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Os escritos de Manoel de Araújo Porto-alegre sobre cidades [1844-1853]: Temporalidades e sedimentações Priscilla Alves Peixoto Dissertação para obtenção do título de Mestre em Urbanismo apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROURB. FAU.UFRJ) Orientadora: Maria Cristina Nascente Cabral Co-orientadora: Margareth Aparecida Campos da Silva Pereira 2013 Peixoto, Priscilla Alves. P853 Os escritos de Manoel de Araújo Porto-alegre sobre cidades [1844-1853]: temporalidades e sedimentações / Priscilla Peixoto: UFRJ / FAU, 2013. 160 f.: il.; 30 cm. Orientador: Maria Cristina Nascentes Cabral. Co-orientador: Margareth Aparecida Campos da Silva Pereira. Dissertação (mestrado) – UFRJ / PROURB / Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, 2013. Referências bibliográficas: f. 153-158. 1. Manoel de Araújo Porto-alegre – Crítica e interpretação. 2. Urbanismo (Rio de Janeiro, RJ) – História – Séc. XIX. 3. Cidades e vilas - Crescimento. 4. Urbanismo - Filosofia.5. Urbanismo – Ensaios. I. Cabral, Maria Cristina Nascentes. II. Pereira, Margareth Aparecida Campos da. III. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação em Urbanismo. III. Título. CDD 720.92 Priscilla Alves Peixoto Os escritos de Manoel de Araújo Porto-alegre sobre cidades [1844-1853] Temporalidades e Sedimentações Aprovado por: Profa. Dra. Maria Cristina Nascentes Cabral PROURB.FAU.UFRJ Profa. Dra. Margareth A. Campos da Silva Pereira PROURB.FAU.UFRJ Prof. Dr. Gustavo Rocha-Peixoto PRARQ.FAU.UFRJ Dra. Ana Maria Pessoa dos Santos FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA Rio de Janeiro, 16 de maio de 2013. Dissertação para obtenção de título de Mestre em Urbanismo pelo Programa de Pós-graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROURB-FAU-UFRJ). Para Jacy Peixoto pelas muitas manhãs que caminhamos pelas ruas do Rio. Agradecimentos Gostaria de agradecer ao Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da FAU/UFRJ, sobretudo, a professora doutora Maria Cristina Nascente Cabral que orientou o presente trabalho. Agradeço a gentile- za com que acolheu a mim e a meu tema de interesse, a princípio tão distantes dos arquitetos modernos de suas pesquisas, e a generosidade com que leu e revisou os textos fazendo com que a arquiteta, mais acostumada aos riscos abstratos dos projetos, tornasse seus escritos menos duro ao leitor. Aos professores e funcionários do PROURB/FAU/UFR pelo estimulante convívio ao longo dos dois anos do curso de mestrado. Agradeço às contribuições dos professores Ana Lucia Brito e José Barki, integrantes da banca de qualificação. A relação de gratidão e estimulo que estabeleço com o PROURB é ainda mais antiga, pois, há cerca de sete anos, iniciei meu processo de formação junto ao Laboratório de Estudos Urbanos (LeU -PROURB-UFRJ), grupo de pesquisa desse programa. Durante esse tempo no LeU, estive envolvida diretamente com o projeto de organização de uma antologia sobre o “Pensamento Urbanístico no Brasil” idealizado e coordenado pela professora doutora Margareth Aparecida da Silva Pereira. Participar desse projeto, sobretudo, na identificação e seleção dos textos dos autores brasileiros foi o quê me possibilitou enunciar o tema da dissertação que o leitor tem hoje em mãos. Por esse motivo, fazemos aqui um especial agradecimento a Margareth Pereira, também co-orien- tadora da presente dissertação, pelo incentivo, pela confiança, pela atenta leitura das primeiras e às últimas linhas desse trabalho e, sobretudo, pela maneira generosa com que acolheu meu interesse por Porto-alegre e pelos demais reformadores urbanos que viveram no Brasil no século XIX, tema de seus estudos há longa data. Mais do que a aproximação de um tema, as atividades no LeU me proporcionaram, também, a construção de uma sólida parceria intelectual do qual a presente dissertação se beneficiou imensamente. Devo agradecer aqui a todos os pesquisadores do laboratório – Mário Magalhães, Daniela Ortiz, Juliana Loureiro, Carolina Trindade, Carolina Bortolotti, Rafael Barcelos, Jorge Fleury, Aline Cury e Iazana Guizzo – que em nosso convívio quotidiano e em nossos grupos de estudos contribuíram para o desen- volvimento dessa pesquisa, além dos bolsistas de iniciação científica – Izabela Gonçalves, João Sayd, Marina Jardim e Juliana Teixeira – que, em tempos diferentes, me ajudaram na organização de fonte documental. Devo aqui agradecer especialmente aos “leuzianos” Mário Magalhães e Daniela Ortiz, pois sem seus cuidadosos comentários e paciente leitura, sem o apoio continuo e as críticas necessárias esse tra- balho certamente não teria a mesma forma. O companheirismo desses dois gratos amigos tornou muito mais instigante todo o processo de composição desse estudo. Agradeço ainda ao LeU por ter me proporcionado a aproximação de pesquisadores experientes, sobretudo durante os seminários internos, para quem pude expor e com quem pude debater a pesquisa sobre Porto-alegre, recebendo, assim, importantes contribuições. Nesse contexto, agradeço a Ivone Sal- gado, Marlice Azevedo Nazaré, Guilherme Bueno e, sobretudo, a Ana Pessoa. Essa última, atual diretora 8 do Centro de Memória e Informação da Fundação Casa de Rui Barbosa, que ao longo do desenvolvi- mento dessa pesquisa se mostrou uma grande parceira intelectual, com quem pude dividir inquietações e dúvidas e de quem recebi interesse, atenção, uma infinidade de referencias bibliográficas e de fontes e, o mais inestimável, perguntas preciosas em momentos cruciais. Ao Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ onde realizei duas disciplinas duran- te o ano de 2011. Os conteúdos estudados e os debates realizados nessas aulas foram significativos para o amadurecimento teórico e metodológico do presente trabalho. Agradeço, assim, a interlocução com as professoras Marieta de Moraes e Norma Côrtes. Agradeço também ao Programa de Pós-Graduação em História Social e da Cultura da PUC-Rio, onde realizei especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil e onde pude esboçar as pri- meiras análises sobre a obra de Porto-alegre. Agradeço ao professor Masao Kamita, que orientou a monografia, e aos professores Ana Luísa Nobre e César Tovar com quem pude debater alguns aspectos da pesquisa na época. Agradeço aos especialistas em Manoel de Araújo Porto-alegre, os professores Gustavo Rocha -Peixoto e Francisco Sales Trajano Filho e as pesquisadoras Heliana Angotti Salgueiro e Letícia Squeff pela gentileza com que acolheram minhas perguntas e a generosidade com que se dispuseram a dividir fontes e a conjecturar hipóteses. Às bibliotecas e aos arquivos contatados – Academia Brasileira de Letras, Arquivo Geral da Ci- dade do Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional, Biblioteca de Obras Raras da Facul- dade de Belas Artes da UFRJ, Fundação Casa de Rui Barbosa, Museu D. João VI, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Museu Imperial de Petrópolis e Jornal do Commercio –, agradeço a inestimável atenção de seus responsáveis, bibliotecários e arquivistas de quem sempre recebi gentileza e presteza que fizeram dos dias de pesquisa em acervo, uma tarefa menos árdua. Ao Cnpq e a FAPERJ meus agradecimento pelo financiamento da presente pesquisa. A Patrícia Peixoto pelo empenho na confecção de um “desenho” mais atrativo dos volumes da dissertação. A minha família pelo apoio incondicional. A Érico pela compreensão, pelo companheirismo e pelo amor. Resumo Manoel de Araújo Porto-alegre[1806-1879] foi um destacado personagem no quadro intelectual do Império brasileiro em meados do século XIX. Por esse motivo, sua vida e obra vem sendo objeto de inúmeros estudos que tratam, sobretudo, do papel preponderante que teve no meio artístico de seu tempo e, ainda, suas incursões como literato e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). No entanto, sua atenção às construções urbanas e, mais especificamente, à construção das ci- dades, apenas recentemente vem despertando interesse de estudiosos do tema. É, justamente, em torno desse aspecto menos explorado da atuação de Porto-alegre que a presente dissertação busca trazer con- tribuições. “Os escritos de Manoel de Araújo Porto-alegre sobre cidades [1844-1853]: temporalidades e sedi- mentações” analisa um conjunto de textos produzidos pelo autor, entre 1844 e 1853, em que as cidades são tematizadas. Ao estudar a produção de Porto-alegre nesses anos, busca-se enfocar a maneira como seu interesse por questões citadinas vai se tornando mais explicito e seu desejo de intervir nas formas materiais e sociais das cidades, sobretudo do Rio de Janeiro, passa a conformar ideais e ações mais obje- tivas. A análise desses textos, realizados em sua totalidade em um momento da trajetória intelectual de Porto-alegre em que ele esteve distante das atividades como arquiteto e das instituições artísticas, acabam por trazer insumos também para o conhecimento de aspectos menos estudados de sua vida e de sua rede de sociabilidade. Assim, a presente dissertação trata com atenção também esse contexto, no qual Porto -alegre se afasta da Academia Imperial de Belas Artes e se aproxima e compartilha ideias - sobre cidades inclusive - com os engenheiros militares. Configurando assim, uma época em que Porto-alegre, de fato, esteve menos envolvido com os projetos de arquitetura, mas parece querer “re-desenhar” a cidade em seus textos. Logo, a presente dissertação busca tanto contribuir para os estudos sobre o pensamento urbanís- tico, no século XIX, no Brasil, quanto lançar luzes sobre alguns aspectos da biografia de Porto-alegre. Apresentação 13 Introdução 19 Capítulo I: O riso como ensaio à crítica social “É preciso mudar de vida, Belchior, um futuro imenso está aberto diante de nós” 46 A Lanterna Mágica: um periódico “diferente” em seu tempo 46 O objeto da crítica de Porto-alegre na “Lanterna Mágica” 50 Porto-alegre e a Academia Imperial de Belas Artes: espaços de conflito 52 As condições sociais para se realizar as críticas presentes na Lanterna Mágica: Porto-alegre e o Paço Imperial 57 Um olhar que se volta para a cidade 63 A cidade em “A Lanterna Mágica” 72 Capítulo II: Um poema como projeto para a cidade Entre o poeta e o arquiteto, um poema como projeto 94 “nada tão parecido com um saquarema do que um luzia no poder” 103 A morte do pintor, tempos de mudanças profissionais 108 Sumário Capítulo III: Uma ‘cidade-revista’: reflexos de maturidade intelectual em tempos de mu- danças profissionais Novo círculo de sociabilidade de Porto-alegre: os engenheiros militares 114 A Academia Imperial de Belas Artes em 1850: entre a polêmica e a crítica 116 Guanabara, uma revista em três tempos 122 Comparar, melhorar e reconstruir a capital 124 Campos profissionais em disputa: a participação de arquitetos e engenheiros nas obras públicas 136 Reflexos das epidemias de febre amarela: a questão das calçadas 139 Projetos para teatro: projetos para cidade: projeto de reinserção profissional como arquiteto 143 Tempos de conciliação partidária, tempos de reinserção profissional 149 Conclusões 150 Bibliografia 153 Apresentação Manoel de Araújo Porto-alegre [1806-1879] é personagem incontornável para os estudos culturais e artísticos no Brasil durante o século XIX. Pertencendo a uma “segunda geração”1 de homens engajados em construir o Brasil como nação independente, ele seguirá o rumo lançado pela geração precedente ao lado de Macedo, Torres-Homem, Vanhargen, Paulo Barbosa da Silva e Beaurepaire Rohan. Nas pegadas de José Bonifácio, Hipólito da Costa, dentre outros, que se engajaram nos debates iniciais da formação de uma nova nação2, agora, buscava-se conhecer, classificar, tipificar e afirmar as especificidades do ter- ritório brasileiro. Essa “nova geração”, a que pertence Porto-alegre, talvez tenha eleito como símbolo a própria figura do Imperador Pedro II, que como eles, havia nascido no Brasil e, assim, parecia represen- tar a própria nação independente, nas promessas de seus próximos anos. De modo diferente da primeira “geração”, formada em grande parte em Coimbra3, essa segunda, em boa medida se formou em instituições brasileiras recém-criadas – a Academia Imperial de Belas Artes, a Faculdade de Direito, a Faculdade de Medicina e a Escola Militar –, mas não só. Como no caso da precedente, apesar da origem, por vezes menos abastadas de alguns de seus integrantes, como Por- to-alegre, por exemplo, eles vivenciaram também parte de sua formação no “velho mundo”. Assim, ao retornar ao país, muitos deles formulavam “projetos de nação” para o Brasil que se articulavam a partir de experiências vivenciadas nos dois lados do Atlântico. Ou seja, tratava-se de brasileiros, que queriam ser reconhecidos como tais, mas que se sentiam também homens do mundo. A ação dessa segunda geração de intelectuais começa a ser mais significativa no momento em que o sistema de governo imperial brasileiro inicia sua estabilização4. É a partir do fim da década de 1830 e início da década de 1840, quando as insurgências que requeriam o retorno a um governo luso se silen- ciam5 que muitos desses intelectuais retornam de suas temporadas de estudo na Europa e passam a as- sumir cargos de destaque nas instituições e no governo. Contudo, apesar do aparente “amadurecimento” do sistema imperial, não se pode dizer que essa época foi de anos “tranquilos”. Afinal, a bibliografia sobre a vida política durante o fim do período regencial e início do segundo reinado6 é profícua em mostrar as intensas disputas políticas pela liderança do governo. É justamente nesse período, que é inaugurada uma nova instituição e valorizada a ação de outra já existente e que passa a congregar os esforços desses indivíduos permitindo vê-los como um grupo. Trata-se do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado em 1838, e do papel relevante que assumiu 1. Embora, evidentemente, o conceito de “geração” venha sendo discutido por historiadores, ele nos serve aqui para designar um grupo que se vê, não só como tal, mas desenvolve práticas sociais em torno de debates sobre os meios do próprio país e, de certo modo, se espelha ou se contrapõe a outros grupos visto como predecessores. 2. Sobre a ideia de formação nacional e a especificidade do caso brasileiro ver: MATTOS, Ilmar Rohloff. “O Tempo Saquarema – A formação do Estado Imperial”. Rio de Janeiro: Access, 1994. pp. 117; Sobre o envolvimento de Porto-alegre nessa “construção” ver: SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. “A invenção do Brasil – Ensaios de história e cultura”. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. 3. Cf. CARVALHO. José Murilo de. “A Construção da Ordem - Teatro das Sombras”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 4. Cf. CARVALHO. José Murilo de. “A vida Política”. In: CARVALHO, José Murilo de (coord.). “A construção nacional 1830- 1889”. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. pp. 98. 5. Cf. José Murilo de Carvalho, “A morte de Pedro I em 1834 deixara os restauracionistas sem causa”. Ibdem. 6. Entre os quais são obras de referência: CARVALHO. José Murilo de. “A Construção da Ordem - Teatro das Sombras”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008; e MATTOS, Ilmar Rohloff. “O Tempo Saquarema – A formação do Estado Imperial”. Rio de Janeiro: Access, 1994. 14 a Escola Militar, nas décadas de 1840 e 1850. Nas atividades das duas instituições, Porto-alegre tomou parte ativamente.Em boa medida, essas duas casas afirmam os propósitos recorrentes nos discursos des- ses “novos intelectuais”. Com essas instituições, homens como Porto-alegre enunciavam suas propostas sobre a necessidade de instruir os jovens brasileiros sobre o próprio país, criando narrativas históricas e estudos geográficos nos quais o Brasil era tema e, também, de agir concretamente para garantir a segu- rança, a unidade do império e sua construção material. De fato, a partir da década de 1830, multiplicaram-se os esforços de governantes e intelectuais em manter o território coeso, lutando contra a possibilidade da fragmentação observada, um pouco antes, na vizinha América de colonização espanhola. No entanto, como o Império, a coesão do território não era constituída sem conflitos, que eram “visíveis” quer na manifestação de revoltas separatistas, quer na própria concepção de administração governamental. Por outro lado, as proporções continentais do território brasileiro se consolidavam, na mesma medida que o Império dava sinais que, ainda que com dificuldades, seu sistema de governo estava se firmando. Em qualquer um dos casos, governança e terri- tório eram duas faces de uma mesma moeda7. Assim, não é de se espantar que conhecer, reconhecer e defender o território fosse o foco dos estudos nas duas instituições mais prestigiadas por governantes e intelectuais do início do Segundo Rei- nado. As duas instituições, a nova e a renovada, isto é, o IHGB e a Escola Militar, eram importantes instrumentos “científicos” para o empreendimento de projetos do governo, o primeiro com seus estudos histórico-geográficos e o segundo com seus estudos bélicos e de engenharia, essa última, cada vez mais civil. É nesse contexto que, entre outras formas, nas iniciativas dessas instituições podemos observar que as cidades brasileiras começam a ser mais profundamente enfocadas quer como objeto de discursos críticos, quer como objeto de intervenção. O caso da Escola Militar é particularmente significativo para exemplificar aqueles processos vivi- dos por essa segunda geração de intelectuais e governantes a que pertencia Porto-alegre. A Escola, além do visível processo de especialização, pouco a pouco ia autonomizando suas linhas de formação, uma civil e outra militar8. No entanto, em meados do século XIX, se nos detivermos na produção de seus principais alunos ou professores, nos depararemos com verdadeiros “humanistas”, cuja erudição e curio- sidade geralmente excediam justamente os limites de um único campo de conhecimento. Assim como Porto-alegre, os engenheiros militares desse período não devem ser entendidos como “quase-especialistas” que se interessavam “também” por letras, história, geografia, entre outros. Estes indivíduos eram, de fato, uma geração ainda de “humanistas” que centravam esforços em “práticas” es- pecíficas para realizar seus projetos de consolidação e de desenvolvimento da nação. Nesse sentido, tudo leva a crer que a busca por especializações na trajetória de Porto-alegre e em outros de seus pares – inclusive seu interesse pela arquitetura, pouco a pouco, também por uma arqui- tetura citadina e, enfim, pela própria cidade em sua forma social ou em sua forma física – se daria em sentido oposto às especializações que se formariam, no final do século XIX. Homens como Porto-alegre resguardavam sempre uma ambição sistêmica, como no pensamento saint-simoniano, quer em suas analogias com o corpo como totalidade, que deveria ser mantido em equilíbrio a partir da atenção e bom funcionamentos das partes, quer nas analogias astronômicas que também aludia ao equilíbrio aqui, ao contrário, observando-se cada elemento para demonstrar sua im- portância e necessidade para o movimento do conjunto. 7. Sobre a relação entre propriedade e governança no Brasil do Segundo Reinado, ver: MATTOS. Op. Cit. pp. 110-111. 8. Sobre os processo de autonomização das linhas formativas da Escola Militar no século XIX, ver: CASTRO, Celso. “O Espírito Militar. Um antropólogo na caserna”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. pp. 105-142; e TELLES, Pedro Carlos da Silva. “História da Engenharia no Brasil”. Rio de Janeiro: Clavero, 1994. 15Ora, Porto-alegre, homem de seu tempo, encarnava esse duplo perfil de especialista e enciclopédi- co, adjetivos quase que “auto-aniquilantes”, mas que fazem sentido para qualificar a ação de homens que, como nosso biografado, ajudaram a dar forma a nação brasileira em meados do século XIX e, como ten- taremos mostrar nas páginas seguintes, pensar também suas cidades, particularmente, o Rio de Janeiro. De todo o modo, a atenção a essa inversão para o estudo do perfil da geração de Porto-alegre se faz necessária, pois não são poucos os trabalhos que se iniciam justamente destacando suas inúmeras “especialidades”. Cometendo, assim, certo anacronismo, pois a fragmentação do campo epistemológico se acentuaria somente, entre cinquenta a oitenta anos mais tarde, até apresentar sua divisão em áreas. As biografias correntes sobre sua trajetória apontam, justamente, a proeminência de seu papel em pelo menos quatro perfis “distintos”: como pintor discípulo dileto de Debret; como importante figura política na reforma do ensino da Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), conhecida como “Reforma Pedrei- ra”; como historiador da arte, orador e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB); e como importante literato do romantismo brasileiro. No presente trabalho, intentamos explorar uma face de sua trajetória ainda pouco estudada. Tra- ta-se do interesse que o artista nutriu e desenvolveu durante os anos em que morou no Rio de Janeiro pelas formas da cidade, seja criticando-a em muitos dos seus aspectos, seja buscando intervir nela. No entanto, nessa pesquisa, não buscamos analisar Porto-alegre de forma “autônoma” entre seus perfis, mas sim no cruzamento de suas diferentes ações como político, pintor, arquiteto ou literato. Es- peramos poder mostrar nas próximas páginas que o ímpeto construtivo e reformador de Porto-alegre não residiu apenas em sua obra arquitetônica, mas que se manteve firmemente ativa em seus escritos em momentos em que sua inserção profissional sofria mudanças profundas, época de sua vida também pouco conhecida, e que daremos maior ênfase aqui. Assim, este trabalho não está centrado na biografia de Porto-alegre, mas, sobretudo, busca com- preender com ela a cultura construtiva da qual participou, visando dar a ver a rede de relações com as quais se envolveu e os debates em que tomou parte. Pretende-se com isso, para além do próprio Porto -alegre, lançar luzes sobre a participação dos arquitetos nas obras para cidade e na reflexão crítica de sua forma social e material em meados do século XIX, no Brasil. 18 “Manoel de Araújo Porto-alegre (ao centro) acompanhado dos amigos Gonçalves Dias (à esquerda) e Golçalves Magalhães (à direita)” (1858) In: Lyra, Heitor (1977). História de Dom Pedro II (1825–1891): Fastígio (1870– 1880).V.2. Belo Horizonte: Itatiaia. Introdução Escrever sobre si e interrogar cidades: duas faces de um caderno de viagem “(...) Minha alma estava agitada profundamente. Saudade dos amigos e apreensões so- bre meu novo futuro. O mundo material esmagava o artístico. (...) Abracei de alma e corpo esses bons amigos que me vieram ver, e com incômodo. O Capitão deu sinal; as rodas começaram a mover-se, e eu nunca vi o Rio de Janeiro mais belo do que nessa hora. À tarde montámos o Cabo Frio, rocha escarpada, com um farol, e para nós o último élo de granito dessa cadeia de inumeráveis belezas que fecham ao oceano e abrem a Niteroi o mais sublime espetáculo do mundo. Logo que a terra desapareceu, houve um ar de melancolia em todos os semblantes: é esse ar um íntimo adeus, um abraço d’alma á terra da pátria. Por sobre ele vem pairar um mundo de considerações, um mundo que tem por polos a saudade e o temor”1. Oito de junho de 1859: Porto-alegre deixava o Rio de Janeiro rumo uma carreira consular na Euro-pa. Seu primeiro destino, Lisboa. Antes da partida, já à bordo do navio “Tyne” com sua numerosa família, recebia os amigos que vinham se despedir e, horas depois, já em alto mar, parece ter começado a redigir esse caderno de memórias2. Se não tivéssemos lido essas primeiras páginas, poderíamos pensar que o caderno de viagem trata- ria fatos memoráveis de um homem público, futuro Cônsul do Brasil. Afinal, Porto-alegre, acostumado a relatar os “grandes feitos dos homens ilustres” do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), do qual era membro, tendia a escrever sobre si mesmo como um “vulto da nação” 3. Junto aos intelectuais que participavam do IHGB existia uma tradição de elaboração de biografias das destacadas personalidades do Império com a finalidade de contribuir para a escrita da história nacio- nal. Geralmente, tratavam-se de elogios póstumos ou “necrólogos”, publicados regularmente nas Revistas do Instituto e seguiam os mesmos atributos que os “elogios acadêmicos” realizados, por exemplo, na França naqueles mesmos anos4. Como se sabe, Porto-alegre era um dos oradores do IHGB e escreveu inúmeros elogios e biogra- fias5. Junto ao Instituto, realizou, por exemplo, um trabalho no qual escreveu sobre a vida e obra de artífi- ces que atuaram no Rio de Janeiro durante o período colonial. Nesse texto, intitulado “a escola fluminense 1. PORTO-ALEGRE, Manoel de Araújo de. “Caderno de viagem do Rio à Lisboa”. Lisboa, 1859. (Manuscrito). Arquiva- do na Academia Brasileira de Letras. 2. O caderno possui indícios de ter sido comprado em Lisboa, destino final de Porto-alegre, pode-se supor que ele realizou notas em folhas avulsas e depois a copiou para o caderno. 3. Porto-alegre foi redator de necrólogos para o IHGB e também buscou organizar nessa casa um estudo sobre os pri- meiros pintores brasileiros, artífices que viveram ainda no tempo da colônia e que Porto-alegre denominou “escola fluminense de pintura”. Cf. PORTO ALEGRE, Manuel de Araújo. “Memória sobre a antiga escola fluminense de pintura”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro: IHGB, v. 3, 1841. PP.547-557. 4. Sobre o desenvolvimento da escrita biográfica na França consultamos: LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas: da biografia. In: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003. PP.148-149. 5. Cf. SQUEFF. Op. Cit. 20 de pintura”6, Porto-alegre buscava, na tradição de “renascimentos”, resgatar os nomes desses artífices, elevava-os a qualidades de artistas nacionais e buscava assim contribuir para a escrita de uma história das artes no Brasil. De fato, dar sentido a cenas efêmeras, a trajetórias de homens importantes, a momentos cruciais para a formação do país como nação não eram apenas manobras discursivas de seu ofício como orador e historiador da arte no IHGB, mas, também, de pintor e professor de “pintura histórica”. Conforme já apontava Letícia Squeff7, em “O Retrato de D. Pedro I”, não existe nenhuma distância entre o pintor, o biógrafo laudatório ou o historiador. Na pintura, Porto-alegre compõe a figura de um Imperador, onde todos os gestos e objetos dos quais se cerca em cena são dotados de sentidos explícitos8. Ao longo de sua trajetória, em diferentes ocasiões e formas discursivas, Porto-alegre havia apre- sentado uma aparente unidade entre a sua concepção de história e a escrita biográfica. Não é difícil aventar com isso, que seja em meio a essas concepções que ele construiria narrativas para sua própria tra- jetória, sob a forma, não apenas, de relatos autobiográficos, mas também de diários e livros de memórias. De fato, antes de iniciar o diário de sua viagem para Lisboa, Porto-alegre havia buscado registrar uma espécie de interpretação de sua própria trajetória em, ao menos, dois outros momentos. O primeiro escrito ficou conhecido como “o diário” e o segundo foi comumente tratado por seus biógrafos como “apontamentos biográficos”9. O “diário” é um caderno em que Porto-alegre anotou suas memórias dos anos em que foi convi- dado a implementar a “Reforma Pedreira”, reforma no ensino artístico da Academia Imperial de Belas Artes, e abrange acontecimentos de 04 de agosto de 1853 a 03 de outubro de 1857. Esse caderno de me- mórias foi transcrito e publicado por Alfredo Galvão, em 1959. Os “apontamentos biográficos”, apesar de terem sido escritos por Porto-alegre depois de sua pas- sagem pela Academia como diretor, vieram a público anos antes do caderno de memórias publicado por Galvão. Foi Hélio Lobo quem os publicou no Jornal do Commercio, em 1922. Tratava-se de um escrito realizado em terceira pessoa do singular no qual Porto-alegre faz uma leitura de sua própria trajetória, buscando elencar as suas principais contribuições para o “progresso” das artes no império de 1806, ano de seu nascimento, a 1858, quando, possivelmente, essa sua autobiografia foi escrita. Nesses dois textos é evidente que Porto-alegre se preocupava em deixar uma interpretação pró- pria dos seus “feitos” e “contribuições para nação”, a fim de garantir que, mesmo tendo se envolvido em inúmeros intrigas e reveses, seu nome e suas ações fossem lembrados na posteridade. No entanto, o ca- derno de viagem do Rio à Lisboa, mostra um Porto-alegre menos laudatório e mais introspectivo, o quê poderia ser sentido como uma aparente incoerência. Talvez tenha sido por isso que, de todos os registros autobiográficos deixados por Porto-alegre, o caderno de viagem foi aquele que menos interessou à sua fortuna crítica10. Em sua atuação como pintor, talvez o gesto que mais se assemelhe ao do caderno de viagem seja o da concepção do retrato de seu mestre e amigo Jean Baptiste Debret, realizado por volta de 1825. Nesse 6. PORTO ALEGRE, Manuel de Araújo. “Memória sobre a antiga escola fluminense de pintura”. Op. Cit. 7. Cf. SQUEFF, Letícia. “O Brasil nas letras de um pintor – Manoel de Araújo Porto-alegre (1806-1879)”. Campinas: Ed. Unicamp, 2004. pp. 139. 8. Dentre os documentos pessoais de Porto-alegre presentes nos arquivos do IHGB encontram-se também alguns manuscritos de biografias inacabadas, demonstrando, assim, a prática corrente dessa tipo de escrito por parte de Porto-alegre. 9. Sobre a denominação desses dois escritos e sua circulação ver: SQUEFF. Op. Cit. pp. 29-40. 10. Apenas identificamos menção do caderno de viagem do Rio à Lisboa no livro de Hélio Lobo, contudo sem citação direta. Ver: LOBO, Hélio. Manoel de Araujo Porto-alegre. Rio de Janeiro: Empresa Editora ABC Ltda, 1938. Pp. 33-36. 21 PORTO-ALEGRE, Manoel de Araújo de. “Caderno de viagem do Rio à Lisboa” Lisboa, 1859. (Manuscrito) Academia Brasileira de Letras 22 PORTO-ALEGRE, Manoel de Araújo de. “O Imperador D. Pedro I”. (1826). Óleo sobre tela. Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. 23retrato, tal como no caderno, os traços dão forma muito mais a um homem do que a um “herói” ideali- zado. Imperfeições, incompletudes e incertezas não montam uma cena “bem acabada” como no quadro de D. Pedro I, mas dão uma “aura” de humanidade à vida ali representada. Na escrita do caderno viagem, como na tela de Debret, um tom mais íntimo vai ganhando o lugar da locução das grandes realizações. Porto-alegre, quando redige o diário é um homem maduro de 53 anos e dava forma a uma escrita mais concisa, menos rebuscada. Agora, ele amenizava também a forma dura com que se acostumara atacar, mesmo em escritos íntimos, seus adversários. Como vimos, o caderno de viagem se apresenta, então, como um relato emocionado que conta a despedida dos amigos, o último olhar para paisagem do Rio de Janeiro e as sensações que lhe tomaram quando não pôde mais avistar essa terra, quando tudo se fez mar. Ora, as condições que levaram Porto-alegre a embarcar no navio “Tyne” não eram nada confor- táveis. Já sem a função de diretor da Academia Imperial de Belas Artes, da qual se demitira em 1857, e após ser aposentado de seu cargo de professor na reforma acadêmica da Escola Militar, em 1858, esta era umasaída possível e honrosa para garantir, ainda, alguma inserção política no Império e o seu próprio sustento. No entanto, é em meio a esse discurso extremamente íntimo que aparecem páginas e mais páginas analisando cidades. São considerações a respeito das cidades em que foi aportando em sua viagem com especial destaque para Salvador e aquela se tornaria seu novo lar, Lisboa. Ele descreve: “(...) Vê-se que a antiga capital do Brasil [Salvador] foi habitada por gente muito rica e muito devota. O grande número de igrejas, de conventos, e de casas apalaçadas testemu- nham esta asserção. Uma só escada boa não vi neste meu passeio de seis horas; todas são como as velhas de Lisboa, á exceção do saguão, onde estão ainda sentados em remques alguns pretos a tecer palha. É difícil conceber-se a planta daquela cidade! Não me admira atividade e maneio dos baianos nas coisas da vida, quando desde a infância são obrigados a subir, descer e voltear, e a calcular naquele labirinto o caminho mais curto. Parece que essas curvas os excitam a falar e a desenvolver-se, porque todo baiano tem o dom da palavra. Apesar de alguns senões, a Baía é uma cidade muito pitoresca, muito arejada, e de aspecto risonho. A cada passo se encontra grupos de casas e edifícios que formam ceno- grafias admiráveis”11. Pode-se perguntar: Por que um homem, até agora quase sempre estudado e visto como um pintor ou um professor, se importaria em analisar a aparente coerência entre a dimensão construída da cidade e sua posição como antiga capital da colônia portuguesa no além-mar? Por que o artista, apenas a passeio, haveria de se preocupar com a maneira como foi concebida a planta daquela cidade? Por que sugerir que a forma física da cidade poderia impactar na maneira como são os baianos? Ou ainda, por que deixar anotado que a cidade é “muito arejada” e possui “cenografias admiráveis”? Seria tudo isso apenas um mero interesse pelo pitoresco do Brasil, como fizera Debret ou uma moda ditada pela proliferação de diários de viagens? Ao contrário do que supõe a última pergunta, nossa pesquisa, nas páginas que se seguem, busca mostrar que escolher observar esses aspectos pode demonstrar, perfis pouco explorados e pouco conhe- cidos da biografia do artista. Pode mostrar ainda que Porto-alegre, nesse momento de sua vida, possuía um cabedal de questões sobre a vida urbana e de atividades voltadas para os melhoramentos do Rio de Janeiro ainda pouco avaliados. Soma-se a isso, uma vivencia particular de urbanidade, que lhe legava 11. PORTO-ALEGRE, Manoel de Araújo. “Caderno de viagem do Rio de Janeiro à Lisboa”. Op. Cit. 24 um “olhar” treinado, isso é, pronto para “ver” aspectos dessa forma de viver e desse tipo de construção particular que são as cidades. Além disso, o caderno de viagem do Rio à Lisboa enuncia aqui apenas o primeiro exemplo de como buscaremos demonstrar, ao longo da presente dissertação, ser possível, e até mesmo necessário, passar a entender os escritos de Porto-alegre. Ou seja, entende-los não apenas como esboços de uma imensa massa de ideias inconclusas, mas, ao contrário, como um espaço onde as inquietações do intelec- tual podiam, então, ser realizadas. Algumas considerações teórico-metodológicas Observando o caderno de viagem do Rio de Janeiro à Lisboa, sobretudo, a maneira como está organizado, pode-se interrogar se estes escritos, além de servir de memória ou passatempo de viagem, não teriam sido animados também por aspirações ainda maiores, como, por exemplo, servir de roteiro para futuros artigos ou livros. Essa especulação se baseia, em parte, na observação de que, no caso dos apontamentos sobre as cidades visitadas, há uma explícita organização que, já em cada título, enfoca questões anteriormente debatidas por Porto-alegre em seus inúmeros artigos para revistas ou mesmo em sua atuação como ve- reador. Ordenando-as dessa forma, Porto-alegre iluminava essas questões citadinas, permitindo que elas fossem desenvolvidas futuramente, de forma mais pormenorizada. Como se começasse a organizar um texto, para ser posteriormente mais trabalhado. Sobre Lisboa, por exemplo, ele enumera uma série de parágrafos que se intitulam: terreiro do paço, ruas, praças, chafarizes, aquedutos, calçadas, passeios públicos, edifícios, igrejas, eminências, vistas estu- pendas, palácios e, finalmente, como se fosse uma síntese, cidade. Sobre as calçadas de Lisboa, questão que já lhe chamava a atenção ao escrever sobre o Rio de Ja- neiro anos antes, Porto-alegre apontava: “(...) As ruas [de Lisboa] são calçadas com umas pedrinhas de basalto escuro e os pas- seios [são cobertos por] (...) lajedo ou (...) pedras lioz. Este trabalho é muito bem feito. O leito destas calçadas é muito consistente (...)” E em seguida, sobre o Passeio Público de Lisboa, inclui os apontamentos reunidos no caderno de viagem: “Longo quadrilátero entre 3 ruas, todo plantado de árvores e flores. Tem uma grade pesada á entrada e uma alameda central muito cômodos e agradáveis. É iluminado a gás. Tem um botequim no gosto índico mui belo, (...) bem servido e, de fronte deste, o teatri- nho do Café Concerto. A companhia compõem-se de 4 damas e 2 cantores. As damas valem os 4 vintens assim como os galãs. É muito concorrido. Custa 80 [réis] (...) por pessoa à noite e este produto é aplicado ao asilo da infância, à 25 PORTO-ALEGRE. “Apontamentos biográficos”. In: “Porto-alegre. Uma autobiografia inédita de Araujo Porto-alegre”. Rio de Janeiro: Jornal do Commércio, 19 de maio de 1822, pp. 4. 26 PORTO-ALEGRE, Manoel de Araújo de. “Retrato de Debret” In: BANDEIRA, Júlio. LAGO, Pedro Correia. “Debret e o Brasil: obra completa”. Rio de Janeiro: Capivara, 2009.pp. 18. 27Câmara Municipal e à empresária do Passeio. (...)” Assim, ainda que se considerasse o seu interesse pelas cidades como resultado de uma moda ou tendência, pode-se perguntar por que, em um diário de viagem, Porto-alegre atentaria para o tipo de calçamento utilizado nas vias de Lisboa? Por que observar a maneira como foi realizada a arborização do seu Passeio Público? Por que lhe chama a atenção a iluminação à gás? Por que se mostrar atento à maneira como são financiadas a Câmara Municipal e a empresa que administrava o Passeio Público? Ora, frente a todas essas questões é possível se interrogar, ainda, como o artista, vivendo em um momento no qual a observação crítica sobre as cidades não era generalizada ou configurava “saberes es- pecíficos” para tratar de questões urbanas, demonstra uma sensibilidade tão fina para, em poucas linhas, enunciar tantos temas urbanísticos. De certo, Porto-alegre organizava seu relato íntimo, mas também seus apontamentos críticos, sem a pretensão de ser um especialista. Como já apontamos, o “problema” da geração de Porto-alegre dava-se de forma inversa, ao que se vê a partir do século XX, quando o campo do conhecimento passou a ser cada vez mais especializado. Sua geração, assim e ao contrário desta tendência, é ainda fortemente marcada por uma visão “sistêmica” de mundo. Mais ligado às ideias de Saint-Simon, que entendia o “go- verno” como um grande corpo cujas partes deveriam estar em equilíbrio para o perfeito funcionamento do conjunto12, do que será designado como “positivismo”, que marcaria a geração posterior com seus “determinismos” e “especializações”. No que diz respeito às cidades, inúmeros são os autores que desenvolveriam trabalhos sobre as analogias do pensamento urbanístico nascente tanto com o corpo (e com o pensamento médico), quanto com o pensamento astronômico (e matemático). Em ambas as tradições, é presente a noção de sistema, sobretudo, àquela que se depreendem também das ideias de Saint-Simon13. Pode-se dizer que, como bem enfocou Sales Trajano Filho ao estudar a arquitetura produzida por Porto-alegre, o próprio artista justificava sua obra de natureza variada e intermitente como resposta às condições de intervenção em uma terra em que ainda não havia especialidades14. O que mostra, por umlado, que a própria tendência à valorização de saberes cada vez mais específicos começava também a fazer seu caminho. É Porto-alegre que pondera: “Crimina-nos nosso bom compatriota o termos sido retratista, arquiteto e pintor de bastidores, como querendo que nos classificássemos em uma especialidade, sem lembrar que me nossa terra ainda não há especialidades (...)”15 Ou seja, para Porto-alegre, havia tanto a ser feito para se consolidar a nação, que ele considerava um “pequeno luxo” a possibilidade de poder se dedicar a apenas uma de suas (muitas) habilidades. Ora, nesse quadro como situar o saber sobre as cidades que chamamos mais tarde “urbanismo” e que pela natureza de seu objeto – as cidades, vale repetir – exigiria diferentes olhares e conhecimentos? No caso de Porto-alegre, pode-se pensar que essa sua sensibilidade para falar de cidades e estar 12. Sobre “espírito de corpo”, ver artigo de Henri de Saint-Simon, intitulado “L’Organisateur”, publicado no segundo número do jornal de mesmo título, de novembro de 1819 a fevereiro de 1820, nº II, pp. 17-26. Cf. IONESCU, Guida. “El pensamiento polí- tico de Saint-Simon. Edicíon, selecíon e introducción”. México: Fondo de Cultura Económica, 2005. Pp.187-205. 13. Cf. PICON, Antoine. “Les Saint Simoniens – Raison, imaginaire et utopie”. Paris: Belin, 2002. 14. TRAJANO FILHO, Francisco Sales. “Tentativas de enraizamento: arquitetura brasileira e formação nacional”. (Tese de douto- ramento) São Paulo: EESC-USP, 2010. Pp. 51. 15. PORTO-ALEGRE, Manoel de Araújo Porto. “Uma palavra ao Senhor Brasileiro Nato”. In: “Minerva Brasiliense – jornal de sciencias, lettras e artes”. Rio de Janeiro: J. E. S. Cabral, 1844. Vol I, nº 10. 28 atento a elas tenha sido fruto de uma série de experiências apreendidas, ou se quisermos, práticas sociais que foram se acumulando. Afinal, ele que foi pintor, arquiteto e professor da Escola Militar no Rio de Janeiro (instituição que, na época, formava os engenheiros responsáveis pelas obras civis da Coroa e dos Municípios), foi também vereador da própria Câmara Municipal, onde lidou com dezenas, ou até mes- mo centenas, de questões que tiveram a cidade como principal objeto de intervenção e reflexão. A historiografia sobre a formação do pensamento urbanístico16 tem nos mostrado que em di- ferentes contextos, conforme as diferentes condições locais, durante meados do século XIX, a cidade tornava-se objeto de “discursos críticos” e “ações” cada vez mais recorrentes e incisivas. Cada vez mais adensada, palco de conflitos sociais e foco de epidemias, mas também, construção material representa- tiva de valores culturais e identitários, no século XIX, a cidade passa a ser vista como lugar de vícios ou virtudes, mas jamais neutro17. Esse processo de “objetivação” das cidades foi longamente estudado por Françoise Choay em dois livros capitais: “O Urbanismo, utopias e realidades – uma antologia” e “A regra e o modelo”. Aquela autora, sobretudo nesse segundo livro, em texto de síntese para Enciclopedia Universalis18, proporia inclusive uma periodização desses processos para o caso europeu. Choay entendia que a um tempo de “objetivação” das cidades como tema de discursos críticos (sobre algumas de suas partes e de ações tópi- cas) – grosso modo do Renascimento à Revolução Industrial –, se sucederia um segundo tempo no qual as cidades se transformariam em objeto “total” do olhar e, consequentemente, em objeto de intervenções (reformas e remodelações) – grosso modo a partir da Revolução Industrial. De meados do século XIX até o início do século XX, essas práticas que colocavam as cidades no palco dos debates políticos, econômicos, médicos, técnicos e artísticos, começavam, elas mesmas, a ga- nhar pouco a pouco autonomia e a formar, por conseguinte, uma nova cultura construtiva. Ou seja, um “lugar” em que convergiam diferentes práticas, há muito tempo já consolidadas, e que passariam a ser conhecidas como “urbanismo”19. A posteriori, buscando compreender o nascimento dessa disciplina, alguns estudiosos passaram a se interessar pelos debates dos reformadores sociais que, ao longo do século XIX, colocaram as cidades 16. Dos quais podemos citar, ao menos: CHOAY, Françoise. “O Urbanismo. Utopias e Realidades. Uma Antologia”; RONCAYO- LO, Marcel; PACQUOT, Thierry. “Villes et Civilisation Urbain”; CALABI, Donatella. “História do Urbanismo Europeu. Questões instrumentos e casos exemplares”; TOPALOV, Christian. “Laboratoires du noveau siècle. La nébuleuse réformatrice et ses réseaux en France, 1880-1914”; PEREIRA, Margareth. A. S. “Notas sobre o Urbanismo no Brasil: construções e crises de um campo disciplinar”. 17. Como já mostraram inúmeros historiadores do urbanismo desde o fim dos anos 1970, é forçoso repetir Choay, em “Le règne de l’urbain et la mort de la ville” (1994), “O termo [urbanismo] é um neologismo proposto pelo espanhol I. Cerdá em sua ‘Teoria geral da urbanização (1867). Ele foi introduzido na França, no curso dos anos 1910, por H. Prost e um grupo de ‘praticantes’ que gravitavam em torno do ‘Musée social’”. (tradução nossa) In: CHOAY, Françoise. Pour une antropologie de l’espace. Paris: Seuil, 2006. pp. 169-171. 18. Cf. CHOAY, Françoise. “Urbanismo – teorias e realizações”. In: PEREIRA. Margareth A. C. S. “Apostila didática da disciplina Urbanismo I”. Rio de Janeiro: FAU-UFRJ, 2003. 19. Segundo Choay: “A noção de urbanismo nasceu como parte de uma reflexão sobre o impacto espacial da revolução industrial: a cidade subitamente sofre uma convulsão (bouleversement) espontânea, que parece ser um desastre natural e incontrolável. Desde a sua criação, a palavra serviu para designar duas abordagens diferentes: Por um lado, ‘urbanismo’ designa uma disciplina nova que se declara autônoma e se vê como ciência da concepção de cidades. (...) Por outro lado, e ao mesmo tempo, ‘urbanismo’ designa também uma outra abordagem, pragmática e sem pretensão científica. Essa abordagem não visa promover a mudança da sociedade, mas procura mais modestamente regularizar e organizar com o máximo de eficácia o crescimento e o movimento dos fluxos demográficos assim que a mudança de escala das construções e dos equipamentos são induzidos pela revolução industrial. (...)”.(tradução nossa) In: CHOAY, Françoise. Pour une antropologie de l’espace. Paris: Seuil, 2006. pp. 169-171. 29 MULOCK, Benjamin. “Vue de la place du Pelourinho à Salvador de Bahia” (1859) In :“L’Empirebrésilien et sesphotographes” Paris :Musée d’Orsay, 2005. 30 FROND, Victor. “Terreiro de Jesus diante da Igreja dos Jesuítas do Colégio dos Jesuítas” (1858) In: VASQUES, Pedro Karp. “O Brasil na fotografia oitocentista”. São Paulo: Meta Livros, 2003. Pp.55. 31– suas formas materiais e sociais20 – no centro de suas reflexões e ações. Trabalhos como da própria Fran- çoise Choay, “Urbanismo – Utopias e Realidades – uma Antologia”, ao enfocar “as ideias que forneceram base ao urbanismo”, nos mostram que: “(...) No momento em que a cidade do século XIX começa a tomar forma própria, ela provoca um movimento novo, de observação e reflexão. Aparece de repente como um fe- nômeno exterior aos indivíduos a que diz respeito. Estes encontram-se diante dela como diante de um fato natural, não familiar, extraordinário, estranho.”21 Como se sabe, esse grupo de reformadores sociais que enfocaram a cidade a partir desse processo de “estranhamento”, quer descritivo, quer polemista, foi nominado por Choay como “pré-urbanistas”22. Assim, ao observarmos a antologia organizada por Choay, percebemos que Porto-alegre, então, não estava só. Assim como ele, em outras localidades, reformadores como Pugin, Ruskin ou Semper, por exemplo, também haviam abordado questões citadinas a partir de seus embates na prática de arquitetura ou nas reflexões sobre a educação estética. No entanto, as reflexões de Porto-alegre sobre aspectos citadinos, apesar de compartilhar seme- lhanças com as de pensadores elencados por Choay, não encontra nesses textos – em suatotalidade relativos apenas a cidades europeias e norte-americanas – referenciais que nos ajudem a compreender a especificidade de seus embates no Brasil. Pois conforme aponta Margareth Pereira ao criticar “os com- pêndios que se dedicaram a traçar a ‘história total’ da constituição do Urbanismo”, “(...) embora os sinais de formação de uma nova sensibilidade em relação à observação de cidades [ou do urbanismo nascente] sejam quase simultâneos, eles variam de intensidade de um contexto a outro, de um país a outro, de uma cidade a outra. (...)”23 Apesar de Porto-alegre ter vivido em países europeus durante a conclusão de seus estudos, mais precisamente de 1831 a 1837, os projetos em que se envolveu tomando a cidade como objeto de interven- ção e os textos que produziu colocando a cidade como objeto de reflexão, exceto o caderno de viagem do Rio à Lisboa, foram desenvolvidos inteiramente no Brasil. Assim, pode-se pensar que, de certo, ele vivenciou e acompanhou os debates nos diferentes ci- dades em que morou, afinal, não são raras as suas menções a Victor Hugo e a Semper, ou a referencia à paisagens observadas na França, na Itália ou na Inglaterra. No entanto, a análise de sua obra não pode justamente silenciar o contexto brasileiro. 20. É importante lembrar que, na sequencia dos trabalhos de Choay aqui citados, outros autores e, particularmente Marcel Ron- cayolo, mostraram que, desde o século XII, o processo de “objetivação” da cidade quer sob forma de discurso, quer sob forma de intervenção concreta, enfoca dois aspectos. O primeiro, a forma física da cidade, isto é, sua materialidade como “coisa” construída: suas tramas viárias, arquiteturas e construções em geral. O segundo, a sua forma de organização político-social, isto é: culturas dos seus habitantes, seus modos de vida, suas instituições políticas, jurídicas e sociais. Cf. Cf. RONCAYOLO, Marcel. “Le morphologie entre la matière et le social”. In: “Villes en Parallèle”. Nº 12/13. Université de Paris X, Laboratoire de Geographie Urbaine, 1988. pp. 45-59. 21. CHOAY, Françoise. “O Urbanismo. Utopias e Realidades. Uma Antologia” (1965). São Paulo: Editora Perspectiva, 2003. pp. 4. 22. Os “pré-urbanistas” em Choay são definidos por constituir um grupo de “generalistas” que se dedicaram a “descrição” e/ou “polemização” dos fenômenos de urbanização crescente pelo qual passaram as cidades, sobretudo europeias, a partir da “revo- lução industrial”. Já os “urbanistas”, ao contrário, são “especializados” nas questões urbanas. Esses últimos, geralmente, são arquitetos , e tem por motivação a aplicação de suas ideias, ou seja, tem como principal finalidade a ação. Como podemos ver, os termos “urbanistas” e “pré-urbanistas” materializam os pressupostos de Choay a respeito dos processos de “objetivação” das cidades a que já nos referimos. 23. PEREIRA, Margareth. A. S. “Notas sobre o Urbanismo no Brasil: construções e crises de um campo disciplinar”. In: MACHA- DO, Denise B. Pinheiro; SILVA, Rachel Coutinho M.; PEREIRA, Maragareth A. S. “Urbanismo em questão”. Rio de Janeiro: PROURB, 2003. pp. 57. 32 Entre 1840 e 1859, Porto-alegre está na fase de maior produtividade e esteve diretamente envolvi- do nos debates acerca da construção da nova nação e de seu governo, não só na sua dimensão abstrata, como também, nas questões mais comezinhas como a feição da capital do Império. Assim, tomando de empréstimo outra passagem do trabalho de Pereira, na presente dissertação entendemos que no que diz respeito aos saberes urbanos: “(...) É necessário ter em mente (...) [as] diferentes cronologias e (...) série de cartogra- fias envolvendo diferentes cidades e regiões, se quisermos não só contribuir para uma historicização mais complexa do movimento de formação do campo disciplinar mas também, comparativamente, como se desenha a problemática do caso brasileiro”. 24 Essa premissa contribui para se estar atento que no caderno de viagem do Rio à Lisboa, Porto -alegre demonstra que suas reflexões citadinas se formaram articulando observações de processos de urbanização de cidades “europeias”, como Paris – cidade em que o artista viveu a maior parte do tempo de sua temporada de estudos -, mas também suas vivencias no Rio de Janeiro. Porto-alegre anota naquele seu caderno de viagem, por exemplo: “Eugênio dos Santos foi o arquiteto da Cidade [Lisboa], e seguiu de perto o plano de Salento de Fenelon, sem refletir que um sábio pode ser péssimo arquiteto, como no tem- po de Luiz Filipe o foram Chateaubriand e Victor Hugo com seus planos dos Campos Elísios. Estes pecavam pela demasiada variedade, assim como Fenelon pela monotonia. Lem- bro-me de um certo engenheiro do Rio, que apresentou um plano para todas as igrejas que se fizessem na província (...)” Observando-se o caso de Porto-alegre, se pode aventar também que, para uma historicização mais complexa do movimento de formação do campo disciplinar, além da atenção às diferentes cronologias e às cartografias envolvendo diferentes cidades e regiões, é necessária a atenção aos indivíduos, aos atores sociais. São eles, em suas trajetórias particulares e face às conjunturas locais, os autores e os próprios veí- culos da criação e da ressignificação dos conceitos urbanísticos presentes em cada cidade, região e país. Assim, beneficiando-se de uma série de obras escritas nas últimas décadas acerca dos estudos biográficos25, a presente dissertação, ao enfocar a trajetória de Porto-alegre busca, sobretudo, lançar luzes sobre a cultura na qual ele estava imerso, nesse caso, uma cultura construtiva que estava colocando no foco de seus debates, cada vez mais, a capital do Império brasileiro. Essa necessária atenção técnica aos atores sociais, seja no plano individual ou coletivo pontuada por Pereira26, tem encontrado em Christhian Topalov um referencial metodológico importante. Em “La nébuleuse réformatrice et ses réseaux en France, 1880-1914”27, ao estudar a reforma social ocorrida no começo da Terceira República na França, ele propôs aproximar a análise de um conjunto de instituições ao exame das trajetórias dos indivíduos nelas envolvidos. Nesse trabalho, Topalov buscou relacionar sequências de eventos observados no “campo reforma- 24. PEREIRA, Margareth. “Notas sobre o Urbanismo no Brasil: construções e crises de um campo disciplinar”. Op. Cit. pp. 58. 25. Sobre escrita biográfica na historiografia recente, a presente dissertação se beneficia, sobretudo, dos seguintes trabalhos: BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”; CERTEAU. Op. Cit.; PORTELLI, Alessandro, “Historia y memoria: la muerte de Luigi Trastulli”; ELIAS, Norbet. “Mozart. Sociologia de um gênio”; RICOEUR, Paul. “ Soi-même comme un autre”; DOSSE, François. “La pari biografique – Écrire une vie”. 26. Cf. PEREIRA, Margareth A. S. “Globalização e história ou atores e sociais e culturas urbanas já são levados a sério?” in: MA- CHADO, Denise B. P. “Sobre Urbanismo”. Rio de Janeiro: Viana & Mosley – PROURB, 2006. 27. TOPALOV, Christian. “Laboratoires du noveau siècle. La nébuleuse réformatrice et ses réseaux en France, 1880-1914”. Paris : Édicions de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1999. 33 PORTO-ALEGRE, Manoel de Araújo de. “Cidade”. In: PORTO-ALEGRE. “Caderno de viagem do Rio à Lisboa”. Op. Cit. 34 dor” a eventos relativos a própria vida dos personagens estudados, tais como: a família, a propriedade, as atividades profissionais e os cargos públicos. Para Topalov, essas “cronologias cruzadas” acabaram por evidenciar episódios cruciais onde se encaixavam, de maneira específica, diferentes “facetas” dos perso- nagens e do campo estudado. O exemplo do trabalho de Topalov nos ajuda a dar forma a uma maneira de se começar a respon- der a nossa questão inicial: “Como poderia Porto-alegre ter formado uma sensibilidade tão fina para enunciar temas urbanísticos?” Ao longo da presente dissertação, buscamos, então, desenvolver uma “biografia intelectual” de Porto-alegre, ou seja, o estudo de sua trajetóriaface a uma rede de sociabilidade na qual ela se move jun- to às trajetórias de outros indivíduos, instituições, ideias e cidades, verdadeira “nebulosa” de encontros onde ele se mistura e se modifica28. É nessa “prática” da vida social em cidades que Porto-alegre teria, assim, aprendido a olhar e criticar a própria cidade. O conceito de “prática” social desenvolvido por diversos autores, dentre os quais Topalov, e sinte- tizado de forma elucidativa na década de 1980, é central também para a compreensão das premissas que nos levam a desenvolver este trabalho. Ele nos permite observar que, os indivíduos não apenas possuem suas visões de mundo, suas representações sobre a cidade, suas potencialidades ou seus “problemas”. Eles praticam suas ideias no quotidiano de modo às vezes coerentes e às vezes de modo ambíguo, incompleto, hesitante. Práticas e representações, como veremos com Porto-alegre, nem sempre sendo umas os espe- lhos das outras29. Assim, em nosso trabalho intentamos dar a ver os diferentes tempos estabelecidos nessas relações de sociabilidade e em que medida a ação de “tornar a cidade objeto de discurso crítico e intervenção” emergiu como ideia, ganhou forma como prática para Porto-alegre e se tornou uma parte intrínseca da sua própria maneira de agir. Práticas de tal forma internalizadas e orgânicas, que em um momento ín- timo, como aquele em que ele se despedia da terra onde viveu por anos, fez com que no seu caderno de viagem, a cidade “naturalmente” emergisse como objeto também de olhar. Acreditamos com esse esforço, tal como já pretendia Choay em sua Antologia ao analisar textos “instauradores”, contribuir para os estudos sobre “as ideias que forneceram base ao urbanismo”. Contudo, conforme as revisões metodológicas realizadas pelos trabalhos de Pereira e Topalov, o buscamos fazer por meio de um estudo histórico mais complexo onde diferentes “temporalidades” – do próprio autor do texto, de seu contexto e de sua rede de relações sociais – são levados em consideração. Diferente de Choay, porque o fazemos de maneira menos totalizante e mais pormenorizada, buscamos aqui ainda que de forma inicial e modesta contribuir em alguma medida para os estudos sobre “as ideias que forneceram base ao urbanismo” no Brasil, e sobre o pensamento social e a ação urbanística que foram colocados em prática na capital do Império. 28. Cf. PEREIRA, Margareth A. C. S. “Las Nebulosas” In: “Documentos de historia y teoría”, Bogotá: Universidad Nacional de Colombia – Faculdad de Artes, 2007. Pp. 55-66. 29. Cf. CHARTIER, Roger. “A historia cultural entre praticas e representações”. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990; e CERTEAU. Michel de. A operação histórica. In : LE GOFF, J. NORA, P. (org.). História: novos problemas (1974). Rio de Janeiro : Francisco Alves. pp. 38. 35Porto-alegre e sua atenção à vida em cidades Do grupo de autores que em maior ou menor grau fizeram referência a obra de Porto-alegre nas últimas décadas, Margareth da Silva Pereira, mesmo não tendo se dedicado especificamente à vida e obra do artista talvez tenha sido uma das primeiras a apontar, em fins da década de 1980, o interesse de Porto-alegre pelas questões citadinas e, especificamente, sua importância para os debates urbanísticos no Rio de Janeiro, em meados do século XIX30. Em “Rio de Janeiro: L’ephéemèere et la péerennitée” (1988), sua tese de doutoramento, Pereira apresentou Porto-alegre como um importante interlocutor nas redes intelectuais que criavam e debatiam teorias urbanas na cidade do Rio de Janeiro durante o período. Esse aspecto da atuação de Porto-alegre é analisado pela autora, sobretudo, a partir de um dis- curso do artista na época em que foi diretor da Academia Imperial de Belas Artes31. Nesse discurso, Porto-alegre havia proposto a produção de uma revista para a Academia (O Artista) e sugerido algumas “teses” para debate, uma espécie de agenda de assuntos emergentes no campo artístico naqueles anos. Pereira notou que dentre a série de sugestões deixadas por Porto-alegre é explicitado, sobremaneira, a necessidade de uma maior atenção às questões estéticas nas “obras de utilidade pública” correntes na cidade, como podemos observar: “(...) 2.° - Donde procede o mau gosto, e mesmo a indiferença que temos tido até hoje para com a arquitetura, quais as razões porque os exemplares de Mr. Grandjean não frutifi- caram, e o que convém fazer em favor desta arte para ter um maior e seguro desenvol- vimento? (...) 7.° - Escrever a história da cenografia no Rio de Janeiro e dar as razões por que esta arte não tem progredido entre nós. (...) 11.° - No momento em que os altos poderes do Estado decretarem a edificação de um palácio para o nosso Imperador, qual será o local mais conveniente,, mais belo e mais econômico para este monumento nacional? 12.° - O Estado, a moralidade pública, e o indivíduo lucrariam mais se todas as repar- tições públicas estivessem em um só edifício, ou convém separar os diferentes ramos da administração? Qual seria o melhor local, na primeira hipótese, para esta edificação, e que plano geral conviria adotar no desenvolvimento do seu todo para haver nele rápida correspondência e economia de tempo para o cidadão, de despesa para o Estado, e de ordem para a alta administração? 13.° - Que meios pode empregar já o Governo para enraizar o gôsto das belas artes no Rio de Janeiro, e torná-lo em utilidade pública ? (...) 18.° - As nossas construções urbanas estão em harmonia com o nosso clima e vida do- méstica? Mudarão elas na sua disposição interior depois da extinção da escravatura, e no caso contrário quais serão as introduções úteis que se devem adotar desde já para que se tornem mais belas, cômodas e sanitárias? E o que convém ao legislador decretar para este fim? 19.° - Se o imposto da décima fosse substituído pelo das portas e janelas, o que sucederia à arquitetura urbana? 30. PEREIRA, Margareth A. S. “Rio de Janeiro: L’ephemere et la perennite – histoire de la ville au XIXeme siècle”. Paris: Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 1988. (Tese de Doutoramento Ciências Sociais). 31. A ata oficial da Academia Imperial de Belas Artes, datada de 27 de setembro de 1855, transcreve o discurso proferido por Porto-alegre na congregação da Academia. 36 20.° - O que tem mais concorrido para o atraso da arquitetura, as leis do nosso país, e educação dos nossos homens de Estado, ou a falta do gosto nos particulares? (...) 23.° - Que utilidade poderá colher o paisagista com o estudo da botânica e da geologia? (...) 26.° - O estudo da arquitetura clássica, conforme o sistema de muitas escolas, será bas- tante para criar arquitetos úteis a todas as necessidades sociais, ou deve ele entrar na educação artística como entra o estudo dos clássicos na literatura? (...) 29.° - A ornamentação e decoração dos edifícios, principalmente a executada pela pin- tura, deverá substituir os grotescos e arabescos pelos objetos da nossa natureza america- na; e qual tem sido a causa por que este caminho novo, apenas encetado por Sr. Debret e Francisco Pedro do Amaral, nos seus últimos dias, ainda não tomou o sen necessário e útil desenvolvimento? Nesta nova estrada convirá abandonar inteiramente os exem- plos da antiguidade na composição, ou conservar somente a harmonia das linhas ou a simetria, como base geométrica e inalterável? (...)”32 Além da evidente atenção a aspectos citadinos no discurso de Porto-alegre, para Pereira, a ação do artista deveria ser iluminada, principalmente, por ele haver pertencido à primeira geração de “bra- sileiros” formados pela Academia Imperial de Belas Artes a chegar a direção da instituição (1854-1858) e, estranhamente, também último artista nessa função até, pelo menos, o começo do século XX. Afinal, depois de Porto-alegre até essa época, a Academia Imperial de Belas Artes seria dirigida sucessivamente por médicos. Assim, intrigava-lhe o caráter ambíguo representado por Porto-alegre nessa posição. Se por um lado, Porto-alegrerepresentava o amadurecimento da Academia brasileira em “produzir” artistas e in- seri-los nos “debates” citadinos de sua época, por outro lado, Pereira constatava que a atuação de Por- to-alegre representava também o fim de uma ação mais participativa dos “acadêmicos” na vida pública da cidade. Segundo Pereira, depois de Porto-alegre na direção da Academia, os acadêmicos se fixariam em debates em torno de aspectos mais abstratos, como as questões estilísticas e, consequentemente, ob- serva-se que os “grupos” que iriam dominar os debates urbanísticos na segunda metade do século XIX seriam os dos médicos e dos engenheiros. Apesar do trabalho de Pereira apontar a importância da atuação de Porto-alegre para os estudos urbanos no século XIX e nos ajudar a posiciona-lo em um campo de debates – aquele em torno das questões citadinas no Rio de Janeiro no mesmo período –, sua tese não pretendia um aprofundamento na trajetória do artista. Nesse sentido, é evidente que seus esforços possuem limitações em relação a uma possível biografia intelectual sobre Porto-alegre que enfocasse essas mesmas questões. Assim, a partir do trabalho dessa autora, não é possível saber se as teses enunciadas para a produ- ção de “O Artista” teriam sido as únicas inflexões de Porto-alegre sobre as questões citadinas, pois não faziam parte dos objetivos de Pereira salientar as nuances do pensamento urbanístico de Porto-alegre em suas diferentes formas de atuação, nem tão pouco a maneira como esse “problema” foi sendo encampado por ele ao longo de sua trajetória. Questões essas, que de certa forma, o presente trabalho busca lançar luzes. Também na década de 1980, mas longe dos debates acerca da formação do “pensamento urbanís- tico”, o historiador e engenheiro Francisco Riopardense de Macedo, em seu livro intitulado “A arquite- tura no Brasil e Araújo Porto Alegre”, salientou a atenção de Porto-alegre aos processos de urbanização 32. PORTO-ALEGRE, Manuel de Araújo. “Ata da 2a Sessão Pública da Academia das Belas Artes, em 27 de setembro de 1855”. 37da capital do Império brasileiro, no século XIX. Nesse trabalho, diferente do realizado por Pereira, essa atenção especial aos aspectos citadinos é abordada a partir do envolvimento do artista com projetos de arquitetura. Apesar da extensa fortuna crítica que a obra de Porto-alegre já contava na década de 1980 e de Porto-alegre, em sua época, ter escrito diversas vezes sobre sua própria produção arquitetônica, até a pu- blicação do trabalho de Macedo, poucos eram os estudos que haviam, de fato, se dedicado a esse aspecto de sua obra33. Em grande parte, os estudos anteriores haviam destacado de maneira mais significativa a atuação de Porto-alegre como pintor, como diretor da Academia Imperial de Belas Artes, como literato e como membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. De fato, boa parte desses trabalhos partia de estudos de membros da própria Escola de Belas Artes (sucessora da antiga Academia), da Academia Brasileira de Letras (que escolheu Porto-alegre como patrono de uma de suas cadeiras e passou a receber parte da documentação de seu espólio) e do IHGB (pela cultura de produção de biografias dos membros do Instituto e pala preocupação com a escrita da história institucional da casa). Mesmo os projetos arquitetônicos que Porto-alegre realizou durante os períodos em que foi mem- bro da Academia Imperial de Belas Artes, como, por exemplo, os projetos para os festejos imperiais na época em que foi professor ou a ampliação do edifício da escola durante sua atuação como diretor, pouco, ou nada, despertaram interesse dos “estudos artísticos”. Provavelmente, tratava-se de sintomas da divisão do campo epistemológico em especializações observada a partir do final do século XIX, somada a autonomização, no Rio de Janeiro, do curso de arquitetura a partir da década de 1930 do século XX. Em meio a esses processos, cada vez mais, os “artistas” e os “arquitetos” passavam se ver, eles mesmos, como que representando papeis distintos e seus objetos de estudos passavam a ser fruto de análises cada vez mais “especializadas”. No entanto, enquanto os “artistas” da “Escola de Belas Artes” buscaram, ainda por algum tempo, reforçar sua “tradição” acadêmica e empreenderam inúmeros trabalhos sobre o “pintor” e o “diretor da Academia” Porto-alegre, os arquitetos do século XX pouco se interessaram pela atuação do “arquiteto acadêmico”. A “geração” que autonomizou o estudo da Arquitetura da Escola de Belas Artes, a conhecida reforma de 1931 encampada por Lúcio Costa, ao buscar romper com o ensino fundado na lógica dos es- tilos, acabou por recusar e silenciar toda uma “memória” ligada à “antiga” Academia e aos seus membros. O estudo de Macedo rompe com essa lógica de silenciamentos da produção de Porto-alegre no campo da arquitetura e é composto, ao contrário, como uma espécie de livro comemorativo pela for- mação da Câmara Especializada de Arquitetura do Conselho Nacional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia do Rio Grande do Sul (CREA-RS). Com essa finalidade, o livro traça um “perfil profissional” do arquiteto rio-grandense. 33. É possível apontar outros trabalhos que, mais recentemente, se debruçaram também sobre a prática arquitetônica de Porto -alegre, como os de Gustavo Rocha-Peixoto, “Arquitetos do Brasil Imperial: a obra arquitetônica dos primeiros alunos da Aca- demia Imperial de Belas Artes” (2004), e de Francisco Sales Trajano Filho, “Tentativas de enraizamento: arquitetura brasileira e formação nacional” (2010). De toda forma, sobretudo nos dias de hoje, os estudos que se dedicam a esse aspecto da obra de Porto-alegre encontram grandes dificuldades, uma vez que praticamente nada restou edificado e a grande maioria dos projetos não é mais encontrada nos arquivos. Quase sempre, o que se tem acesso são as descrições parciais desses a partir de atas, me- moriais, correspondências e outros documentos oficiais. É nesse sentido que Sales Trajano Filho afirma que as referências aos trabalhos de arquitetura de Porto-alegre encontram-se “Esparsas em escritos de natureza variada, com frequência tratada no âmbito de reflexões abarcantes à totalidade do campo artístico, raras vezes objeto de atenção detida e sistemática, a arquitetura de fato não tem atraído um tratamento equiparável à literatura, à pintura ou à história da arte dentre as investigações em torno das ocupações teóricas e práticas de Manuel de Araújo Porto-alegre”. Cf. TRAJANO FILHO, Francisco Sales. “Tentativas de enraizamento: arquitetura brasileira e formação nacional” (tese de doutoramento). São Paulo: EESC-USP, 2010. pp. 51. 38 Há também outras contribuições significativas em “A arquitetura no Brasil e Araújo Porto Alegre”. Dentre elas, podemos destacar, por exemplo, a ênfase que o autor dá a relação estabelecida entre Porto -alegre e o arquiteto François Debret, irmão do pintor Jean Baptiste Debret, durante sua temporada de estudos na França. Apesar de Porto-alegre ter frequentado apenas por poucos meses o atelier do pintor Grós34, até então, ele era quem havia sido o seu professor parisiense mais frequentemente citado nas biografias. Ao enfatizar a relação entre Porto-alegre e François Debret, Macedo passava a mostrar outra face dos anos de formação de Porto-alegre, atribuindo maior relevância a sua formação como arquiteto. Com relação aos projetos de arquitetura de Porto-alegre analisados por Macedo, merece destaque o realizado para a Rua do Cano (atualmente Avenida Sete de Setembro), no qual o arquiteto propôs um conjunto composto por duas edificações que deveriam servir de modelo para as demais construções des- sa rua. Macedo verificou que esse projeto se articulava a outros em que Porto-alegre trabalhou enquanto vereador, como, por exemplo, a proposta de remodelação do Campo de Santana. No entanto, sobre a atuação de Porto-alegre como vereador suplente, apesar do autor afirmar que essa incursão política tenha sido responsável por “grandes momentos desua atuação como urbanista”35, Macedo pouco trouxe de dados. O autor apenas fez referência a alguns dos trabalhos indicados pelo próprio Porto-alegre em seus escritos biográficos, tais como o projeto para a região do Mangue (de São Diogo), a revisão do Código de Posturas para a cidade, além do já mencionado projeto para o Campo de Santana. Diferente da pesquisa sobre a Rua do Cano, a análise dessas obras continuou sem maiores aprofundamentos. Sobre essa mesma questão, é curioso notar também que, ao enfocar sua atuação como vereador – o quê levou de fato Porto-alegre a propor e a atuar mais diretamente nas obras de “melhoramentos ur- banos” da cidade, para utilizarmos um termo daquela época –, Macedo acabou “naturalizando” a própria formação do “urbanismo” como campo disciplinar. Ora, no tempo de Porto-alegre, como nos aponta Françoise Choay, o “neologismo” urbanismo ainda não havia sido forjado e, conforme apresenta Callabi, desde a década de 1960, estudiosos da his- tória do urbanismo e das cidades vem sendo cautelosos em chamar “anacronicamente” de “urbanistas” àqueles atores que interviram na cidade antes da conformação do campo e sua sintomática denomina- ção36. A própria Margareth Pereira ao atentar para o escrito deixado por Porto-alegre, não buscou vê-lo como urbanista “stricto sensu”. De forma mais complexa, buscava demonstrar como, em seu tempo, esse campo ainda estava em conformação e os discursos críticos e as realizações que objetivavam as cidades, em particular o Rio de Janeiro, eram operados por atores de campos variados e, podemos dizer, “não-es- pecializados”. No entanto, se pode supor que, na década de 1980, para pesquisadores oriundos de outros cam- pos de saber, ou pouco familiarizados com o processo de constituição dos campos da história da cidade, da história do urbanismo e da história urbana, como era o caso de Macedo, essa discussão ainda era pouco evidente e, por isso, a palavra “urbanista” era utilizada destituída de sua historicidade. Em todo caso, apresentar Porto-alegre como um “urbanista avant la lettre” como o fez Macedo ou 34. Outro aspecto importante trazido à tona pelo trabalho de Macedo foi o levantamento das obras realizadas por Porto-alegre, sobretudo a localização dos arquivos onde estão depositados os registros que conseguiram chegar aos nossos dias das suas obras arquitetônicas. 35. MACEDO, Francisco Riopardense de. “Arquitetura no Brasil e Araújo Porto Alegre”. S. c: UFRGS/CREA-RS, 1984. pp. 75. 36. CALLABI, Donatela. “História do Urbanismo Europeu”. São Paulo: Perspectiva, 2012. 39chamar a atenção sobre suas contribuições nos debates urbanos como o fez Pereira – tema que realmente está sendo enfocado neste trabalho –, apenas corrobora para a necessidade de estudos mais aprofunda- dos sobre a própria história da cultura profissional de arquitetos, engenheiros e artistas que trabalharam no Brasil e, também, como a cidade passou a ser considerada em seus projetos, desde pelo menos os séculos XVIII e XIX, em paralelo com a (re)organização do campo de conhecimento que se observa no período. De fato, pode-se dizer que se por um lado, em meados do século XIX, Porto-alegre não tinha “condições de possibilidade” de enunciar a si próprio como “urbanista”, por outro lado, como Macedo, observando as práticas realizadas pelo “arquiteto”, não se tem dúvidas de que se tratava de um “profissio- nal especializado” na construção (ou no melhoramento) da cidade, naqueles anos. Entre escritos e arquiteturas uma cidade em questão Após Macedo e Pereira, se passou mais de uma década, até que a atenção de Porto-alegre às ques- tões citadinas fomentasse novas pesquisas. Somente em 2003, a historiadora Heliana Angotti Salgueiro trouxe essa questão novamente “à cena” ao produzir uma exposição e catálogo chamados: “A Comédia Urbana: de Daumier a Porto-alegre”37. Esse conjunto de trabalhos realizados por Salgueiro apresentou a um público mais amplo a revista “Lanterna Mágica”, idealizada e escrita por Porto-alegre entre 1844 e 1845. A “Lanterna” foi uma das primeiras revistas ilustradas editadas no Brasil. Em suas páginas, um texto jocoso era elaborado como um diálogo típico de comédias teatrais e alternava-se com estampas que ironizavam personagens e costumes da sede Corte do Império brasileiro. A história contada nos fascículos da revista girava em torno das peripécias de dois personagens, Laverno e Belchior, retratados como “verdadeiros trambiqueiros” que se fazem passar pelos mais dife- rentes tipos da sociedade da época a fim de galgar posições sem o mínimo esforço. O trabalho de Salgueiro nos apresenta, então, o quanto os tipos humanos encarados pelas per- sonagens principais da trama e os monumentos retratados nas ilustrações dessa revista denotam, em ambos os casos, uma forma de por em foco o Rio de Janeiro. Para traçar sua análise, Salgueiro constrói relações entre o trabalho de Porto-alegre e os traba- lhos de Balzac, em “A comédia humana”, e de Daumier, em “Les cent-et-un Robert Macaire” e, assim, nos apresenta o contexto urbano experimentado por Porto-alegre tanto em Paris, durante sua estadia de estudos (1831-1837), quanto no Rio de Janeiro no momento em que produziu a “Lanterna Mágica” (1844-1845). Com a exposição das experiências vividas por Porto-alegre nessas duas cidades, Heliana Angotti Salgueiro nos mostra como as questões citadinas eram amplamente discutidas pelos mais diversos atores da sociedade, quer isso se passasse na capital francesa, quer na capital brasileira. Mostrando, como Pe- reira o fez em sua tese, a existência de um fervilhante campo de debates que se questiona sobre a vida em sociedade e, sobretudo, sobre a vida em cidades. O trabalho de Salgueiro foi desenvolvido no âmbito de uma análise mais complexa do campo 37. SALGUEIRO, Heliana Angotti. Catálogo da Exposição A comédia urbana: de Daumier a Porto-alegre. São Paulo: Museu de Arte Brasileira – MAB FAAP, 2003. CRONOLOGIA ATUAÇÕES PROFISSIONAIS DE PORTO-ALEGRE 1837 1838 1839 1840 1841 1842 1843 1844 1845 1846 1847 1848 1849 1850 1851 1852 1853 1854 1855 1856 1857 1858 1859 ATUAÇÃO JUNTO A AIBA ATUAÇÃO JUNTO A ESCOLA MILITAR ATUAÇÃO COMO VEREADOR RUA DO CANO ARB. C. SANTANA REVISTAS REALIZADAS REVISTAS PROPSOTAS O ARTISTA PROJETOS DE ARQUITETURA BANCO DO BRASIL LANTERNA MÁGICA GUANABARA ALFÂNDEGAVARANDA DA COROAÇÃO PROFESSOR DE PINTURA HISTÓRICA DIRETOR PROFESSOR DE DESENHO VEREADOR SUBSTITUTO (SEM DATA PRECISA) COLÉGIO DO ANJO CUSTÓDIO DEC. DA SALA DO TRONO MAUSOLÉU INTANTE D. AFONSO 41urbanístico em comparação ao trabalho de Macedo. Percebe-se, por exemplo, que Salgueiro estudou os diferentes discursos que tematizam as cidade, aqueles que Porto-alegre parecia se posicionar. Contudo, no trabalho de Salgueiro, diferente daquele realizado por Pereira, é o contexto parisiense vivido por Por- to-alegre o que é mais profundamente analisado. Assim, apesar de Salgueiro nos apresentar de forma tão evidente a atenção à cidade em apenas um dos trabalhos realizados por Porto-alegre, pelo desequilíbrio em relação à parte brasileira, ela acaba por mostrar, também, o quanto os esforços realizados por Pereira em sua tese de doutoramento pouco haviam “circulado”. Mais recentemente, em 2004, após realizar uma dissertação de mestrado sobre a vida e obra de Porto-alegre, Letícia Squeff publicou o livro “O Brasil nas letras de um pintor – Manuel de Araújo Por- to-alegre (1806-1879)” 38 e, em um dos capítulos, “A cidade como teatro”, também observou a atenção do artista às questões citadinas. Sendo um trabalho biográfico que cobre um amplo recorte da trajetória de Porto-alegre – de sua decisão de se mudar para o Rio de Janeiro para estudar na Academia Imperial de Belas Artes (1828) aos debates que o afastaria definitivamente dessa instituição em 1857 –, o estudo realizado por Squeff não se limita apenas aos seus escritos nem tão pouco às suas obras de arquitetura. A análise da autora, também leitora de Macedo
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