Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE ESCOLA DE ENFERMAGEM ANNA NERY COORDENAÇÃO GERAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA CURSO DE MESTRADO EM ENFERMAGEM CUIDADOS HABITUAIS MODIFICADOS NO COTIDIANO DOS CUIDADORES DE CRIANÇAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS DE SAÚDE INTERFACES COM O SABER DE ENFERMAGEM Joelma Maria da Silva Pinto Rio de Janeiro. RJ Novembro, 2011. ii Cuidados habituais modificados no cotidiano dos cuidadores de crianças com necessidades especiais de saúde interfaces com o saber de enfermagem Joelma Maria da Silva Pinto Orientadora: Profª. Drª.Ivone Evangelista Cabral Rio de Janeiro. RJ Novembro, 2011 Dissertação de mestrado apresentada a banca examinadora da Escola de Enfermagem Anna Nery, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como etapa necessária à obtenção do título de mestre em enfermagem. Linha de pesquisa: Enfermagem em Saúde da Criança no Núcleo de Pesquisa de Enfermagem em Saúde da Criança (NUPESC) iii Cuidados habituais modificados no cotidiano dos cuidadores de crianças com necessidades especiais de saúde interfaces com o saber de enfermagem Joelma Maria da Silva Pinto Bolsista de mestrado de demanda social da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Reconhecimento ao CNPQ, pois a dissertação de mestrado vinculou-se ao projeto de pesquisa financiado pelo edital universal do CNPQ: Crianças com necessidades especiais de saúde: configuração do universo temático dos familiares cuidadores, coordenado pela pesquisadora Ivone Evangelista Cabral. Rio de Janeiro. RJ Novembro, 2011 iv FICHA CATALOGRÁFICA P659c PINTO, Joelma Maria da Silva. Cuidados habituais modificados no cotidiano dos cuidadores de crianças com necessidades especiais de saúde: interfaces com o saber de enfermagem./Joelma Maria da Silva Pinto.--2013 14 xiv, 112f Orientadora: Profª. Drª. Ivone Evangelista Cabral. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro.Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery. 1. Enfermagem pediátrica 2.CRIANES 3.Cuidadores 4.Enfretamento CDD:610.73 v Cuidados habituais modificados no cotidiano dos cuidadores de crianças com necessidades especiais de saúde interfaces com o saber de enfermagem Autora: Joelma Maria da Silva Pinto Orientadora: Drª Ivone Evangelista Cabral Mestrado submetida ao Programa de Pós- Graduação do Curso de Mestrado em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery, na linha de pesquisa de Enfermagem em Saúde da Criança do Núcleo de Pesquisa de Enfermagem em Saúde da Criança (NUPESC), como parte dos requisitos necessários à obtenção do titulo de Mestre em Enfermagem. Aprovada por: __________________________________________________ Profª Drª Ivone Evangelista Cabral (Presidente) Doutora em Enfermagem Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ – RJ __________________________________________________ Profª Drª Regina Aparecida Garcia de Lima (1ª Examinadora) Doutora em Enfermagem. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo __________________________________________________ Profª Drª Neide Aparecida Titonelli Alvim (2ª Examinadora) Doutora em Enfermagem Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ - RJ _________________________________________________ Prof. Dr. Antonio Marcos Tosoli Gomes (1º Suplente) Doutor em Enfermagem Professor da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ – RJ. __________________________________________________ Prof. Dr.Roberto José Leal (2º Suplente) Doutor em Enfermagem Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ - RJ Rio de Janeiro. RJ Novembro, 2011 vi DEDICATÓRIA Aos cuidadores das crianças com necessidades especiais (e as próprias CRIANES) por permitirem a minha invasão nesse mundo tão lindo e intrigante que é o de cuidar de crianças mais do que especiais. Por abrirem as portas das suas casas, das suas vidas, e por compartilharem comigo todas as experiências e dificuldades. E por mostrarem que a caminhada é muito difícil, cheia de desafios, porém, não podemos perder a alegria e a vontade de viver. Esses guerreiros merecem toda a minha admiração e respeito. vii AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus, por todas as oportunidades da minha vida, onde pude crescer como pessoa e profissional. Por me dar forças nos momentos mais decisivos e conforto nos de dor. Agradeço aos meus pais, João e Natalia, por me incentivarem e que mesmo sem entenderem ao certo, me apoiaram de forma incondicional. Independente da distância física demonstraram seu amor e seu orgulho pelas minhas vitórias. Amo vocês. Agradeço a minha família, Jaqueline (irmã), Lucas (sobrinho), André (cunhado), Roberta (cunhada), Rafaela (sobrinha), por simplesmente existirem na minha vida. Como diz a música: “Essa família é muito unida e também muito ouriçada”. Não posso deixar de agradecer as minhas famílias estendidas, os Stirling e os Pontual, por abrirem uma vaga extra e por me acolherem com tanto carinho nos seus núcleos familiais. Agradeço ao meu irmão, John, ou melhor, meu limão gatão, como sempre falamos nossos laços vão além dos laços sanguíneos, somos amigos, somos irmãos. Obrigada por sempre estar ao meu lado, me convencendo que sou capaz de buscar meus sonhos. Por ser meu porto seguro nos momentos mais turbulentos e por dar todo o sentido da palavra irmão. Cara, eu te amo demais! Agradeço as minhas amigas, Vivien Brum e Adriana Assumpção, por toda a amizade, por entenderem minhas ausências. Amigos são irmãos que escolhemos e eu escolhi vocês para a minha vida. Agradeço à Enfª Bianca Leal Reis, minha gerente de Enfermagem, por facilitar ao máximo todo esse processo, me concedendo privilégios e por muitas vezes me ajudando de imediato sem questionar. E as técnicas de enfermagem, minhas meninas da CPI, todas vocês possuem um lugar muito especial no meu coração. Agradeço as minhas amigas Gabriela Ávila e Vanessa Moitinho, minhas médicas pediatras mestrandas favoritas, pelos momentos de tietagem, e por estarem presentes nos momentos mais cruciais nesse período, às vezes com um abraço ou uma palavra amiga. Adoro vocês, unha e cutícula. viii Agradeço a minha professora orientadora, Ivone Evangelista Cabral, por tentar entender meus habituais um tanto quanto modificados e por me ajudar a superar as minhas dificuldades. Por me conduzir nesse meio tão empolgante e encantador da pesquisa científica. Por ser esse exemplo incrível de profissional, fica a minha eterna admiração. Agradeço as “CRIANETES”, Eneida, Juliana Moraes, Sandra Pacheco, Mariana Kelly, Angélica Corte, Goreth Ferreira, Daniele Santos, Fernanda Bezerra, Liliane Farias, Patrícia Simas, esse grupo de pesquisa único e singular. Obrigada pela convivência maravilhosa, pelo companheirismo. Adoro vocês. Agradeço a Amanda Santos, agora mestre, que esteve presente ao meu lado em todas as etapas dessa jornada,sendo muito mais do que uma colega de turma, uma amiga. Sendo a agitação no meio da minha calmaria. Agradeço a Profª Maristela Serbeto pela ajuda e pela disposição, suas contribuições foram de extrema importância. Agradeço a doutoranda, Rosane Burla, que esteve presente comigo durante todos esses anos no grupo de pesquisa. Tivemos momentos incríveis e marcantes, dos verões na UR aos passeios pelo Rio de Janeiro, das conversas científicas às compras no centro da cidade, das gargalhadas ao choro, e até pela alvejada por lápis. Ao final dessa jornada restou uma amizade para o resto da vida, e muito obrigada por sempre estar disposta a me ajudar e ouvir. Agradeço aos membros do NUPESC, em especial as professoras Tania Vignuda, Elisa da Conceição, Isabel Cristina, por suas contribuições para a construção deste trabalho e o carinho sempre acolhedor. Agradeço aos secretários da pós-graduação da EEAN, Sônia e Jorge Anselmo, e a coordenadora Profª Marlea Chagas, pela ajuda nas resoluções das questões cotidianas. ix RESUMO CUIDADOS HABITUAIS MODIFICADOS NO COTIDIANO DOS CUIDADORES DE CRIANÇAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS DE SAÚDE INTERFACES COM O SABER DE ENFERMAGEM Joelma Maria da Silva Pinto Orientadora: Profª. Drª Ivone Evangelista Cabral Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós- Graduação do Curso de Mestrado em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do titulo de Mestre em Enfermagem. Investigou-se o enfrentamento dos familiares cuidadores, para realizar cuidados cotidianos de crianças com necessidades especiais de saúde, em atendimento de reabilitação no município do Rio de Janeiro. Questões norteadoras: Quais são os desafios emergentes da experiência de cuidados às CRIANES no domicilio? De que forma eles superaram os desafios emergentes dos cuidados cotidianos daquelas crianças? Quais são as implicações dos saberes de enfermagem na superação dos desafios dos familiares cuidadores no cotidiano de cuidados? Objetivos: delimitar as experiências de familiares cuidadores na realização dos cuidados cotidianos de crianças com necessidades especiais de saúde, no ambiente domiciliar; descrever os desafios para cuidar de CRIANES, pelos familiares cuidadores, e seus modos de superação no enfrentamento das demandas de cuidados modificados; e analisar as interfaces das demandas de cuidados modificados, pelos familiares cuidadores, com os saberes de Enfermagem, quando a CRIANES está no domicilio. Utilizou-se o método criativo e sensível de investigação qualitativa com cinco grupos familiares no domicílio. Os materiais produzidos com as dinâmicas Corpo Saber foram analisados na perspectiva das idéias força e da dialógica freiriana, empregando-se as ferramentas da análise de discurso. Os resultados apontaram que desafios dos familiares cuidadores emergiram das viveram de experiências impregnadas de conteúdo vivencial, desde o nascimento da criança até os dias atuais. Na medida em que atingiam a normalização desses cuidados no cotidiano de vida, ocorria a superação de suas dualidades: cuidado igual e diferente, fácil e difícil, automático e singular. Os cuidados habituais foram modificados devido as mudanças no crescimento e desenvolvimento da criança e a complexidade das demandas de cuidados. O aprendizado foi construído com base em tentativas acerto- erro, com familiares ou profissionais de saúde. Concluiu-se que as famílias normalizam os cuidados na vida da criança quando os transforma em habituais modificados e os incorpora no seu fazer cotidiano. Palavras-chaves: Enfermagem pediátrica. CRIANES. Cuidadores. Enfrentamento Rio de Janeiro Novembro de 2011. x ABSTRACT CAREGIVERS MODIFIED CARE FOR CHILDREN WITH SPECIAL HEALTH CARE NEEDS INTERFACES WITH THE KNOWLEDGE OF NURSING Joelma Maria da Silva Pinto Advisory Professor: Profª. Drª Ivone Evangelista Cabral Abstract os Master degree dissertation submitted to post-graduation Program in Nursing Anna Nery Nursing School, from Federal University of Rio de Janeiro, encompasses the necessary requisites in earning tha Marster‟s title in Nursing. The coping of family caregivers was investigated as performers of the daily care of children with special health care needs in rehabilitation care in the city of Rio de Janeiro. Questions: What are the challenges emerging from the experience of caring for children with special health care needs (CSHCN) at home? How do they overcome the daily challenges emerging from the care of those children? What are the implications of the knowledge of Nursing in meeting the challenges of family caregivers in daily care? Objectives: To define the experience of family caregivers in achieving the daily care of children with special health care needs in the home environment; describe the challenges of caring for CSHCN by family caregivers, and their ways of overcoming the demands for modified care; and discuss the interfaces of these demands modified by family caregivers with the knowledge of Nursing, when CSHCN are at home. We used the creative and sensitive method (DCS) for qualitative research with five family groups at home. The materials produced with dynamic Body-Knowledge method were analyzed from the strength perspective of Freirean dialogical, using the tools of discourse analysis. The results showed that the challenges faced by family caregivers emerged from the lived experiences steeped in experiential content, since the child's birth until the present day. As they struck standardization of care in everyday life, dualities were overcome: equal and different, difficult and easy, automatic and natural care. Habitual care was modified due to changes in the growth and development of children and the complexity of care demands. The learning was built based on error-hit attempts, with relatives or health professionals. Concluding, families normalize life in the care of the child when the care is turned into modified habits and incorporated in their daily tasks. Keywords: Pediatric nursing. Child. Caregivers. coping Rio de Janeiro. RJ November, 2011. xi LISTA DE QUADROS Quadro 1.1. Momentos do Método Criativo e Sensível .......................................... 18 Quadro 1.2. A operacionalização da dinâmica de criatividade e sensibilidade Corpo Saber com cinco grupos de famílias de CRIANES. Rio de Janeiro. 2010-2011 ...... 23 Quadro 1.3. Fragmento do quadro analítico 1A - A codificação das situações desafios a partir das enunciações dos familiares cuidadores com suas raízes espaços-temporais. A formação discursiva .............................................................. 27 Quadro 1.4. Fragmento do quadro analítico 2.A - As aproximações das situações desafios enunciadas pelos familiares cuidadores de D. Setembro, 2010 – Dinâmica Corpo Saber com a família de D. 2010 .................................................................... 28 Quadro 1.5. Fragmento do quadro analítico 3A - A codificação dos temas a partir das situações desafios dos familiares cuidadores de D. Setembro, 2010 – Dinâmica Corpo Saber com a família de D. 2010 ..................................................... 30 Quadro 2.1. Distribuição dos familiares das CRIANES segundo sua renda e renda familiar, renda per capitã e a classificação econômica do IBGE. Rio de Janeiro, 2011 ............................................................................................................. 46 xii LISTA DE FIGURAS Figura 1.1. Produção artística da dinâmica Corpo Saber Família de D .................. 23 Figura 1.2. Esquema ilustrativo sobre Análise de Discurso segundo Orlandi (2005). ......................................................................................................................25 Figura 2.1. Produção e fragmento da produção artística da família de M ............... 36 Figura 2.2. Diagrama ilustrativo da locomoção de D., segundo os familiares cuidadores ................................................................................................................ 51 Figura 2.3.. Diagrama ilustrativo da locomoção de M., segundo os familiares cuidadores ................................................................................................................. 51 Figura 2.4.. Diagrama ilustrativo da locomoção de L., segundo os familiares cuidadores ................................................................................................................. 52 Figura 2.5.. Diagrama ilustrativo da locomoção de JP., segundo os familiares cuidadores ................................................................................................................. 53 Figura 2.6.. Diagrama ilustrativo da locomoção de KV., segundo os familiares cuidadores ................................................................................................................. 53 Figura 2.7. Foto do carrinho intitulado como “carrinho verde” utilizado pelos familiares para transportar a criança KV .................................................................. 58 Figura 3.1. Produção artística e o destaque do fragmento cuidado “vestir” da família de M .............................................................................................................. 70 Figura 3.2. Fragmento da produção artística da família de D. com destaque para o cuidado “troca da fralda”. .......................................................................................... 72 Figura 3.3. Cadeira/banheira adaptada utilizada pelos familiares cuidadores no banho da criança ....................................................................................................... 77 xiii SIGLAS BCP – Benefício de prestação continuada CEP – Comitê de Ética em Pesquisa CRIANES – Crianças com necessidades especiais de saúde DVP - Válvula de derivação peritoneal ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente EEAN – Escola de Enfermagem Anna Nery LAPTESC - Laboratório de Pesquisa e Tecnologia Educacional em Saúde da Criança NUPESCP - Núcleo de Pesquisa de Enfermagem em Saúde da Criança PCI – Programa curricular interdepartamental UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro UTI – Unidade de terapia intensiva xiv ANEXOS Anexo A – Carta de Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa ............................ 102 Anexo B – Carta de Aprovação de inclusão de cenário de pesquisa ........................ 103 Anexo C – Ata de aprovação de Defesa de Dissertação de Mestrado ...................... 104 APÊNDICES Apêndice A – Termo de Consentimento Livre e esclarecido ................................... 105 xv SUMÁRIO CAPÍTULO I .......................................................................................................... 01 Aproximação com a temática e inquietação .............................................................. 02 1.1. Introdução ......................................................................................................... 02 1.1.1. A Delimitação da problemática e do objeto de estudo .................................... 04 Objeto de estudo ............................................................................................. 08 1.1.2. As questões norteadoras e os objetivos do estudo ........................................... 08 1.1.3. Justificativa e Relevância do estudo ................................................................ 09 1.1.4. A contextualização de Criança com Necessidades Especiais de Saúde (CRIANES) .............................................................................................................. 11 1.2. Referencial Teórico........................................................................................... 13 1.3. Referencial Metodológico................................................................................. 16 Os sujeitos – critérios de seleção para inclusão na pesquisa ............................. 19 Os espaços para a produção dos dados .............................................................. 21 A produção de dados: a aplicação da dinâmica de criatividade e sensibilidade Corpo Saber .............................................................................................................. 22 Planejamento para a etapa de campo, procedimentos adotados ........................ 23 A interrupção do trabalho de campo - A saturação dos dados .......................... 24 Procedimentos de análise dos dados .................................................................. 25 CAPÍTULO II ......................................................................................................... 33 2. As condições de produção do discurso dos familiares cuidadores de crianças com necessidades especiais de saúde ...................................................... 34 2.1. As raízes espaço temporais da necessidade especial de saúde na vida da criança ....................................................................................................................... 34 2.2. Os cuidadores e a sua experiência no cuidar ..................................................... 43 2.3. As condições socioeconômicas das famílias ...................................................... 46 2.4. A situação desafio do deslocamento da criança pelo familiar cuidador: O cuidado especial e integrador ................................................................................ 49 CAPÍTULO III ....................................................................................................... 60 3. Os desafios dos familiares cuidadores de crianças com necessidades especiais de saúde na realização cuidados nos habituais modificados ................ 61 3.1. A dualidade de sentido para cuidado normal ............................................... 61 xvi 3.1.1. O cuidado normal, igual e diferente ............................................................... 61 3.1.2. O cuidado normal, fácil e difícil ..................................................................... 76 3.1.3. O cuidado normal, automático e particular .................................................... 78 3.2. O movimento de incorporação do saber, aprendido com o profissional, no cuidado cotidiano ............................................................................................... 81 CAPÍTULO IV ......................................................................................................... 87 4. As interfaces das demandas de cuidados habituais modificados de CRIANES com os saberes de Enfermagem ............................................................................. 88 Referências Bibliográficas ......................................................................................... 93 CAPÍTULO I 2 1.1. Introdução Aproximação com a temática Nessa dissertação, investiguei as demandas de cuidados de crianças com necessidades especiais de saúde, em atendimento em um serviço de reabilitação de uma instituição pública do Município do Rio de Janeiro. Minha aproximação com a temática iniciou-se no curso de graduação em Enfermagem e Obstetrícia da Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro, quando me inseri nas atividadesde iniciação científica e de estágio curricular, a partir do ano de 2004. Posteriormente, já desenvolvendo minhas funções profissionais, como enfermeira, deparei-me, novamente, com uma multiplicidade de demandas de cuidados, muito próprias desse grupo de crianças, as quais implicavam na necessidade de negociar saberes de enfermagem para que as famílias realizassem os cuidados requeridos por essas crianças, com melhores condições de segurança no domicílio. Na graduação No curso de graduação em Enfermagem, no ano de 2004, realizei estágio de iniciação científica, integrando a equipe do projeto CRIANES 1 , no Laboratório de Pesquisa e Tecnologia Educacional em Saúde da Criança (LAPTESC), do Núcleo de Pesquisa de Enfermagem em Saúde da Criança (NUPESC), da Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN)/ Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ). O trabalho de campo do subprojeto “Perfil de crianças com necessidades especiais de saúde atendidas em uma unidade de reabilitação” 2 ocorreu em um serviço, cujas crianças eram acompanhadas pela fisioterapia, fonoaudiologia, pediatria, terapia ocupacional. Para o delineamento do perfil, aplicávamos, no espaço da consulta de enfermagem, um instrumento de coleta de dados contendo variáveis relacionadas às condições sociodemográficas, história de adoecimento, de internação hospitalar, e à trajetória da necessidade especial de saúde na vida da criança, buscando seus fatores determinantes e causais indicativos da necessidade de reabilitação. Durante esse período, observei uma realidade peculiar inerente às diversas maneiras que a família cuidava de sua criança no domicílio, as adaptações dos cuidados 1 Projeto “Crianças com necessidades especiais de saúde: configuração do universo temático das famílias no educar dialógico da Enfermagem”, coordenado pela Professora Ivone Evangelista Cabral, desde 1998. 2 PINTO, J.M.S. O perfil de crianças com necessidades especiais de saúde atendidas em uma unidade de reabilitação. 2005. Monografia (Graduação em Enfermagem). Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 3 na tentativa de garantir a melhor qualidade de vida possível para seus filhos, a despeito dos recursos instrumentais e/ou financeiros limitados. Essas adaptações variavam de acordo com as necessidades apresentadas por cada criança. Entre as histórias que acompanhei, destaca-se a de uma criança, com idade de dois anos e seis meses, com o diagnóstico médico de hidrocefalia, atraso no desenvolvimento psiconeuromotor, em uso de traqueostomia e válvula de derivação peritoneal (DVP). O risco de aumento do perímetro cefálico por retenção de líquido cérebro-espinhal resultante de obstrução da DVP; o risco de obstrução das vias aéreas pela presença de secreção na cânula de traqueostomia; o risco de infecção no estoma da traqueostomia; o risco de broncoaspiração de alimentos, líquidos e secreções devido a não sustentação da cabeça, entre outras necessidades da criança, implicava na necessidade de o familiar cuidador dominar um conjunto de saberes e práticas inerentes ao campo dos cuidados de enfermagem. A simplicidade de se alimentar a maioria das crianças representava, para aquela criança em particular, uma tarefa demasiadamente complexa para seu familiar cuidador. Como modo de superação desse obstáculo no processo de cuidar da criança, sua cuidadora optou pela liquidificação dos alimentos, uma vez que não recebera, até o momento orientações na consulta de enfermagem. Intervimos com a orientação sobre o posicionamento em semi-Fowler, uso de um apoio acolchoado para sua cabeça e oferta de alimentos picados em pequenos pedaços, bem cozidos e na forma pastosa, uma vez que não havia sinais e nem histórico de disfagia ou deformações estrutural ou funcional na cavidade oral. A presença da traqueostomia trazia outros desafios para o desenvolvimento dos cuidados habituais da criança para além daquelas próprias à maioria das crianças, tais como o banho, o sentar no carrinho, a limpeza do estoma, a troca da fralda, a lavagem dos cabelos e do couro cabeludo, o pentear/escovar os cabelos, escovar os dentes etc. No 7º período do curso, na etapa do estágio curricular do Programa Curricular Interdepartamental XI (PCI XI) – Cuidado de Enfermagem às Pessoas em Processo de Reabilitação II, nós, estudantes, implementávamos junto aos cuidadores familiares orientações relacionadas às intervenções de enfermagem com ênfase sobre o cuidado promotor do desenvolvimento de crianças com paralisia cerebral e redutor de agravos à sua saúde. Nessa fase curricular, foi possível integrar os conhecimentos teóricos com a prática vivenciada na pesquisa, entender a importância da enfermagem, integrando as intervenções educativas e cuidativas ao atendimento de reabilitação, para promover o bem-estar físico, mental e social de crianças com necessidades de reabilitação. 4 Na prática profissional Posteriormente, como professora substituta, do Departamento de Enfermagem Materno Infantil da Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN), tive a oportunidade de atuar como preceptora das alunas do curso de especialização em enfermagem pediátrica, da Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ, no campo de estágio de reabilitação, desenvolvendo a consulta de enfermagem às crianças e seus familiares. Acompanhamos um caso que despertou minha atenção: um familiar cuidador mantinha a criança como dependente total de seus cuidados, realizando por ela, a maioria das atividades de vida diária (a vestia, a alimentava, realiza os cuidados de higiene) sem estimular sua autonomia no cuidado de si. Por menor que fosse o potencial de desenvolvimento daquela criança, não havia um direcionamento para que explorasse sua potencialidade. Essa criança poderia ser treinada para se vestir, o que contribuiria para o refinamento de sua coordenação motora, seus movimentos e estimularia a sua independência. Entretanto, a ausência de uma intervenção sistemática e regular de cuidados de enfermagem para familiares com crianças, cujas necessidades implicavam em uma demanda de cuidados habituais modificados me causaram inquietação. Como essa família realiza os cuidados da sua criança no domicílio? Como lida com as dificuldades? Que cuidados precisam ser modificados para atender as necessidades da criança? E quando modificados, com quem o cuidador aprende a realizar esses cuidados? Diante de tantas perguntas surgiu a motivação deste estudo. 1.1.1. Delimitação da problemática e do objeto de estudo O desenvolvimento tecnológico contribuiu para um aumento da sobrevivência infantil, graças à sofisticação e incremento dos recursos medicamentosos e terapêuticos. Em contrapartida, criou a possibilidade de os sobreviventes apresentarem demandas diferenciadas e complexas de cuidados de saúde, algumas vezes, resultantes dos longos períodos de permanência na terapia intensiva neonatal e a exposição a procedimentos invasivos e risco de infecção. Esse novo grupo, após a alta hospitalar, requer da sua família, cuidados que não são próprios do seu cotidiano de cuidar, surgindo os desafios relacionados às condições dos sobreviventes e sua qualidade de vida quando retorna ao contexto do domicílio e da comunidade (CABRAL et al., 2004). Cabral (1999a) designou estas crianças como Crianças com Necessidades Especiais de Saúde (CRIANES), ou seja, aquelas que apresentam disfunções ou limitações no seu estilo de vida e nas suas funções normais para a idade, exigindo 5 severas mudanças, acompanhamento especializado e contínuo pelos serviços de saúde, além de cuidados especiais por parte de seus familiares, acompanhando a definição de McPherson et al. (1998). Esse aumento no número de crianças que sobrevivem a doenças complexas ou a lesões traumáticas e com demandas de cuidadosespeciais também vem sendo anunciada pela literatura internacional como Children with special healthcare needs (CSHCN) por Fleming et al. (1994); McPherson et al. (1998), O‟Brien (2001), Guillet (2002), Mentro (2003), Carnevale et al. (2006), Hockenberry e Winkelstein (2006) entre outros, que abordam a problemática de crianças com necessidades especiais de saúde, suas demandas de cuidados e sua relação com a família e os serviços de saúde. Esta denominação foi atribuída pela National Center on Financing for CSHCN (2004) para designar aquelas crianças que têm ou estão com risco aumentado para uma condição física, de desenvolvimento, de comportamento, ou emocional crônica e que necessitam de serviços de saúde relacionados a um tipo e ou uma quantidade de atendimento além daquela requerida geralmente por outras crianças. Essas necessidades especiais de sobrevivência são geradoras de inúmeras demandas de cuidados de saúde diferenciadas da maioria das crianças em geral. Trata-se de “um conjunto de exigências de cuidados apresentadas pela criança como herança do processo terapêutico reparador de sua condição de saúde-doença, que se somou a sua vida cotidiana, após a alta hospitalar” (Cabral et al., 2000). Portanto, as famílias se defrontam com cuidados especiais, relacionados ao manejo de tecnologia corporal, uso contínuo de medicamentos de sobrevivência, adaptação nos cuidados diários e ações promotoras do desenvolvimento, apresentados por estas crianças. Segundo Balling e McCubbin (2001), os pais de crianças com essa problemática decorrente de doenças crônicas possuem um forte desejo de participar dos cuidados de seus filhos. Eles desenvolvem competência e se tornam mais experientes no cuidado às crianças, esperam ser incluídos no planejamento dos cuidados e desejam participar da tomada de decisões relativas ao cuidado de seus filhos. Em um contexto de confiança, enfermeiras e pais precisam negociar o valor e o tipo de participação desse desejo dos cuidadores. Os cuidadores passam por tortuosos caminhos na busca do melhor cuidado aos seus filhos, seguem as orientações adaptando os cuidados que julgam necessários e de acordo com as condições da criança. Eles vivem situações no cotidiano de cuidar baseado, muitas vezes, na tentativa acerto-erro (AGUIAR, 2005). 6 As CRIANES foram incluídas em quatro grupos, de acordo com suas demandas de cuidados: de desenvolvimento, tecnológicos, medicamentosos e habituais modificados, e independente do grupo em que esteja inserida precisa ser considerada como uma nova clientela que exige cuidados diferenciados da equipe de enfermagem em todos os níveis de atenção em saúde, passando a exigir um acompanhamento de reabilitação em longo prazo de todos os profissionais, bem como cuidados especiais para inseri-los no contexto social (CABRAL et al., 2004). No primeiro grupo, incluem as crianças com demandas de cuidado de desenvolvimento, entendendo-se o crescimento e desenvolvimento como processos globais, dinâmicos e contínuos que ocorrem em um indivíduo. O acompanhamento e a avaliação contínua do crescimento e desenvolvimento da criança põe em evidência, precocemente, os transtornos que afetem a sua saúde e, fundamentalmente sua nutrição, sua capacidade mental e social. Desse modo, é possível visualizar a criança no contexto onde vive, de forma individualizada com seus antecedentes, necessidade e demandas. No segundo, incluem aquelas crianças com demandas de cuidados tecnológicos, com alguma tecnologia implantada no seu corpo e cuja sobrevivência é assegurada pelo uso de equipamentos especializados e sofisticados com a finalidade de lhes prolongar a vida (CUNHA, CABRAL, 2001; O‟BRIEN, 2001; MONTAGNINO, MAURÍCIO, 2004). Enquadram-se nesse grupo aquelas com doenças crônicas; portadoras de ostomias, como traqueostomias e gastrostomias; e artefatos tecnológicos indispensáveis à sobrevivência, como a válvula de derivação ventrículo-peritoneal (DVP), uso frequente de aspiradores, respiradores, BIPAP. Esses dispositivos transformam os cuidados habituais e simples do dia-a-dia da criança em cuidados habituais modificados e complexos no cotidiano de prestação de cuidados dos familiares cuidadores. No terceiro, estão as crianças com demandas de cuidados medicamentosos regulares e contínuos, cuja administração implica na aplicação de conhecimentos do campo dos cuidados de enfermagem fundamentais, dos princípios da matemática e da farmacologia (GOMES, CABRAL, 2009a). A terapia medicamentosa de longo prazo exige um elevado grau de engajamento do familiar cuidador para assegurar a adesão terapêutica e o cumprimento do esquema prescrito. A dificuldade de compreensão ou mesmo a incompreensão da prescrição pediátrica seja, pelo baixo nível socioeconômico e de escolaridade do responsável, seja pela simbologia e/ou abreviatura utilizada, ou pela letra ilegível e orientações fornecidas 7 apenas verbalmente pelo médico, todos são fatores que também influenciam a precária da adesão (AGUIAR, 2005). O que dificulta ainda mais a situação para os familiares cuidadores é a complexidade dos cuidados com a administração destes medicamentos e a sua pouca preparação para implementá-los no domicílio. Além disso, os familiares ainda necessitam lidar com os efeitos adversos que interferem na implementação do cuidado e no oferecimento do medicamento para a instituição da terapêutica farmacológica (GOMES, CABRAL, 2009b). No último grupo, incluem-se as crianças com demandas de cuidados habituais modificados, foco desse estudo, envolvendo um conjunto de cuidados próprios do cotidiano de vida, tais como o posicionamento para alimentar-se, o banho, as medidas anti-refluxo, dormir, transportar etc. Destacam-se ainda a higiene pessoal, arrumação, vestir-se, prevenção de infecções e cuidados com cateteres implantados e semi- implantados (CABRAL et al, 2004). Os cuidados habituais modificados dizem respeito a um conjunto de práticas que se associam ao processo de cuidar inerente as atividades de vida diária da criança. Esses cuidados implicam em uma modificação e/ou adaptação dos cuidados realizados com uma criança (banho, alimentação, transporte, entre outros) que não possuí necessidade especial de saúde (CABRAL et al, 2004). Entre esses cuidados, as autoras destacam a higiene pessoal (o banho), que necessita ser realizado por partes e/ou tamponamento das ostomias; a escovação dos dentes e higiene oral; a prevenção de infecções e os cuidados com a pele ferida no entorno da implantação de cateteres para diálise; o posicionamento em Semi-Fowler como medida anti-refluxo para alimentar-se, para dormir; a troca de roupa, que pode ser mais complicada naquela criança que não possui sustentação de cabeça e pescoço, ou controle do seu corpo; na alimentação, cujas práticas deverão ser compatíveis com o quadro clínico da criança. Há ainda, o risco para broncoaspiração, durante a alimentação ou durante o banho; o manejo da tecnologia implantada no corpo da criança, com a válvula (DVP) ou outro dispositivo tecnológico; a monitorização contínua dos episódios convulsivos; e o auxílio na realização de ações como levantar-se ou sentar-se na cadeira ou cama, movimentar-se no ambiente. (CABRAL et al., 2004; NEVES, CABRAL, 2008). No caso da diálise peritoneal, a família deve estar atenta a sinais de hipertensão arterial, edema ou disfunção neurológica, e atuar na prevenção de infecções. Na 8 gastrostomia e nos cateteres implantáveis, manter a área circunjacente limpa e seca para a prevenção de escoriações e infecções. Na insulinoterapia, a família e a criança devem aprender a técnica de aplicação da insulina e adotar o sistema de rodízio nas áreas de aplicação, além disso, deve ser realizado o teste de glicemia antes das refeições, o que também demanda cuidados com a técnica empregada (CABRAL et al., 2004).Em 2006, investigamos no banco de dados do projeto CRIANES as necessidades de saúde que requeriam acompanhamento de reabilitação e as demandas de cuidados. Entre as múltiplas necessidades especiais de saúde, havia predominância de atraso no desenvolvimento neuromotor, geralmente associada a demandas de cuidados habituais modificados, em função de suas necessidades de saúde especiais, quando comparado com as demais crianças. Essas crianças com necessidades especiais de saúde e demandas complexas de cuidados na reabilitação apresentam aos seus cuidadores familiares uma nova realidade de cuidados, e a necessidade de incorporar novos saberes e práticas para atender as suas demandas. Assim, nos remete para a necessidade de investigar como objeto de estudo, o enfrentamento de familiares cuidadores ao realizar cuidados cotidianos, às crianças com necessidades especiais de saúde, na interface com os saberes de enfermagem. 1.1.2. As questões norteadoras e os objetivos do estudo Quais são os desafios dos familiares cuidadores ao realizar cuidados às CRIANES no domicilio? De que forma os familiares cuidadores superaram os desafios dos cuidados cotidianos às CRIANES? Quais são as implicações dos saberes de enfermagem na superação dos desafios dos familiares cuidadores no cotidiano de cuidados as CRIANES? Para responder as questões, definimos os seguintes objetivos: a) delimitar as experiências de familiares cuidadores na realização dos cuidados cotidianos de crianças com necessidades especiais de saúde, no ambiente domiciliar; b) identificar os desafios para cuidar de CRIANES, pelos familiares cuidadores, e seus modos de superação no enfrentamento das demandas de cuidados modificados; c) discutir as interfaces das demandas de cuidados modificados, pelos familiares cuidadores, com os saberes de Enfermagem, quando a CRIANES está no domicilio. 9 1.1.3. Justificativa e relevância do estudo A relevância do estudo pode ser analisada sob a perspectiva epidemiológica da magnitude das causas das internações e reinternações de CRIANES. Segundo Neves e Cabral (2008), a principal causa de retorno dessas crianças ao hospital foram às infecções respiratórias, muitas delas por pneumonia por estase, devido a sua restrição ao leito ou pouca mobilidade, ou ainda por broncoaspiração. Além dessas complicações podemos citar as infecções no trato urinário de repetição, as úlceras por pressão em áreas de proeminências ósseas, as atelectasias, todas evitáveis. Porém a prevenção e/ou redução de agravos está intimamente ligada aos cuidados cotidianos de mobilização, higiene, entre outros realizados pelos familiares, no domicílio. As orientações de enfermagem, em geral, são feitas no hospital no momento da alta, havendo uma solução de continuidade no processo de intermediação dos saberes de enfermagem. Quando as crianças recebem alta hospitalar, somente interagem com os profissionais do ambulatório de especialidade e do serviço de reabilitação. No entanto, na maioria das vezes, esses cenários não têm um enfermeiro realizando consulta de Enfermagem e nem atividade de educação em saúde para os cuidadores, o que resulta em descontinuidade do processo de reabilitação no cuidado cotidiano. Muitas vezes, nem há contato do enfermeiro com os familiares cuidadores, devido a inexistência desse profissional em exercício no serviço de reabilitação, já que o modelo assistencial privilegia mais a recuperação motora e funcional. As necessidades sociais em saúde das crianças acompanhadas nos serviços de reabilitação não restringem-se a recuperação funcional. Segundo Cecílio (2001), as necessidades de saúde de qualquer indivíduo formam um conjunto organizado por quatro grandes elementos. O primeiro envolve as “boas condições de vida”, em seu sentido mais funcionalista, enfatiza os fatores do “ambiente”, “externos” como determinantes do processo saúde-doença. O segundo refere-se a “ter acesso e se poder consumir toda a tecnologia de saúde capaz de melhorar e prolongar a vida”. Um terceiro diz respeito à “insubstituível criação de vínculos (a)efetivos entre cada usuário e uma equipe e/ou profissional”, trata da relação de confiança, como algo que é contínuo, pessoal e intransferível. O último elemento do conjunto diz respeito à necessidade “de cada pessoa ter graus crescentes de autonomia no seu modo de comandar a vida”. Aqui tratamos da educação em saúde e da informação como parte do processo de construção da autonomia de cada pessoa no 10 cuidado de si, particularmente quando se exige modificação para integrar esse cuidado ao cotidiano da criança na vida da família. As necessidades de saúde são reconhecidas pela população em três pilares: necessidade de presença do Estado, que garante a disponibilidade dos serviços que promovem o bem-estar social; necessidades de reprodução social, que coloca o Estado como responsável pelos serviços necessários para a reprodução social, a começar pelo saneamento básico, e necessidade de participação política, como a implementação de conselhos para garantir a defesa dos direitos dessa população (CAMPOS, MISHIMA, 2005). Os cuidados que as crianças com necessidades especiais de saúde demandam fundamentam a criação e manutenção de políticas públicas de saúde socialmente inclusivas. A Constituição Federal (de 1988) e as Leis 8.069/90 (do Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA) e 8.080/90 (do Sistema Único de Saúde/SUS) asseguram o direito de TODAS AS CRIANÇAS serem assistidas pelo SUS, em caráter integral, de modo continuado e independente do cenário onde ela se encontra (BRASIL, 1988; BRASIL, 1990; BRASIL, 1990). Particularmente, no artigo 11 do ECA destaca que é dever do Poder Público fornecer gratuitamente àqueles que necessitarem de medicamentos, próteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação. A produção de conhecimentos sobre crianças com necessidades especiais de saúde é muito ampla e bem difundida, particularmente na literatura internacional, entretanto há pouca abordagem para os cuidados de enfermagem na esfera do serviço de reabilitação. Em um estudo de revisão sistemática nas bases de dados – Minerva, Lilacs, Medline, Adolec, BDENF, Cuiden, Cinahl, Pudmed, Scopus, Social science, Web of science, ScienceDirect; utilizamos como palavras: “criança” ou “children”, “criança com necessidades especiais” ou “children with special healthcare needs” e “reabilitação” ou “rehabilitation” – a partir da pergunta norteadora: “Qual a tendência dos estudos sobre crianças com necessidades especiais de saúde na reabilitação?”.Dos 15 artigos encontrados, a maioria era de natureza clínico-epidemiológica, sócio-cultural e dois estudos eram de natureza existencial e política. Os estudos direcionam-se para duas vertentes, a questão da família e a questão do profissional; sobre a família estudou- se a percepção dos pais sobre o acesso aos serviços de reabilitação (O‟NEIL et al., 2009), o acesso às políticas públicas de saúde (LEAL 2007).Já na questão do profissional, abordou-se a compreensão do vivencial de uma equipe, a atuação do 11 profissional em um hospital especializado, as necessidades para a formação da equipe interdisciplinar na reabilitação da criança (SPIRI, 2001; SINGER, DROTAR, 1989; DE MOOR et al., 1999). Desses estudos, destacamos os de enfermagem para delimitar a tendência dentro da área e entre os encontrados nenhum tratava do cuidado de enfermagem de reabilitação às crianças com necessidades especiais de saúde, cujo cenário de pesquisa ou de prática é a reabilitação. Os cuidados habituais modificados ainda encontram-se integrados às demais demandas de necessidades especiais de saúde que são focadas nos estudos, geralmente esses cuidados estão agregados aos demais cuidados e pouco são explorados na literatura. Segundo Neves e Cabral (2008), essademanda estava associada, geralmente, a demanda de desenvolvimento, e/ ou a dependência de tecnologia. Leite e Cunha (2007) complementam que além de lidar com a questão da tecnologia, a família precisa se adaptar à essa nova forma de realizar seus cuidados rotineiros, como banho, alimentação, entre outros. Esses cuidados habituais modificados ainda foram citados no estudo de Cabral e Rodrigues (2006), como a demanda de cuidado apresentada por ¼ das crianças egressas do método mãe canguru, e foram compreendidos como medida anti-refluxo, reorganização postural, as práticas alimentares e aleitamento materno. Ainda podemos citar, o risco para broncoaspiração, a necessidade de monitorização dos episódios convulsivos, cuidados com a válvula (DVP), curativo na lesão do teratoma e a utilização de oxigenioterapia contínuo (NEVES, CABRAL, 2008). Entretanto, esses cuidados não estão apenas restritos a essas atividades, e não eram o foco principal dos estudos acima, evidenciando assim uma necessidade de aprofundamento nesse campo do conhecimento. 1.1.4. A contextualização de Criança com Necessidades Especiais de Saúde (CRIANES) Em 1987, um grupo do Office of Technology Assessment definiu um grupo de crianças com necessidades especiais de saúde, as crianças dependentes de tecnologia, como as que necessitam de um dispositivo tecnológico para substituir uma função vital do corpo, assim como cuidados de enfermagem para afastar a morte ou futura incapacidade. O documento elaborado pelo grupo teve como objetivo definir esta nova população e para facilitar a divisão dos encargos financeiros pelas esferas responsáveis, 12 família, privada e pública (OFFICE OF TECNOLOGY ASSESSMENT, 1987). Desta forma, alguns modelos de atendimento foram idealizados, na tentativa de gerenciar e proporcionar a saída dessas crianças do hospital para casa com um custo mais acessível para as suas famílias e para os financiadores (KAUFMAN, 1992). O impacto da inserção dessa criança com necessidade especial de saúde e que necessita de cuidados complexos sobre a família foi mensurado, e a aliança entre os familiares e as enfermeiras seria a base para o suporte e auxílio na realização dos cuidados com a criança (FLEMING, 1994). A filosofia do cuidado centrado na família, que reconhece os pais como iguais em parcerias com os profissionais, é uma saída pelo qual a enfermeira assumiria a responsabilidade conjunta com a família na execução do plano de cuidados, e promoveria o princípio da normalização e da utilização de opções informal sempre que possível (BOND, 1994). Os avanços tecnológicos do cuidado de saúde, tratamento médico, mudanças na assistência prestada e melhorias na vida da criança sobrevivente têm resultado em um maior número de crianças com doenças crônicas recebendo cuidados diferenciados no domicílio. A expectativa de vida dessas crianças tem aumentado, requerendo que os pais tornem-se experientes cuidadores (BALLING e MCCUBBIN, 2001; ELSEN, 1994; JERRET, 1994; RAY e RITCHIE, 1993). A doença crônica leva as crianças a sofrerem mudanças no seu ritmo de vida, muitas vezes com limitações, principalmente físicas, devido aos sinais e sintomas da doença e podem ser frequentemente submetidas a hospitalizações para exames, tratamentos à medida que a doença progride, distanciamento do ambiente escolar, desta maneira tendo suas vidas regidas pela doença (VIEIRA, 2002). A experiência da doença crônica envolve a convivência com uma ou mais disfunções por longo tempo as quais podem ser incuráveis ou temporárias. Esta condição impõe limitações sobre o indivíduo e requer adaptações especiais. Com a presença constante da disfunção na vida da criança, se antes as prioridades eram brincar, pular e jogar futebol, a necessidade especial impõem restrições. (CHARROM- PROCHOWNIK, 2002). As crianças com necessidades especiais de saúde são aquelas que possuem ou estão em risco aumentado para uma condição crônica, de desenvolvimento, estado comportamental e emocional, e que, também, requerem dos serviços de saúde 13 um tipo de atendimento específico ou em quantidade além dos exigidos pelas crianças em geral (MCPHERSON et al, 1998). Existem crianças que apresentam limitações no seu estilo de vida e nas funções normais, e que requerem cuidados médicos contínuos para manter seu estado de saúde, de modo permanente ou temporário. Entre as demandas de caráter permanente estão aquelas que implicam na sua sobrevivência, como exemplo, podemos citar as crianças com insuficiência renal crônica, HIV/AIDS, que apresentam a necessidade de utilização de terapia medicamentosa por toda a vida. Já as necessidades especiais temporárias são aquelas as quais as crianças convivem por um tempo determinado, como por exemplo, as crianças traqueostomizadas, com colostomia ou em uso de respiradores mecânicos com prognóstico de utilização por curto prazo. As CRIANES podem apresentar uma disfunção de origem congênita, por exemplo, crianças que apresentam meningomielocele, fibrose cística; ou adquirida, devido a insuficiência renal crônica, paralisia cerebral, entre outras. Além destas, inserem-se nesse grupo as que nasceram prematuras, com baixo peso, com alguma insuficiência orgânica, com malformação, com alguma deficiência ou com síndrome genética. Ainda há aquelas que se tornaram CRIANES com idade mais avançada, o que resulta em um aspecto de maior dificuldade para criança e família se adaptarem a nova situação, já que experimentaram outro tipo de vida anteriormente (HOCKENBERRY, 2006). Esse grupo de crianças apresenta fragilidade clínica que as tornam vulneráveis aos agravos ambientais sobre sua saúde, exigindo dos profissionais que as acompanham uma intervenção eficaz e efetiva para manter o seu estado de saúde. Como, por exemplo, o desenvolvimento de práticas de saúde especializadas, implementação de ações educativas junto às famílias, que assumem o papel de cuidadores, mediante a essas novas demandas de cuidados. 1.2. Referencial teórico As ideias forças do pensamento filosófico freiriano e sua concepção de educação dialógica foram adotadas para a leitura do material empírico gerado no trabalho de campo da pesquisa. Sobre o papel do educando como co-participe do processo de educação (alfabetização) de adultos, Freire (1980) desenvolveu com base em uma filosofia critico-humanística, uma pedagogia dialógica. 14 Na primeira ideia força, o autor (op cit) considera que a educação para ser válida deve partir do ser humano imerso em sua realidade concreta, considerando-o como sujeito, pois esta é sua vocação ontológica. Diz, ainda, que o ser humano é um ser com raízes espaço-temporais, não existindo fora da sua realidade concreta. Dessa forma, a educação libertadora não pode reduzi-lo a um objeto, mas sim considerar o contexto (meio social) e a cultura em que ele está imerso. A segunda ideia força afirma que o homem chega a ser sujeito por uma reflexão sobre sua situação, sobre seu ambiente concreto. Para Freire (1980, p.35) quanto mais o homem reflete sobre a realidade, sua situação concreta, mais emerge, plenamente consciente, comprometido, pronto a intervir na realidade para mudá-la. Ou seja, o familiar cria maneiras de cuidar de uma criança com necessidades especiais de saúde com demanda de cuidados habituais modificados, superando os desafios de cuidar dessa nova criança no domicílio, minimizando os riscos e agravos de saúde, buscando assim, respostas aos seus desafios e construindo conhecimento. A terceira ideia força refere-se ao ser humano que ao integrar-se em seu contexto, reflete sobre ele e se compromete. Sua reflexão sobre a realidade o faz descobrir que não está somente na realidade, mas com ela, numa relação de temporalidade. Esta terceira ideia exprime a tomada de consciência do ser humano quanto a sua temporalidade e historicidade.É também por esse motivo capaz de entrar em relação com outros seres e com a realidade. Por ser o homem histórico, relacional com os outros seres e capaz de tornar-se consciente de sua realidade que consegue desempenhar os cuidados às CRIANES, e encontra dentro das relações com os profissionais de saúde uma possibilidade de vencer seus desafios e tentar modificar sua realidade concreta. Creio como Freire (1980) que por meio das relações e interações sociais que o ser humano chega a ser sujeito, colocando em prática sua capacidade de discernir, e ao fazê-lo, descobre-se frente a uma realidade que não é somente exterior, mas que o desafio, o provoca. A quarta ideia força exprime o pensamento de que pela integração com o contexto de vida, o homem reflete sobre ele, dá respostas aos desafios por meio da ação e, assim, está criando cultura. Cultura, para Freire (1980), é resultado de toda atividade humana através do esforço criador e re-criador do homem sobre a natureza. Acerca do pensamento de Freire, Padilha e Antunes (2004) afirmam que o que diferencia o ser humano dos outros seres é sua capacidade de dar resposta aos diversos 15 desafios que a realidade impõe. Mas essa apreensão da realidade e esse agir no mundo não se dão de maneira isolada. É na relação entre homens e mulheres, e destes e destas com o mundo que uma nova realidade se constrói e novos homens e mulheres se fazem, conferindo, portanto poder. Na quinta ideia o homem é criador de cultura e fazedor de história, a sua própria história e a do seu povo. O homem faz história na medida em que, captando os temas próprios de sua época, pode cumprir tarefas concretas que supõe a realização destes temas, e sugere reformulação, mudança, na capacidade de atuar, nas atitudes e comportamentos. A sexta e última ideia força é de comprometimento da educação com a mobilização dos sujeitos-educandos do estado do desconhecimento para o conhecimento, para que ela seja autêntica. Ou seja, para que ela, alcançando as forças anteriores, promova a libertação dos homens e não a adaptação, a domesticação, a subjugação. Ela deve possibilitar que o ser humano chegue a ser sujeito, constitua-se como pessoa e seja capaz de transformar a sua realidade, estabelecendo relações de reciprocidade com outros homens, fazendo cultura e história. Em síntese, Freire com suas ideias forças parte de um homem com raízes espaço temporais, com vocação para ser sujeito e não mero expectador no mundo, através da reflexão de sua situação e ambiente concreto, toma consciência de sua historicidade e temporalidade, reflete sobre seu contexto de vida, leva resposta aos seus desafios fazendo cultura e história, até ocorrer a libertação de sua condição de oprimido, através de uma atitude crítica, de reflexão, de tomada de consciência, modificação da realidade, que possibilitam a construção da sua autonomia. Entendendo que o sujeito se constitui em sua subjetividade pela consciência do mundo, o autor salienta a importância dos temas geradores: "Procurar o tema gerador é procurar o pensamento do homem sobre a realidade e a sua ação sobre esta realidade que está em sua práxis" (FREIRE, 1980, p. 32). O educador precisa possuir uma atitude ativa de procurar o tema gerador, isso possibilitará ao educando uma tomada de consciência da sua própria realidade. Essa tomada de consciência permitirá a decisão, a escolha, a liberdade, a conquista do poder de ser autônomo. Uma educação desconectada da realidade, não fará mais que domesticar, adequar, moldar. Freire propõe uma educação problematizadora, dialógica, oposta à “educação bancária”, por isso não trata os alunos como meros depósitos de conteúdos e entende que os sujeitos possuem conhecimento construído através da sua realidade, e busca 16 promover caminhos para que o próprio educando seja sujeito agente e construa sua autonomia. Dessa forma, a relação educador-educando, em que o professor era quem possuía o conhecimento e o aluno um sujeito passivo, não se aplica. "Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo" (FREIRE, 1983, p. 79). Essa proposta dialógica de Freire é constituída pelo diálogo através da ação e reflexão e assim, o diálogo implica na transformação do mundo. 1.3. Referencial metodológico Trata-se de uma pesquisa qualitativa, pois nela é possível combinar as naturezas científica e artística da enfermagem, para aumentar a compreensão da experiência de saúde humana (WOOD, 2001). Entendemos que a abordagem de pesquisa qualitativa apresenta-se como a mais adequada para a realização deste estudo, pois segundo Minayo (1993, p.102) há uma preocupação menor com a generalização e maior com "o aprofundamento e a abrangência de compreensão, seja de um grupo social, de uma organização, de uma instituição e de uma política ou de uma representação”. Como método, utilizamos o criativo e sensível, desenvolvido por Cabral (1999b) e aplicado em diversas pesquisas, Dentre elas, destacam-se na área de enfermagem os de Aguiar (2005), Alvim (1999), Aranda (2003), Bergold e Alvim (2009), Cabral (1999a), Cunha (2001), Fontes e Alvim (2008), Gabatz et al. (2010), Gomes (2005), Lira (2005), Medeiros (2001), Moraes (2003), Pacheco e Cabral (2011), Resta e Motta (2007), Rodrigues (2000), e Santos (2002). Cabral (2004, p.128) afirma que: O método criativo-sensível de investigação qualitativa tem nas dinâmicas de criatividade e sensibilidade o seu dispositivo central de produção de dados para a pesquisa científica, porque, além de combinarem as discussões de grupo com a produção artística, nelas ocorre a observação participante e a entrevista coletiva. A escolha pelo método justifica-se pelo fato de os participantes do estudo apresentarem baixo de grau escolaridade, porém uma riqueza e diversidade de experiências de cuidar adquirida na historicidade e na temporalidade do fazer. O Capítulo 2 descreve as condições de produção do discurso, confirmando a propriedade da escolha, uma vez, que os enunciadores (familiares cuidadores de crianças com necessidades especiais de saúde) foram espontâneos, autênticos, criativos e sensíveis. 17 Para Cabral (1999b), a combinação entre ciência e arte, espontaneidade e introspecção, criatividade e sensibilidade, realidade concreta e expressão criativa, torna o método criativo e sensível algo diferenciado quando comparado aos métodos estabelecidos e consolidados. A autora ressalta que o método a) conjuga técnicas consolidadas de coleta de dados (entrevista coletiva semiestruturada, discussão de grupo e observação participante) com as dinâmicas de criatividade e sensibilidade; b) apropria-se dos mais diversificados instrumentos e procedimentos da pesquisa qualitativa (roteiros de entrevista, planejamento do trabalho de grupo, gravação de áudio e vídeo, e fotografias), acrescentando os dispositivos próprios das dinâmicas de criatividade e sensibilidade, como as produções artísticas, leitura e interpretação das produções; c) tem no processo de criação e no empenho da sensibilidade a força produtora de dados para a pesquisa; d) é possível desenvolver a pedagogia crítico- reflexiva, numa perspectiva dialógico-dialética, quando os integrantes coletivizam suas produções artísticas e constroem o significado do que foi produzido, gerando temas a serem debatidos no processo coletivo e e) facilita a organização dos dados para a análise. O método utilizado na pesquisa com a família tem o cuidar, como razão de ser da enfermagem, tem na família a raiz de sua existência e o espaço onde são desenvolvidas as primeiras experiências de cuidar do outro. A criação artística, um dos recursos das dinâmicas de criatividade e sensibilidade, evoca no participante do grupo os elementos sígnicos e simbólicos, os quais são significados no espaçode interação e a discussão grupal, resultando na geração de dados. A relação dialógica que se estabelece entre os sujeitos da pesquisa e o pesquisador é o aspecto central, tanto das discussões, quanto das dinâmicas interativas. A dinâmica sensível estimula a pessoa a sair de sua egocentricidade, criando nos participantes outros sentimentos, como afeto e emoção, quando tratam de temas cujos interesses são comuns (SOUZA, 2006). Cabral (1999b) recomenda que a dinâmica de criatividade e sensibilidade seja desenvolvida em duas fases (fase preliminar e fase operacional) e em cinco momentos distintos da fase operacional (apresentação e interação grupal, trabalho individual ou coletivo, apresentação dos textos gerados, análise coletiva, síntese e validação), como exemplificado e descrito no quadro 1.1. a seguir: 18 Quadro 1.1. Momentos do Método Criativo e Sensível Dinâmica Fase Preliminar Fase Operacional 1° momento 2° momento 3° momento 4° momento 5° momento Apresentação e interação grupal Trabalho individual ou coletivo Apresentação dos textos gerados Análise coletiva Síntese e validação Data: Dinâmica selecionada: Duração: 1h Logística: Organização do ambiente para o desenvolvimen to da dinâmica de criatividade e sensiblidade (DCS). Preparação das pessoas responsáveis pela implementação da DCS – auxiliar de pesquisa, pesquisador; Seleção e disposição do material no ambiente Apresentação dos participantes; o Relaxamento; Apresentação da DCS; explicação sobre a atividade e enunciação da questão geradora de debate Tempo reservado para a produção artística individual ou coletiva Apresentação individual das produções artísticas Eleição dos temas geradores de debate e discussão coletiva Recodificação e síntese No momento prévio organiza-se o material e o ambiente para receber os participantes, oferecendo um local confortável, agradável e silencioso. Recomenda que a disposição espacial do grupo na sala deve favorecer que todos participantes se vejam. No primeiro momento, cada participante do grupo se apresenta, sendo assegurando, pelo pesquisador, que suas identidades são mantidas em anonimato. Do mesmo modo, esclarece que as informações ali compartilhadas serão de uso restrito à pesquisa. O grupo pode optar por pseudônimos escritos em um crachá para facilitar a comunicação grupal e para o pesquisador situar as falas dos sujeitos na coletivização das experiências e na organização dos dados. Procedemos conforme recomendado pelo método, iniciando com a explicação da dinâmica e seus objetivos. Naquele momento disponibilizamos os materiais para a elaboração da produção artística e apresentamos a questão geradora de debate. No segundo momento destina-se um tempo aos participantes para que elaborem a produção artística grupal ou individual. No caso da pesquisa em tela, os grupos familiares concentraram-se em produções grupais. No terceiro momento, cada participante apresenta ao grupo o material produzido no trabalho individual e explica, coloca assim no plano coletivo a sua experiência individual. 19 No quarto momento, o da discussão, os sujeitos participantes dialogam entre si e consigo mesmo (codificação/decodificação); o papel do pesquisador é muito importante na intermediação das discussões, animando o grupo a desenvolver os temas codificados. No quinto momento, correspondente a análise coletiva e validação dos dados produzidos (recodificação), a experiência individual de cada membro produz um conhecimento único na totalidade do grupo. Simultaneamente, acontece a análise preliminar dos dados, com a síntese do que foi construído de forma espacial criativa e sensível. Os participantes – critérios de seleção para inclusão na pesquisa Os participantes da pesquisa foram os familiares cuidadores de CRIANES, que atenderam os seguintes critérios de inclusão: familiares de crianças na faixa etária de pré-escolar e escolar; que compareciam regularmente as sessões de fisioterapia; que possuíam experiências de cuidados no banho, na alimentação, no transporte, entre outros. Foram excluídos os familiares que, no momento da pesquisa, suas crianças estavam hospitalizadas. A captação dos familiares cuidadores ocorreu na primeira etapa do trabalho de campo, quando realizei um levantamento sobre as condições de vida das crianças, seus cuidadores e demais familiares, orientado por um instrumento de caracterização dos sujeitos, contendo perguntas abertas e fechadas com variáveis relacionadas à criança e sua família. As informações foram obtidas do banco de dados do PROJETO CRIANES/CNPq, do prontuário da criança e da entrevista com os potenciais participantes da pesquisa, que aceitaram ser voluntários. Para selecionar os potenciais sujeitos da pesquisa, aplicou-se os critérios de inclusão e exclusão no banco de dados. Das 50 crianças cadastradas, apenas nove apresentavam demandas de cuidados cotidianos modificados em virtude de necessidades especiais de saúde; portanto seus familiares cuidadores atendiam aos critérios. Após o procedimento de seleção dos possíveis sujeitos da pesquisa, abordamos os familiares na sala de espera da unidade de reabilitação, enquanto estes aguardavam suas crianças em atendimento. Aqueles familiares que aceitaram escutar sobre a pesquisa foram entrevistados para completar os dados do instrumento e convidados a 20 participar como voluntários. Assim, agendamos o encontro na residência de cada família. O grupo familiar se constituiu de dois a três participantes, totalizando 12 pessoas. O grupo da primeira incluiu duas pessoas: o pai e a mãe. O segundo grupo familiar composto por três pessoas, sendo o pai, a mãe e a avó paterna. O terceiro grupo familiar contou com dois participantes: a mãe e a avó paterna. O quarto grupo de familiares que integrou o estudo contou três pessoas: mãe, pai, tia paterna. O último grupo familiar envolveu duas pessoas, a mãe e o pai. A eles foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o qual atendeu ao previsto pela Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 1996) sobre pesquisa envolvendo seres humanos e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP). Seu conteúdo encerrava aspectos sobre: • A aprovação do Projeto de Pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa, e nele consta a justificativa, os objetivos e os procedimentos utilizados na pesquisa (Apêndice A). • Prover os recursos humanos e materiais para garantir o bem-estar dos sujeitos, participantes da pesquisa. • Previsão procedimentos que assegurem a confidencialidade e a privacidade, a proteção da imagem e a não estigmatização, garantindo a não utilização das informações em prejuízo das pessoas, inclusive em termos de autoestima, de prestigio e/ou econômico- financeiro. Os sujeitos que não aceitarem participar ou desejarem retirar-se em qualquer momento da pesquisa não sofreram qualquer tipo de prejuízo. • Clareza de que os dados gerados seriam apresentados e discutidos nas reuniões cientificas do grupo de Pesquisa de Enfermagem em Saúde da Criança (NUPESC), da Escola de Enfermagem Anna Nery, o qual o projeto está vinculado, assegurando a responsabilidade e o respeito entre pesquisadores e sujeitos. Toda a relação da pesquisadora com os familiares dessas crianças foi desenvolvida seguindo quatro referências básicas da bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça, visando assegurar os direitos e deveres da comunidade científica, dos sujeitos da pesquisa e do Estado. 21 Os espaços para a produção dos dados O agendamento das dinâmicas ocorreu durante a entrevista de captação dos voluntários, quando estavam na sala de espera do atendimento de reabilitação de sua criança. Decidiu-se naquela ocasiãoque os encontros ocorreriam na própria instituição onde a criança realiza a reabilitação. Seguindo o programado, no dia e hora previsto e confirmado por contato telefônico no dia anterior a dinâmica, as salas foram preparadas para receber as crianças e seus familiares. Porém, no dia agendado nenhum dos convidados compareceu, porque o horário do agendamento coincidia apenas com o atendimento na reabilitação de uma parte do grupo. O insucesso da primeira tentativa, nos levou a um novo contato com os familiares para reprogramarmos uma nova data e horário mais adequados para todos. Na segunda tentativa, mais um insucesso, pois houve um grande temporal na cidade e a estrutura física do serviço de reabilitação foi danificada, o que provocou mudança na agenda de atendimento, alterando o ritmo de hora, dia e local que a família estava habituada. O grupo faltou também ao atendimento de reabilitação. Diante disso, houve a necessidade de rever o cenário da pesquisa, mudando do hospital para a residência das famílias, com o objetivo de proporcionar mais tranquilidade aos participantes. Posterior a autorização do CEP EEAN/HESFA (onde o projeto foi aprovado) solicitando a substituição do novo cenário (Anexo B), entrei em contato para o agendamento dos encontros no domicilio. Parte dos familiares foi abordada na sala de espera da unidade de reabilitação do HESFA e parte por telefone. As dinâmicas foram agendadas e realizadas com os familiares no seu domicílio, e ainda contamos com a presença das crianças. A mudança de estratégia trouxe tranquilidade aos participantes para falarem sobre a sua criança e permitiu à pesquisadora conhecer a realidade do cuidar dessas famílias no seu próprio ambiente. Solicitei autorização para entrar nas residências das famílias com câmeras filmadoras para os registros de áudio e visuais (como as reações não-verbais) e uma auxiliar de pesquisa. Para preservar a imagem, a identidade e o anonimato dos participantes, acordamos com eles de que a câmera de filmagem ficaria disposta em um ângulo que não permitisse a visualização do rosto de cada um, ou de aspectos que pudesse identificar a localização das casas na comunidade. A produção de imagem e o registro de sons e vozes contribuíram para que tornasse a tarefa de transcrição do material gravado o mais próximo do momento em que o evento da pesquisa aconteceu. Todos concordaram com o seu uso. 22 A produção de dados: a aplicação da dinâmica de criatividade e sensibilidade Corpo Saber Após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola de Enfermagem Anna Nery/Hospital Escola São Francisco de Assis da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ (protocolo 034/2010. Anexo A) e a obtenção de permissão da instituição e das famílias, iniciou-se a etapa do trabalho de campo. A produção de dados consistiu na aplicação de uma dinâmica de criatividade e sensibilidade com cada grupo de familiar. A dinâmica do corpo saber foi repetida cinco vezes, sendo uma em cada domicilio, respeitando-se os momentos previstos pelo método criativo sensível. A escolha pela dinâmica corpo saber se justifica porque ela consiste em despertar nos familiares cuidadores a representação, no corpo desenhado, dos cuidados que realizam com suas crianças com necessidades especiais de saúde (GOMES, 2005). Assim, atende os objetivos da pesquisa que trata dos cuidados de crianças com necessidades especiais de saúde e seus desafios para os familiares cuidadores. Essa dinâmica foi sistematizada por Alvim (1999) e validada, posteriormente, por Medeiros (2001), tendo como eixo principal a relação entre o corpo e o cuidado prestado a uma parte específica do corpo, mostrando de que forma esse cuidado é ressignificado pelo cuidador. A questão geradora de debate incluiu palavras-chaves, previamente escolhidas pela pesquisadora (dispostas separadamente em pedaços de papel), que foram afixadas pelos cuidadores em uma folha (cartolina tipo papel 40kg) com a silhueta de um corpo desenhado (Figura 1.1 - Produção artística da dinâmica Corpo Saber Família de D.) para evocar memórias latentes do cuidador na relação com a criança, e a natureza ativa e passiva desse processo de cuidar. A questão enunciada foi: Entre esses cuidados aqui apresentados (vestir, vacina, cuidados com os ouvidos, cuidados com o nariz, cuidados com a pele, massagear o corpo, carinho, limpeza depois do xixi, banho, cuidados com a boca e os dentes, brincar, cuidados com as unhas, cuidados para locomover, conversar), quais vocês precisaram fazer de um modo diferente para vencer as dificuldades no cuidado de seu filho (neto, sobrinho)? 23 Figura 1.1 – Produção artística da dinâmica Corpo Saber Família de D. Com essa dinâmica, nos aproximamos das experiências dos cuidadores, seus desafios, seus saberes e práticas de cuidado no cotidiano de vida da criança. Os momentos sequenciais de desenvolvimento da DCS corpo saber são apresentados no quadro 1. Quadro 1.2. A operacionalização da dinâmica de criatividade e sensibilidade Corpo Saber com cinco grupos de famílias de CRIANES. Rio de Janeiro. 2010-2011. Família Dinâmica do Corpo saber Fase Operacional 1° momento 2° momento 3° momento 4° momento 5° momento Apresentação e interação grupal Trabalho coletivo Apresentação da produção artística Análise coletiva Síntese e validação 1. Família de D. Participantes: pai e mãe. Data: 07/09/2010 Dinâmica selecionada: Corpo Saber Duração: 1h 13min Participantes se apresentam. Pesquisador explica a DCS, expõem o material a ser usado e enuncia a questão geradora de debate Tempo reservado para a produção artística coletiva Apresentação da produção artística Eleição dos temas geradores de debate e discussão coletiva Recodificação e síntese 2. Família de L. Participantes: mãe, pai e avó paterna. Data: 10/09/2010 Dinâmica selecionada: Corpo Saber Duração: 34min 11seg Tempo reservado para a produção artística coletiva Apresentação da produção artística Não houve Não houve 3. Família de M. Participantes: mãe e avó paterna Data: 22/10/2010 Dinâmica selecionada: Corpo Saber Tempo reservado para a produção artística coletiva Apresentação da produção artística Eleição dos temas geradores de debate e discussão Síntese 24 Duração: 57min coletiva 4. Família de JP. Participantes: mãe, pai e tia paterna Data: 22/03/2011 Dinâmica selecionada: Corpo Saber Duração: 58min 52seg Tempo reservado para a produção artística coletiva Apresentação da produção artística Eleição dos temas geradores de debate e discussão coletiva Síntese 5. Família de KV. Participantes: ãe e pai. Data: 26/03/2011 Dinâmica selecionada: Corpo Saber Duração: 39min 57seg Tempo reservado para a produção artística coletiva Apresentação da produção artística Eleição dos temas geradores de debate e discussão coletiva Síntese Quando estávamos na casa da família, cada participante apresentou-se (primeiro momento), iniciando-se pela pesquisadora, seguido pela auxiliar de pesquisa e pelos componentes do grupo familiar. Para que as pessoas se sentissem esclarecidas sobre o trabalho coletivo, e a interação grupal ocorresse satisfatoriamente, a pesquisadora expôs a dinâmica e enunciou a questão geradora de debate. Em seguida, reapresentou o termo de consentimento livre e esclarecido (Apêndice A), o qual foi assinado por todos os participantes do grupo, explicou a dinâmica de criatividade e sensibilidade em si. Solicitou-se autorização para que, além do uso da câmera de filmagem previamente acordada, dispuséssemos aparelhos de MP4 para a gravação das vozes dos participantes e assim