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Subjetividade dos Médicos em Formação na Pediatria

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO 
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE 
INSTITUTO DE ESTUDOS DE SAÚDE COLETIVA 
 
 
 
 
 
 
PAULO JORGE DICKSTEIN 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUBJETIVIDADE DOS MÉDICOS 
EM FORMAÇÃO 
E A PRÁTICA PEDIÁTRICA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2015 
 
 
PAULO JORGE DICKSTEIN 
 
 
 
SUBJETIVIDADE DOS MÉDICOS EM FORMAÇÃO E A PRÁTICA PEDIÁTRICA 
 
 
 
Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de 
Epidemiologia e Saúde Coletiva, Universidade 
Federal do Rio de Janeiro, como requisito 
parcial à obtenção do título de Doutor em 
Saúde Pública. 
 
 
 
 
 
 
 
Orientadora: Profª. Drª. Lígia Bahia 
Coorientador: Prof. Dr. Julio Verztman 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2015 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
D554 Dickstein, Paulo Jorge. 
 Subjetividade dos médicos em formação e a prática pediátrica / Paulo 
Jorge Dickstein. – Rio de Janeiro: UFRJ / Instituto de Estudos em Saúde 
Coletiva, 2015. 
 156 f.; 30 cm. 
 
 Orientador: Lígia Bahia. 
 Coorientador: Julio Verztman. 
 
 Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de 
Estudos em Saúde Coletiva, Programa de Pós-Graduação em Saúde 
Coletiva, 2015. 
 
 Referências: f. 151-156. 
 
 1. Pediatria. 2. Cuidado da criança. 3. Internato e residência. 4. Terapia 
Psicanalítica. I. Bahia, Ligia. II. Verztman, Julio. III. Universidade Federal 
do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva. IV. Título. 
 
 CDD 618.92 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
À Beatriz, que, desde que nos conhecemos, 
enfeita o meu caminho. 
Aos meus filhos André, Ricardo e Gabriel, 
companheiros sempre. 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
Não poderia iniciar esses agradecimentos por outra pessoa que não Lígia Bahia. Desde 
que nos conhecemos, Lígia sempre foi minha orientadora. Mais uma vez ela se apresenta para 
mim com delicadeza, lucidez e amizade. 
Se o trabalho teve méritos devo dividi-los com o meu coorientador Júlio Verztman e 
sua esposa Daniela Romão. Júlio lapidou com generosidade e competência um material bruto 
de um doutorando cru e um pouco teimoso. À Daniela, por sua expertise na área de 
metodologia em pesquisa qualitativa, devo o arcabouço de toda a pesquisa. 
Já dediquei a tese à minha querida esposa Beatriz Pinheiro de Andrade. Entretanto, 
Beatriz ainda se dispôs a realizar as entrevistas. A fartura do material narrativo obtido se 
deveu tão somente à sua lhaneza e afabilidade. 
O trabalho que realizo com os residentes de pediatria teve o apoio do Chefe de Serviço 
da Pediatria do Hospital Federal dos Servidores do Estado na época, Gil Simões Batista. Ao 
invés de copiar um modelo, Gil, durante a sua gestão, optou por apostar nas pessoas que 
tinham sonhos. Tive a sorte de encontrar esse espaço. A continuidade do trabalho com os 
residentes conta hoje com o apoio da atual Chefe de Serviço, Glória Reis Velloso. 
Agradeço aos residentes que se dispuseram a participar das entrevistas. Como será 
descrito no trabalho, alguns modelos para trabalhar com os residentes foram tentados ao longo 
dos anos. O seu modelo inicial foi baseado na Observação da Relação Mãe-Bebê, como 
proposto por Esther Bick. Portanto, o “pontapé inicial” foi dado sob a generosa supervisão da 
psicanalista Rosa Sender Lang e com o apoio do grupo de residentes que participou desses 
encontros ainda no consultório de Rosa. 
Os primeiros passos em direção à psicanálise foram estimulados e orientados por 
Maria Ivone Accioly Lins, a quem muito agradeço. 
Agradeço ao Jurandir Freire Costa, Benilton Bezerra Jr. e todo o grupo PEPAS pelo 
acolhimento recebido. Muitos das referências dessa tese se devem às discussões com o grupo. 
Agradeço a contribuição da Rachel Aisengart Menezes que participou da minha banca 
de qualificação com zelo e carinho. Infelizmente não pode estar presente na defesa da tese. 
Ao meu analista Orlando Galvão, que me ajuda a transformar certezas e dúvidas. 
 
 
 
 
 
 
 
RESUMO 
 
DICKSTEIN, Paulo Jorge. Subjetividade dos médicos em formação e a prática pediátrica. Rio 
de Janeiro, 2015. Tese de Doutorado. Instituto de Epidemiologia e Saúde Coletiva, 
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. 
 
 
Esse estudo buscou refletir sobre o zelo apostólico entre pediatras em formação. Foram 
realizadas duas entrevistas com oito residentes de pediatria com foco nas questões 
relacionadas à puericultura. A primeira entrevista foi realizada antes de uma intervenção que 
consistiu em reuniões individuais ou com dois residentes, diárias, durante o período de um 
mês. Partindo das concepções teóricas de W.D. Winnicott, eram discutidas as questões 
relacionadas à subjetividade envolvidas na prática pediátrica com um supervisor (autor do 
trabalho). Quatro meses depois, uma segunda entrevista foi realizada para proporcionar 
reflexões sobre modificações que pudessem ter ocorridas nos conceitos dos residentes sobre a 
prática. Seguiu-se o Método de Explicitação do Discurso Subjacente (MEDS) no Campo da 
Pesquisa Qualitativa em que as entrevistas são realizadas com uma mescla de perguntas 
abertas e outras específicas. Foram utilizados os conceitos psicanalíticos ao campo 
transferencial para análise do material. A pesquisa revelou que as idealizações dos residentes 
em relação as mães, os bebês e a maternidade estão na origem do zelo apostólico nos 
pediatras. Houve um grupo de residentes que imaginam que as mães comuns não falham. 
Mesmo o grupo que podia conceber que as mães comuns falham, tinha dificuldades em 
separar essas mães daquelas que colocam em risco a saúde e o desenvolvimento de seus filhos. 
O trabalho na linha balintiana provocou reflexões sobre o zelo apostólico entre os 
participantes da pesquisa. Em alguns casos, pode-se observar modificações nos discursos 
sobre a prática, notando-se mais espaço para a subjetividade e uma maior disposição para uma 
relação mais empática com as mães na consulta pediátrica. 
 
Palavras-chave: Pediatria. Zelo apostólico. Balint. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
DICKSTEIN, Paulo Jorge. Subjectivity of doctors in training and pediatric practice. Rio de 
Janeiro, 2015. Tese de Doutorado. Instituto de Epidemiologia e Saúde Coletiva, Universidade 
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. 
 
 
This study sought to reflect on the apostolic zeal among pediatricians in training. Two 
interviews were done with eight pediatric residents focused on issues related to childcare. The 
first interview was conducted prior to an intervention that consisted of individual or two 
residents meetings, daily, for a period of one month. Starting from the theoretical concepts of 
W.D. Winnicott, were discussed issues related to the subjectivity involved in pediatric practice 
with a supervisor (author of the research). Four months later, a second interview was 
conducted to provide reflections on changes that may have occurred in the concepts of 
residents about the practice. This was followed by the Explanation Method Underlying 
Discourse (MEDS) in the Field of Qualitative Research in which interviews are carried out 
with a mixture of open and specific questions. Psychoanalytic concepts to the transference 
field for analysis of the material were used. The survey revealed that the idealizations of 
residents regarding the mothers , babies and motherhood are the source of apostolic zeal in 
pediatricians.There was a group of residents who has difficulty imagining that ordinary 
mothers do not fail. Even the group that could conceive that ordinary mothers do fail, had 
difficulty separating these mothers of those who endanger the health and development of their 
children. Work on balintian line provoked reflections on the apostolic zeal among survey 
participants. In some cases, one could observe changes in the discourse about the practice, 
noting more room for subjectivity and a greater willingness for a more empathic relationship 
with their mothers in the pediatric consultation. 
 
Keywords: Pediatrics. Apostolic zeal. Balint. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 8 
1.1 ESTRANHOS EM UMA ENFERMARIA DE PEDIATRIA ......................................................... 8 
1.2 INTERESSE POR ASPECTOS DA SUBJETIVIDADE NA PRÁTICA PEDIÁTRICA .......... 10 
1.3 PREOCUPAÇÃO MATERNA PRIMÁRIA E A PEDIATRIA ................................................... 11 
1.4 PRIMEIRA EXPERIÊNCIA DA PSICANÁLISE ENTRE MÉDICOS PEDIATRAS EM 
FORMAÇÃO ................................................................................................................................................... 13 
1.5 SEGUNDA EXPERIÊNCIA DA PSICANÁLISE ENTRE MÉDICOS PEDIATRAS EM 
FORMAÇÃO ................................................................................................................................................... 16 
1.5.1 A RESIDÊNCIA DE PEDIATRIA NO HSFE .......................................................................................... 16 
1.5.2 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS QUE FORMARAM A ESTRUTURA E A DINÂMICA DA 
ATIVIDADE COM OS RESIDENTES ................................................................................................................. 18 
1.5.3 O SETTING ..................................................................................................................................................... 22 
1.5.4 A DINÂMICA ................................................................................................................................................. 22 
1.6 DA PSICOSSOMÁTICA AOS ESTUDOS DE BALINT .................................................................... 32 
1.7 MICHAEL BALINT, MÉDICO, PSICANALISTA REVOLUCIONÁRIO OU EDUCADOR?........ 34 
2 AS HIPÓTESES ......................................................................................................................... 45 
2.1 BREVE HISTÓRICO DA PUERICULTURA: DA DEMANDA SOCIAL E POLÍTICA À ORDEM 
MÉDICA .......................................................................................................................................................... 45 
2.2 O ESTADO DA ARTE DA PUERICULURA....................................................................................... 47 
2.3 O ZELO APOSTÓLICO DE BALINT NA PRÁTICA PEDIÁTRICA ............................................... 48 
2.4 FORMULAÇÃO DAS HIPÓTESES ..................................................................................................... 49 
3 OBJETIVOS .................................................................................................................................... 50 
3.1 OBJETIVO GERAL ................................................................................................................................ 50 
3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS .................................................................................................................. 50 
4 METODOLOGIA ............................................................................................................................ 51 
4.1 MÉTODO DE COLETA DE DADOS E ANÁLISE .............................................................................. 51 
4.2 PERGUNTAS PREPARADAS PARA A PRIMEIRA ENTREVISTA ............................................. 52 
4.3 PERGUNTAS PREPARADAS PARA A SEGUNDA ENTREVISTA .............................................. 54 
4.4 ANÁLISE DO MATERIAL DAS ENTREVISTAS .............................................................................. 55 
5 RESULTADOS ............................................................................................................................... 56 
5.1 PRIMEIRA ENTREVISTA.................................................................................................................... 56 
5.1.1 PERGUNTAS 1 E 2: A ESCOLHA PROFISSIONAL ........................................................................... 56 
5.1.2 PERGUNTAS 3 E 4: A EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL .................................................................. 58 
5.1.3 PERGUNTAS 5 E 6: POSSÍVEIS ORIGENS DO ZELO APOSTÓLICO – DO QUE GOSTA E DO 
QUE NÃO GOSTA NA PEDIATRIA ................................................................................................................... 59 
5.1.4 PERGUNTAS 7 E 8: CONCEPÇÕES À RESPEITO DA PUERICULTURA ................................... 63 
5.1.5 PERGUNTAS 9 E 10: A PRÁTICA E O ZELO APOSTÓLICO ......................................................... 68 
5.1.6 PERGUNTA 11: RELAÇÃO DE CONFIANÇA ..................................................................................... 77 
5.1.7 PERGUNTA 12: CONHECER A VIDA ÍNTIMA DA FAMÍLIA ........................................................ 81 
5.1.8 PERGUNTA 13: RELAÇÃO ENTRE DOENÇAS ORGÂNICAS E VIDA AFETIVA .................... 87 
5.1.9 PERGUNTA 14: ENCAMINHAMENTO AOS MÉDICOS DA ÁREA “PSI” .................................. 89 
5.1.10 PERGUNTA 15, 16 E 17: MÉDICOS COMO PACIENTES ............................................................ 95 
5.1.11 PERGUNTA 18: O PEDIATRA QUE DESEJARIAM SE TORNAR ............................................ 101 
5.2 SEGUNDA ENTREVISTA .................................................................................................................. 105 
5.2.1 PERGUNTAS 1, 2, 3 E 4: REFLEXÕES, MUDANÇAS NA POSIÇÃO DO MÉDICO FRENTE 
ÀS MÃES E CRÍTICAS À INTERVENÇÃO ..................................................................................................... 106 
6 DISCUSSÃO ................................................................................................................................. 127 
6.1 A FUNÇÃO APOSTÓLICA................................................................................................................. 127 
6.2 A FUNÇÃO APOSTÓLICA E OS PEDIATRAS .............................................................................. 130 
 
 
6.3 O AMBIENTE TERAPÊUTICO E A AUSÊNCIA DO ZELO APOSTÓLICO: A SEGUNDA FASE 
DAS PESQUISAS BALINTIANAS E AS SEGUNDAS ENTREVISTAS .............................................. 136 
6.4 OS LIMITES DA PESQUISA ............................................................................................................. 141 
6.5 RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE E A RELAÇÃO ENTRE PSICANÁLISE E MEDICINA HOJE
 ....................................................................................................................................................................... 142 
6.6 UM CAMINHO PARA AS PESQUISAS BALINTIANAS .............................................................. 148 
7 CONCLUSÃO ............................................................................................................................... 148 
8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................... 151 
 
 
8 
 
 
No entanto, ó, sombras, sois mais presságios do que 
advertências! E, mesmo, assim, menos presságios exteriores do 
que confirmações de coisas precedentes que se passam dentro 
de nós. Porque, com poucas coisas externas a nos compelir, são 
as necessidades íntimas de nosso ser que continuam a nos 
guiar. 
Herman Meville 
 
O diabo não há! (...) Existe é homem humano. 
GuimarãesRosa 
 
1 INTRODUÇÃO 
 
 
1.1 ESTRANHOS EM UMA ENFERMARIA DE PEDIATRIA 
 
Toda pesquisa parte da formulação de perguntas que devem ser respondidas. Antes da 
elaboração das perguntas, porém, esse trabalho se iniciou a partir de conflitos internos 
experimentados na prática médica. Ao longo de minha atividade clínica como pediatra tomei 
consciência do desconforto que a atividade profissional de consultório me gerava. As queixas 
das mães me pareciam inapropriadas e eram quase sempre sentidas como fora de hora e de 
lugar. Como conciliar a ideia de ser médico e querer ajudar o próximo com as dificuldades de 
tolerá-lo? Essas questões foram elaboradas durante um longo tempo. E, porque não dizer, 
ainda estão em processo de elaboração. 
Trabalhando diariamente numa enfermaria de pediatria ao lado de muitos colegas e 
residentes, fui me dando conta que esses conflitos não eram um assunto que dizia respeito 
apenas a mim, mas se estendia a quase toda a equipe. Ouve-se reclamações das mães; muitas 
são estigmatizadas de uma maneira constrangedora para o observador de fora. Não se poderia 
simplesmente dizer que os médicos são ruins e preconceituosos, mas era preciso compreender 
esse fenômeno – um conflito entre pediatras e mães – de maneira mais profunda. Dei-me 
conta que poderia ocupar a posição de um observador privilegiado dentro de uma enfermaria 
de pediatria. 
Comecei então a observar o meu entorno. Chamava a atenção a decoração dos 
corredores. São fotos bastante conhecidas de bebês saudáveis e sorridentes em vasos de flores. 
Eram fotos bonitas, mas não expressavam também uma idealização do bebê? Por trás de um 
9 
 
 
bebê ideal não deveria haver uma mãe ideal? Andando pelos corredores e chegando aos 
aposentos dos residentes as decorações não se modificavam. Os escaninhos eram preenchidos 
pelos mesmos tipos de representações. Eram fotos das crianças e das mães que poderiam ser 
comparadas às representações iconográficas de Nossa Senhora e o menino Jesus. Estavam ali 
também presentes, na intimidade dos residentes, a busca de uma mãe e um bebê idealizados e 
a própria idealização da pediatria. Trinta passos adiante: a realidade. Os choros e as doenças. 
As injeções, os medos. Mas não apenas isso, o desgaste, a desesperança e o vazio também 
podiam ser observados. Eram crianças chorando sem as mães presentes; ou presentes, mas já 
sem que se pudesse notar em suas faces a angústia esperada de uma mãe que vê seu filho 
chorando. Ocasionalmente, as grades dos leitos são esquecidas abaixadas, talvez por médicos, 
talvez pelas enfermeiras ou pelas próprias mães. E passavam desapercebidas por todos. Enfim, 
era evidente um contraste entre a maternidade idealizada e a maternidade como ela se 
apresentava de fato. 
O contraste mencionado nos aspectos visuais dentro e fora das enfermarias também 
podia ser notado nas conversas dentro e fora das enfermarias. Nos locais reservados para os 
residentes, as mães eram, com frequência, fartamente depreciadas, ficando muito distantes de 
uma maternidade idealizada. 
Nessa época ocorria um convênio entre o grupo dos Doutores da Alegria e o Serviço de 
pediatria que passou a chamar a minha atenção. Os Doutores da Alegria são palhaços que vêm 
trazer alegria para as crianças internadas. Errado! Ao observar dois profissionais excepcionais 
que trabalhavam nessa ocasião pude perceber quão limitada era essa definição. Esses 
profissionais não traziam alegria, mas interagiam com a parte alegre e saudável das crianças. 
As crianças e as mães não eram apenas pacientes, eram crianças que estavam doentes e eram 
também cheias de esperança e alegria. Eram cheias de vida. 
Exemplifico com um caso. Passávamos pela enfermaria os dois “colegas” e eu. Era por 
volta de meio-dia. A essa hora os “rounds” já estão terminados e já não há mais quase 
médicos circulando pelos corredores. Eles estão terminando de preencher as prescrições, 
exames e prontuários em uma sala distante e se preparam para a hora do almoço antes das 
atividades da tarde. As enfermarias estavam vazia. Já no final do corredor um quadro 
tenebroso: uma adolescente esguia, muito magra e cega das duas vistas estava deitada, 
desacompanhada, em seu quarto. A adolescente estava em tratamento para um câncer e tinha 
perdido a visão em função da doença. Ela estava no soro e a bomba de infusão apitava 
continuamente e não havia ninguém para lhe socorrer. O barulho agudo e repetitivo era 
10 
 
 
enlouquecedor, pois denunciava toda a desesperança e a solidão que ela se encontrava. Se eu 
estivesse sozinho, talvez me desviasse e fingisse que não ouvia esse chamado, já cansado de 
tanto sofrimento; afinal isso era problema da enfermagem. Mas eu estava bem acompanhado. 
Os “colegas” portavam seus instrumentos. Não eram instrumentos médicos, levavam uma 
flauta e um bandolim. Entraram no quarto e disseram um para o outro: 
- Dr. Socó, você está ouvindo que tem uma música aqui? 
- É mesmo, parece que a moça gosta de música, né? 
- Parece mesmo! Pois então, Dr., vamos fazer um pagode, e é aqui mesmo! 
Eles deram um ganzá para a menina e criaram uma melodia a partir do “ritmo” do 
alarme da bomba. Nesse momento começou um pagode. A moça era bastante musical e 
entrou na brincadeira e ria, revirando o corpo e o seu instrumento com graça e harmonia. 
Ninguém curou nada, ninguém consertou nada, mas foi um momento divino. Os “colegas” 
não tinham medo da doença e da morte como eu. Não estavam preocupados com a saúde, mas 
com a vida que estava bem ali em frente. Dali foram para outros leitos e em cada encontro o 
mesmo se repetia. A vida e a alegria jorravam com uma força desconcertante. 
Esses palhaços não conheciam apenas os pacientes internados melhores do que a gente. 
Conheciam-nos também. Os palhaços, como bons artistas, nos representavam em seus 
esquetes para o riso e o gozo dos pacientes. E eu pude me ver e ver a todos nós médicos em 
papéis ridículos, mais sérios do que o necessário, mais dramáticos do que o necessário, mais 
assustadores do que o necessário, mais tristes, mais agourentos, mais exigentes do que o 
necessário. 
 
 
1.2 INTERESSE POR ASPECTOS DA SUBJETIVIDADE NA PRÁTICA 
PEDIÁTRICA 
 
O Hospital Federal dos Servidores do Estado (HFSE) teve um papel pioneiro na 
implantação da residência médica no Brasil. O Serviço de Pediatria desse hospital foi 
precursor na formação do médico residente na especialidade e manteve-se desde então 
identificado com a formação do pediatra. Desde 1980 trabalho como médico pediatra nesse 
Serviço. Durante muitos anos trabalhei como pneumologista pediátrico e mantive-me sempre 
próximo às funções da preceptoria da residência médica. A residência em pediatria no HFSE, 
assim como na maioria dos hospitais, privilegia os pacientes internados sobre os 
11 
 
 
ambulatoriais. Os chefes de setores de subespecialidade, por exemplo, estão todos os dias nas 
enfermarias e atendem no ambulatório uma a duas vezes na semana. É notória a mobilização 
de funcionários, recursos materiais e tecnológicos nas enfermarias enquanto os ambulatórios 
são pouco frequentados pelo “staff”. Deve ser significativo que a sala da chefia do Serviço, as 
salas de reunião onde ocorrem todas as atividades científicas se situem no terceiro andar 
junto às enfermarias. Os ambulatórios funcionam em um prédio anexo. 
A vida hospitalar, as atividades clínicas e de ensino me entusiasmavam. Sentia-me bem 
adaptado, satisfeito no exercício de minhas funções profissionais. Eu também privilegiava os 
pacientes internados e os “rounds” com as discussões clínicas que ocorriam à beira de leito. 
Porém, o mesmo não acontecia em minha atividade privada, no consultório. Sentia-me 
incomodado com as queixas e os sofrimentos expressos pelas mães que tinham filhos, em 
geral, absolutamente saudáveis. Parecia então que eu lidava com duas medicinas distintas. 
Em uma eu me sentia apto a lidar com os desafios.Na outra, no consultório eram trazidas 
questões que eu lidava de forma intuitiva, pois me faltavam as bases teóricas. Aos poucos, 
esses pensamentos foram me causando desconforto, a tal ponto que iniciei alguns estudos 
sobre o desenvolvimento emocional do bebê. Ao me deparar com os escritos de Winnicott 
senti necessidade de entrar em contato com alguém que pudesse me ajudar a compreender o 
autor. Assim comecei a participar de grupos de estudo com Dra. Maria Ivone Accioly Lins, 
psicanalista, membro fundadora do já extinto Espaço Winnicott. O grupo era composto por 
psicólogos e psicanalistas experientes que abordavam temas distantes da pediatria. Propus a 
Ivone que fizéssemos alguns encontros sobre os meus atendimentos pediátricos, que ela 
prontamente aceitou. Esses encontros foram de grande auxílio para que eu pudesse voltar às 
leituras dos trabalhos de Winnicott por conta própria, além de me servir de inspiração para 
construir um trabalho junto aos residentes de pediatria. 
 
 
1.3 PREOCUPAÇÃO MATERNA PRIMÁRIA E A PEDIATRIA 
 
 As leituras da obra de Winnicott se iniciaram pelo livro A mãe e seus bebês. 
Exemplifico com um pequeno trecho retirado de uma de suas conferências para que se possa 
apreciar o discurso simples e direto do autor que causa surpresa para o pediatra: 
Trata-se de levar médicos e enfermeiras a compreenderem que, se por um lado são 
necessários, e muito, quando as coisas vão mal do ponto de vista físico, por outro 
eles não são especialistas nas questões relativas à intimidade, que são vitais tanto 
para a mãe quanto para o bebê. Se começarem a dar conselhos sobre essa 
12 
 
 
intimidade, estarão pisando em solo perigoso, pois nem a mãe, nem o bebê, 
precisam de conselhos (WINNICOTT, 1999, p. 22). 
Porém, foi o conceito da preocupação materna primária que abriu um novo campo de 
conhecimento e causou-me grande impacto. A preocupação materna seria a etapa inaugural 
do desenvolvimentos biopsíquico do bebê. Podemos apreciar que já não estamos falando 
mais de um desenvolvimento biológico. Se para a biologia o inaugural é o desenvolvimento 
do embrião, na visão winnicottiana deveria haver uma concomitância entre esse evento 
biológico e o desenvolvimento de um estado psicológico na mãe. Em seu artigo A 
preocupação materna primária, de 1956, o autor descreve esse estado: 
Gradualmente, esse estado passa a ser o de uma sensibilidade exacerbada durante e 
principalmente ao final da gravidez. 
Sua duração é de algumas semanas após o nascimento do bebê. 
Dificilmente as mães o recordam depois que o ultrapassaram. 
Eu daria um passo a mais e diria que a memória das mães a esse respeito tende a ser 
reprimida (WINNICOTT, 2000, p. 401). 
 
Essa condição seria como se estivesse ocorrendo uma doença na mãe, uma vez que ela 
passa a se retrair e se retirar do mundo. Isso se dá para que ela possa abrir espaço subjetivo 
em sua vida para a chegada desse bebê. Diz o autor que esse estado seria uma doença caso 
não houvesse um bebê em sua barriga. Naturalmente, isso resultará em ações concretas e a 
preparação para a chegada do bebê. Winnicott descreve assim uma sintonia entre 
subjetividade e objetividade inaugural que resultará no bom desenvolvimento do bebê. 
Não acredito que seja possível compreender o funcionamento da mãe no início 
mesmo da vida do bebê sem perceber que ela deve alcançar esse estado de 
sensibilidade exacerbada, quase uma doença, e recuperar-se dele (WINNICOTT, 
2000, p. 401). 
 
O autor explica porque alcançar essa condição é fundamental: “Somente no caso de a 
mãe estar sensível do modo como descrevi poderá ela sentir-se no lugar do bebê, e assim 
corresponder às suas necessidades” (WINNICOTT, 2000, p. 403). 
Começou a ficar compreensível porque as informações dadas por algumas mães eram 
absolutamente confiáveis. Qualquer pediatra já teve a experiência de atender uma criança 
cuja mãe é capaz de antecipar que o filho está doente, mesmo quando ainda não há sinais 
clínicos perceptíveis. São aforismas transmitidos na especialidade: “é melhor acreditar na 
mãe!” Outras mães, porém, não sabem por que seus filhos choram, não sabem se estão 
doentes, com fome ou se é manha. Amamentam e não sabem que não há produção de leite 
suficiente, podendo chegar a um quadro de desnutrição da criança sem que as mães sejam 
capazes de perceber o que está se passando. O conceito winnicottiano trazia uma luz para 
explicar essas disparidades vividas pelos pediatras todos os dias em seus consultórios. A mãe 
13 
 
 
que experimentava a preocupação materna primária alcançava um estado de regressão
1
 e uma 
conexão sensível e profunda com o seu corpo e com o seu bebê. Uma conexão de natureza 
subjetiva. Aquelas que não conseguiam essa regressão não poderiam saber o que se passava 
com o seu corpo e com seus filhos e, portanto, não saberiam como atuar. Para essas mães, os 
encontros com seus filhos eram de natureza mais racional e toda a maternidade era uma 
experiência mais angustiante. 
Esse conceito poderia modificar os paradigmas da puericultura. Primeiro porque agora 
os cuidados efetivos da maternidade poderiam ser entendidos em conjunto com a 
subjetividade. Em segundo lugar, o foco da puericultura não poderia mais ser a criança, mas a 
mãe e o binômio mãe-bebê. Seria ainda necessário analisar toda a especialidade à luz dessa 
mudança paradigmática. A subjetividade materna era um assunto pertinente à puericultura e 
deveria ser acessada e abordada. Nada disso era ensinado na pediatria. Para o médico o 
espaço subjetivo que a mãe dispõe para a criança é aferido e trabalhado de forma intuitiva. 
Passou a ser um projeto pessoal introduzir esses conceitos no Serviço e capacitar o 
residente para um novo olhar sobre a puericultura e toda a especialidade. 
 
 
1.4 PRIMEIRA EXPERIÊNCIA DA PSICANÁLISE ENTRE MÉDICOS 
PEDIATRAS EM FORMAÇÃO 
 
É interessante notar que o Serviço de Pediatria do HFSE foi pioneiro em trazer 
psicólogas para dentro das enfermarias. Elas eram lotadas no Serviço e participavam 
ativamente das atividades clínicas, dos “rounds” e das sessões clínicas
2
. Toda essa intimidade 
e valorização não parecia afetar significativamente a maneira dos médicos pensar. Parecia 
haver uma cisão entre o campo da medicina e da psicologia que nem o Serviço de pediatria e 
nem o de psicologia tinham conseguido integrar. Passei a observar que o Serviço de 
psicologia, embora muito atuante, era utilizado pelos médicos para protegê-los do contato 
com as questões subjetivas no exercício da profissão. Em outras palavras, as psicólogas eram 
 
 
1 O termo regressão pode tem dois significados bastante distintos. Pode ser utilizado como sinal de saúde mental 
ao mostrar uma flexibilidade e uma capacidade empática. Há também um sentido patológico, ou seja, uma 
dificuldade em manter um posições mais amadurecidas. Ao longo do texto, o termo poderá ter um ou outro 
sentido, de acordo com o contexto. 
 
2
 Essa não é mais a realidade e não há mais psicólogas lotadas no Serviço. 
14 
 
 
acionadas sempre que as mães “davam trabalho”, ou seja, quando incomodavam o 
funcionamento do Serviço. A meu ver, a psicologia exercia, assim, uma dupla função de 
ajudar as mães e as crianças, mas também de poupar os médicos e protegê-los de certos 
enfrentamentos para os quais não se sentiam preparados. 
Estava interessado que o profissional médico pudesse integrar essas duas visões e a 
base teórica era a teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott: “Para realizar o meu 
trabalho, preciso de uma teoria do desenvolvimento emocional e físico da criança no 
ambiente em que ela vive, e uma teoria precisa abranger todo o espectro daquilo por que se 
pode esperar” (WINNICOTT, 1999, p. 19). 
Na posição de preceptor achei que deveria propor uma intervenção na formação dos 
residentes. Da literatura conhecia o método de observaçõesde bebê, desenvolvido pela 
psicanalista inglesa Esther Bick. O método consiste em visitas semanais com duração de uma 
hora, durante os dois primeiros anos de vida do bebê. O profissional de saúde tem a 
oportunidade de observar a comunicação primitiva que ocorre entre a mãe e o bebê desde as 
fases mais precoces (CARON, 2000; OLIVEIRA-MENEGOTTO et al, 2006). Os 
observadores preparam um relatório do que presenciaram que é lido em uma reunião com os 
outros integrantes do grupo. Discute-se essas observações a partir dos sentimentos gerados no 
observador e no grupo, sob a supervisão de um psicanalista treinado no método. Há também 
um exercício de especulação: como o desenvolvimento do bebê se dará a partir da relação da 
mãe com o seu bebê? Com a progressão do acompanhamento é possível perceber que muitas 
das especulações são confirmadas ou são atualizadas na medida que a relação mãe-bebê se 
modifica. Imaginei que essa experiência teria o benefício de trazer o residente para a 
realidade da maternidade sem a proteção da autoridade médica e de todo o aparato que 
acompanha essa autoridade. Procurei então a psicanalista Rosa Sender Lang, da Sociedade de 
Psicanálise do Rio de Janeiro e com reconhecida experiência no método Bick, que se 
prontificou a liderar um grupo de residentes em pediatria. Essa experiência funcionou durante 
dois anos. As observações eram feitas fora do horário da residência e as reuniões semanais 
eram realizadas no consultório da psicanalista. Embora contasse com o apoio da chefia do 
Serviço, é fácil imaginar as dificuldades práticas em manter uma atividade dessa 
complexidade em funcionamento após o horário da residência. Não foi realizada uma 
pesquisa formal para avaliação do aproveitamento e satisfação desse modelo, mas a 
impressão é que a experiência foi ao mesmo tempo penosa e rica. Creio ainda hoje que essa 
seria uma experiência que agregaria muito à formação do residente em pediatria, mas por 
15 
 
 
questões práticas esse modelo precisaria ser reformulado para atender a dinâmica de uma 
residência médica. 
A atividade teria que ocorrer dentro do horário da residência e no próprio hospital. 
Entretanto, a experiência serviu para que o Serviço de Pediatria compreendesse o meu 
interesse e empenho nesses aspectos da formação do residente e me autorizasse uma segunda 
experiência. Foi então que me lembrei do tempo das supervisões das minhas consultas 
pediátricas com Ivone Lins e pensei em reproduzir esse modelo com os residentes. Conhecia 
o modelo em grupo realizado por Balint. Mesmo sem a presença de uma grupo, poderiam ser 
mantidas as mesmas intenções: criar-se-ia um ambiente propício para que os médicos 
pudessem falar de seus sentimentos e se rediscutiria os casos apresentados a partir da 
perspectiva do paciente. Foi criado o setor de Psicossomática, e todos os quatorze residentes 
teriam durante um mês atividade obrigatória no setor. Ao final de um ano dessa experiência a 
chefia do Serviço avaliaria se a atividade deveria ter continuidade ou não. 
Embora muito diferente do método Bick, o modelo de intervenção proposto teria em 
comum com os grupos Balint a ideia do trabalho focado na contratransferência
3
. Estamos no 
referindo aos sentimentos geralmente inconscientes e que determinam ações automáticas. Ao 
trazer esses sentimentos e as fantasias relacionadas a esses sentimentos para a consciência as 
reações perdem a urgência. No caso dos grupos Balint, os encontros com o paciente ganham 
um novo significado e outros tipos de atuação podem ser concebidas. O método Bick não 
privilegia a ação, ao contrário, deve-se apenas fazer contato com a comunicação inconsciente 
que mobiliza o sujeito e que é a fonte da contratransferência nos processos analíticos. Tanto 
no modelo de Esther Bick como no de Balint o grupo serviria de apoio psíquico para cada 
participante e também para o enriquecimento das discussões, pois novos pontos de vista são 
trazidos para as reuniões. Nas palavras de Balint o grupo teria a principal função de servir 
para que cada participante pudesse não temer a “própria estupidez” (BALINT, 2005) e, 
 
 
3 Como os conceitos de transferência e contratransferência serão utilizados ao longo do trabalho, faremos uma 
breve explanação a seguir. Logo nos primeiros casos tratados, Freud percebe que os pacientes formavam “falsos 
enlaces” com o terapeuta (FREUD, 1893). Posteriormente o criador da psicanálise se dá conta que os pacientes 
transferem para os seus médicos representações de seus pais e a própria neurose para o terapeuta. Essa relação 
transferencial prejudicaria a construção de uma relação mais real com o terapeuta (FREUD, 1905, p. 111). Ao 
contrário, a contratransferência seria uma relação transferencial do terapeuta para o analista. Segundo Freud, isso 
se daria por falhas do analista em sua própria análise. Esse movimento contratransferencial torna-se um 
obstáculo para a relação transferencial plena (FREUD, 1910, p.150-1). Posteriormente, a contratransferência foi 
reconhecida também como instrumento para acessar sentimentos dos pacientes depositados no terapeuta 
(ETCHEGOYEN, 2004). 
 
16 
 
 
assim, comunicar mais livremente os seus sentimentos. No modelo de intervenção proposto 
para o setor de Psicossomática seria preciso confiar que “a própria estupidez” poderia ser 
compartilhada apenas com o supervisor, sem o apoio do grupo. 
 
1.5 SEGUNDA EXPERIÊNCIA DA PSICANÁLISE ENTRE MÉDICOS 
PEDIATRAS EM FORMAÇÃO 
 
O programa consistiria em reuniões de aproximadamente 1 hora e 30 minutos durante 
as manhãs, de segunda à sexta-feira. O residente “rodaria” sozinho, porém em algumas 
ocasiões o rodízio teria que ser feito em dupla. Os encontros seriam reservados e estariam 
presentes apenas o residente ou os dois residentes, quando fosse o caso, e eu, como preceptor. 
O objetivo seria fazer discussões livres sobre os casos ambulatoriais dos próprios 
atendimentos dos residentes. Seria dada ênfase aos atendimentos do ambulatório de 
puericultura. Com isso pensávamos em afastar das discussões as angústias relacionadas à 
doença e, assim, estaríamos mais livres para trazer para os encontros as angústias 
relacionadas à relação mãe-bebê. 
Tentaremos descrever como se dava essa dinâmica a partir de casos relatados. Para que 
se possa entender a posição dos residentes nas discussões será conveniente fornecer alguns 
dados sobre a residência de pediatria no HFSE. 
 
1.5.1 A RESIDÊNCIA DE PEDIATRIA NO HSFE 
 
Como já dito, a história da residência em pediatria no Brasil começa nesse hospital. 
Começa também nesse Serviço a divisão da pediatria em setores específicos. No total são 
quatorze subespecialidades. Os pacientes são encaminhados para os setores específicos. Cada 
residente permanece entre um a dois meses sob supervisão dos “staffs” nesses setores. Todos 
os pacientes internados são destinados a um setor específico. Há um setor de Pediatria Geral, 
que funciona como os outros e se responsabiliza pelos casos de doenças infecciosas, alguns 
17 
 
 
casos que não puderam ser imediatamente destinados a outros setores e casos de cunho 
psicossocial como maus-tratos, abusos, síndromes de Münchausen by proxi
4
 e outros. 
O Serviço tem duas estruturas bastante independentes. Em um prédio funciona as 
enfermarias com pacientes internados e em um prédio anexo funcionam os ambulatórios. O 
Serviço de ambulatório se divide em ambulatório de especialidades, sempre sob supervisão 
dos “staffs” dos setores, e um ambulatório geral que embora com supervisão ficam mais a 
cargo dos residentes. Eles têm oportunidade de agendar e fazer o acompanhamento de seus 
próprios pacientes. Embora o HFSE não disponha de Serviço de emergência, o Serviço 
ambulatorial recebe, durante o dia, pacientes clínicos mesmo sem ter prontuário aberto no 
hospital. Portanto, é natural que algumas emergências clínicassurjam nos ambulatórios. 
O HFSE tem o perfil de hospital terciário e as vagas para internação são solicitadas, em 
sua maioria, por outros hospitais da rede pública. Algumas crianças são internadas a partir 
dos ambulatórios das subespecialidades por indicação dos “staffs” ou são provenientes dos 
ambulatórios dos residentes e da sala de pronto-atendimento. Em geral, os leitos das 
enfermarias são ocupados por pacientes com casos de difícil solução, sejam pela gravidade 
das doenças, sejam pelas dificuldades sociais envolvidas. 
Pela manhã os residentes permanecem nas enfermarias cuidando dos pacientes das 
especialidades em que foram alocados. Passam entre um a dois meses em cada um desses 
setores. Frequentam os ambulatórios dessas especialidades no período da manhã, quando não 
há pacientes internados ou quando há excesso de residentes para a demanda da enfermaria. 
No período da tarde as atividades variam pouco e são independentes dos rodízios em 
que o residente está alocado. Uma tarde é reservada para os pacientes de puericultura, restrito 
às crianças de 0 a 2 anos. Em outra tarde são acompanhadas crianças maiores de 2 anos até a 
adolescência. Em geral são aquelas crianças atendidas no pronto-atendimento e que fizeram 
um vínculo com os residentes, e passam a ser agendadas para atendimento ambulatorial 
exclusivo com esses médicos. Alguns pacientes que tiveram alta das enfermarias têm um 
duplo acompanhamento: nos ambulatórios de especialidade e no consultório de um dos 
residentes. Há ainda um dia reservado para o atendimento dos adolescentes. O quarto dia da 
 
 
4 São situações em que a mãe simula sintomas de alguma doença na criança. São diferentes dos casos de maus 
tratos e abusos sexuais em que algum dos pais inflige a violência na criança, mas se assemelham com essas 
situações limite, pois colocam os próprios pais em total conflito com a condição de protetores das crianças. 
 
18 
 
 
semana o residente permanece na enfermaria até a chegada da equipe de plantão e, finalmente, 
uma tarde é deixada livre para o residente cuidar de sua vida pessoal. Nas atividades 
ambulatoriais os residentes são deixados livres para conduzir os casos como acharem correto, 
não obstante, todos os setores ambulatoriais têm os seus próprios “staffs” à disposição caso 
sintam necessidade de supervisão. 
Se o HFSE perdeu muito de seu prestígio dos tempos em que o Rio de Janeiro era 
capital da República, a sua dinâmica ainda mantém uma forte tradição e a residência de 
pediatria ainda é uma das mais procuradas na rede pública. As atividades se iniciam 
rigorosamente às 8h, os residentes não têm “day off” e são bastante cobrados pelos setores e 
pela chefia de Serviço. 
As exigências para os residentes são grandes, mas são também para o resto da equipe 
de saúde, em geral presente e dedicada aos pacientes e ao ensino. Por tudo isso o vínculo com 
o hospital, entre os residentes e dos residentes com o restante da equipe é, em geral, muito 
positivo. 
 
1.5.2 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS QUE FORMARAM A ESTRUTURA E 
A DINÂMICA DA ATIVIDADE COM OS RESIDENTES 
 
Donald Woods Winnicott foi um médico inglês, nascido em 1896. Era, portanto, 
quatorze anos mais novo que Melanie Klein
5
 e pertence à terceira geração de psicanalistas. 
Winnicott inicia a sua carreira como pediatra e desenvolve a sua teoria a partir de sua prática 
de psicanalista e pediatra. Como já foi mencionado, os cuidados maternos necessários para o 
bom desenvolvimento do bebê são o resultado de um espaço afetivo que a mãe abre para a 
chegada do bebê em sua vida e que se acompanha de uma sensibilidade muito acurada da mãe 
– a preocupação materna primária. Esse espaço é revelado pela excitação e prazer que a mãe 
sente em estar grávida daquele bebê que é o seu bebê. 
Os cuidados físicos não são suficientes e não atingem o bebê de forma integral se não 
são acompanhados pelo prazer de estar com aquele bebê. Para o bebê também não é possível 
alcançar um desenvolvimento saudável se o amor não gera cuidados efetivos. Nos primeiros 
 
 
5
 Melanie Klein, psicanalista húngara, nascida em 1914 e falecida em 1960, foi pioneira na terapia psicanalítica 
com crianças (KLEIN, 1996). 
19 
 
 
dias e semanas após o nascimento do bebê, a mãe dispões de tempo suficiente para 
permanecer nesse encontro prazeroso com o bebê. Ocorre uma comunicação muito sutil entre 
a mãe e o bebê enquanto a mãe fornece os cuidados necessários. Essa comunicação Winnicott 
chamou de mutualidade (WINNICOTT et al, 1994). 
A mãe não impõe um regime ao bebê, ao contrário, a mãe completa as necessidades do 
bebê que são expressas por ele. O seio é dado no momento que ele imagina um seio e é 
encerrado no momento em que ele imagina largar o seio. Tudo isso é dito da perspectiva da 
mãe que é adulta; da perspectiva do bebê ainda não existe mãe, seio ou bebê. O bebê parte de 
uma experiência fusional mãe-bebê ou bebê-ambiente, na terminologia winnicottiana. Essa 
perfeição é teórica, pois a mãe dedicada comum falha, pois é humana, mas ela é capaz de 
fornecer experiências completas que sustentam esse início fusional. 
O que é importante ressaltar é que a realidade objetiva será uma ocorrência tardia para o 
bebê e só será real quando ela for secundária à construção dessa subjetividade inicial e 
fusional com o ambiente. Enquanto nas teorias freudianas e kleinianas é o bebê que constrói a 
sua própria estrutura mental a partir da relação com o mundo externo, na teoria winnicottiana 
esse papel é, durante um período inicial da vida do bebê, exclusivo da mãe. A relação, que é 
tanto afetiva como efetiva que a mãe estabelece com o seu bebê, permite que ele viva esse 
início como uma experiência de “ir sendo”, sem que ele nada precise fazer. Nas palavras de 
Winnicott, a mãe garante a continuidade de ser do bebê (WINNICOTT et al, 1994). 
Também é a mãe que gradativamente se cansa dos estreitos laços que essa fase inicial 
impõe e começa um processo de afastamento gradual. Esse processo chamado de 
desilusionamento
6
 obriga o bebê a colocar em marcha uma série de experiências que resultará 
no reconhecimento do mundo externo em que habitam um si mesmo e um outro. Se num 
primeiro momento o choro do bebê trazia a mãe sempre para perto, agora a tarefa da mãe é 
diferenciar situações quando o choro deve trazê-la para perto e outras que, ao contrário, é 
necessário não atender mais tão prontamente o bebê. Entre os períodos de predomínio do 
objeto subjetivo e o mundo em que surge de forma mais nítida o objeto real, o bebê passa por 
uma período transicional onde os objetos transicionais ocupam o lugar daquilo que nem é 
totalmente subjetivo e nem totalmente objetivo (KLAUTAU, 2014). 
 
 
6
 Segundo Winnciott, a mãe propicia ao bebê viver a ilusão da onipotência: o bebê é frágil porém, junto à mãe 
que o atende quase perfeitamente, ele experimenta uma sensação de onipotência. O desilusionamento é a perda 
dessa ilusão de onipotência. 
20 
 
 
Resumindo, podemos dizer que a contribuição da teoria do amadurecimento do bebê de 
Winnicott (1994) permite pensar que: 
1. É possível se comunicar com o bebê, mesmo com ele ainda intra-útero. 
2. Essa comunicação é subjetiva e antecede ao entendimento cognitivo do bebê. 
3. Essa comunicação subjetiva é mediada pelos afetos e não se perde. 
4. As obrigações implicadas no cuidado devem fazer parte dessa comunicação 
subjetiva, de modo que prevalece um sentimento prazeroso no cumprimento das 
tarefas e não um sentimento de sacrifício e perda. 
5. Para que a mãe cuide adequadamente do bebê é preciso que ela possa alcançar essa 
comunicação subjetiva, mas ela deverá, em dado momento, iniciar a tarefa de abrir 
mão gradativamente desse lugar. Em outras palavras, ela deve dar lugar à 
ambivalênciana relação com o seu bebê. 
6. O desenvolvimento e a constituição psíquica e moral do bebê é um resultado 
espontâneo que ocorre a partir das experiências recebidas onde se fundem a 
comunicação subjetiva e os cuidados efetivos. 
Essa comunicação subjetiva da mãe com o bebê consiste em um espaço humano único 
de trocas em que cada um tem dignidade e lugar sem a prevalência de um sobre o outro. É o 
espaço da brincadeira em que todos os participantes podem desfrutar. Não há julgamentos 
sobre a maneira de fazer e nem sobre os resultados. 
A natureza da intervenção com os residentes teve como base o pensamento de 
Winnicott e de Balint. Esses autores têm em comum a ideia de que é possível e necessário 
regredir ao ponto de se reviver um período em que as relações não provocaram angústias. 
Segundo esses autores, é nessa sensação de inteireza que aflora a criatividade, o 
desenvolvimento e a reorganização psíquica que possibilitam encontrar os caminhos próprios. 
Winnicott escreve no trabalho Memórias do nascimento, trauma do nascimento e 
ansiedade: 
A fim de preservar um modo de vida pessoal já no início, o indivíduo precisa que as 
intrusões provocadoras de reações sejam mínimas. Todos os indivíduos buscam, na 
verdade, um novo nascimento, no qual a sua linha de vida não seja perturbada por 
uma quantidade de reações maior que a que pode ser experimentada sem que ocorra 
perda do sentimento de continuidade da existência pessoal (WINNICOTT, 2000, p. 
271). 
 
Como reforça as Accioly Lins: 
Quando fala da regressão, que se caracteriza pelo fato de surgir quando existe 
confiabilidade em relação ao meio ambiente, Winnicott afirma que, em tais 
circunstâncias, a regressão não expressa a doença, mas os elementos sadios da 
21 
 
 
personalidade. Para Winnicott, regredir em um ambiente confiável significa 
processo de cura (LINS, 2006, p.33). 
 
Tanto Balint como Winnicott concordariam que a adaptação é sempre do ambiente, ou 
seja, a responsabilidade é da mãe na relação mãe-bebê e do médico na relação médico-
paciente. A adaptação não deveria depender daquele que, em teoria, seria o mais regredido, ou 
seja, o bebê, o paciente ou a mãe do paciente que vive um momento de angústia pela saúde do 
bebê. 
As dinâmicas da intervenção do setor tinham a intenção de ajudar o residente a alcançar 
uma experiência de comunicação mais profunda com o responsável pela criança, que é em 
geral a mãe. Nos casos de atendimento com as crianças maiores ou adolescentes pode ser 
ainda mais interessante, pois é muito rica a experiência de atingir uma comunicação profunda 
com o paciente e outra, independente, com a mãe, sem precisar fazer uma cumplicidade 
apenas com uma das partes. São situações de bastante complexidade. 
Havia, portanto, um aspecto de supervisão na dinâmica, um rumo e um objetivo. As 
conversas eram livres, mas direcionadas para uma teoria que fala de uma intersubjetividade 
criativa. Para se alcançar esse lugar é preciso que a pessoa que cuida possa regredir de forma 
saudável até atingir uma comunicação empática. Essa comunicação, em que o outro se sente 
visto e cuidado de forma mais íntegra, apazigua as angústias e estimula um processo criativo e 
curativo na pessoa cuidada. Essa teoria não pode ser compreendida apenas de maneira 
racional e precisa ser vivida internamente. Ao expressar livremente os sentimentos de raiva e 
as angústias durante os encontros, sem que fossem julgados por isso, os residentes 
experimentariam essa vivência de acolhimento. A partir dessa experiência seria possível para 
o residente uma compreensão mais completa da teoria do cuidado winnicotiano na relação 
mãe-bebê e na relação médico-paciente. A ideia era que os atendimentos dos residentes se 
modificassem a partir dos encontros no setor. Essas discussões teriam que ocorrer em um 
ambiente propício, longe das ansiedades e das urgências de uma enfermaria de pediatria. 
 
 
 
22 
 
 
1.5.3 O SETTING7 
 
O ambiente dentro de uma enfermaria de pediatria é tocante, como já descrevemos. 
Ouve-se todo o tempo choros e gritos, de adultos e de crianças. No começo da manhã chegam 
os residentes asseados e sorridentes de suas casas, mas logo se defrontam com um ambiente 
que subitamente ou gradativamente se torna pesado. Após os cumprimentos da manhã, 
procuram os colegas de plantão para saber como seus pacientes passaram a noite. Por outro 
lado, os pacientes e familiares estão à espera de seus médicos para saber novas sobre a 
evolução da enfermidade. Ao se buscar um local para a atividade do setor, pensou-se em um 
ambiente compatível com o distanciamento desejado dos eventos angustiantes do dia a dia de 
uma enfermaria. Foi conseguida uma sala de reunião isolada da enfermaria e a portas 
fechadas. Não era autorizado que outros colegas assistissem às reuniões. Os telefones eram 
desligados e pedia-se que outros residentes ou membros da equipe não interrompessem os 
encontros. 
Iniciávamos os encontros às 9:30 ou 10h, não havia um horário rígido. Assim 
criávamos um clima muito diferente dos outros setores em que a assiduidade e a pontualidade 
são cobradas de forma rígida. Chegando fora do horário padrão e podendo dormir até mais 
tarde era como se os residentes estivessem mais folgados ou de férias. 
Ajeitávamos as cadeiras, uma em frente a outra, e começávamos a atividade. O horário 
de terminar também não era rígido, variando de acordo com a disposição e o cansaço da 
dupla. Em geral demoravam em torno de 1h 30m e nunca passava do meio-dia para não 
atrapalhar o almoço e as atividades da parte da tarde. 
 
1.5.4 A DINÂMICA 
 
1.5.4.1 HISTÓRICO DO MODELO ESTUDADO 
 
Ao relatar o histórico dessa dinâmica diremos que a pesquisa se deu num segundo 
momento dessa experiência. Inicialmente, eu estava ainda muito impactado pelas leituras e os 
 
 
7
 Setting ou enquadre seria o conjunto de acordos objetivos, tais como horário, local dos encontros, duração e 
privacidade. Essa estabilidade ajuda a regressão do paciente. Mesmo não se tratando de pacientes a estabilidade 
do setting permite uma relação intersubjetiva mais profunda. 
 
23 
 
 
“insights” que havia experimentado após as leituras dos textos de Winnicott. Achava que por 
meio da leitura desses textos os médicos seriam levados a alcançar as mesmas experiências 
internas que eu tivera. Compilei textos e produzi uma apostila com um conteúdo teórico. A 
leitura desse material ocupava boa parte da dinâmica. Ora eu, ora o residente assumia a 
leitura em voz alta. Ao fim de alguns parágrafos iniciávamos a discussão sobre a leitura. 
Tardou talvez três anos para eu perceber que a dinâmica era enfadonha e não alcançaria os 
objetivos desejados, até que, finalmente, as leituras foram abandonadas. 
A ideia era criar um clima de descontração com os residentes para que eles pudessem 
ter a coragem de expressar “a própria estupidez”. Ou seja, que não tivessem medo de falar 
livremente dos sentimentos que afloravam durante os atendimentos e durante a experiência 
no setor. Para isso seria fundamental que eu contivesse a minha “função apostólica”. Esse 
termo, cunhado por Michael Balint, se referia à necessidade que o médico tem de que seu 
paciente adira à sua prescrição e à sua maneira de pensar. Em outras palavras, naturalmente 
eu queria que certos conceitos dos residentes sobre suas práticas mudassem e trabalhava para 
isso. Entretanto, eu deveria suportar a opção do residente de não mudar os conceitos sobre a 
prática. Eu deveria suportar que o residente achasse que a pediatria deveria tratar tão somente 
do desenvolvimento biológico e que o desenvolvimento afetivo seria assunto para psicólogos 
e psicanalistas. A irritação pela incompreensão dos residentes ao que eu propunha, a crítica 
desabrida às suas maneiras de proceder seriam expressões dessa função apostólica - a 
contratransferência. Quando, já sem asleituras, predominou um clima de descontração no 
setor achei que essa prática havia alcançado estabilidade suficiente para iniciar uma 
investigação preliminar sobre esse modelo. 
 
1.5.4.2 INTRODUÇÃO DA DINÂMICA 
 
Sabia que o encontro com um psicanalista, ainda mais sendo face a face, poderia causar 
temor e desconforto. Contava com a minha história de ter sido residente e atuado como 
pediatra do Serviço, de modo que poderia ser identificado não apenas como um psicanalista, 
mas como alguém mais próximo a eles. Seria preciso, porém, quebrar imediatamente o “gelo” 
no primeiro encontro e desconstruir a ideia que o residente estaria diante de alguém que iria 
julgá-lo de alguma maneira. O tempo era curto e teria que alcançar uma clima de 
descontração e cumplicidade rapidamente. Como se iniciavam as conversas não estava pré-
estabelecido, mas em geral me apresentava explicando que 1. havia sido residente no Serviço 
e que conhecia toda a dinâmica da residência e poderia imaginar as dificuldades que a 
24 
 
 
estrutura da residência criava para eles, 2. era psicanalista, mas não caberia interpretá-los ou 
analisá-los. As interpretações pessoais só poderiam se dar em um ambiente de análise e 
aquilo era um setor para ajudar os médicos a compreenderem mais sobre as questões 
subjetivas envolvidas na relação médico-paciente e no desenvolvimento da criança. Sim, 
esses dois pontos seriam os focos de nossos encontros. 3. explicava que eles deveriam trazer 
fragmentos de casos de suas consultas ambulatoriais. Seriam situações que os tivessem 
chamado a atenção. Situações que os havia surpreendido, incomodado ou quaisquer outros 
assuntos relativos à residência médica poderiam ser tema de nossas conversas. Por que 
preferia não conversar sobre os casos das crianças internadas? As crianças internadas era um 
grupo muito seleto. Casos graves, crônicos, em geral, eram casos pouco comuns. A média de 
atendimento nos ambulatórios era de quase duzentas consultas por dia. Em um mês somariam 
em torno de quatro mil crianças atendidas, enquanto no mesmo período passavam pelas 
enfermarias entre trinta a sessenta crianças. Seria, portanto, melhor que falássemos das 
crianças vistas no dia a dia de suas vidas profissionais. No entanto, entendia que, as vezes, os 
casos das enfermarias mobilizavam demais o residente e que se fosse uma necessidade dele, 
poderíamos também conversar sobre esses casos. Essas eram nossas conversas, à guisa de 
introdução. 
Perguntava se tinham algum caso que gostariam de compartilhar. Poderiam aparecer os 
primeiros casos, mas em geral não apareciam. Nessas situações, em que não surgiam casos 
mesmo após os estímulos do tipo: “Fala aí! Serve qualquer caso, qualquer situação. Não 
precisa prontuário ou lembrar de resultados de exames, serve qualquer caso que lhe venha à 
cabeça.”, a introdução era ampliada. Muitas vezes perguntava se sabiam o que era a 
psicanálise, se já haviam tido algum contato com o tema. Com frequência os residentes 
desconheciam por completo o assunto. Mesmo expressões tão consagradas como complexo 
de Édipo poderiam ser totalmente desconhecidas. Explicava, não no sentido de ensinar, mas 
de conversar, mostrar um pouco dos meus interesses de modo que pudéssemos criar uma 
maior proximidade. Perguntava também dos seus interesses nas subespecialidades e se 
estavam satisfeitos com a residência. As perguntas sobre suas vidas pessoais tinham a 
intenção de saber sobre as suas experiências no cuidado de bebês. Se tinham tido irmãos 
menores, se tinham cuidado de sobrinhos, se tinham amigas com filhos. Ocasionalmente era a 
partir das experiências que as amigas estavam vivendo ou das primas que o tema era iniciado. 
Finalmente, eu voltaria a insistir. A residência médica era calcada em experiências 
vividas na clínica e não em aulas e teoria. Seria necessário que o residente fizesse a sua parte 
25 
 
 
contando casos ambulatoriais. Se mesmo assim os casos não eram contados, eu perguntaria: 
“Ontem você fez ambulatório de puericultura, fixo (seus próprios pacientes agendados) ou 
adolescentes?” Para depois emendar: “Conte-me os casos de ontem.” Não houve ocasião em 
que casos não eram trazidos. Vejamos como se davam os encontros. 
 
1.5.4.3 A DINÂMICA DOS ENCONTROS 
 
1.5.4.3.1 UM CASO VINDO DA ENFERMARIA 
 Como já dito, embora fossem buscados os atendimentos ambulatoriais, não eram 
sempre esses casos que eram trazidos para discussão. Creio que havia nisso uma resistência 
dos médicos de aparecerem em sua totalidade em seus próprios atendimentos. O seu paciente 
e o seu modo de atender não podiam ser discutidos. Ainda assim qualquer situação clínica era 
uma oportunidade para conversarmos sobre as suas experiências. Darei um exemplo de um 
registro que fiz de um encontro entre mim e uma participante da pesquisa. Devo ter falado em 
alguma ocasião sobre relações simbióticas entre mães e filhos, pois nessa ocasião vivia na 
enfermaria uma criança com distrofia muscular e dependente de ventilação mecânica. O 
Estado não providenciara condições para uma assistência domiciliar e a criança passou a 
viver no hospital. Uma década havia se passado desde então. A relação da mãe com o filho 
era do tipo simbiótica. Ela abandonara a sua vida pessoal e os cuidados com a outra filha 
haviam ficado muitos limitados para que pudesse se dedicar exclusivamente ao filho enfermo. 
Essa mãe era também muito agressiva e difícil com os residentes. Sabia perfeitamente como 
humilhá-los e ofendê-los. Esse caso foi, em algum momento, assunto de praticamente todos 
os residentes. Quando a residente quis saber sobre relações simbióticas entre mães e filhos 
eu pensei que ela se referia a este caso, mas havia ainda um outro que eu desconhecia. Deu-se 
o seguinte diálogo: 
_ Eu queria falar um pouco com o senhor sobre relações simbióticas. 
_ É o caso da criança com distrofia muscular? 
_ Não. Há um outro caso. Uma mãe que tem uma criança de 6 meses com uma 
doença genética grave. Ela não deverá conseguir ir para casa, nunca. Ela não sai do 
hospital. Ela não pode sair, pois a cânula de traqueostomia obstrui com frequência e 
a enfermagem não pode ficar lá o tempo todo. Então é ela que fica responsável 
pelas aspirações. No último plantão eu falei com ela para ir para casa que eu me 
responsabilizaria pela aspiração da criança, mas ela não quis ir. Ela tem um filho de 
dez anos e o pai pediu a guarda da criança, pois ela abandonou a casa, o pai e o 
filho. Noutro dia era aniversário do filho e ela prometeu a ele que iria em casa por 
ocasião da data, mas não foi. O filho ficou esperando. 
26 
 
 
 Vejamos isso à luz da teoria winnicottiana. Após o nascimento do bebê, se a mãe 
vivenciou a preocupação materna primária, ela permitirá ao filho viver a ilusão da 
onipotência. Essa mãe que está num estado de sensibilidade exacerbada é capaz de identificar 
as necessidades do bebê e isso se dá em tal medida que o bebê experimenta a ilusão que são 
as suas próprias necessidades que criam o mundo. Nas palavras do autor: 
Imagino esse processo como se duas linhas viessem de direções opostas, podendo 
aproximar-se um da outra. Se elas se superpõem, ocorre um momento de ilusão – 
uma partícula de experiência que o bebê pode considerar ou como uma alucinação 
sua, ou como um objeto pertencente à realidade externa (WINNICOTT, 2000, p. 
227). 
Para que esse encontro das duas linhas se dê – a necessidade do bebê e o atendimento 
da mãe – a mãe deverá abrir mão de seu mundo pessoal e se dedicar aos cuidados do bebê. A 
partir de um determinado ponto, se a mãe é saudável, ela começa a sentir um desconforto 
pelo estreitamento de seu mundo. Para que o bebê se desenvolva de forma saudável será 
necessário que a mãe abra mão desse estreitamento de sua vida pessoal. Para isso ela deve 
fazer contato com o seu próprio ódio: 
[...] as crianças parecem ser capazes de lidar com o fato de seremodiadas e isto, 
naturalmente, é simplesmente uma maneira de dizer que podem enfrentar e fazer 
uso da ambivalência que a mãe sente e demonstra. O que elas não podem jamais 
usar satisfatoriamente em seu desenvolvimento emocional é o ódio reprimido e 
inconsciente da mãe, que apenas encontram, em suas experiências de vida, sob a 
forma de formação reativa. No momento em que a mãe odeia, ela demonstra uma 
ternura especial e não existe maneira por que uma criança possa lidar com este 
fenômeno (WINNICOTT, 1994, p. 194). 
 
 A relação simbiótica é, na visão winnicottiana, uma falha da mãe em acessar o seu ódio 
e viver a ambivalência que é despertada em toda a relação de cuidado. Essa é uma tarefa 
crucial da mãe que propicia um desenvolvimento saudável da criança e a residente tinha toda 
a razão em se preocupar com essas questões. Exponho essa compreensão da teoria apenas 
para que se possa acompanhar a partir de que referencial teórico as intervenções são 
realizadas. Apenas ocasionalmente, caso haja interesse da parte do residente em conhecer os 
fundamentos teóricos, esse referencial é explicitado. 
 Foi discutida a situação da família como um todo. Enquanto os médicos mantinham o 
foco voltado para a criança doente, muitas vezes o que se passava com o resto da família não 
era percebido. Pedi, então, para a residente contar o que mais sabia sobre a vida da mãe. A 
criança em questão era o segundo filho. O menino mais velho estava praticamente 
abandonado pela mãe, que agora era cuidado apenas pelo marido. Esse casal estava em vias 
de se separar. O médico, voltado para o sofrimento que estava à sua frente – um bebê doente 
–, não conseguia ver o quadro familiar de forma mais ampla. Levantei a questão: a dedicação 
27 
 
 
da mãe era apenas amor materno ou havia culpa pelas dificuldades em viver o ódio fruto das 
restrições impostas pela doença? 
Discutiu-se a questão do luto. Se uma criança se acidenta, cai da laje ou é atropelada, 
situações que não são incomuns no CTI pediátrico, é natural que a mãe se “interne” junto à 
criança e abandone o resto da família. Situação semelhante ocorre quando nasce um filho. A 
mãe já não pode atender o resto da família durante as primeiras semanas. Mas quando o 
quadro se cronifica e a criança deve permanecer no hospital por um tempo prolongado, há 
que se fazer um luto e retomar gradualmente as atividades deixadas. Essa mãe não conseguia 
fazer o luto de ter dado a luz a uma criança sindrômica e, paradoxalmente, era capaz de 
abandonar uma criança saudável. 
Discutiu-se também a cumplicidade nem sempre sadia da própria equipe de saúde com 
a criança doente. Muitas vezes julgava de maneira crítica a mãe que se ausentava, sem levar 
em conta que a mãe que se ausenta pode estar mais saudável do que a que está sempre 
presente. Não é incomum perceber a posição crítica da equipe de saúde frente a uma mãe 
maquiada e pronta para deixar o hospital quando tem uma criança cronicamente doente 
internada. 
Finalmente contava histórias de minha própria prática privada. Contei então que 
quando atuava como pediatra havia uma família que me chamava com frequência para 
atender o filho com síndrome de Down e doença respiratória. Sentia que havia um exagero 
em tantas solicitações para atendimento domiciliar. Primeiro porque a doença respiratória da 
criança não era grave e os pais já deveriam saber como lidar com as exacerbações e, além 
disso, as consultas domiciliares eram caras e a família não parecia dispor de tantos recursos. 
Um dia eu estava na sala sozinho e a irmã, que era uma menina saudável e um pouco mais 
velha, chegou perto de mim e disse baixinho: “Eu também queria ter sido Down.” Eram 
passagens da minha experiência pessoal que ajudavam a enriquecer as conversas sobre a 
medicina vista unicamente na perspectiva da doença e do doente em contraste com o doente e 
a doença inseridos dentro da dinâmica familiar. A posição do médico e sua maneira de atuar 
se modificam quando a dinâmica familiar é colocada na mesma perspectiva da enfermidade. 
Enfim, a dinâmica dos encontros incluiu conversas sobre a teoria do desenvolvimento 
emocional do bebê, do ódio inconsciente da mãe, da culpabilização da equipe de saúde e 
também uma visão da pediatria não apenas a partir da doença, mas também da valorização da 
família e de todos os seus membros. Tudo isso foi discutido a partir do caso trazido pela 
residente. 
28 
 
 
1.5.4.3.2 UM CASO AMBULATORIAL EM QUE APARECE O ZELO APOSTÓLICO 
 
 Certamente a parte mais difícil desse trabalho é lidar com a contratransferência. Muitas 
vezes tinha que fazer grande esforço para evitar exigir do residente uma postura que eu 
pensava ser correta ou era por mim desejada, mas que nem sempre era possível para o 
residente alcançar. Para que essa pesquisa adquira veracidade é necessário contar ao menos 
um caso em que aparece de forma clara esse zelo apostólico. 
 A residente me conta um caso acompanhado no ambulatório, mas é um caso conhecido 
por todos devido à longa história de internações no Serviço. É uma menina, cuja a idade não 
foi informada, e que era portadora de uma doença renal congênita, mas que tinha ainda um 
dos rins em bom funcionamento. O segundo rim começa a apresentar problemas em sua 
função e a criança parece evoluir para um quadro de insuficiência renal crônica que 
demandará diálise e transplante. Quando o caso é relatado pela residente o funcionamento 
renal é sofrível e já começa a haver sinais que o caso se encaminhava para uma evolução 
desfavorável. A mãe chega ao ambulatório nervosa, se queixando que os médicos não fazem 
nada e a criança que até aquele momento tinha perfeito controle da diurese, começa a 
apresentar um quadro de enurese. Essa disfunção nada tem a ver com a insuficiência da 
função renal; tratava-se de uma nova questão. É, obviamente, uma situação dramática para a 
mãe, a criança e para toda a equipe de saúde envolvida com o acompanhamento de um caso 
de má evolução. Entretanto, a maneira como a residente me apresentou o caso já me causou 
impacto e mal-estar. Disse a médica: “Sabe a Fabíola
8
? Todo mundo conhece, ela tem doença 
renal e parece que o outro rim está parando de funcionar. Ela está apresentando 
hiperatividade do músculo detrusor.” 
 Aquilo me causou, como disse, um tremendo mal-estar. O músculo detrusor é um dos 
músculos responsáveis pela contração da bexiga. O caso era dramático: uma menina que 
evoluía inexoravelmente para insuficiência renal. A mãe começa a se desesperar e a criança 
passa a apresentar enurese noturna. Uma situação bastante previsível diante de um quadro de 
prognóstico reservado. A médica, porém, apresenta o caso de uma maneira e com um jargão 
tão técnico e frio que me causou surpresa. A incapacidade em afirmar que deveria haver uma 
conexão entre a evolução do caso, o mal-estar da mãe e a enurese da criança irritou-me e deu-
se o seguinte diálogo: 
 
 
8
 Um nome fictício foi dado. 
29 
 
 
_ Isso que você está chamando de disfunção do detrusor, você sabe, é enurese. E 
quais as causas que você conhece de enurese? 
_ Pode ser psíquico. 
_ Nesse caso, o que você acha? 
_ Não sei. 
_ Então ela deverá passar por uma endoscopia urológica para saber? 
_ Se eu não sei o que é... 
_ Então se for psíquico, dane-se! Primeiro, enfiar um tudo na uretra da criança! 
 
A abordagem da médica foi colocada em questão e ela chorou. Disse que passava por 
problemas pessoais e não estava suportando ser pressionada. Revendo esse caso percebo que 
a médica deve ter dado aquela descrição para enurese a partir de conversas com o setor de 
Urologia pediátrica do Serviço. A médica repetia a orientação de seus próprios preceptores. A 
minha experiência em interagir com o setor de Urologia tinha sido frustrante, pois os casos de 
enurese eram tratados mais como uma doença orgânicado que como expressão de tensões 
ambientais. Essa era uma abordagem completamente contrária à minha formação em 
psicanálise em que o sintoma corporal pode ser a expressão do conflito psíquico que não 
chega à consciência. Essas discussões com o setor de Urologia não chegaram a um consenso 
e percebi que não haveria espaço para trabalhar com um setor que era tão rico em se tratando 
de doenças psicossomáticas em pediatria. Trazer toda essa história é importante para 
compreender a maneira bruta com que eu reagi àquela descrição. Identifiquei ali a assinatura 
de alguém com quem eu já havia me desentendido anteriormente. Naturalmente, esse tipo de 
zelo apostólico não ajuda e deve ser corrigido. Pede-se desculpa pela impaciência e tenta-se 
recompor um clima, porém muitas vezes permanece um pequeno mal-estar. Não é justo que o 
preceptor atue assim sobre alguém mais novo, em aprendizado. Não creio que essa situação 
tenha se repetido nem com ela e nem com outros residentes. 
 
1.5.4.3.3 UM CASO DISCUTIDO QUE RESULTA EM MUDANÇAS NA PRÁTICA 
 
Contaremos agora um caso conduzido de maneira mais satisfatória do que o anterior. O 
caso não é exatamente ambulatorial, mas é na verdade um atendimento telefônico, o que é 
também muito comum na prática. A médica conta que estava de plantão e recebe uma 
chamada telefônica. A mãe relata que o seu filho sofria de cardiopatia congênita e era 
paciente do hospital. Aqui podemos apreciar a força das relações transferenciais. A mãe não 
aceitaria outra médica que não fosse do próprio Serviço onde o seu filho era acompanhado. 
Voltando ao caso, a mãe dizia que a criança estava com febre e que quando a temperatura da 
criança subia, ficava taquicárdica. O coração parecia que ia sair do peito e ela, a mãe, ficava 
30 
 
 
muito assustada e precisaria dar um “pulinho” lá para ser assegurada pela médica de plantão, 
mesmo sendo já noite, pois estava muito nervosa. A médica não colhe nenhuma história, 
enfim, não acolhe a mãe. Não leva em consideração as questões transferenciais mencionadas 
e responde para a mãe que ali não é hospital de emergência e que ela se dirigisse ao Hospital 
Souza Aguiar. Esse telefonema durou muito tempo, pois a mãe insiste que não conseguiria 
dormir e que só se acalmaria se a criança fosse examinada. Argumenta que todos os assuntos 
relativos à saúde de seu filho eram feitos naquele hospital. Era lá que tinham o prontuário, os 
exames e apenas os seus médicos sabiam sobre o caso de seu filho. A médica não abre mão 
de sua posição. É dura, fica indignada com a insistência da mãe e termina por desligar o 
telefone sem que houvesse qualquer entendimento entre as partes. Enquanto a médica 
relatava o caso eu ouvia e pensava: “Que brutalidade, que rigidez! Provavelmente não seria 
necessário nem examinar a criança. Se a médica deixasse a mãe falar um pouco para que ela 
se acalmasse isso seria suficiente. Ou ela poderia pegar o número de telefone da mãe, ligar 
para um de seus médicos e depois dar um retorno à mãe. Mas por que agir assim? A médica 
devia ter muito medo de lidar com cardiopatas! O rodízio no setor de cardiologia ocorre no 
segundo ano de residência. A médica, sendo ainda residente do primeiro ano, ainda não tinha 
a experiência no setor. Certamente esse era um dos motivos que teria levado a médica a ter 
uma atitude tão rígida. No entanto, contra essa raciocínio era preciso lembrar que em todos os 
plantões têm dois médicos do primeiro ano e um do segundo ano. Assim que, se ela quisesse 
ser mais acolhedora, poderia perfeitamente falar com uma de suas colegas.” Conversamos 
então sobre todas essas linhas de raciocínio e finalmente disse para a médica que ela deveria 
ter dormido muito mal nas suas poucas horas de sono. Primeiro porque a mãe poderia “bater” 
à qualquer hora na porta do hospital. Essa era a força da relação transferencial e da angústia 
da mãe. As mães aparecem com seus filhos mesmo sabendo que não há um setor de 
emergência. Em segundo lugar se acontecesse algo com a criança, querendo ou não ela tinha 
traçado condutas e estava envolvida no caso. O confronto com as mães não era, em geral, um 
bom caminho para pediatras. 
A médica me ouviu calada, sem demonstrar que revia a sua posição e conduta. Ocorre, 
por uma feliz coincidência, que num outro plantão uma outra mãe liga para o hospital para 
falar com uma das médicas e é a mesma médica que atende. Era uma mãe que tinha sido 
consultada na puericultura naquele mesmo dia. A criança era saudável, mas a mãe tinha 
ficado com dúvidas sobre o preparo das mamadeiras e queria saber se a médica poderia 
fornecer alguns esclarecimentos. Essa situação de aparência tão inocente, pode gerar revolta 
31 
 
 
nos médicos. Não creio estar sendo injusto. Estou respaldado pelo caso que acabo de relatar. 
Um paciente ambulatorial que tira a concentração de um médico que está tratando de uma 
paciente internado é comumente visto como uma afronta. Em se tratando de um caso de 
puericultura, a reação poderia ter sido ainda mais violenta. Porém, havíamos recém discutido 
um caso semelhante na semana anterior e a médica muda totalmente a sua maneira de abordar 
o caso. Primeiro ela faz a orientação e depois diz para a mãe procurar o Serviço pela manhã. 
A mãe agradece e pergunta: “Gostei da senhora. Qual é mesmo o seu nome?” Foi discutido 
que se a médica pretendia ser pessoalmente reconhecida junto aos seus pacientes, ela tinha 
descoberto um caminho. Não custava muito e o resultado era mais gratificante do que passar 
a noite assustada e desconfortável. 
Relembrando a teoria, voltamos a falar das linhas da mãe e do bebê que se encontram 
no meio do caminho. Também havia uma linha da mãe e do médico que precisavam se 
encontrar no meio do caminho. E essa linha havia sido encontrada pela médica nesse segundo 
atendimento. 
 
1.5.4.3.4 À GUISA DE CONCLUSÃO SOBRE A DINÂMICA 
 
Os elementos essenciais dessa dinâmica me parecem que foram apresentados. Há a 
primeira vista um certa desorganização. As dinâmicas são, porém, organizadas pelos 
princípios da livre associação. Quer dizer, fala-se aquilo que se tem vontade de compartilhar: 
qualquer situação vivida relacionada à atividade profissional é assunto a ser tratado. O 
enfoque é a ideia que a doença expressa um sofrimento biopsíquico e que os aspectos 
psíquicos devem ser reconhecidos e valorizados sob pena de aumentarmos as intervenções 
tecnológicas e farmacológicas e diminuirmos o encontro humano e a arte e a poesia que há no 
ato médico. A ambiguidade afetiva está sempre presente no ato de cuidar e deve ser 
entendida e tolerada até um determinado ponto. Por fim, fica evidente que esse não é um 
trabalho simples e que exige do profissional um preparo. Mesmo preparado trabalha-se no 
limite da contratransferência e é esperado que atritos ocorram. 
Todos esses elementos – a livre associação, os casos relatados a partir da memória, um 
lugar em que os sentimentos experimentados na atividade profissional podem ser tratados 
sem críticas, a contratransferência do médico e do líder – estão também presentes nas 
pesquisas de Michael Balint. Faremos uma revisão da psicossomática a partir do surgimento 
da psicanálise para podermos situar as pesquisas de Balint dentro da história da medicina 
32 
 
 
psicossomática. Posteriormente seguiremos com um revisão do trabalho de Balint junto aos 
médicos. 
 
1.6 DA PSICOSSOMÁTICA AOS ESTUDOS DE BALINT 
 
Oriunda da medicina, era natural que a psicanálise e a medicina mantivessem um 
estreito relacionamento. Curiosamente, Georg Groddeck (1866-1934), um médico alemão 
que nunca havia exercido a psicanálise é considerado um dos pioneiros da medicina 
psicossomática. Groddeck tinha suas próprias teorias e para ele não havia distinção entre 
mente e corpo. Tanto as doenças orgânicas quanto as neuroses eram fruto de uma construção 
simbólica. Com isso o médico queria dizer que não acreditava

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