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FLÁVIO HENRIQUE GHILARDI COOPERATIVISMO DE MORADIA EM MONTEVIDÉU E AUTOGESTÃO HABITACIONAL NO RIO DE JANEIRO As bases sociais, políticas e econômicas da produção social do habitat na América Latina Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Orientadora: Prof. Dra. Luciana Corrêa do Lago RIO DE JANEIRO 2017 FLÁVIO HENRIQUE GHILARDI COOPERATIVISMO DE MORADIA EM MONTEVIDÉU E AUTOGESTÃO HABITACIONAL NO RIO DE JANEIRO As bases sociais, políticas e econômicas da produção social do habitat na América Latina Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Aprovado em: BANCA EXAMINADORA ________________________________________ Prof. Dra. Luciana Corrêa do Lago - Orientadora Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ ________________________________________ Prof. Dr. Adauto Lucio Cardoso Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ ________________________________________ Prof. Dr. Orlando Alves dos Santos Junior Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ ________________________________________ Prof. Dr. Edson Miagusko Instituto de Ciências Humanas e Sociais – UFRRJ ________________________________________ Prof. Dr. João Farias Rovati Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional – UFRGS AGRADECIMENTOS À professora Luciana Lago, pela dimensão de liberdade na orientação deste trabalho. Aos professores Adauto Cardoso e Edson Miagusko (pelas valiosas considerações na banca de qualificação), assim como aos professores João Rovati e Orlando Júnior, pela atenta leitura e comentários à tese. Aos professores do IPPUR, pela densa formação crítica; aos técnicos do instituto, essenciais nos momentos de apoio, trabalhando com competência e bom humor; e aos colegas discentes, pela amizade intelectual. Àqueles que, sob várias formas, contribuíram para a pesquisa no Rio de Janeiro, em especial aos que atuam junto à Fundação Bento Rubião e à Arché; aos grupos autogestionários, principalmente àqueles com quem mantive contato em Esperança, Ipiíba e Shangri-lá; e aos que militam junto à União por Moradia Popular do Rio de Janeiro. Ao professor Juan Pablo Martí, pelos preciosos encontros em Montevidéu e pela imprescindível orientação de pesquisa durante o estágio sanduíche. Àqueles que, em Montevidéu, aportaram valiosíssimas contribuições – em entrevistas, conversas informais ou cursos de formação – para a pesquisa de campo. Em especial aos que atuam nas seguintes instituições e organizações: Agencia Nacional de Vivienda (ANV), Confederación Uruguaya de Entidades Cooperativas (CUDECOOP), Facultad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo (FADU-UDELAR), Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua (FUCVAM) e Escuela Nacional de Formación (ENFORMA), Federación de Cooperativas de Vivienda por Ahorro Previo (FECOVI), Instituto Nacional de Cooperativismo (INACOOP), Ministerio de Vivienda, Ordenamiento Territorial y Medio Ambiente (MVOTMA) e Unidad de Estudios Cooperativos (UEC-UDELAR). Aos “cooperativistas de vivienda” que proporcionaram entrevistas e conversas valiosíssimas sobre a trajetória de suas unidades cooperativas, em especial àqueles dos seguintes grupos: Complejo Bulevar, Complejo José Pedro Varela, COVIATU 18, COVICENOVA, COVICIVI, COVICORDÓN, COVIESS 90 II, COVIFAMI II, COVIMT 2, COVISUNCA 2, COVISUR II, COVIUN, COVIUNPRO, COVIVEMA V, El Ladrillo, MESA 1, Puerto Fabini e aqueles do Barrio Inter-cooperativo Zitarrosa, em especial COVICENTELLA, COVIEFE, COVIFU, COVIFAMI e JUCOVIPOSTAL. Aos técnicos dos “Institutos de Asistencia Técnica” que me concederam preciosas entrevistas; e, nominalmente, a Gustavo González e Leonardo Pessina pelos depoimentos individuais, assim como a Daniel Chavez, pela bibliografia disponibilizada. À biblioteca Gino Baratta, pelo suporte à escrita do texto da tese. Aos amigos de vários cantos e aventuras – do Rio, de Sampa, de Brasília, do mundo –, aos quais não agradecerei, nominalmente aqui, por questão de espaço. À minha irmã, pela brodagem compartilhada; e aos meus pais, pelos ensinamentos de dedicação e integridade. RESUMO A produção social do habitat configura-se, a partir de meados do século XX, em um projeto político de estruturação alternativa do ambiente urbano na América Latina. Ao se considerar a constituição desse projeto a partir de um conjunto heterogêneo – e, por vezes, conflitivo – de ações políticas que organizam práticas autogestionárias de produção do habitat, a tese propõe uma abordagem sobre as “bases” sociais, políticas e econômicas de dois casos específicos: o cooperativismo uruguaio de moradia, originado na década de 1960, e as propostas de autogestão habitacional na metrópole do Rio de Janeiro, iniciadas nos anos 1990. Para tanto, analisam-se aspectos da formação social dos contextos onde emergiram essas experiências, de modo a permitir pensar questões específicas postas à trajetória destes dois modelos de produção social do habitat. Sob uma dupla perspectiva, iluminam-se tensões internas que atravessam esse projeto político, considerando-se a vinculação com suas “bases” constitutivas. Nesse sentido, a tese procura explorar os momentos de emergência da política – enquanto ação humana criadora do novo e instituidora do dano na própria constituição da comunidade – que se processam, na estruturação do espaço urbano latino-americano, a partir das inciativas autogestionárias de produção social do habitat. Palavras-chave: Produção social do habitat. Cooperativismo de moradia. Autogestão habitacional. RESUMEN La producción social del hábitat se configura, a partir de mediados del siglo XX, en un proyecto político de estructuración alternativa del ambiente urbano en América Latina. Al considerarse la constitución de ese proyecto desde un conjunto heterogéneo – y, por veces, conflictivo – de acciones políticas que organizan prácticas autogestionarias de producción del hábitat, la tesis propone un abordaje sobre las “bases” sociales, políticas y económicas de dos casos específicos: el cooperativismo uruguayo de vivienda, originado en la década de 1960, y las propuestas de autogestión habitacional en la metrópoli del Rio de Janeiro, empezadas en los años 1990. Por lo tanto, se analizan aspectos de la formación social de los contextos donde surgieron tales experiencias, de manera a permitirse pensar cuestiones específicas acerca de la trayectoria de estos dos modelos de producción social del hábitat. Bajo una doble perspectiva, se iluminan las tensiones internas que cruzan ese proyecto político, considerándose la vinculación con sus “bases” constitutivas. En ese sentido, la tesis intenta explorar los momentos de surgimiento de la política – como acción humana creadora de lo nuevo e instituidora del daño en la propia constitución de la comunidad – que se procesan, en la estructuración del espacio urbano latinoamericano, a partir de las iniciativas autogestionarias de producción social del hábitat. Palabras-claves: Producción social del hábitat. Cooperativismo de vivienda. Autogestión habitacional. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Notícias do primeiro boletim de FUCVAM sobre o início de obra nas cooperativas de moradia por ajuda mútua (Montevidéu, 1971) 47 Figura 2 – Mesa 1, bairro “NuevoAmanecer” (Montevidéu, 2015) 55 Figura 3 – Número de obras de cooperativas de moradia, por ano de início (Uruguai, 1970 – 1978) 59 Figura 4 – Estado de tramitação dos empréstimos às cooperativas de moradia, em unidades habitacionais (Uruguai, 1978) 60 Figura 5 – Empréstimos escriturados pelo Banco Hipotecário do Uruguai, equivalente em quantidade de moradias (Uruguai, 1978 – 1984) 61 Figura 6 – Salão comunal do Complexo José Pedro Varela (Montevidéu, 2015) 63 Figura 7 – Número de obras de cooperativas de moradia, por ano de início (Uruguai, 1985 – 1999) 70 Figura 8 – Prédio destinado à carteira de terras da Intendência de Montevidéu (Montevidéu, 2016) 73 Figura 9 – Número de obras de cooperativas de moradia, por ano de início (Uruguai, 2000 – 2015) 77 Figura 10 – Moradia construída no projeto de Ipiíba (São Gonçalo, 2014) 93 Figura 11 – Moradias do projeto Shangri-lá, Jacarepaguá (Rio de Janeiro, 2014) 97 Figura 12 – Taxa de inflação e salário real (Uruguai, 1957 – 1973) 115 Figura 13 – Sede do Centro Cooperativista Uruguayo (Montevidéu, 2015) 122 Figura 14 – Anúncio da Cooperativa Habitacional nº 1 da Guanabara (Rio de Janeiro, 1965) 127 Figura 15 – Número de cooperativas habitacionais (Brasil, 1978, 1980 e 1983) 129 Figura 16 – Ocupação na indústria (Uruguai, 1936 – 1999) 137 Figura 17 –Taxas de crescimento da população, da população economicamente ativa (PEA) e da ocupação na indústria (Uruguai, 1936 – 1998) 138 Figura 18 – Moradias da cooperativa COVIATU 18 (Montevidéu, 2016) 192 Figura 19 – Obra da cooperativa Puerto Fabini (Montevidéu, 2016) 194 Figura 20 – Pátio superior da cooperativa COVICIVI (Montevidéu, 2015) 201 Figura 21 – Complejo Bulevar (Montevidéu, 2015) 207 Figura 22 – Trabalho de ajuda mútua dos sócios da cooperativa COVIVEMA V (Montevidéu, 2015) 219 Figura 23 – Cooperativa COVICENOVA (Montevidéu, 2016) 228 Figura 24 – 65a. assembleia geral de FUCVAM (Montevidéu, 2016) 236 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Número de sócios e de unidades cooperativas de moradia, por departamento (Uruguai, 1969 e 1978) 56 Tabela 2 – Evolução da estrutura do Gasto Público Social (porcentagem), por décadas (Uruguai, 1910 – 2000) 145 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 13 1.1 O plano de análise ............................................................................................. 18 1.2 As questões da pesquisa ................................................................................. 23 1.3 Metodologia de pesquisa .................................................................................. 29 1.4 A estrutura do texto .......................................................................................... 38 2 A PRODUÇÃO SOCIAL DA HABITAT EM MONTEVIDÉU E NO RIO DE JANEIRO .................................................................................................................. 41 2.1 Cooperativismo de moradia no Uruguai ......................................................... 41 2.1.1 Cooperativismo na Lei Nacional de Moradia .................................................... 48 2.1.2 Etapa inicial: ganho de escala .......................................................................... 52 2.1.3 Ditadura militar e sufocamento do sistema ....................................................... 57 2.1.4 Redemocratização e políticas neoliberais ........................................................ 69 2.1.5 Período contemporâneo ................................................................................... 75 2.2 Autogestão habitacional na metrópole do Rio de Janeiro ............................ 79 2.2.1 Primeiras iniciativas em Nova Holanda ............................................................ 80 2.2.2 Proposta pioneira do Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião .. 86 2.2.3 Aporte de recursos da cooperação internacional ............................................. 91 2.2.4 Anos 2000 e acesso a fundos públicos ............................................................ 99 2.3 Uma primeira aproximação entre Montevidéu e Rio de Janeiro ................. 104 3 AS BASES DA PRODUÇÃO SOCIAL DO HABITAT NO URUGUAI ................. 108 3.1 Década de 1960: geopolítica, crise e cooperativismo de moradia .............. 109 3.1.1 Plan CIDE e impacto sobre o planejamento da política habitacional ............. 109 3.1.2 Acúmulo formativo e origem dos projetos piloto ............................................. 117 3.1.3 Contraponto: cooperativismo habitacional no Brasil ....................................... 125 3.2 A formação da classe operária uruguaia ...................................................... 129 3.2.1 Cooperativismo de moradia, classe trabalhadora e sindicalismo ................... 136 3.3 Arquitetura de bem-estar e apoio estatal ...................................................... 141 4 O TERRENO POR ONDE SE MOVIMENTA A AUTOGESTÃO HABITACIONAL NO RIO DE JANEIRO ............................................................................................. 147 4.1 Favela, território de origem ............................................................................ 148 4.1.1 Do associativismo pré-ditadura ao remocionismo autoritário ......................... 149 4.1.2 Abertura democrática e associativismo transformador ................................... 154 4.1.3 Economia política da urbanização do Rio de Janeiro ..................................... 157 4.1.4 Outro contraponto: cooperativismo e associativismo ..................................... 160 4.2 Matriz sindical e autogestão habitacional ..................................................... 170 4.3 Cultura política e violência ............................................................................. 175 4.4 Estado, organizações não-governamentais e cooperação internacional .. 179 5 TENSÕES INTERNAS À PRODUÇÃO SOCIAL DO HABITAT .......................... 187 5.1 Origem social dos grupos .............................................................................. 188 5.2 Os distintos tempos das políticas públicas .................................................. 202 5.3 Dilemas da ajuda mútua e da autogestão ..................................................... 209 5.4 Autogestão: instrumento de opções múltiplas ............................................ 224 5.5 Propriedade coletiva ....................................................................................... 233 5.6 Dimensão singular da experiência ................................................................ 240 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 252 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 263 APÊNDICE A – QUADRO DE COOPERATIVISTAS ENTREVISTADOS EM MONTEVIDÉU ........................................................................................................ 281 APÊNDICE B – SISTEMATIZAÇÃO DAS ENTREVISTAS EM MONTEVIDÉU ..... 282 13 1 INTRODUÇÃO Metrópole do Rio de Janeiro, início da década de 1990. Uma análise panorâmica sobre o processo histórico de urbanização da região apresenta um ambiente urbano estruturado majoritariamente pela precariedade das condições de moradia da maioria da população. Predominam os grandes números que expressam o déficit na qualidade construtiva do parque habitacional, a falta de acesso a elementos básicos da infraestrutura urbana e o gasto excessivo com aluguel que compromete grande parte dos ingressos familiares das camadas populares. No território, constituem-se áreas de precariedade urbana expressas em favelas, loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais degradados. Dados do início dessa década (BURGOS,2006, p. 45) mostram que, no ano de 1991, quarenta por cento da população da cidade do Rio de Janeiro vivia em condições precárias de habitat, sendo 962.793 habitantes em favelas, 944.200 em conjuntos habitacionais e outros 381.345 em loteamentos irregulares de baixa renda, um total de mais de dois milhões de pessoas. Nesse mesmo período e cenário, a região metropolitana do Rio de Janeiro testemunha o surgimento de um conjunto de iniciativas que procuraram introduzir novas maneiras de se produzir o habitat das camadas populares residentes nos territórios de precariedade urbana. São organizadas propostas que se centram na ideia de construção do ambiente urbano – com foco na habitação – por meio da própria participação dos futuros moradores. Traduzidas no conceito de “autogestão” do processo produtivo do habitat, de certo modo se colocam como alternativas às formas históricas de produção habitacional no Brasil, seja pela via do mercado imobiliário ou da promoção estatal. Um conjunto de práticas foi constituído e acionado para a execução de alguns processos experimentais. A formação de coletivos organizados e a constituição de metodologias de trabalho consubstanciaram práticas coletivas visando o acesso a recursos financeiros e ao solo urbanizado para a construção de novas moradias. Tais práticas inovadoras se estruturaram apoiando-se em modos de discussão coletiva dos 14 aspectos projetuais e acionando engrenagens de reordenação da relação dos saberes técnicos com os coletivos organizados. Constituíram-se, dessa maneira, metodologias que reformularam processos construtivos tradicionais, por meio de mecanismos de utilização coletiva da mão-de- obra dos próprios moradores na produção de seu habitat. Assentavam-se, desse modo, na organização autogerida do canteiro de obras e da contratação de mão-de- obra especializada, aliada a formas autônomas de gerenciamento dos recursos financeiros destinados principalmente à compra, sem intermediários, de insumos da construção civil. Tais práticas, inéditas no contexto da precariedade urbana do Rio de Janeiro, geraram territórios onde o local de moradia é a concretização, sob formas de autogestão, do próprio processo de produção do habitat. Uruguai, segunda metade da década de 1960. Três experiências piloto são levadas à cabo sob iniciativa de uma organização não governamental – o Centro Cooperativista Uruguayo, conhecido como CCU – visando a produção de moradias através de uma nova modalidade de cooperativismo. O Legislativo uruguaio aprova, no final da década, a Lei Nacional de Moradia, com um capítulo específico instituindo o sistema cooperativo de moradia no país. Já a partir de 1970 este sistema entra em funcionamento e, vertiginosamente, a produção habitacional sob essa modalidade ganha escala. Constituem-se centenas de grupos que produzem milhares de unidades habitacionais. Em menos de uma década a promoção habitacional via cooperativas consolidou um sistema que aportou medidas inovadoras no modo de se produzir o habitat para as camadas populares. No Uruguai, essas inovações se constituíram em propostas tais como a adoção da propriedade coletiva, a criação de modalidades de participação dos usuários no processo construtivo via ajuda mútua ou poupança prévia, a constituição de Institutos de Assistência Técnica, a organização de federações de cooperativas, assim como a construção coletiva de equipamentos urbanos. Com o suporte estatal e o engajamento da classe trabalhadora sindicalizada, a experiência ganhou escala e prestígio com a qualidade urbana alcançada, constituindo um sistema que enfrentou, logo em seguida, os desafios da retirada do apoio estatal com a ditadura a partir de 1973. 15 Foi no começo dos anos 1990 que se cruzam esses dois conjuntos de experiências latino-americanas, duas formas alternativas de produção do habitat popular. O iniciante experimento alçado no Rio de Janeiro foi buscar referências no sistema uruguaio de cooperativas de moradia, naquele momento com mais de duas décadas de instituição. A partir do assessoramento a uma iniciativa embrionária que se desenvolveu na favela de Nova Holanda – com o trabalho de uma cooperativa de construção oriunda de iniciativa da renovada associação de moradores local –, conformava-se, em uma organização não governamental – o então Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião – o esboço de um programa que apoiasse projetos de autogestão habitacional. A inspiração no sistema uruguaio veio por intermédio do eco que se fazia ouvir desse sistema na região metropolitana vizinha de São Paulo. Por ali, desde meados da década anterior ocorria um conjunto de iniciativas que buscavam seguir o modo de fazer uruguaio1. Assim é que a iniciativa carioca viria a materializar projetos piloto, com elementos inspirados no sistema uruguaio, a partir de metade da década de 1990. *** Foi na segunda metade da década de 1980 que surgiu na favela de Nova Holanda – localizada no Complexo da Maré, próxima à Linha Amarela, zona suburbana do Rio de Janeiro – um conjunto de iniciativas para a construção organizada de moradias sob formas de gestão controladas pelos próprios moradores. A partir de um processo de mudança de orientação política na direção da associação de moradores local, constituiu-se a Cooperativa de Moradores e Amigos da Nova Holanda (COOPMAHN). A cooperativa, inicialmente, criou novos mecanismos para a utilização coletiva de recursos públicos federais visando à aquisição de materiais de 1 Nabil Bonduki ao analisar o surgimento, nos anos 1980, das propostas dos mutirões autogeridos pelos movimentos de moradia na região metropolitana de São Paulo, salienta que “a influência do cooperativismo uruguaio no surgimento de propostas autogestionárias na luta por moradia foi enorme” (BONDUKI, 1992, p. 35). A influência uruguaia tinha sua força advinda das concretizações realizadas até então, “tanto pelos excelentes resultados alcançados em termos de qualidade, custos e participação popular como por apontar uma proposta habitacional alternativa numa conjuntura onde se buscava novas soluções” (BONDUKI, 1992, p. 35). 16 construção. Ao final da década tornou-se responsável pela construção de unidades habitacionais que seriam erguidas na favela com recursos do governo federal. Nesse processo, a cooperativa foi assessorada por técnicos que atuavam no Núcleo Arco, ligado à Universidade Santa Úrsula. Já na virada para os anos 1990, a cooperativa se dissolveu e integrantes do núcleo assessor passaram a atuar na estruturação de uma proposta que apoiasse iniciativas de produção de moradia através de mecanismos autogestonários. O programa surgiu sob coordenação de uma organização não governamental, o então Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião. Formado por técnicos que atuaram durante a década de 1980 junto à Pastoral de Favelas do Rio de Janeiro, a nova proposta da entidade constituiu-se a partir da inspiração nas experiências paulistas que miravam o sistema cooperativo uruguaio de produção habitacional. Por meio de um intercâmbio com organizações e movimentos sociais de São Paulo e do Uruguai, a ONG passou a trilhar o caminho de conformar projetos de produção habitacional sob a gestão dos futuros moradores. O sistema uruguaio de cooperativas de moradia – que se tomava como referência em São Paulo e no Rio – baseia-se na formação de grupos que irão se responsabilizar pela gestão da construção coletiva de suas próprias habitações. Uma ideia-mestre do sistema é instituir mecanismos que organizem a autoconstrução isolada da habitação, mecanismo tão característico da formação urbana dos países latino-americanos, como o Uruguai e o Brasil (NAHOUM, 1984). A cooperativa deve constituir-se juridicamente, ter acesso a um terreno urbanizado que permita o desenvolvimentodos elementos projetuais prévios à obra, os quais são elaborados por um grupo técnico contratado pela cooperativa. Esta é responsável por todo o processo de obra, realizando a gestão de um empréstimo estatal (de larga duração, em torno de vinte a trinta anos) para a viabilização do projeto construtivo. As duas principais modalidades de participação dos sócios da cooperativa na obra são a ajuda mútua e a poupança prévia. Na primeira, as cooperativas utilizam o aporte de mão-de-obra dos próprios sócios durante toda a construção coletiva do projeto. Já nas cooperativas por poupança prévia, a participação se realiza através da 17 constituição de uma contrapartida monetária em complemento ao financiamento estatal. A obra se organiza por meio de regulamentos e comissões, sendo o processo de compra de insumos e de prestação de contas planejados e executados de forma coletiva. Ao concluir-se a construção habitacional, o sistema uruguaio prevê a adoção da propriedade coletiva, das unidades de moradia, pela cooperativa. Enquanto uma modalidade de uso e gozo, cada cooperado tem a propriedade de um capital social, o qual lhe dá direito a habitar uma unidade habitacional. A modalidade coletiva da propriedade configura-se, historicamente, enquanto a principal forma de propriedade adotada pelas cooperativas de moradia no Uruguai. A organização social do sistema também se ancora na constituição de federações representantes das cooperativas, as quais desempenham um importante papel enquanto movimento social da sociedade civil. *** Já em meados da década de 1990, a Fundação Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião (que naquele momento alterara sua constituição jurídica de Centro para Fundação) empreendeu três experiências piloto que claramente concretizavam a referência ao sistema uruguaio de cooperativas de moradia. Shangri- lá, em Jacarepaguá, Colméia, em Campo Grande, e Pixuna, na Ilha do Governador, foram os primeiros grupos que construíram suas próprias moradias tendo como referência a modalidade de ajuda mútua do cooperativismo de moradia uruguaio. Sem ainda adentrar os detalhes dos projetos levados à cabo no Rio de Janeiro, uma primeira e rápida comparação entre os resultados urbanos do sistema uruguaio e aqueles constituídos no Rio de Janeiro – com referência a este sistema – aponta para algumas diferenças substanciais. Distinções que se sobressaem ao olho do observador quando tomados os princípios referenciados no Rio de Janeiro e as concretizações alcançadas em termos de produção do ambiente urbano. O ganho de escala, por exemplo, não ocorreu como na primeira década no Uruguai. Os projetos 18 coordenados pela Fundação Bento Rubião somavam não mais que uma dezena de grupos assessorados, enquanto que, no país vizinho, em sua primeira década já se conformavam mais de trezentos (PERAZZA, 1978, p. 128). Se o conjunto de experiências no Rio de Janeiro não ganhou escala como no Uruguai, de certa forma aplicou diversos motores do cooperativismo de moradia nos projetos desenvolvidos. Tomando como principal referência a modalidade da ajuda mútua, as formas de organização do canteiro e da mão-de-obra, o princípio da discussão participativa dos projetos arquitetônico e urbanístico, além dos mecanismos de compra de insumos da construção e de gestão de recursos financeiros, sinalizam a clara referência ao contexto uruguaio. É a partir de uma certa inquietação proporcionada por um primeiro cotejamento entre o sistema uruguaio de cooperativas de moradia e a inspiração que se constituiu na região metropolitana do Rio de Janeiro, que se formularam as questões de pesquisa e que moveram o desenvolvimento desta tese. Inquietação que se fez sentir ao se observar a referência aos princípios do sistema uruguaio no contexto carioca e as concretizações em termos de produção do espaço urbano, geradas nas precárias condições de vida na metrópole do Rio de Janeiro. Inquietação, por fim, que fez pensar para além de uma rápida constatação que se ancora nas distinções entre os polos analisados, fazendo emergir indagações que intentaram constituir uma abordagem sob novas perspectivas. 1.1 O plano de análise As iniciativas de organização da produção do ambiente urbano em propostas autogestionárias – como aquelas do Uruguai e do Rio de Janeiro – estão inseridas em um complexo e denso processo de urbanização da América Latina que ocorreu no último século. Na periferia do “sistema mundial moderno” que se formou a partir do século XIX (FIORI, 2008), o fenômeno da urbanização acelerada e massiva dos países dessa periferia caracterizou-se pela conformação de formas precárias de urbanidade para enormes parcelas da população (DAVIS, 2006). Sob diversas 19 especificidades, o acesso a condições inadequadas de infraestrutura urbana e de moradia estruturaram o habitat das cidades latino-americanas. Dentre uma ampla literatura que abordou o intricado processo da urbanização desse continente, um aspecto abordado por Kowarick (1993), acerca das condições de reprodução da força de trabalho nessa região, deve ser retido para a compreensão sobre a constituição do plano onde emergiram as questões de pesquisa. Segundo a argumentação do autor, o trabalhador das cidades latino-americanas, a partir da segunda metade do século XX, encontra-se submetido às condições de exploração capitalista que não se encerram no âmbito das relações de trabalho. Os mecanismos de exploração e de deterioração da vida se processam, também, no meio urbano, configurando-se no que denominou como “espoliação urbana”. A dimensão da exploração capitalista, nesse sentido, também se verifica nas próprias condições de reprodução da força de trabalho. Desse modo, a espoliação urbana configura-se no “somatório de extorsões que se operam através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo [...] e que agudizam ainda mais a dilapidação realizada no âmbito das relações de trabalho” (KOWARICK, 1993, p. 62). As condições de urbanização da periferia do sistema mundial moderno ampliam, nesse sentido, o processo de exploração do trabalhador latino-americano. O ambiente urbano, então, conforma-se em um emaranhado de situações caóticas que desenham a exceção na conformação dos territórios periféricos das grandes cidades desse continente. A autoconstrução das moradias populares, as condições insalubres do aluguel em áreas centrais, a ausência de soluções adequadas de acesso à agua e tratamento de esgoto, por exemplo, são a expressão de determinada produção de urbano que, em quase nada, é residual em relação ao desenvolvimento do sistema capitalista e ao processo de urbanização correlato. Como acena o fenômeno da persistência do processo, após mais de um século de urbanização, a precarização das condições de produção do espaço urbano nas cidades latino-americanas mostra-se funcional à própria expansão do sistema capitalista. Como já apontaram os trabalhos seminais de Francisco de Oliveira (2003), a funcionalidade da precariedade urbana vale-se do barateamento da força de trabalho 20 por meio do seu processo de superexploração. Adotando-se a perspectiva do autor, a existência de uma economia urbana de subsistência (expressa no “inchaço” do setor terciário da economia, por exemplo), ou mesmo práticas de expansão do território periférico (por meio da autoconstrução isolada da moradia), exerceram (e exercem) o papel de rebaixar o custo de reprodução da força de trabalho. Assim é que os mecanismos de superexploração e de espoliação urbana da força de trabalho latino-americana ensejaram práticas de produção do ambiente construído a partir da própria organização popular. Segundo Maricato (1982), a produção periférica dos territórios urbanos é a única saída para grande parte da população, pois se a habitação, a chamada infraestrutura urbana,e os equipamentos constituem mercadorias, se a política habitacional é centralizadora e elitista, e se por outro lado o salário é mantido a um nível abaixo daquele que permitiria a compra desses bens, as necessidades são em grande parte supridas pela prática da autoconstrução ou não são supridas (MARICATO, 1982, p. 82). Desse modo, um vasto espaço urbano foi erigido nas cidades latino-americanas por meio de processos realizados à margem da regulação urbanística e sob o próprio esforço da população superexplorada. Coraggio (1998) discute como, nesses territórios periféricos, subjaz uma lógica econômica específica em que a construção do ambiente urbano (por meio da produção da própria moradia ou de infraestrutura comunais), enseja uma forma específica de acumulação sob a esfera da economia doméstica. Ao distinguir três lógicas econômicas – que atravessam o sistema capitalista de produção de riquezas –, quais sejam, a economia empresarial capitalista, a economia pública e a economia popular, esta última é a que predomina nos territórios periféricos. Pouco compreendida pelos estudos econômicos clássicos, o que caracteriza a economia popular é a presença das unidades domésticas, “que dependen principalmente del ejercicio de su trabajo para lograr su reproducción biológica y cultural” (CORAGGIO, 1998, p. 73). As unidades domésticas, enquanto organizações básicas da economia popular, mantêm seu processo de reprodução por meio da utilização de seu fundo de trabalho, conformado pela própria capacidade de trabalho dos membros da unidade. O fundo de trabalho é utilizado pelas unidades domésticas 21 para diversos fins, sendo que aqueles que visam sua reprodução constituem boa parte do que se produz no ambiente urbano periférico. Ao identificar que o processo de reprodução das unidades domésticas – a qual implica, sob a lógica especifica da economia urbana, a produção social do habitat periférico – a partir de seu caráter ampliado, Coraggio aponta para as possibilidades que se abrem para as diversas formas de organização da economia popular. O caráter ampliado da reprodução das unidades domésticas, portanto, significa que não há um nível básico de necessidades, senão uma busca pela melhora da qualidade de vida sem limites intrínsecos, permeada pela introjeção múltipla de valores e concepções2. Nesse sentido é que pode afirmar que a economia popular inclui não só a utilização do trabalho, como também de “activos fijos -vivienda/local de habitación- [...] e intangibles -conocimientos técnicos, etc.- que han ido acumulándose en función del objetivo de la reproducción de la vida en condiciones tan buenas como sea posible” (CORAGGIO, 1992, p. 10). Desse modo é que a compreensão sobre as especificidades desse processo permite vislumbrar que “la economía popular no es una alternativa pobre para pobres, sino un subsistema orgánico de elementos socialmente heterogéneos, dotado de un dinamismo propio, competitivo y de alta calidad” (CORAGGIO, 1998, p. 11). A partir de tal perspectiva de Coraggio, dentro de uma aposta na organização da economia popular urbana em patamares mais solidários, é possível identificar a emergência de um conjunto de práticas que pretendem promover um novo caráter à autoconstrução periférica do ambiente urbano das cidades latino-americanas. Trata- se de práticas reunidas dentro de que se convencionou denominar como “produção social da moradia e do habitat”, cuja constituição pode ser identificada na segunda metade do século XX3. Distinguindo-se das lógicas de produção habitacional e da 2 Como o próprio autor adverte, esse caráter da reprodução ampliada se dá em grande medida pela introjeção de valores da propaganda mercantil e pela construção social das necessidades pelos movimentos culturais da sociedade. Assim é que se deve ter em consideração, de acordo com sua perspectiva, que não se pode afirmar “que en el interior de la economía popular no haya explotación ni intercambio desigual (por ejemplo sobre bases de género, edad o etnia), pero no se hacen con los mecanismos propios de la explotación capitalista de plusvalor” (CORAGGIO, 1998, p. 77). 3 Como aponta o estudo de Flores (2012), realizado no começo dos anos 2000, a produção social da moradia e do habitat, no contexto latino-americano, fundamenta-se “en múltiples prácticas desarrolladas a lo largo de medio siglo y en algunos documentos que han venido contribuyendo a la conceptualización y orientación operativa de esta forma de producción” (FLORES, 2012, p. 11). 22 cidade por meio da forma privada mercantil e da forma estatal, a produção social, segundo Flores (2012), caracteriza-se pelos seguintes aspectos, quais sejam, produce sin fines de lucro, por iniciativa y bajo el control de autoproductores y desarrolladores sociales, viviendas y conjuntos habitacionales que adjudica a demandantes individuales u organizados (principalmente de bajos ingresos), que en general son identificados y participan activamente desde las primeras fases del proceso habitacional (FLORES, 2012, p. 25). A produção social do habitat, assim, distingue-se dos processos clássicos de autoconstrução, pois envolve não só o aspecto produtivo do ambiente urbano, mas primordialmente o controle sobre todas as suas dimensões de gestão. Desde tal perspectiva é que Flores afirma, dentro dessa distinção, que só se pode falar de produção social do habitat “cuando las tareas de autoconstrucción que asume un grupo organizado son decisión y quedan bajo el control del propio grupo y son contabilizadas como aporte de sus participantes al financiamiento” (FLORES, 2012, p. 27). A produção social do habitat implica, portanto, um conjunto de práticas muito heterogêneas entre si. É possível identificar dimensões distintivas que acionam determinadas formas de participação dos próprios beneficiários, modalidades construtivas e mecanismos institucionais de organização dos variados componentes do processo produtivo. Dessa forma, pode-se compreender a produção social do habitat enquanto um “projeto político” específico na estruturação do ambiente urbano latino-americano, o qual se consubstancia em formas autogestionárias de se constituir a vida na cidade. Ao adotar-se como referência o conceito de projeto político para compreender a heterogeneidade da produção social do habitat, frisa-se um aspecto central posto por Dagnino (2004). Segundo a autora, um projeto político constitui-se nos “conjuntos de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do que deve ser a vida em sociedade, que orientam a ação política dos diferentes sujeitos” (DAGNINO, 2004, p. 98). Assim, busca-se apontar, por um lado, para a pluralidade de “concepções de mundo” que atravessa o projeto de produção social do habitat. Por outro, salienta como este projeto heterogêneo modula-se em uma forma conjunta de ações políticas sobre a produção dos territórios populares das cidades latino-americanas. Nesse aspecto plural do projeto político da produção social do habitat é que se ancoraram as questões que moveram a pesquisa. 23 1.2 As questões da pesquisa Retomando a atenção sobre os resultados urbanos do sistema uruguaio de cooperativas de moradia e aqueles das experiências de autogestão habitacional empreendidas no Rio de Janeiro, a inquietação que emergiu desde então trouxe à tona uma instigante questão para reflexão. O que poderia explicar resultados – em termos de produção do ambiente urbano – um tanto quanto díspares, se os princípios tomados em consideração eram oriundos de um mesmo embasamento? Em outros termos, se o conjunto de experiências do Rio de Janeiro constituiu-se tendo como referência os princípios do sistema uruguaio de cooperativas de moradia, a indagação ancorou-se em considerar o que levaria a que os resultados urbanos, em termos de escala e de organizaçãoinstitucional, por exemplo, tomassem uma configuração distinta. A partir da inspiração em um sistema que, aparentemente, mostrou-se sólido e exitoso em seu início, como explicar as características tão próprias do que foi desenvolvido no Rio de Janeiro? Uma primeira indicação de caminhos a tentar se trilhar para refletir sobre essas questões poderia se valer de uma espécie de “análise por ausências”. Considerando os elementos modulares que constituem as “chaves” do sistema uruguaio de cooperativas de moradia (NAHOUM, 2013e), seria possível enveredar sobre as ausências a serem evocadas no que se constituiu no Rio de Janeiro. Seja, por exemplo, na adoção da propriedade individual em detrimento da forma coletiva – ou mais especificamente, “de uso e gozo” –, seja no diminuto volume de financiamento estatal disponibilizado. Tais ausências poderiam indicar, desse modo, a escassez de aportes de recursos financeiros compatíveis para o ganho de escala e a falta de uma base organizativa que proporcionasse o surgimento de um movimento social – como as federações de cooperativas, assentadas naquelas sob a forma de propriedade coletiva – que reivindicasse a consolidação desse sistema. Assim também seria possível verificar como, diferentemente do Uruguai, a assunção de uma ONG enquanto promotora das experiências piloto – no caso do Rio de Janeiro, a Fundação Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião – assumiu um papel diferente daquela do Uruguai nas experiências piloto – o Centro 24 Cooperativista Uruguayo. Ao justamente desempenhar papéis que não se restringiram àquele de assessoria técnica – ao qual se ateve esta última nos referidos pilotos da década de 1960 –, a iniciativa da entidade carioca levaria à configuração das propostas autogestionárias de produção habitacional a certas especificidades em diversas dimensões dos processos organizativos dos projetos, tais como as formas decisórias sobre compra de insumos e gerenciamento de recursos financeiros, por exemplo. Portanto, adotando como perspectiva uma visada exterior ao conjunto das experiências analisadas, o caminho deste ponto de vista estabeleceria o sistema uruguaio como referência para sublinhar as distinções do caminho adotado no Rio de Janeiro, procedendo, então, a analisar as implicâncias nos resultados auferidos4. Trata-se de um caminho que perseguiria algumas análises que vem sendo trilhadas no sentido de iluminar a influência uruguaia no contexto brasileiro. São diversos e profícuos os trabalhos que abordaram a transposição de determinados elementos desse sistema para a experiência brasileira, reconstituindo, em alguns casos, os modos como algumas formas de organização do canteiro de obra, por exemplo, compartilharam muitas das desenvolvidas no modelo uruguaio5. Porém, essa primeira perspectiva apenas aguçou ainda mais as inquietações provocadas. Por um lado, mostrou-se útil para solidificar a ancoragem da indagação inicial formulada. Por outro, não iluminou um roteiro para se mergulhar no conhecimento sobre a inquietação inicial. Ao manter e observar com maior acuidade o ponto de reflexão em torno da indagação inicial, um segundo conjunto de questões começou, então, a se delinear. Assim é que ao se interrogar mais detidamente as circunstâncias e especificidades que envolviam a adoção – ou ausência desta – de alguns “elementos chave” do sistema uruguaio de cooperativismo de moradia, pelo rastro das experiências desenvolvidas no Rio e Janeiro, um novo campo de reflexão foi se conformando. Nesse sentido, por exemplo, ao tomar mais detidamente o modo como a “forma cooperativa” foi incorporada nos projetos do Rio de Janeiro, uma sequência de 4 Tal seria uma trilha a seguir a partir das indicações da extensa pesquisa de Flores (2012) sobre as variadas conformações do modo como se realiza a produção social do habitat na América Latina e Central. 5 Vide, por exemplo, Baravelli (2006) e Coletivo Usina (2012). 25 indagações se direcionaram para além da abordagem comparativa. Qual configuração do corpo de normas legais marcaria a trajetória do cooperativismo no Brasil? Quais forças sociais e políticas atravessariam o campo do cooperativismo de moradia no momento de instituição da proposta inicial da Fundação de Direitos Humanos Bento Rubião? Como compreender as escolhas no arranjo institucional adotado que escaparam ao âmbito do cooperativismo? Ou, voltando-se para o contexto uruguaio, quais as especificidades do campo uruguaio em torno ao cooperativismo, que desembocaram na constituição da vertente habitacional nos anos 1960? Outro exemplo do conjunto de questões que emergiu atou-se à própria atenção sobre os atores sociais que empreenderam essas experiências. Ao observar mais detidamente o surgimento do sistema uruguaio, foi possível identificar, ainda embrionariamente, como este foi marcado pela presença de uma classe trabalhadora estável e sindicalizada. Logo em seguida, tomando o Rio de Janeiro, observava-se como as experiências surgiram com atores do campo da “favela”, atravessado por configurações distintas quanto à inserção no mundo do trabalho e às práticas de organização política. Assim, como pensar as implicações das configurações distintivas na conformação social e política, transversal aos atores que protagonizavam todas essas experiências, na organização dos projetos habitacionais autogeridos? Uma grande questão se originou ao indagar em que sentidos a formação dos grupos, os mecanismos da participação nas decisões gestionárias e de aporte de mão-de-obra, por exemplo, modulavam-se desde tais configurações distintas no campo da constituição dos diferentes atores sociais. Desse modo é que tal redirecionamento no enfoque de questões parecia indicar uma abordagem que se assentasse para além da perspectiva comparativa entre os módulos dos casos analisados. De certa forma, esse novo enfoque fazia um convite a se pensar o “exterior” de onde essas experiências emergiam e constantemente se reorganizavam. Tratava-se de refletir sobre as especificidades do terreno onde se movimentam tanto o sistema uruguaio de cooperativas de moradia quanto as experiências de autogestão habitacional no Rio de Janeiro. Compreender a configuração do campo de movimentação desses dois conjuntos de propostas de produção social do habitat envolveria identificar questões que são postas e repostas para a constituição desses projetos. Tensões e dilemas que, sob diversos sentidos, podem ou não ser compartilhados, ser similares ou distintos, em cada um dos casos. 26 Nessa perspectiva, a abordagem desenvolvida pela pesquisa – instigada pelo novo conjunto de indagações – foi configurando um direcionamento que se debruçou sobre o próprio terreno da formação social desses conjuntos de experiências. Tratou- se de analisar o que se passou a denominar, um tanto provisoriamente, como as “bases” da produção social do habitat. Uma abordagem sobre tais “bases” operaria o deslocamento do olhar para além do enfoque comparativo, fazendo pensar algumas das próprias especificidades das configurações sociais, políticas e econômicas de onde emergem os projetos de produção social do habitat em análise. Não se conceberia, portanto, um sistema em formas acabadas, como a se proceder com a eleição do cooperativismo uruguaio enquanto fonte privilegiada de inspiração das experiências do Rio de Janeiro. A análise se deslocou a fixar os embates entre forças sociais e políticas que atravessam o projeto político da produção social do habitat em contextos distintos. Um embate que só poderia ser melhor compreendido quando esquadrinhadas algumas questões essenciais que são postas pelos terrenos onde esses sistemas se movimentam. Assim, compreender as “bases” da produção social do habitat ancorou-se em analisar as características da formação socialonde emergem esses projetos. Correlata a essa perspectiva, a abordagem da pesquisa buscou realizar um segundo movimento analítico. Se, como posto anteriormente, o projeto político é constituído por uma pluralidade de visões de mundo – ou seja, não está ausente de conflitos internos – então a perspectiva também deveria iluminar a própria maquinaria interna desses sistemas. Desse modo é que, para compreender com maior acuidade as formas como se trabalham as questões postas pelas próprias bases, buscou-se considerar o próprio funcionamento interno desse projeto político, em seu atravessamento pelas questões específicas postas por cada contexto. Dessa forma organizou-se uma alternativa possível para se escapar da “análise por ausências”, de modo a iluminar os momentos de inovação, criação e ressignificação de concepções e práticas que envolvem projetos autogestionários de produção do ambiente urbano. Conforma-se, assim, um convite a pensar o sentido da constante busca pela recriação e reformulação que caracterizam os sistemas de produção social do habitat – os quais tem o traço da flexibilidade, como mostra Flores (2012). Visualiza-se, desde tal ângulo de abordagem, a amplitude de sentidos, por 27 exemplo, que se revestem as inúmeras inovações do sistema cooperativo uruguaio, como nas dimensões que se abriram a partir da propriedade coletiva e seu impacto sobre o tecido associativo da sociedade civil. Ou como as experiências do Rio de Janeiro inseriram-se nas reconfigurações da cena política das favelas cariocas durante a abertura democrática, e o seu significado em termos de luta por autonomia e autodeterminação na produção do ambiente construído. Nessa perspectiva é que a pesquisa foi levada justamente a tentar perscrutar os momentos onde emerge a “política” na estruturação do espaço urbano das cidades latino-americanas. Mais especificamente, trata-se de tentar seguir alguns dos instantes em que a ação política do projeto de produção social do habitat torna-se saliente nos embates pela própria produção da cidade. Procurar sinalizar alguns dos instantes em que se identifica a “política” na construção do habitat significa ter em consideração um sentido especial sobre esse conceito de “política”. Refere-se a pensá-la no sentido da produção do novo, de ruptura com o estabelecido, de proposição de novos horizontes em meio à desigualdade e à precariedade na estruturação dos territórios periféricos do sistema mundial moderno. A inspiração aqui se ancora nos escritos de Hannah Arendt sobre o conceito de política6. Esta, na concepção da autora, relaciona-se à dimensão da liberdade, que permite a possibilidade do sempre recomeçar, do que pode nascer e ressurgir. Em um dos seus trabalhos, a autora salienta que o sentido da política é a “liberdade”, sendo que “o milagre da liberdade está contido nesse poder-começar que, por seu lado, está contido no fato de que cada homem é em si um novo começo” (ARENDT, 1998, p. 43). Como comenta Keinert (2005, p. 27), “a concepção da ação política como ação livre comporta em Hannah Arendt um traço de indeterminação que está na raiz da possibilidade, em princípio, sempre aberta, de criação na história, dos novos começos”. Pois a vida política, para Hannah Arendt, está estritamente conectada a uma atividade humana fundamental: a ação. A ação configura-se como a única que se 6 Não se configura uma operação fácil fazer pensar a ideia de política no pensamento de Hannah Arendt. Como bem coloca o trabalho de Keinert (2005, p. 18) sobre a obra da autora, “compreender o conceito de política em Hannah Arendt não se constitui em uma tarefa simples. Trata-se de uma noção que envolve uma complexidade significativa, sendo, portanto, pouco plausível uma definição categórica do termo”. 28 exerce diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas e, por isso, “o fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável” (ARENDT, 2007, p. 190). Compreendida a política pelo signo da natalidade, da infinita possibilidade do surgimento do novo pela ação do homem, pode-se ampliar a noção tomada em perspectiva nas indagações deste trabalho. Nesse sentido, “como a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode constituir a categoria central do pensamento político” (ARENDT, 2007, p. 190). E pensar tal sentido específico da política possibilita referir-se, também, às reflexões do filósofo Jacques Rancière sobre a política. Seguindo algumas de suas questões, a política somente poderia ser identificada em raros momentos, muito especiais e específicos. Pois, segundo o filósofo, a política “é a atividade que tem por racionalidade própria a racionalidade do desentendimento” (RANCIÈRE, 1996, p. 14), isto é, enquanto instauradora do dano na sociedade. Assim, ela somente existe naquelas ocasiões em que se rompe a própria organização estabelecida por aqueles que participam de uma ordem desigual de distribuição da riqueza na comunidade. Ou seja, quando a “parcela dos sem parcela” instaura o dano na “partilha do sensível”, considerado enquanto o modo como se distribui a vida em sociedade, adotando-se aqui os termos do próprio autor7. Assim, a política não é vista como resultado, mas como a atividade que “desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho, faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho” (RANCIÈRE, 1996, p. 42). Portanto, neste trabalho, tenta-se perseguir aqueles momentos onde a política emerge a partir do projeto político da produção social do habitat, focalizando os instantes de atividade criadora, destarte efêmeros e instituidores do dano na divisão da riqueza da sociedade. 7 Como aponta Rancière, “há política — e não simplesmente dominação — porque há uma conta malfeita nas partes do todo” (RANCIÈRE, 1996, p. 25). Porém, “o dano pelo qual existe política não é nenhum erro pedindo reparação” (RANCIÈRE, 1996, p. 33), ou seja, a política não é a compensação da igualdade na sociedade, senão o momento anterior em que se instaura o próprio questionamento sobre a desigualdade dessa sociedade. 29 1.3 Metodologia de pesquisa Ao adotar a perspectiva da questão de pesquisa, algumas considerações foram realizadas para circunscrever a abordagem metodológica de investigação. Por um lado, abordar as bases da produção social do habitat poderia levar a infinitas escavações sobre o terreno por onde se movimentam o sistema uruguaio de cooperativas de moradia e as experiências de autogestão habitacional no Rio de Janeiro. Assim, por exemplo, ao buscar perscrutar as diferenças entre o campo de constituição dos grupos pioneiros, uma abordagem necessária referia-se ao mundo do trabalho. No Uruguai, o impulso à formação do primeiro ciclo cooperativo foi alimentado por uma classe operária estável e sindicalizada. No Rio de Janeiro, as experiências surgiram do campo de reorganização da vida associativa e das políticas públicas urbanas envolvendo a questão da favela. Uma análise sobre as diferentes constituições do mundo do trabalho entre o Uruguai e o Brasil – tendo como foco o Rio de Janeiro –, poderia levar, assim, a uma investigação quase sem fim. Temas como a constituição das organizações sindicais e suas especificidades na relação com o estado, por exemplo, já poderia ocupar todo o escopo analítico. Adotou-se, então, o partido de abordar os aspectos mais estratégicos que emergiram a partir do cotejamento entre os dois casos. Intentou-se colher e identificar pontos que poderiam ser analisados enquanto questões chave para trazer elementos que fizessem pensara questão de pesquisa. Retornando ao exemplo anterior, procurou-se se ater aos aspectos das diferenças referentes ao mundo do trabalho no que se ativessem ao cooperativismo de moradia, identificando as especificidades da formação sindical uruguaia e em quais dimensões esteve presente na organização embrionária do sistema. Já no Rio de Janeiro, buscou-se compreender as principais linhas da organização sindical no período de emergência das experiências piloto e demarcar a distância que mantiveram em relação ao tema da autogestão habitacional. Desse modo, tentou-se delimitar as especificidades da relação entre a matriz sindical e as propostas de autogestão habitacional na metrópole carioca. Como consequência dessa modelagem metodológica é que se foi constituindo uma pesquisa de caráter experimental (TELLES, 2006), a qual, em seu 30 desenvolvimento foi moldando a delimitação dos âmbitos de análise. Desde tal perspectiva é que a forma de escrita do texto se aproximou da “forma ensaio”, inclinando-se a uma certa liberdade para reflexão que procura escapar da ancoragem em conceitos estáticos, abrindo-se à uma constante exploração de distintos caminhos reflexivos. Seguindo o sentido dado por Adorno (2003, p. 25) à “forma ensaio”, esta “não almeja uma construção fechada, dedutiva ou indutiva”. Assim, trilhar o caminho de formas mais experimentais de pesquisa levou a que se distanciasse das pretensões de completude e de continuidade na estruturação da escrita do texto. Sem se eximir da perspectiva de criação de conhecimento, “o ensaio deve permitir que a totalidade resplandeça em um traço parcial, escolhido ou encontrado, sem que a presença dessa totalidade tenha de ser afirmada” (ADORNO, 2003, p. 35). Deve-se ainda ter em consideração que a análise comparativa entre contextos tão distintos colocou graves questões metodológicas para a organização da pesquisa. Ao se propor analisar o conjunto de experiências de produção social do habitat no Rio de Janeiro, sob inspiração no sistema uruguaio de cooperativas de moradia, esta deparou-se com a questão sobre a diferença no número de projetos executados e na organização institucional em relação ao sistema uruguaio. Dados do Censo de Cooperativas do Uruguai de 2009 indicavam que existiam quase seiscentas cooperativas terminadas no país. No Rio de Janeiro, as experiências com inspiração no sistema uruguaio não chegam a uma dezena. Além disso, a propriedade coletiva experimentada em alguns projetos no Rio de Janeiro se assenta em um caráter informal, existindo algumas organizações que persistiram ao final das obras, mas não com o viés sistemático que foi desenvolvido no Uruguai. Dessa maneira, a pesquisa de campo, em cada contexto, foi realizada segundo metodologias específicas, o que não permitiu replicar procedimentos metodológicos em ambas conjunturas. *** No Rio de Janeiro, a pesquisa teve seu início no ano de 2014 e se estendeu até o início de 2016. Uma primeira etapa contou com a aproximação inicial junto ao campo de pesquisa. Por meio de uma revisão bibliográfica sobre experiências de 31 produção social do habitat na região metropolitana do Rio de Janeiro constituiu-se uma dupla sinalização: a constatação do pouco material de análise produzido até então sobre o tema e a identificação dos primeiros caminhos que a pesquisa poderia trilhar8. Após o contato com essa literatura, adotou-se o caminho de seguir aquelas experiências que haviam posto o sistema uruguaio de cooperativas de moradia como referência de suas práticas e concepções. Para tanto, procedeu-se a uma aproximação com técnicos e militantes em torno da Fundação Centro de Defesa de Direitos Humanos Bento Rubião e da União por Moradia Popular (UMM) do Rio de Janeiro, que a literatura consultada indicava terem adotado como inspiração o sistema uruguaio de cooperativas de moradia. Deve-se ter em consideração que a pesquisa, nesse momento, realizou uma escolha dentre uma gama de experiências de produção social do habitat que tem como trajetória de efetivação o território a metrópole carioca. Para além das analisadas nessa tese, identificou-se outras como aquelas realizadas junto ao Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) ou do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), por exemplo9. A pesquisa, portanto, seguiu o rastro de uma parte das experiências de produção social do habitat no Rio de Janeiro, as quais colocavam de forma explícita a referência ao sistema uruguaio. A segunda etapa de pesquisa iniciou-se com a realização de um aprofundamento no contato com as experiências selecionadas. A partir da oportunidade de participação, em meados de 2014, em uma pesquisa junto à Fundação Bento Rubião sobre a experiência recente de produção social da moradia no Brasil10, foi se aprofundando o conhecimento sobre a trajetória dos projetos da 8 Esta primeira revisão bibliográfica mostrou que há uma análise mais ampla e numerosa sobre o processo similar que se iniciou na região metropolitana de São Paulo, a partir da década de 1980. Ao longo do texto serão citadas as principais referências sobre a produção acadêmica acerca do Rio de Janeiro 9 Cujos trabalhos de Mello (2015) e Teixeira (2012) são exemplos de análise das ocupações em áreas centrais da cidade do Rio de Janeiro junto ao MNLM. 10 A pesquisa foi desenvolvida pela Fundação de Direitos Humanos Bento Rubião, com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos – FINEP e sob responsabilidade do Observatório das Metrópoles (IPPUR/UFRJ). 32 entidade. Assim, até o início de 2015 foi possível empreender algumas atividades de campo que foram estratégicas para a pesquisa. Dentre tais atividades, primeiramente destaca-se uma pesquisa de campo exploratória em três projetos desenvolvidos pela Fundação Bento Rubião. Em abril de 2014 em Ipiíba, no município de São Gonçalo, foram acompanhadas as ações preparatórias para um novo projeto em vista de se desenvolver junto ao terreno de uma experiência já executado anteriormente. Em outubro de 2014 empreendeu-se uma visita ao grupo Shangri-lá, cuja obra foi finalizada no começo dos anos 2000, com a realização de conversas informais com os moradores. De forma mais sistemática, houve o acompanhamento, entre o final de 2014 e o começo de 2015, de três assembleias do Grupo Esperança, em Jacarepaguá, naquele momento em término de obras. O acompanhamento das assembleias do grupo permitiu aprofundar o conhecimento sobre a organização do processo de obra e de gestão do projeto, além de proporcionar momentos de conversas informais com os membros do grupo. Além desse trabalho de campo com caráter mais exploratório, foram realizados mais três momentos de entrevistas com viés mais sistemático, a partir de um roteiro de questões previamente elaboradas. Uma primeira ocorreu com o ex-coordenador executivo da Fundação Bento Rubião, levada à cabo em abril de 2015, por meio da qual foi possível obter uma visão panorâmica sobre os projetos desenvolvidos pela entidade. Outras duas entrevistas adotaram uma forma coletiva. A primeira ocorreu com técnicos da Fundação Bento Rubião, em abril de 2015, sobre o histórico dos projetos e sobre aquele em execução no momento. E outra foi realizado com membros da comissão de coordenação do Grupo Esperança, em junho de 2015, abordando-se alguns detalhes do projeto. *** 33 A pesquisa de campo no Uruguai iniciou-se na primeira metade do ano de 201511. A partir de uma revisão bibliográfica sobre o sistema uruguaio de cooperativas de moradia, foi empreendida uma primeira visita exploratória à Montevidéu em março desse ano12. A pesquisa foi realizada em um intenso período de campo, de cinco dias. Essa viagem envolveu uma aproximação de campo exploratória em algumas cooperativas, organizada pelo professor Raul Vallés da Facultad de Arquitecturay Diseño Urbano da Universidad de la Republica. Foram visitadas as seguintes cooperativas: Complejo Bulevar Artigas, VICMAN e Mesa 1, sendo as duas primeiras de poupança prévia e a última de ajuda mútua. Posteriormente foram realizadas entrevistas semiestruturadas com alguns técnicos de instituições consideradas chave para aprofundar determinadas questões identificadas na revisão bibliográfica. Foram entrevistados um assessor da Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua (FUCVAM) e pesquisador da Universidad de la Republica, dois dirigentes da Federación de Cooperativas de Vivienda de Usuarios por Ahorro Previo (FECOVI), uma pesquisadora da Unidad Permanente de Vivienda, que trabalha no campo de cooperativismo de moradia, um arquiteto do Centro Cooperativista Uruguayo (CCU) e um técnico da Agencia Nacional de Vivienda (ANV). Por fim, nessa primeira visita foi possível realizar entrevistas semiestruturadas com representantes de três cooperativas: um sócio fundador do Complejo José Pedro Varela, um membro do conselho diretivo da COVICIVI (uma cooperativa de reciclagem de um prédio histórico) e dois sócios de uma cooperativa em construção, COVIVEMA V13. 11 Deve-se ressaltar, nesse ponto, que a pesquisa da tese tomou uma guinada para firmar-se na direção do aprofundamento sobre o sistema uruguaio de cooperativas de moradia a partir da participação no seminário “A arquitetura, o urbanismo e a moradia popular: o fazer projetual para além do produto”, realizado pelo IPPUR e pelo PROURB da UFRJ, em outubro de 2014. O referido seminário contou com a presença do professor Raul Vallés, da FADU-UDELAR, o qual apresentou um detalhado panorama sobre o sistema uruguaio, permitindo firmar as primeiras bases para a pesquisa de campo no país vizinho. 12 Realizada com recursos próprios em parceria com o arquiteto João Paulo Huguenin, o qual também havia participado da pesquisa junto à Fundação Bento Rubião, citada anteriormente. 13 A sistematização dessa pesquisa de campo permitiu a produção de um artigo científico que discutiu algumas questões embrionárias sobre a inspiração brasileira no caso uruguaio. A feitura desse artigo possibilitou a participação em um seminário de pesquisa em Montevidéu, intitulado “Seminario Movimientos Sociales en Movimiento”, realizado na Facultad de Ciencias Sociales da Universidad de la Republica, nos dias 11 e 12 de junho de 2015. O artigo foi escrito em parceria com o arquiteto João Paulo Huguenin. 34 Logo após essa primeira visita de campo foram realizadas duas entrevistas com atores chave com larga experiência no cooperativismo de moradia. Considerou-se que esses depoimentos seriam estratégicos para angariar informações aos objetivos da pesquisa, dada a trajetória profissional e pessoal dos entrevistados no campo da produção social do habitat. Em junho de 2015 foi empreendida uma entrevista com Gustavo González, um cooperativista que foi dirigente de FUCVAM e que atualmente trabalha junto ao Centro Cooperativista Sueco para a replicação da experiência uruguaia em outros países da América Latina. Já em outubro desse mesmo ano foi realizada uma entrevista com o arquiteto uruguaio Leonardo Pessina, o qual atuou no Centro Cooperativista Uruguayo durante um dos projetos pilotos dos anos 1960 e no assessoramento a cooperativas de moradia no início do sistema, e que, posteriormente, na década de 1980, trabalhou em projetos de mutirão autogestionários na região metropolitana de São Paulo. A primeira etapa de trabalho de campo no Uruguai proporcionou um conjunto inicial de materiais que possibilitou o aprofundamento sobre o conhecimento do sistema. Porém, ainda pairava no ar uma perspectiva de que o circuito explorado se concentrava naquele realizado para o conhecimento sobre o funcionamento modular do sistema. Para a abordagem das questões específicas da tese, vislumbrava-se ser necessário uma incursão mais aprofundada de campo, a qual permitisse uma abordagem mais próxima aos cooperativistas e uma exploração mais aprofundada de uma literatura existente somente no Uruguai. Assim, ao final de 2015 foi organizada uma proposta de estágio sanduíche no Uruguai, cuja concretização foi realizada entre os meses de junho e setembro de 2016, efetivando-se, desse modo, a segunda etapa de campo no Uruguai14. A pesquisa desenvolveu-se a partir de uma imersão densa, que se articulou desde uma dupla estratégia. Inicialmente, com a realização de uma revisão bibliográfica referente ao acervo disponível no próprio Uruguai. Em seguida, a partir de um conjunto de 14 O estágio sanduíche contou com uma bolsa concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), sendo orientado pelo professor Juan Pablo Martí, da Facultad de Ciencias Sociales da Universidad de la Republica. Deve-se frisar que a confirmação da realização do estágio, pela entidade de fomento, ocorreu somente quinze dias antes do período de início do estágio. Isso acarretou um forçoso redirecionamento do caminho da pesquisa, que naquele momento já se reconfigurava quanto à abordagem metodológica que se realizava no Rio de Janeiro, a qual teve que ser interrompida para a realização do estágio. Desse modo, dado o cronograma de feitura desta tese, não foi possível retornar ao aprofundamento da pesquisa no Rio de Janeiro. 35 entrevistas semiestruturadas com dois grupos alvo, o primeiro com representantes de instituições consideradas estratégicas para o funcionamento do sistema e o segundo com um conjunto de sócios de cooperativas. Antes de detalhar a metodologia desenvolvida nesta etapa, deve-se ressaltar que, no momento inicial do trabalho de campo, foi possível identificar que a pesquisa no Uruguai estava envolvendo, e envolveria, somente a cidade de Montevidéu. Tomou-se consciência de que as leituras e as análises realizadas até então se concentravam nas experiências de cooperativismo de moradia empreendidas em Montevidéu – e não no país como um todo. Além disso, a adequação da proposta de pesquisa de campo a ser executada indicou que somente seria factível centrar-se nos casos da capital uruguaia. Assim sendo, deve-se ter em consideração que a tese centra sua análise em Montevidéu, não abordando as experiências em outras regiões do país, como o litoral e o interior. Além disso, a tese centra-se somente nas modalidades de ajuda mútua e poupança prévia em regime de propriedade coletiva, não abordando aquelas de autoconstrução e de proprietários, também previstas na Lei Nacional de Moradia15. A realização de entrevistas com atores-chave do sistema cooperativo de moradia no Uruguai teve como objetivo angariar informações complementares àquelas realizadas na primeira ida a campo no ano anterior. As entrevistas foram então empreendidas com profissionais da área de trabalho social de Institutos de Assistência Técnica (IAT), os quais assessoram cooperativas de moradia e cuja atuação laboral poderia aportar informações com maior incidência sobre o perfil dos cooperativistas com os quais trabalham. Além dos técnicos dos IATs, também foram entrevistados contatos de dois órgãos estatais, cujas referências fornecidas indicavam que poderiam aportar informações estratégicas para os objetivos da pesquisa. Foram entrevistados gestores do Departamento de Trabalho Social do Ministerio de Vivienda, Ordenamiento Territorial y Medio Ambiente (MVOTMA) e do Instituto Nacional del Cooperativismo (INACOOP). Por fim, outra instituição que se decidiu entrevistar um representante foi a Confederación Uruguaya de Cooperativas (CUDECOOP), cujas 15 Deve-se, ainda, ter em consideração os diferentes níveis de análise de escala nos dois contextos abordados. Enquanto o Uruguai conforma-se em um país com uma populaçãode pouco mais de três milhões de habitantes, sendo que um terço habita a cidade de Montevidéu, a região metropolitana do Rio de Janeiro tem mais de onze milhões de habitantes, quase o triplo da população uruguaia. 36 informações sobre o movimento cooperativo no país se agregariam àquelas da entrevista com INACOOP. Para a pesquisa de campo junto às cooperativas de moradia, adotou-se a estratégia metodológica de realização de entrevistas semiestruturadas, com representantes da comissão de direção e sócios que não ocupassem, no momento, cargos de direção na cooperativa16. Decidiu-se pela realização de entrevistas com cooperativas dos dois sistemas construtivos baseados na propriedade coletiva das moradias, ou seja, por ajuda mútua e por poupança prévia. Para cada grupo formularam-se algumas perguntas específicas, devendo-se ter em consideração que há um maior número de experiências de cooperativas por ajuda mútua do que de poupança prévia (o que influenciou, como se constatará à frente, na delimitação do universo de entrevistas)17. Além dessa segmentação, estabeleceu-se uma configuração do universo de entrevistas por períodos históricos que marcam a trajetória do sistema uruguaio de cooperativismo de moradia. A periodização se fundamentou em trabalho Torrelli, Assandri, Marques e Martí (2015), o qual identifica as seguintes etapas, intituladas: a) o estabelecimento das bases e a rápida expansão (1969-1976), b) o desmantelamento do sistema (1977-1984), c) a inércia e mudanças do sistema, a recuperação democrática e a criação do MVOTMA (1985-2004) e d) a recriação das expectativas (2005 até hoje). Considerou-se que os dois primeiros períodos poderiam ser agrupados em um único, já que houve poucas experiências de cooperativismo de moradia com o desmantelamento do sistema a partir da ditadura militar de 1973. Assim, agrupou-se as cooperativas a serem alvo de entrevistas de acordo com os 16 A perspectiva adotada foi realizar um contato inicial com a direção para a organização de uma primeira entrevista sobre o histórico da cooperativa. A partir dessa entrevista se solicitaria o contato de dois sócios para a concretização de uma entrevista distinta sobre suas trajetórias de vida antes e depois da entrada na cooperativa. Pensou-se que um dos sócios a ser entrevistado tivesse uma trajetória de participação mais ativa na cooperativa (que houvesse participado de cargos em comissões em anos anteriores) e outro com participação menos ativa (que somente se engajou no período de obra, por exemplo). Com os dois primeiros sócios entrevistados verificou-se que o roteiro elaborado não proporcionaria a coleta de informações pretendidas. As respostas foram muito breves e pouco se explorou do conteúdo inquirido. Assim, resolveu-se descartar as entrevistas com os sócios, considerando-se, conforme avaliação do material coletado, que as entrevistas com as direções das cooperativas estavam proporcionando informações que superavam o previamente esperado. 17 Dados do Censo de Cooperativas de 2009 indicavam que cerca de 77% das cooperativas de moradia do Uruguai pertenciam à categoria de ajuda mútua e 22% a de poupança prévia (MACHADO, 2016). Como a pesquisa se delimitou à cidade de Montevidéu, considera-se que, como se verificará mais à frente, a relação de três entrevistas em cooperativas de ajuda mútua para uma em poupança prévia segue, em boa medida, a relação existente na realidade. 37 seguintes períodos históricos: o primeiro de 1969 a 1984, o segundo de 1985 a 2004 e o terceiro de 2005 a 2016. Por fim, definiu-se que o número de cooperativas passíveis de se realizar entrevistas dentro do cronograma de pesquisa seriam doze, sendo nove de ajuda mútua (três por cada período histórico) e três de poupança prévia (uma por cada período histórico). O quadro a seguir apresenta as cooperativas com as quais foram efetivamente realizadas entrevistadas, entre os meses de agosto e setembro de 201618. Quadro 1 – Cooperativas de moradia entrevistadas, por período histórico (Montevidéu, 2016) Período Sistema Cooperativa Nº de habitações 1º. (1969 - 1984) Ajuda Mútua COVICENOVA 102 COVIMT 2 43 COVISUNCA 2 71 MESA 1 420 Poupança Prévia COVISUR II 90 COMPLEJO BULEVAR 332 2º. (1985 - 2004) Ajuda Mútua COVIATU 18 26 COVIESS 90 II 37 COVIUNPRO 124 Poupança Prévia EL LADRILLO 10 3º. (2005 - 2016) Ajuda Mútua COVICORDÓN 58 COVIUN 14 COVIFAMI II (em construção) 30 Poupança Prévia PUERTO FABINI (em construção) 50 Fonte: elaboração própria. 18 No caso das cooperativas de ajuda mútua, em COVISUNCA 2 houve uma entrevista com um empregado administrativo da cooperativa, que forneceu valiosas informações sobre o funcionamento atual da cooperativa. No entanto, não se efetivou a entrevista com representantes da direção da cooperativa. Já com as cooperativas de poupança prévia, também se realizou entrevista com representante do conjunto de cooperativas Complejo Bulevar, visto que foi considerada, em outros depoimentos, como uma imprescindível experiência para o histórico do sistema de poupança prévia e para o surgimento de novas cooperativas a partir de filhos de cooperativistas desse complexo. Também houve participação em uma reunião da Comissão Inter-Cooperativas do Bairro Zitarrosa, com a presença de representantes de cinco cooperativas, em um território que desde o ano 2000 comporta a construção de mais de uma dezena de cooperativas. 38 Além das entrevistas estruturadas com as direções de cooperativas, também houve a participação em algumas atividades com cooperativas, que surgiram em virtude de contatos realizados em campo19. As entrevistas em Montevidéu foram transcritas e alguns trechos das falas são citados no texto da tese. Como foi dada a condição de anonimato aos entrevistados, as referências são realizadas por meio da numeração do sócio da cooperativa. Também se identificam as cooperativas por siglas que indicam sua modalidade e o período de construção. Dessa maneira, utiliza-se AM para “ajuda mútua” e PP para “poupança prévia”, conjugadas com o período de obra, quais seja, “1” entre 1969 e 1984, “2” entre 1985 e 2004, e “3” entre 2005 e 2016. Como exemplo de identificação da fala, tem-se o exemplo (Sócio B, COVIMT 2, AM1). Ou seja, trata-se da fala de um sócio da cooperativa COVIMT 2, da modalidade de ajuda mútua da primeira periodização. Desse modo se torna possível ao leitor relacionar a fala com o tipo de cooperativa. No apêndice A há uma lista mais detalhada das cooperativas, das datas de entrevistas e a relação dos entrevistados com falas citadas no texto. Além disso, ao final de cada seção do texto há a tradução dos trechos das entrevistas citadas20. 1.4 A estrutura do texto A escrita da tese estrutura-se a partir de quatro seções, além desta introdutória. A primeira (seção 2) tem o objetivo de apresentar ao leitor as principais características das experiências analisadas, de modo a familiarizá-lo com o modus operandi de cada 19 Também devem ser citadas algumas atividades complementares durante o período de pesquisa, que aportaram valiosos elementos para a investigação em curso, tais como a participação no Seminário Técnico de FUCVAM (30 de junho e 1º de julho de 2016) e na 65ª Assembleia Nacional de FUCVAM (16 e 17 de julho de 2016). Durante o período de pesquisa também foi possível participar de dois cursos de formação no tema do cooperativismo de moradia, o “Curso aberto de Gestão Cooperativa - Escola Nacional de Formação de FUCVAM” (seis encontros entre os meses de julho e setembro de 2016) e o curso "Cooperativismo de vivienda. El asesoramiento técnico: experiencias y nuevos problemas, requisitos y desafíos" (na Faculdade de Ciências Sociais da Universidad de La Republica, de 22 de julho a 13 de agosto
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