. Eu era um viciado, um traficante perigoso que 
vendia maconha na porta da escola, um aliciador de menores, um “comedor de 
criancinhas”, o violento e cruel líder do trote. Nada disso era real. 
Chegou a acontecer de uma bomba estourar no banheiro e toda escola me ter como 
o autor do ato terrorista, algo que eu seria incapaz de cometer. Naquele momento 
eu não podia dar mole no teatro, onde seria facilmente encontrado, e tive que sair. 
Tentei montar um jornal com uma galera para tratar de arte, cultura e política. O 
jornal nunca aconteceu, mas os papos eram incríveis. 
Eu era um líder às avessas. Quando eu soube que me caçavam, continuei indo todos 
os dias para a escola, só que ao invés de entrar pela porta normal, pulava o muro de 
trás. Esse jogo de gato e rato durou quase um ano. Estava fodido. Não tinha volta, 
não conseguia mais estudar. Era como se eu vivesse na clandestinidade dentro 
daquele micro-sistema social que era o Cairu. Eu não tinha orgulho daquilo, quase 
ninguém sabia que eu pulava o muro para entrar na escola. Aquela rebeldia não era 
tão frontal; era esquiva, dissimulada. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde daria 
merda. E deu. 
Minha mãe foi chamada à escola e comunicada que seu filho era persona non grata 
naquela instituição. Disseram que considerariam o fato de ela ser uma colega 
(professora) e não me expulsariam, desde que eu me matriculasse em outra escola. 
Não fui oficialmente expulso, mas convidado a me retirar. Como se isso fizesse 
alguma diferença. 
Chegando em casa à noite, encontrei minha mãe arrasada, 
com cara de velório, olhos inchados de tanto chorar. Talvez 
estivesse seperguntando onde tinha errado, coisa que toda mãe se pergunta quando 
flagra uma merda do filho. Minha avó e meu avô também estavam na sala, mas não 
disseram uma palavra. Minha mãe olhou para mim e disse em tom fúnebre: “Fui 
 
no Cairu hoje”. Não foi preciso dizer mais nada, entendi tudo, perdi geral. Não 
havia argumentação possível que me salvasse. O silêncio me doeu lá no fundo. 
Senti humilhação, vergonha. Havia decepcionado minha família. Logo eu que na 
minha infância tinha sido o “queridinho”, meigo, atencioso e amoroso. Sempre 
tinha conseguido boas notas, mas havia me tornado o pior dos adolescentes. Sem 
estudar, com aquela ficha corrida e morando onde morava, meu futuro corria um 
sério risco. Paradoxalmente, num primeiro momento isso até ajudou a aumentar 
minha popularidade na escola e a consolidar o mito de rebeldia juvenil com que eu 
tanto me identificava, alimentando a minha vaidade. 
Pensando hoje, minha expulsão foi minha primeira experiência de ruptura com o 
sistema. Eu não tinha sido aceito.Tinha sido rejeitado, banido, exilado. As palavras 
podem parecer fortes, mas é isso que acontece com uma pessoa que, por 
consciência ou ingenuidade, não consegue se enquadrar em qualquer estrutura 
rígida. Ao mesmo tempo, também foi naquele lugar que aprendi a desejar a 
liberdade, a conhecer minha capacidade de criar e de me comunicar com as 
pessoas. Em suma, a identificar o meu carisma. Compreendí a importância da 
amizade e dos amigos e fortalecí minha auto-estima. A expulsão poderia de fato ter 
comprometido meu desenvolvimento social como jovem, mas hoje posso garantir 
que foi justamente o contato com a arte — através daquele grupo de teatro, mas 
também das festas e brincadeiras juvenis — que eu intuí que talvez houvesse outras 
formas de se viver no mundo. Ser artista era uma delas. Quem diria, o Cairu foi ao 
mesmo tempo o algoz e o passaporte para minha redenção. 
No ano seguinte ainda tentei o supletivo, mas não consegui 
me enganar. Era uma escola privada, e sabia do sacrifício de minha família 
para me manter ali sem que eu desse o retorno esperado. No meio dessa crise, foi 
meu grande amigo Serjão, professor de Educação Artística do meu irmão mais 
novo, quem me falou do Calouste Gulbenkian, na Praça Onze. Um centro cultural 
da prefeitura que promovia cursos de artes a preços bem populares. Fiz uma 
proposta à minha avó de fazer um curso de teatro lá e, para minha felicidade, ela 
bancou. 
Era 1985, o Rock Brasil explodia na “Maldita”, a Rádio Fluminense FM, e nos 
shows do Circo Voador. Aquele som realmente nos dava identidade, era uma 
consciência de juventude diferente daquela da primeira fase na escola. Essa 
transição foi bem simbólica para mim. Nas rodinhas de violão no pátio da escola a 
trilha sonora era Chico Buarque, Caetano, Gil, a boa e velha MPB. A gente vivia 
um certo resquício dos movimentos dos anos 60 e 70. Gostávamos de parecer meio 
hippies. De repente, o som era outro. 
 
A onda agora era o new wave.A gente dançava nas festas ao som de Ultraje a Rigor, 
Paralamas do Sucesso, Lobão e os Ronaldos, Barão Vermelho, Titãs e outras tantas 
bandas que surgiam a cada esquina naquela época. Gritávamos para o mundo: 
“Agente somos inútil...”. Cantávamos “Pro dia nascer feliz... ”. Eram nossos 
hinos, nossa voz, nossa expressão. Aquilo nos tocava diretamente. Era a mesma 
atitude roqueira das décadas anteriores, com a diferença que agora a gente entendia 
as letras. E eu, que nunca tinha sido o que se podia chamar de roqueiro, passei a 
gostar do gênero pelo seu viés tupiniquim. 
Aquela música prenunciava de alguma forma o surgimento de uma geração fútil, 
irresponsável e sem a mesma ideologia da geração anterior. Éramos a “geração 
coca-cola” cantada por Renato Russo e sua Legião Urbana. O lema “sexo, drogas e 
rock’n’roU” estava mais em voga que nunca para nós. Os dias de Rock in Rio 
foram para mim como um rito de passagem. Definitivamente já não era mais 
criança, havia me tornado jovem. Um típico “rebelde sem causa”, como cantava o 
Ultraje, e que havia negligenciado todas as oportunidades oferecidas com esforço 
pela família. Estava sem crédito. Não havia mais quem passasse a mão na minha 
cabeça. Estava por minha conta. Mesmo assim, eram dias felizes e de muitos 
sonhos. Aliás, desse assunto eu entendo. 
 
3. CALOUSTE GULBENKIAN: 
ESCOLA DE TEATRO 
 
Durante esse ano, freqüentei o primeiro e único curso de 
teatro que eu flZ na vida, uma experiência que foi um divisor de águas. Pela 
primeira vez me deslocava da Zona Norte para o Centro diariamente para 
freqüentar, quem diria, uma escola de arte. Era muita petulância aquele neguinho 
querer ser artista. Foi a primeira vez que tive contato com o chamado “mundo 
artístico”. Até então, meu universo de entretenimento se restringia à televisão, 
rádio e alguns filmes no cinema, além de um ou outro show no Circo Voador, 
quando a gente conseguia entrar pelos buracos que fazíamos nas telas, antes de 
colocarem grades de ferro. De literatura conhecia, no máximo, algum romance de 
Agatha Christie. 
Quando cheguei na escola de teatro confesso que fiquei meio chocado, ou talvez 
 
deslumbrado mesmo. As pessoas daquele mundo pareciam mais autênticas, 
usavam umas roupas e cabelos diferentes, o que fazia eu me sentir meio jeca. Eu 
tinha 19 anos e era a primeira vez que eu ia a bares e festas na Zona Sul. Havia uma 
sensação de que as pessoas eram realmente mais liberadas, principalmente no que 
dizia respeito a sexo e drogas. Eu até tentava me enturmar, mas volta e meia eu me 
sentia como se estivesse num clube onde eu não era sócio, ou numa festa para a 
qual eu não havia sido convidado. Não sabia muito bem como me comportar e qual 
era meu real tamanho. Eu ainda não sabia quem eu era. 
Esse estranhamento era resultado de um conjunto de coisas: havia a diferença 
social e geográfica, mas, principalmente, o nível de informação. Aquelas pessoas 
me pareciam muito bem informadas e discorriam sobre textos, autores, livros e 
filmes que eu nunca sequer tinha ouvido falar. Para mim o único cinema que existia 
era o americano. De Fellini eu já tinha ouvido falar, mas só bem depois eu comecei 
a considerar a existência ou a possibilidade de ver outros tipos de filme. Ao mesmo 
tempo em que percebia que não pertencia àquele mundo, também cheguei à 
conclusão que se eu realmente quisesse fazer teatro eu deveria ampliar minha visão 
de mundo e buscar me inteirar a respeito das artes, filosofia, psicologia, enfim. 
Fazer teatro, ao contrário do que eu pensava no Cairu, não era só ensaiar e se 
apresentar. O buraco era bem mais embaixo. 
Fui tentando dar meu jeito, correndo atrás do prejuízo, buscando ampliar meu 
campo de informação. Assistia a outros tipos de filme e me interessava cada vez 
mais em ler sobre teatro. O primeiro livro que realmente me pegou foi A 
Preparação do Ator, de Constantin Stanislawiski, que conta a trajetória de um 
aprendiz e seu mestre. E paralelamente a leitura de Ator e Método, de Eugênio 
Kusnet, uma espécie de síntese do método do mestre russo. 
A minha sorte foi que o texto escolhido para a montagem de fim de ano com a 
direção de Carlos Wilson, também conhecido no meio teatral como Damião, foi 
Gimba — O presidente dos Valentes, de Gianfrancesco Guarnieri, uma peça 
inspirada no Othelo de Shakespeare, adaptada para a realidade de um morro 
carioca nos anos 50. Essa montagem me permitiu contribuir com aquilo que eu 
dominava melhor e que também já havia me salvado antes no teatro do Cairu: a 
minha cultura de subúrbio, de morro, fruto do convívio com o samba, a capoeira e a 
macumba. 
Aliás, as palavras de Damião na aula inaugural do curso me criaram de cara um 
conflito de identidade. Eu nunca tinha ouvido falar em seu nome e nunca o tinha 
visto mais gordo ou barrigudo, como ele de fato era: baiano, tipo mameluco, calvo, 
enormes bigodes no estilo mexicano e sempre com cara de chapadão, Damião foium diretor premiado e tinha bastante prestígio na classe. A primeira frase que ele 
disse, foi: “Sou zona-sulzérrimo e meu idioma é o ipanemês”. Quando eu ouvi 
aquilo, ri meio sem graça, tentando disfarçar não sei que sentimento. Depois 
continuou: “Vocês são suburbanos, têm cara de pobre, nunca serão escolhidos 
para trabalhar na televisão ou no cinema. Até teatro vai ser difícil pra vocês”. 
Para a minha sorte, o texto escolhido para a montagem, que originariamente seria 
Cirano de Berjerac, acabou sendo Gimba mesmo. 
Para fazer o protagonista foi convidado o ator negro que o personagem exigia: 
Serjão Maia.Eu fiquei como seu antagonista, o Gabiró.uma espécie de lago do 
drama Othelo. Independente do meu trabalho de ator, eu detinha um saber que 
interessava a todos.Talvez até por isso eu tenha conquistado um personagem de 
destaque dentro da montagem. Assim, recuperei minha segurança e auto-estima. 
Com essa referência cultural e os estudos que eu vinha fazendo e praticando sobre 
uma forma de atuação naturalista, acabei conseguindo realizar um bom trabalho no 
papel de Gabiró, tendo sido inclusive bastante elogiado pelos companheiros de 
elenco e pelo próprio Damião. O fato é que a experiência com os aplausos e o 
reconhecimento foi tão boa que me viciei. Afinal, é isso que vicia nesse ofício. 
Acabou o primeiro ano do regular e não voltei para terminar O 
CurSO. Era mais uma coisa que eu não levaria até o fim, porém me sentia, de certa 
forma, preparado para continuar a vida. A experiência do espetáculo havia me feito 
bem. Eu tinha encontrado um lugar legitimo de expressão. Eu tinha convencido. 
Mas também tinha ficado claro que eu não teria condições financeiras nem 
psicológicas para me consolidar dentro de um meio onde a beleza e o status se 
colocavam à frente do trabalho, como o Damião tinha feito questão de frisar logo 
no primeiro dia. Fazer parte de uma determinada turminha ou freqüentar 
determinados lugares eram prerrogativas para o êxito profissional. E claro que eu 
estava alimentando um ressentimento, uma mágoa, e tentando responsabilizar 
alguém antecipadamente caso meu projeto artístico viesse a fracassar. Mas eu 
ainda não tinha nenhuma clareza destes sentimentos que o filósofo Espinosa chama 
de “paixões tristes”. 
Dois meses após a montagem, tomando um café na cantina do Calouste, me 
encontrei com o Serjão Maia, meu eterno Gimba, tomando um café sozinho. 
Perguntei se tinha acontecido alguma coisa. Ele suspirou fundo, me olhou sério, e 
disse: “Estou com 30 anos e não construí nada nessa vida... pessoas como agente, 
vindas de onde a gente vêm, se quiserem conseguir alguma coisa nesse meio têm 
que estudar, Gabiró. Têm que estudar”. A sinceridade daquele homem, já um ator 
profissional que eu considerava importante, realmente me calou fundo. Eram as 
 
palavras certas na hora certa. 
Nesse mesmo período, aconteceu outro episódio muito marcante. Aloysio Filho, 
que substituiu o Damião duas vezes por motivo de estréia de outro espetáculo, 
mostrou para a turma uma fotografia publicada na revista PHOTO, em que um 
menino semi-raquítico chupava a boceta de uma vaca. Aquela imagem grotesca 
passou de mão em mão, incomodando e chocando todos. Ele perguntou se a gente 
sabia o que aquilo significava, e diante do nosso silêncio, ele disse: “É que a vaca 
quando está com tesão dá mais leite. Então esse menino indiano está chupando a 
vaca pra deixar ela com tesão e assim poder matar a fome dele. No teatro é a 
mesma coisa. Se quiserem comer disso daqui, tem que chupar a boceta da vaca”. 
Nunca me esquecí disso. Naquele momento, tive a exata noção do sacrifício e das 
concessões que eu deveria fazer se quisesse sobreviver daquilo que eu tinha 
passado a amar e a considerar como o sentido da minha vida. O teatro. 
 
 
4. TEATRO DE ANÔNIMO: 
MINHA ESCOLA 
 
Em dezembro de 1986 nasce o Teatro de Anônimo. Àquela altura 
eu já estava convencido que seria ator para o resto da vida; restava saber como eu 
sobrevivería, principalmente depois de ter passado pelo Calouste. Mesmo tendo 
sido curto o tempo que passei lá, foi o suficiente para eu me dar conta de minha 
condição sócio-cultural. Não que eu tenha me sentido discriminado de fato, pelo 
menos não de uma forma tão direta que eu pudesse perceber e me revoltar; eu é que 
me sentia fora. Mesmo assim, estava claro para mim que se eu quisesse continuar 
fazendo teatro teria que encontrar um ambiente onde eu pudesse me sentir 
realmente à vontade, protegido e feliz. O que naquele momento da minha vida era 
tudo o que eu não tinha. 
Outro dia mesmo eu era um menino sonhando o que iria ser 
quando crescer e agora, sem perceber, eu já tinha crescido. 
Estava com vinte anos e já deveria estar pelo menos no segundo ano da faculdade, 
mas cada dia que passava ela parecia mais distante. Havia decidido abandonar 
definitivamente os estudos formais. Meus melhores amigos ainda estudavam no 
Cairu e de lá sairiam naquele ano ou no próximo para tentar um vestibular e definir 
seu futuro. Alguns já cursavam supletivos tentando recuperar os anos perdidos. 
Sentia que estávamos nos dispersando e que dali a pouco seríamos todos adultos. 
Alguma coisa me dizia que algo deveria ser feito para o sonho não acabar. Era 
agora ou nunca. 
Mesmo depois de expulso e de fazer curso de teatro eu nunca tinha deixado de 
freqüentar a esquina do colégio para encontrar a rapaziada para uma pelada, uma 
cerveja ou um papo. Alguns desses amigos de vadiagem também eram do teatro e 
do grêmio, portanto gostavam de falar de arte e política, além de futebol é claro. 
Foi aí que tive a idéia que iria mudar o rumo da minha vida e o de mais cinco 
jovens. Resolvi convidar alguns amigos para formar um grupo de teatro amador 
onde eu seria o diretor. Lá estava eu, com apenas um ano de curso, além da 
experiência no Cairu, me arvorando a ser diretor — afinal de contas, “em terra de 
cego quem tem um olho é caolho”. 
 
Dentre as várias pessoas que convidei, os que mais me davam a certeza de que 
embarcariam na pilha eram o João e a Angélica. O Nem e o Roberval eram 
vizinhos no bairro do Cachambi, parceiros nas peladas, festas e conversas sobre 
política estudantil. Comecei a namorar a Regina um mês antes de formarmos o 
grupo, mas ela só se resolveu a entrar, ou melhor, a ter sua primeira experiência 
com teatro, uns dois meses depois. A Flávia, apesar de também ser aluna do Cairu, 
nunca tinha sido do teatro, mas começou a nos acompanhar e quando vimos ela já 
era do grupo, mas sempre na produção e nunca como atriz. 
Em 2006 o Teatro de Anônimo comemorou 20 anos. Eu me arrisco 
a dizer que talvez seja o único grupo brasileiro com essa idade a manter a mesma 
base de formação desde quando se conheceram. Éramos amigos antes mesmo de 
pensarmos em ser um grupo de teatro; adolescentes que decidiram sonhar juntos. A 
partir daí, criamos uma linguagem própria e um modelo de gestão coletiva que 
permitiu que cada um se desenvolvesse individualmente como artista e cidadão ao 
longo desse tempo. Nunca abrimos mão do espírito familiar e comunitário, baseado 
na solidariedade e no ideal de transformação social e humana. 
Foram a pesquisa e a prática teatral do grupo que garantiram que eu me tornasse 
um profissional sem nunca ter feito faculdade ou concluído qualquer curso técnico. 
Todos se formaram em algum lugar. João e Nem se formaram na UNIRIO. 
Angélica se formou na Martins Pena e juntamente com a Regina concluiu a Escola 
Nacional de Circo. Flávia fez psicologia e o Roberval saiu do grupo e virou 
advogado. O Teatro de Anônimo foi a minha maior — e única — escola. Foi junto 
com essas pessoas, através de nossas escolhas e tomadas de decisão quanto ao 
nosso aprendizado técnico e artístico que se criaram as possibilidades de 
convivência com os mestres que hoje descrevo neste livro. Posso dizer que foram o 
sonho e a utopia que nos deram um lugar concreto nesse mundo, por incrível que 
pareça.

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