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GILBERTO DE MENEZES SCHITTINI LIMITES, CONTRADIÇÕES E POSSIBILIDADES TRANSFORMADORAS DA AGRICULTURA URBANA — suas expressões em duas experiências de cultivo d e alimentos na cidade do Rio de Janeiro, RJ. Tese apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós- Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Orientador: Prof. Dr. Rainer Randolph Rio de Janeiro 2018 GILBERTO DE MENEZES SCHITTINI LIMITES, CONTRADIÇÕES E POSSIBILIDADES TRANSFORMADORAS DA AGRICULTURA URBANA — suas expressões em duas experiências de cultivo d e alimentos na cidade do Rio de Janeiro, RJ. Tese submetida ao corpo docente do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Aprovado em: BANCA EXAMINADORA ______________________________________ Prof. Dr. Rainer Randolph Instituto de Planejamento Urbano e Regional – UFRJ ______________________________________ Prof. Dr. Orlando Alves dos Santos Júnior Instituto de Planejamento Urbano e Regional – UFRJ ______________________________________ Prof. Dra. Adriana Sansão Fontes Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – UFRJ ______________________________________ Prof. Dra. Heloisa Soares de Moura Costa Instituto de Geociências – UFMG ______________________________________ Prof. Dra. Cristina Maria Macêdo de Alencar Superintendência de Pesquisa e Pós-Graduação – UCSAL À Marcela, que a semente germine. AGRADECIMENTOS Agradeço à minha companheira Marcela Lisbôa Leal, por sua paciência e resiliência. Ao meu orientador Prof. Dr. Rainer Randolph, por sua dedicação e entusiasmo. À minha família e amigos, à Tranpa, à Egrégora e ao Clã – sem vocês não seria possível. Em especial, agradeço a todas as agricultoras e agricultores, camponesas e camponeses, quilombolas, indígenas, permacultoras e permacultores, e agroecologistas urbanos, pela inspiração inestimável. Growing your own food is like printing your own money (RON FINLEY, agricultor urbano de Los Angeles, EUA, 2013) RESUMO O objetivo deste trabalho foi analisar o fenômeno da agricultura urbana e elucidar o seu potencial de transformação das relações sócio-espaciais urbanas e de contestação ao regime alimentar global. Foram explorados os aspectos históricos que impulsionaram a emergência desse tema no debate internacional. E também foram observados seus benefícios esperados, os fatores limitantes ao seu desenvolvimento, e o seu papel enquanto espaços de prática política, conforme registrado na literatura científica. Então foram definidos os elementos necessários a uma perspectiva da agricultura urbana, com base na ecologia política e na teoria urbana crítica, que considere não só os processos de isolamento e alienação que caracterizam a neoliberalização das cidades, mas também as possibilidades de produção social de bens comuns e de apropriação de espaços por seu valor de uso. Isso serviu como referência para análise de duas experiências da cidade do Rio de Janeiro, RJ, quais sejam: a Rede Carioca de Agricultura Urbana e as hortas comunitárias nas regiões centrais da cidade. O estudo contribuiu para explicitar os aspectos das práticas espaciais e dos espaços de representação dessas iniciativas que geram oportunidades de resistência à mercantilização da vida e ao regime alimentar corporativo. Palavras chaves: Agricultura urbana – Rio de Janeiro. Hortas comunitárias. Direito à cidade. Bens comuns urbanos – Rio de Janeiro. Agroecologia. ABSTRACT The objective of this research was to analyse the phenomenon of urban agriculture, and to elucidate its potential to transform conventional urban socio-spatial relations and to challenge the global food regime. The historical aspects which brought urban agriculture to the front of international debates were explored. We also observed its expected positive impact, the limiting factors for its development, and its role as spaces of political action, as registered in the scientific literature. The necessary elements for a critical approach towards urban agriculture were defined, based on political ecology and critical urban theory which considers, not only the processes of isolation and alienation which characterise the neo-liberalisation of cities, but also the possibilities for the social production of common goods and for the appropriation of spaces for their use value. This approach was used as a reference for the analysis of two initiatives in Rio de Janeiro, which were: the Rede Carioca de Agricultura Urbana (Carioca Network of Urban Agriculture) and community allotments located in central neighbourhoods in the city. This study has contributed to explaining elements of the spatial practices and the spaces of representation of these initiatives which create opportunities for resisting the commodification of life and the corporate food regime. Keywords: Urban agriculture – Rio de Janeiro. Community gardens. Right to the city. Urban Commons – Rio de Janeiro. Agroecology. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 10 2 DA EMERGÊNCIA DO DEBATE ACERCA DA AGRICULTURA URB ANA 20 2.1 Trajetórias do debate, características e de finições para agricultura urbana 21 2.1.1 O que é agricultura urbana 30 2.2 Das motivações atribuídas para o envolvimento c om agricultura urbana 36 2.3 Dos benefícios esperados, apoios necessários e obstáculos para a difusão da agricultura urbana 50 2.4 A agricultura urbana no contexto dos regimes alim entares ( food regimes) 59 3 AS POSSIBILIDADES E LIMITES DA AGRICULTURA URBANA 71 3.1 Dos impactos e riscos em torno da agricultura u rbana 73 3.2 Enabling conditions, ou condições habilitantes 95 3.3 A agricultura urbana como prática política, e suas co ntradições 102 3.4 Uma abordagem para superar o impasse 114 4 POR UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA AGRICULTURA URBANA 120 4.1 Metabolismo urbano e a ruptura metabólica 123 4.2 A commoditização e o “ocultamento ” das relações sociais de produção e circulação de alimentos 130 4.3 Acumulação por despossessão, neoliberalização d as cidades e novos enclosures 136 4.4 Bens comuns urbanos e direito à cidade 146 4.5 Produção social do espaço e a análise de experi ência s do Rio de Janeiro 155 5 A REDE CARIOCA DE AGRICULTURA URBANA 158 5.1 A agricultura urbana do Rio de Janeiro em uma p erspectiva histórica 160 5.2 A “invisibilidade” da agricultura urbana na cid ade do Rio de Janeiro 170 5.3 Das práticas espaciais e dos espaços de representação da Rede CAU 193 5.4 Das práticas diárias de resistência 222 5.5 Conclusões 232 6 AS HORTAS COMUNITÁRIAS “INTERSTICIAIS” 240 6.1 As experiências analisadas 242 6.2 Da questão alimentar 256 6.3 Das práticas espaciais – as técn icas de plantio, o manejo das hortas e seus aspectos sociais e ambientais 261 6.4 Práticas de compartilhamento de conhecimento 279 6.5 Espaços de autonomia 293 6.6 Representação estética e cooperação 300 6.7 Corpo, natureza e cidade 315 6.8 Conclusões 327 7 CONCLUSÃO GERAL 330 REFERÊNCIAS 346 10 1 INTRODUÇÃO Este trabalho trata do fenômeno do plantio de alimentos nas cidades e suas implicações para as disputas pela produção social de espaços urbanos, ou o exercício de direito à cidade, e para a construção de vias alternativas para o sistema agro-alimentar convencional. A trajetória desta pesquisa se inicia inspirada pelas intervenções registradas nas Figuras 01, 02 e 03 abaixo: Figura 1: Canteiro cultivado com plantas alimentares. Rua LauroMüller. (Foto de 15/11/2014) 11 Figura 2 e 3: Detalhes do canteiro cultivado com plantas alimentares. Rua Lauro Müller. (Foto de 15/11/2014) O que se observa nesse pequeno canteiro, originalmente destinado ao plantio de uma única árvore, é o crescimento de um feijão guandu – uma leguminosa comestível, de porte arbustivo, bastante utilizada como adubação verde – bem como uma mandioca, uma bananeira, e uma ou duas cucurbitáceas não identificadas – mas que podem ser uma abóbora ou abobrinha e um melão ou melancia. Essa combinação adensada de diferentes espécies alimentares, com portes e ciclos de vida variados, segue os preceitos de plantio agro-florestal. Trata-se de uma técnica de manejo de agro-ecossistemas que procura reproduzir determinados processos ecológicos e que se coloca frontalmente de encontro às premissas e práticas dos sistemas convencionais industrializados – grandes monoculturas cultivadas com uso intensivo de máquinas pesadas e insumos químicos. Mais ainda, há no mesmo canteiro duas placas com sinais que identificam o Movimento Passe Livre. Nelas estão as frases: “Se o transporte é público, porque pagamos? Tarifa zero já!” e “Amigo(a) do Ponto, 485, 484, 483, 457, 486 não vale 12 R$3,00. Vem pra rua!!”. Essas mensagens evocam alguns temas caros ao Movimento Passe Livre, quais sejam, a resistência à mercantilização do transporte público e a mobilidade urbana entendida como um direito à cidade1. E dessa aparentemente estranha confluência, num único e compacto espaço, de temas rurais e urbanos, surge o principal questionamento que impulsiona a tese: o que a produção de alimentos nas cidades pode significar em termos de resistência ao sistema agro-alimentar convencional e em termos de disputa pelo direito à cidade. Falar em “agricultura urbana” pode causar certo estranhamento à primeira vista. Entretanto, a prática de produção de alimentos nas cidades não é tão incomum quanto parece. Esse tema vem ganhando a atenção de agências de desenvolvimento internacionais nas últimas décadas. E vem crescendo o número de estudos teóricos e empíricos, projetos financiados e relatórios das experiências adquiridas, de agências da ONU como a FAO e o PNUD e também de algumas ONGs internacionais. Ainda assim, algumas práticas de produção de alimentos nunca abandonou os limites das cidades, como, por exemplo, a horticultura (HAMILTON et al., 2014). Há registros de agricultura urbana em contextos históricos e geográficos tão distintos quanto a civilização Maia e a Constantinopla do período Bizantino, circunstâncias em que essa prática foi determinante para a segurança alimentar das cidades (BARTHEL; ISENDHAL, 2013). E há também registros histórico de que em cidades européias medievais mantinham alguma produção de alimento dentro dos limites das muralhas que protegiam as cidades, algo que poderia ser importante em casos de cercos inimigos (LE GOFF, 1998). Já no século XX, o esforço de produção de alimentos nas cidades da Europa e Estados Unidos, durante a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, foi determinante para a garantir a alimentação das populações urbanas (BROWN; JAMETON, 2000). Mas, é a partir da década de 1990 que organizações internacionais de desenvolvimento e grandes ONGs passaram a se interessar pelo tema da agricultura urbana (ELLIS; SUMBER, 1998). O interesse acadêmico sobre o tema vem crescendo desde a década de 1990 e o número de publicações sobre o assunto vem aumentando progressivamente a 1 Ver: <http://tarifazero.org/mpl/> Acessado em 02 de outubro de 2018. 13 cada ano, mesmo que ainda não haja um levantamento consistente sobre o quanto essa prática é realmente adotada ao redor do mundo. Por um lado, a agricultura urbana tem sido defendida por organizações não-governamentais e agências internacionais como uma solução para a segurança alimentar e para a geração adicional de renda para populações pobres urbanas, além de contribuir para o reaproveitamento de resíduos e de efluentes domésticos, o sequestro de gases de efeito estufa dentre outros benefícios ambientais. Por outro, há registros de que práticas de agricultura urbana podem contribuir para a proliferação de doenças tropicais e a contaminação de alimentos devido à baixa qualidade ambiental das cidades. Mais recentemente, alguns trabalhos vem explorando as relações sócio- espaciais específicas da agricultura urbana e suas implicações para a produção social dos espaços urbanos. Nessa linha, alguns autores sugerem que a agricultura urbana pode fortalecer laços comunitários, (re)construir bens comuns urbanos e exercitar o direito à cidade. Assim, esse fenômeno seria um contra-movimento de resistência à mercantilização da vida urbana, em resposta aos impactos sociais, econômicos e ambientais negativos da liberalização dos mercados. Entretanto, outros autores criticam a agricultura urbana como um fruto da própria neoliberalização das cidades, uma substituição do Estado de bem-estar social por iniciativas do terceiro setor e/ou de cunho voluntário, ou como uma reprodução do empreendedorismo individual típico da governamentalidade neoliberal. É preciso reconhecer que as experiências reais de agricultura urbana nunca são puramente neoliberais ou puramente radicais, mas são intrinsicamente contraditórias e estão em constante tensão dialética (MCCLINTOCK, 2014). Então, tendo em vista os impactos sócio-ambientais negativos do sistema agro-alimentar industrializado que sustenta a vida nas cidades e os padrões de injustiça espacial promovidos pelos processos de mercantilização e neoliberalização dos espaços urbanos, faz sentido investigar em que medida as transformações sócio-espaciais promovidas pela agricultura urbana podem resultar em vias de resistência a esses processos. Diante disso, esta tese procurará explorar esse debate analisando experiências de agricultura urbana que se manifestam na cidade do Rio de Janeiro. 14 O objeto do trabalho é a produção social do espaço realizada por dois conjuntos de experiências de agricultura urbana do Rio de Janeiro, a Rede Carioca de Agricultura Urbana, que ocupa as margens da expansão da malha urbana, e as hortas comunitárias que surgem em áreas intersticiais da cidade. Assim, trata-se de observar, a partir da tríade espacial de Lefebvre, as articulações dialéticas entre as práticas materiais dessas experiências, seus espaços de representação, e suas relações com as representações do espaço da cidade neoliberal. A perspectiva adotada nessa pesquisa segue a agenda proposta por Chiara Tornaghi (2014), qual seja, uma geografia crítica apoiada nas contribuições sobre produção social do espaço realizada por acadêmicos como Lefebvre, Harvey e Marcuse. E está inserida no quadro teórico da ecologia política. Essa abordagem crítica de Tornaghi procura contextualizar as iniciativas de agricultura urbana em seus regimes sociopolíticos e alimentares específicos, e investigar o seu papel na reprodução de formas de injustiça sócio-espacial ou na criação de vias de subversão dos padrões atuais de urbanização (TORNAGHI, 2014). Uma abordagem inspirada no quadro teórico da ecologia política urbana, por sua vez, está ancorada na noção de “metabolismo”, entendido enquanto “circulação de matéria, valor e representações” (SMITH, 2006), como forma a superar o dualismo entre sociedade e natureza. O metabolismo urbano pode ser definido sinteticamente como […] a dynamic process by which new sociospatial formations, intertwinings of materials, and collaborative enmeshing of social nature emerge and present themselves and are explicitly created through human labor and non- human processes simultaneously (HEYNEN, 2014, p. 599). A abordagem da ecologia política urbana reconhece que os processos metabólicos urbanos se desenvolvem historicamentede forma a gerar condições socionaturais tanto “empoderadoras” quanto “incapacitantes”, mas também atribui ao conceito uma implícita ação “criativa” que permite a criação de alternativas para os processos de urbanização desigual (HEYNEN, 2014). Seguindo a recomendação de Brenner e colaboradores, a perspectiva adotada por este trabalho coloca a “commoditização” como elemento central da narrativa sobre a condição urbana contemporânea (BRENNER; MARCUSE; MAYER, 2009). E reconhece o papel das cidades nos processos de produção, circulação e 15 consumo de alimentos commoditizados. Mais ainda, reconhece que a própria cidade vive processos de commoditização, na medida em que passa por processos de reestruturação urbana neoliberais que procuram intensificar a acumulação de lucros do capital. Porém, admite também que esses processos são contestados continuamente por movimentos orientados para o valor de uso dos espaços e das relações urbanas (BRENNER; MARCUSE; MAYER, 2009). Assim, é premissa deste trabalho que […] as the urban condition becomes the hallmark for the majority of humanity across the planet, so too the city becomes thoroughly characterised by both the powerful forces of capital accumulation and the practices and potentials of the common (CHATTERTON, 2010, p. 627). O que se assume por hipótese deste trabalho é que a commoditização dos processos metabólicos urbanos ligados à produção e consumo de alimentos na cidade gerou grupos “materialmente despossuídos e socialmente alienados” (MARCUSE, 2009), que fazem da agricultura urbana “um brado e uma exigência” por direito à cidade” (LEFEBVRE, 2001). Em outras palavras, a hipótese é que o plantio de alimentos na cidade trata-se de uma maneira de formular […] an exigent demand by those deprived of basic material and existing legal rights, and an aspiration for the future by those discontented with life as they see it around them, perceived as limiting their own potentials for growth and creativity (MARCUSE, 2009, p. 190). O que se espera é que a produção social dos espaços de agricultura urbana implique em relações sociais de commoning, ou de produção de bens comuns, com potencial para des-commoditizar a vida urbana. E que os atos de commoning envolvidos com a agricultura urbana, para além da apropriação de fluxos metabólicos urbanos, impliquem também na produção de novos “imaginários políticos” e de novas formas de participação na vida política da cidade (CHATTERTON, 2010). Então, o objetivo é verificar em que medida as práticas socioespaciais e as representações simbólicas associadas a essas experiências podem contestar as representações hegemônicas do espaço urbano. E, em última instância, examinar como essas experiências podem contribuir transformações no regime alimentar corporativo que sustenta a cidade. Assim, o trabalho procurará atender à convocação de Certomà e Tornaghi (2015) e procurará explorar o potencial das práticas de cultivo urbano de alimentos de agir por uma transformação urbana 16 “contra-neoliberal”. O percurso metodológico da pesquisa se inicia explorando os aspectos estruturais do regime alimentar global que condicionaram a emergência da agricultura urbana como tema de interesse da comunidade internacional. Isso é justificado por dois fatores: (i) grandes ONGs internacionais e agência multilaterais de desenvolvimento tem sido grandes promotoras do reconhecimento da agricultura urbana ao redor do mundo; (ii) o período histórico em que o tema ganha notoriedade, a transição entre as décadas de 1980 e 1990, coincide com a passagem do período de roll back da neoliberalização internacional, ou o desmonte do Estado de Bem Estar Social, para o roll out, ou a re-estruturação de novas formas de governança neoliberalizadas. Assim, o que se procura é situar o tema da agricultura urbana no debate acerca da resistência à neoliberalização do regime alimentar global. Em seguida, é feita uma análise do estado do conhecimento científico acerca da agricultura urbana. São observados os registros empíricos dos aspectos sócio- econômicos e ambientais desse fenômeno. Então, analisa-se o estado da discussão sobre o papel da agricultura urbana no processo corrente de neoliberalização das cidades. Isso para investigar os elementos efetivamente urbanos da agricultura urbana, ou seja, as relações sócio-espaciais peculiares que estão envolvidas nessa prática. Isso para ir além do entendimento da agricultura urbana simplesmente como o plantio de alimentos dentro dos limites geográficos das cidades. E identificar maneiras de abordar a agricultura urbana enquanto prática social inovadora potencialmente transformadora. Por fim, a partir do reconhecimento dos processos de cercamento, commoditização, acumulação por despossessão, alienação, e valorização dos espaços urbanos por seu valor de troca que caracterizam a neoliberalização das cidades, é feita uma análise de dois conjuntos de experiências de agricultura urbana da cidade do Rio de Janeiro: aquelas organizadas em torno da Rede Carioca de Agricultura Urbana, e as hortas comunitárias surgidas espontaneamente nas regiões centrais da cidade. Tomando-se como referência a tríade espacial de Lefebvre, o que se procura analisar é como as práticas materiais e os espaços de representação 17 dessas experiências tensionam as representações neoliberalizadas do espaço urbano. E se criam oportunidades para transformações dos processos metabólicos urbanos, para a des-fetichizaçao das relações de produção e consumo de alimentos, para a criação de bens comuns urbanos, para a apropriação do espaço pelo seu valor de uso, enfim, para o direito à cidade. Como uma etapa da construção do campo de conhecimento ora sendo analisado, o próximo capítulo faz uma síntese do discurso sobre agricultura urbana conforme enunciado por grandes ONGs e agências internacionais de desenvolvimento que vem estimulado governos nacionais e municipais a considerar a prática de produção de alimentos nas cidades em suas ações de planejamento e gestão. A abordagem é histórica, e traça o desenvolvimento das formas como essas instituições abordaram o tema da agricultura urbana desde suas primeiras publicações até as décadas mais recentes. São analisadas as principais motivações apresentadas pelas entidades para a defesa da agricultura urbana, suas definições, os benefícios esperados, os riscos percebidos e as implicações para o planejamento, conforme defendido por essas instituições. E é feita uma análise teórica crítica, com base no conceito de regime alimentar (food regime), para investigar as possíveis razões estruturais para o crescimento da adoção da prática de agricultura urbana e da atenção dada ao tema. Por fim, discute-se o potencial da agricultura urbana na resistência e transformação do regime alimentar corporativo atual O capítulo três é dedicado a uma revisão da literatura científica sobre agricultura urbana para identificar as possibilidades oferecidas por essa prática, seus fatores limitantes, e as condições que podem fazer desse fenômeno uma experiência transformadora. É feito um levantamento dos trabalhos publicados conforme registro na base de dados Web of Science, e são analisados aqueles artigos que se mostram mais próximos a esta pesquisa. O conjunto de informações construído sobre o tema está separado entre os benefícios esperados para a agricultura urbana, seus eventuais riscos associados, suas implicações para o planejamento e as políticas públicas, e os aspectos políticos da produção de alimentos nas cidades. Neste sentido, são apresentadas pesquisas que discutem a 18 agricultura urbana numa perspectiva de direito à cidade, e também do ponto de vista da reprodução de padrões de governamentalidade neoliberal. E então, são discutidos as vias para superar esse impasse e efetivamente analisaro papel da produção de alimentos na disputa pela produção social de espaços urbanos. Em seguida procura-se construir uma abordagem crítica para estudos da agricultura urbana. Parte dessa inspiração vem da contribuição de Henri Lefebvre, mais especificamente suas discussões sobre produção social do espaço, a tríade espacial e o conceito de direito à cidade. Outros conceitos e categorias que servem de apoio ao trabalho são a falha metabólica e o metabolismo urbano – no sentido dado pela ecologia política a partir da produção de Marx; os conceitos de alienação, fetichismo; as noções de cercamentos (enclosures) e acumulação por despossessão, bem como uma caracterização geral dos sentidos da neoliberalização das cidades; e, por fim, os conceitos de bens comuns urbanos e de direito à cidade. O que se procura neste capítulo é definir as maneiras de analisar as experiências de agricultura urbana no Rio de Janeiro para identificar seu potencial de resistência às transformações neoliberais do espaço urbano e do regime alimentar. Assim, o capítulo cinco analisa a experiência da Rede Carioca de Agricultura Urbana – CAU. Trata-se do principal movimento social organizado em torno do tema da agricultura urbana na cidade do Rio de Janeiro. Essa Rede é formada por ONGs de promoção da agroecologia e por agricultores familiares localizados principalmente na região oeste da cidade, no entorno do maciço da Pedra Branca – embora haja grupos na Serra da Misericórdia, na região norte, que também são importantes para esse movimento. Esses agricultores estão imprensados entre a expansão da malha urbana e os maciços rochosos da cidade, nas “franjas” da cidade. E, para entender as causas desse padrão, o capítulo recupera um breve histórico sobre a agricultura urbana no Rio de Janeiro. Trata-se de uma sucessão histórica de rodadas de acumulação por despossessão, conforme definido por Harvey, que vem progressivamente deslocando a prática de agricultura das áreas centrais para as regiões periféricas da cidade. Contemporaneamente, isso está associado a uma “invisibilidade” da agricultura urbana nas representações hegemônicas do espaço 19 urbano, o que se manifesta na sua ausência no Plano Diretor da cidade e nas dificuldades de acesso dos agricultores a políticas públicas de apoio à atividade. Algo que a Rede CAU procura transformar por meio de um conjunto de práticas materiais e simbólicas que são analisadas no capítulo. Por fim, o último capítulo analisa outro conjunto de experiências de agricultura urbana entendidas, grosso modo, como hortas comunitárias. Tratam-se de experiências de plantio de alimentos nas áreas “intersticiais” ou nos “vazios urbanos” das regiões centrais da cidade – notadamente as zonas sul, centro e zona norte. São analisados os usos do espaço promovidos por esses coletivos; a maneira como abordam a questão alimentar; suas práticas materiais de plantio, manejo das áreas e de compartilhamento de conhecimentos; e suas representações simbólicas de autonomia, cooperação e colaboração, e des-alienação. O capítulo procura analisar como os espaços produzidos por esses coletivos configuram-se enquanto heterotopias que contestam as representações hegemônicas do espaço da cidade, e criam espaços comuns com possibilidades para o exercício de direito à cidade e a contestação do regime alimentar. E, então, são traçadas algumas conclusões gerais da pesquisa. 20 2 DA EMERGÊNCIA DO DEBATE ACERCA DA AGRICULTURA URB ANA. À primeira vista o conceito de agricultura urbana pode causar certo estranhamento e ser considerado um oxímoro, ou seja, uma contradição em termos, dada a associação entre produção de alimentos e ambientes rurais (REYNOLDS, 2014). Ainda assim, e mesmo que essa prática não possa ser considerada recente, o conceito ganhou notoriedade no cenário internacional impulsionado, sobremaneira, pelo trabalho de grandes Organizações Não-Governamentais - ONGs e agências internacionais de desenvolvimento, cujas publicações sobre o tema proliferaram especialmente a partir de meados da década de 1990. Ocorre que à agricultura urbana é atribuída uma série de promessas ligadas à segurança alimentar, geração de renda e melhoria dos ambientes urbanos, bem como um papel de solução alternativa ao sistema agro-alimentar industrial e suas consequências sócio- ambientais. Diante disso, este capítulo procura descrever este fenômeno e caracterizar o discurso daqueles atores sobre a agricultura urbana. E entender porque o tema emerge nos debates internacionais acerca do desenvolvimento naquele momento histórico. Em primeiro lugar, procura-se identificar as principais organizações que se dedicaram à promoção da agricultura urbana. E também identificar e analisar suas principais publicações. A partir disso, são registradas suas principais enunciações sobre agricultura urbana: suas causas atribuídas, seus benefícios esperados, seus riscos e eventuais impactos negativos, e os entraves e dificuldades para sua proliferação. Procura-se também verificar em que medida o discurso sobre esse tema variou ao longo das últimas décadas. E demonstrar eventuais confluências e distanciamentos das disposições e motivações das diferentes instituições envolvidas. Em seguida, é feita uma análise, a partir de uma abordagem crítica, desse conjunto de publicações à procura de fatores estruturais que explicam a emergência do interesse na promoção da agricultura urbana. Para tanto, será acionada a teoria de food regimes, ou regimes alimentares (FRIEDMANN, 1993; MCMICHAEL, 2009a). Trata-se de uma abordagem histórica, inspirada na Escola Francesa da 21 Regulação, que procura demarcar períodos de estabilidade nos arranjos temporários de produção e circulação de alimentos em escala global, e postular períodos de transição antecipados por tensões sociais inerentes a cada ordem hegemônica (MCMICHAEL, 2009b). Em última instância, o que se procura neste capítulo é situar a perspectiva dessas instituições internacionais no conjunto de tendências políticas de promoção ou oposição ao regime alimentar, e sua visão acerca do papel da agricultura urbana na reforma ou transformação do regime. Dessa forma, procura-se identificar vias de análise do potencial de transformação social que acompanha experiências reais de agricultura urbana. 2.1 Trajetórias do debate, características e defini ções para agricultura urbana. É difícil circunscrever precisamente quando a agricultura urbana aparece em publicações das principais agências internacionais de desenvolvimento – isso porque várias dessas agências reivindicam a “paternidade/maternidade” em relação a esse assunto. Uma dessas organizações, o Centro de Pesquisa em Desenvolvimento Internacional (International Development Research Center – IDRC), localizado no Canadá, alega ser a primeira agência internacional a reconhecer a importância da produção urbana de alimentos. Em um de seus relatórios, o IDRC afirma que, devido à sua “perspicácia invejável”, já em 1983 a seção de assuntos urbanos do Centro teria financiado estudos em seis centros urbanos do Kenya que, somados a outros estudos e pesquisas apoiados ao longo daquela década, teriam gerado relatórios contundentes e argumentos suficientes para demonstrar a importância dos desafios para a segurança alimentar nas cidades e a relevância das práticas de agricultura urbana (TINKER, 1994, p. vii)2 2 A novidade nessa discussão sobre a segurança alimentar urbana se deu pois, de acordo com Hans Pfeifer, da Fundação Alemã para Desenvolvimento Internacional-DSE, e seus colaboradores, advogando a favor da agricultura urbana, nas décadas anteriores, as políticas de redução da pobreza procuraram eliminar suas “raízes” em áreas rurais. A premissa era criar meios de vida atrativos o suficiente parareter os jovens no campo e reduzir a migração para as cidades. Mas essas políticas afetaram pouco as dinâmicas econômicas reais. Em suas palavras: “pessoas jovens procuram empregos – empregos estão onde o dinheiro está – e o capital continua se concentrando nas cidades, tornando-as assim as forças motrizes das economias 22 Em sua página na internet, o IDRC se define como um centro criado pelo parlamento canadense, financiado por este governo e por doações privadas, para: Iniciar, encorajar, apoiar e conduzir pesquisas sobre os problemas de regiões em desenvolvimento no mundo e sobre os meios para aplicar e adaptar conhecimentos científicos, técnicos e outros para o avanço econômicos e social dessas regiões (IDRC, 2017, p. 1, tradução livre). Segundo o IDRC, moradores das cidades vêm produzindo seu próprio alimento há milênios, mas somente em meados dos anos 1990 o conceito de agricultura urbana teria se tornado suficientemente reconhecido como um objeto formal de pesquisa e de políticas públicas. O Centro alega ter desempenhado um papel de protagonismo na construção dessa “nova disciplina” e na sensibilização geral em relação a ela (IDRC, 2012). Ainda assim, em relatórios e publicações do próprio IDRC, alguns autores atribuem ao projeto The Food-Energy Nexus - TFEN, da Universidade das Nações Unidas - UNU, que durou entre 1983 e 1988, o papel de ter chamado pioneiramente a atenção da comunidade internacional para a escala e relevância da agricultura urbana já praticada ao redor do mundo naquela década (SMIT, 1996; MOUGEOT, 2006). Inspirado pelas ideias de Ignacy Sachs sobre uso eficiente de recursos para o desenvolvimento sustentável, o TFEN foi um projeto que procurou padrões locais de uso de recursos alimentares e energéticos para responder à crise de aumento de preços de combustíveis e dos custos de produção agrícola e de transporte que marcou os anos 1980. Como consequência, o TFEN explorou sobremaneira as relações entre alimentos e energia (SACHS; SILK, 1988). Ao gerar um conjunto de artigos e relatórios sobre produção alimentar para vários países da Ásia, África e América Latina, o principal mérito do TFEN na discussão sobre agricultura urbana teria sido demonstrar que ela é de um fenômeno global relevante – o projeto teria sido responsável pela publicação de 24 artigos sobre o tema, e corresponsável por outros 09 (SMIT, 1996). Assim, o TFEN teria identificado experiências de agricultura urbana em diversas economias, climas e culturas distintos. E teria gerado alguns dados “inesperados”. Por exemplo, foram encontradas cidades mais de 100% autossuficientes na produção de verduras e nacionais”. A partir daí projetos de agricultura urbana como estratégia de redução da pobreza nas cidades passaram a ganhar atenção (PFEIFER et al, 2000, p. 1) 23 pequenas criações animais, cidades onde a maioria das famílias estava dedicada a agricultura urbana, e cidades onde mais de 60% de suas áreas estavam ocupadas por produção agrícola urbana. “Talvez o mais surpreendente”, nas palavras de Jac Smit, colaborador do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD e considerado uma das principais referências em agricultura urbana3, seria que o TFEN identificou o crescimento, e não a diminuição, da agricultura urbana na década de 1980. Outros dois aspectos importantes dos resultados do TFEN foram: que agricultores urbanos não seriam imigrantes recentes, mas pessoas residentes há bastante tempo nas cidades; e que não apenas os pobres, mas pessoas de todas as categorias de renda se dedicavam a agricultura urbana (SMIT, 1996, p. 5). Essas três descobertas do TFEN foram de encontro ao que se pensava sobre agricultura urbana na época. De fato, na década anterior à realização do TFEN, a década de 1970, houve alguma produção intelectual, e atenção internacional, sobre a agricultura urbana. Mas esse debate foi menor, em escala, se comparado àquele que emergiu na década de 1980. Os primeiros projetos de promoção da agricultura urbana, realizados na década de 1970, principalmente na África, como a Operação Alimente- se (Operation feed yourself) do governo de Gana, e outras ações promovidas pelo Governo Francês, Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura - FAO, Fundo das Nações Unidas para a Infância - Unicef, Banco Mundial, focaram o incentivo a hortas domésticas, escolares e comunitárias. O objetivo, em geral, desses projetos era melhorar a dieta das famílias e, por isso, promovia-se a produção exclusivamente para o auto-consumo, de forma que a comercialização da produção era desestimulada, se não proibida. Os projetos procuraram replicar padrões europeus de produção e aos poucos foram perdendo apoio até que, por fim, foram encerrados e considerados fracassos. Isso acabou prejudicando a “reputação” da agricultura urbana. E os profissionais do campo da promoção do desenvolvimento passaram a considerar essa prática como algo efêmero, algo de curto prazo influenciado por migrações recentes, e inviável no 3 Na página pessoal de Jac Smit (1929-2009) na internet, ele é apresentado como o “Pai da Agricultura Urbana” devido à sua atuação na promoção do tema. Disponível em: http://www.jacsmit.com/21century.html. Acessado em 26 de julho de 2018 24 longo prazo (SMIT, 1996). Entretanto, ao longo dos anos 1980, além do TFEN, outros projetos de diversas agências internacionais, como UNICEF, PNUD, FAO, Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional - Usaid, Agência de Cooperação Técnica Alemã - GTZ, Banco Mundial, procuraram promover a agricultura urbana durante aquela década, principalmente em países da África, Ásia e América Latina. Para Smit, os estudos e pesquisas realizados ao longo daquela década pela UNU e pelo IDRC desfizeram vários mitos acerca da agricultura urbana construídos na década anterior (SMIT, 1996). Ainda que o TFEN tenha sido a maior influência nos estudos sobre agricultura urbana que se seguiram, a primeira grande publicação da ONU a mencionar esse tema foi o notório “Relatório Brundtland”, formalmente intitulado “Nosso Futuro Comum”, elaborado pela Comissão Mundial das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (MOUGEOT, 2006). Nesse relatório, a agricultura urbana é mencionada enquanto um aspecto do “Desafio Urbano”, qual seja, o “rápido e incontrolado”, crescimento das cidades na segunda metade do século XX (BRUNDTLAND, 1987, p. 212). Já nos anos 1990 houve um salto nas pesquisas acadêmicas e publicações sobre agricultura urbana. Teria havido ainda um crescimento nos projetos de desenvolvimento e nas experiências de campo de várias agências internacionais. Segundo Smit, essa década teria sido marcada por uma mudança na abordagem de trabalho dessas agências, de forma que estariam diminuindo as ações de cunho assistencialista, como doações de alimentos, e estariam aumentando os projetos de estímulo ao desenvolvimento, como, por exemplo, aqueles ligados à agricultura urbana. De acordo com esse autor, na medida em que o “fenômeno” da agricultura urbana vinha crescendo, houve mudanças nas políticas públicas acerca do tema em vários países. E as agências internacionais começaram a incorporar o tema da agricultura urbana em seus portfólios. Mas, para o mesmo autor, faltava ainda uma concertação entre esforços nos níveis internacional, nacional e municipal para o desenvolvimento adequado dessa agenda (SMIT, 1996). Ainda no início dos anos 1990, outras publicações foram consideradas marcantes para a evolução da discussão sobre agricultura urbana nas agências 25 internacionais de desenvolvimento (EGZIABHER, 1994; SMIT, 1996). Essaspublicações resultaram de um projeto do PNUD intitulado Iniciativa Agricultura Urbana (Urban Agriculture Initiative). Segundo Smit, a ideia inicial desse projeto era levantar o estado da agricultura urbana e desenvolver propostas sobre “o que precisa ser feito” em seis países da Ásia, África e América Latina. Mais tarde, esse projeto recebeu apoio também do IDRC, UNICEF, Banco Mundial, GTZ, CARE, dentre outros, e expandiu sua lista para 25 países (SMIT, 1996, p. 8). Um dos primeiros produtos resultantes desse projeto foi elaborado por Jac Smit e Joe Nasr, e foi publicado em outubro de 1992 na revista Environment and Urbanization, sob o título Urban agriculture for sustainable cities: Using wastes and idle land and water bodies as resources (SMIT; NASR, 1992)4. Além deste, após quatro anos de execução do projeto (1992 a 1996), outros produtos e resultados foram: a publicação do primeiro livro abrangente sobre agricultura urbana, a formação de uma rede de mais de 3.000 integrantes em 40 países, e a formação do Grupo de Apoio em Agricultura Urbana – SGUA (Support Group for Urban Agriculture), que derivou do Comitê Consultivo para Agricultura Urbana – UAAC (Urban Agriculture Advisory Committee) do PNUD, criado em 1991 (SMIT, 1996, p. 8). O “primeiro livro abrangente” a que Jac Smit se refere trata-se da publicação Urban Agriculture: food, jobs and sustainable cities, de 1996. Este livro foi elaborado pelo próprio Smit e seus colaboradores, Joe Nasr e Annu Ratta, e publicado pelo PNUD (SMIT et al., 1996). A publicação é identificada como “a segunda publicação mais reconhecida”, depois do TFEN, sobre agricultura urbana. Tendo sido lançado em 1996 pelo PNUD em Istambul durante o UN Habitat II - UN Conference on Human Settlements, de acordo com Smit, o livro foi reconhecido como um “documento seminal” por acadêmicos e instituições (SMIT, 2016, p. 1)5. De acordo com seu colaborador Joe Nasr, a primeira edição do livro foi um sucesso e logo foi esgotada. O PNUD, então, encomendou uma nova edição, mais completa e 4 Neste artigo, Jac Smit se apresenta como consultor realizando um estudo global sobre agricultura urbana para a Divisão de Programas Globais e Inter-regionais do Pnud sob execução do Departamento de Infraestrutura e Desenvolvimento Urbano do Banco Mundial. 5 Ver: http://www.jacsmit.com/. Acessado em 20 de fevereiro de 2016. 26 atualizada, que foi concluída em 2001, mas que não foi publicada. Com a morte de Smit em novembro de 2009, o Comitê Editorial do PNUD autorizou sua divulgação na internet, atendendo ao “último pedido profissional” do autor6. Sendo assim, o livro pode ser acessado livremente na página www.jacsmit.com. Urban Agriculture: food, jobs and sustainable cities é um esforço de síntese dos resultados de um “grande levantamento” de experiências feito por meio de visitas a vinte países entre 1992 e 1994, além de visitas a outros dez países feitas antes dessas datas, e pesquisas de outras instituições parceiras. Os autores apresentam 85 “cases” organizados em capítulos que tratam, grosso modo, dos seguintes temas: uma visão geral das “cidades que alimentam a elas mesmas”; a agricultura urbana no passado e no presente; quem são os agricultores urbanos; onde a agricultura urbana é praticada; quais os principais sistemas produtivos; quais organizações influenciam a agricultura urbana; quais são os seus benefícios; quais são os seus problemas, suas limitações, suas tendências; e como promover a agricultura urbana (SMIT et al., 1996). O intuito dessa publicação foi, para além de dar visibilidade à agricultura urbana e de defender seus benefícios, promover o envolvimento dos governos e a formulação de políticas públicas de apoio à atividade (SMIT et al., 1996). O IDRC, em 1994, lançou outro livro importante chamado Cities feeding people: an examination of urban agriculture in East Africa, (EGZIABHER, et al. 1994) e, ao longo daquela década, publicou também dezenas de outros relatórios sobre a agricultura urbana numa série chamada Cities Feeding People Report Series. Em sua maioria, os relatórios se referem a experiências empíricas, levantamentos e resultados preliminares de pesquisa. Seu objetivo foi compreender os sistemas alimentares urbanos em cidades da África, América Latina e Oriente Médio. Segundo Luc Mougeot, outro reconhecido defensor da agricultura urbana e colaborador do IDRC, o interesse deste Centro pelo tema começou com uma ênfase em segurança alimentar, nutrição e o tratamento e reuso de resíduos orgânicos. Mas, mais tarde isso teria sido expandido para incluir desde o processamento e a distribuição de alimentos nas cidades, até a produção urbana de alimentos propriamente dita 6 Ver: http://www.jacsmit.com/book.html. Acessado em 20 de fevereiro de 2016. 27 (MOUGEOT, 2006). Parte desses estudos serviu de base para o projeto Urban Agriculture Initiative, e para a publicação do livro Urban Agriculture: food, jobs and sustainable cities do PNUD. Após essa publicação, o IDRC teria sido convidado pelo PNUD para implementar as recomendações dessa publicação. Ainda em 1996, foi criado o grupo informal Support Group on Urban Agriculture - SGUA para avançar nas recomendações do PNUD (MOUGEOT, 2006). E a experiência do IDRC também serviu, junto com os resultados do projeto da UNU, como referências para a primeira publicação oficial da FAO sobre agricultura urbana (MOUGEOT, 2006). Trata-se de um capítulo dedicado exclusivamente para o tema, intitulado Urban agriculture: an oxymoron?, publicado no relatório The State of Food and Agriculture, lançado no encontro mundial sobre segurança alimentar realizado em Roma, 1996 (FAO, 1996). O relatório The State of Food and Agriculture é considerado a principal publicação regular da FAO, que, de acordo com a própria organização, procura divulgar periodicamente para o grande público “avaliações de base científica sobre temas importantes no campo da alimentação e agricultura” (FAO, 2018, p. 1) O capítulo sobre agricultura urbana publicado no relatório de 1996 teve por objetivo “examinar a proposição de que agricultura urbana provê benefícios que a agricultura rural não provê e não pode prover” (FAO, 1996, p. 43). Segundo os autores, esse texto também discute as políticas públicas que afetam essa prática e as mudanças que seriam necessárias para estimular o potencial da agricultura urbana de melhorar as condições das cidades (FAO, 1996). Curiosamente, o título do capítulo da FAO se pergunta se agricultura urbana seria um oximoro, ou seja, algo contraditório ou paradoxal em termos. Infelizmente essa aparente contradição não é explorada pelos autores ao longo do capítulo. Em 1997 considera-se que as ações do IDRC sobre agricultura urbana tenham se tornado mais maduras com a criação de um programa específico para o tema chamado Cities Feeding People (MOUGEOT, 2006). O objetivo desse programa foi apoiar projetos de pesquisa em desenvolvimento que visassem “remover restrições e aumentar o potencial da agricultura urbana de melhorar a segurança alimentar, geração de renda e saúde pública nas famílias, assim como o 28 gerenciamento de resíduos, água e terras, para benefício dos pobres urbanos” (MOUGEOT, 2006, p.18). Os projetos tiveram apoio da UN-Habitat, e a experiência foi útil para que a FAO criasse um programa específico para agricultura urbana (COAG-FAO, 1999). Nesse período foi criado também o RUAF - Resource Centre on Urban Agriculture and Forestry, uma rede global de informações sobre agricultura urbana (MOUGEOT, 2006). A Fundação Ruaf, formada em 1999, se define como uma rede que tem sede na Holanda, mas que também conta com organizações membros localizadas na África, Ásia, Oriente Médio, e América Latina, além da Europa. Seuobjetivo é: [...] contribuir para o desenvolvimento de cidades sustentáveis pela facilitação do aumento da sensibilização, geração e disseminação de conhecimento, capacitação, formulação de políticas públicas e planejamento de ações para sistemas alimentares urbanos resilientes e equitativos (RUAF, 2018, p. 1). A Fundação “promove agricultura (intra- e peri-) urbana e sistemas alimentares regionais para cidades mais sustentáveis e resilientes”. Hoje, a Ruaf é formada pelas seguintes organizações: International Water Management Institute, The Institute of Geographical Sciences and Natural Resources Research of the Chinese Academy of Sciences and ETC Foundation. A Ruaf é uma das principais entidades internacionais promotoras da agricultura urbana e é bastante prolífica na produção de conhecimento sobre o assunto. Entre 2000 e 2015 a Ruaf editou 30 números de uma revista exclusivamente dedicada à agricultura urbana e publicou 13 livros, além de outros artigos e relatórios, e realizou diversas conferências (RUAF, 2018, p.1) Ainda em 1999, o comitê técnico de assessoramento sobre agricultura da FAO, o COAG, elaborou seu relatório anual com um capítulo dedicado exclusivamente à agricultura urbana e peri-urbana. Esse relatório concluiu-se com recomendações para que a FAO participasse ativamente nos esforços globais de promoção de agricultura urbana, no estabelecimento de parcerias, na provisão de treinamento e na facilitação de debates sobre o tema (COAG-FAO, 1999). Assim, desde aquele ano, a FAO vem “lidando com a agricultura urbana e peri-urbana como parte integrante dos sistemas agrícolas de produção, e reconhecido o seu papel na alimentação das cidades, na criação de empregos e geração de renda para os 29 pobres urbanos”. Assim, a FAO afirma estar “comprometida a assistir as nações- membros a integrar a agricultura urbana e peri-urbana como componentes de programas nacionais de segurança alimentar e a dar capacitação para o sucesso da sua implementação” (FAO, 2018c, p. 1, tradução livre). Em 2001, a FAO lançou a iniciativa Food for the Cities para “responder aos desafios que a urbanização traz para as populações urbanas e rurais, assim como para o meio ambiente, por meio da construção de sistemas alimentares mais sustentáveis e resilientes” (FAO, 2018a, p. 1). E a agricultura urbana e peri-urbana é considerada pela FAO como um dos principais sistemas produtivos para atingir os objetivos desse programa. Em 2000 a FAO, o IDRC e a UN-Habitat organizaram uma oficina internacional com prefeitos de várias cidades da América Latina e do Caribe no Equador para tratar do fortalecimento da segurança alimentar. Essa oficina resultou na Declaração de Quito, onde os prefeitos participantes firmaram seu compromisso de “abraçar a agricultura urbana” (MOUGEOT, 2006). Nesse encontro, os prefeitos presentes – dentre eles os representantes das cidades de Brasília, Curaçá, Maranguape, Teresina, Fortaleza – estabeleceram o: compromisso de melhorar a gestão de nossas cidades com a promoção de experiências com Agricultura Urbana, constituindo o Grupo de Trabalho “Cidades e Agricultura Urbana na América Latina e no Caribe”, com o propósito de reproduzir e melhorar as políticas e ações municipais em Agricultura Urbana desenvolvidas nas cidades da América Latina e do Caribe para fortalecer a segurança alimentar urbana, enfrentar a pobreza urbana, melhorar o meio ambiente urbano e a saúde, e desenvolver uma governabilidade mais participativa e menos excludente, assim como proteger a biodiversidade urbana (CABBANES; DUBBELING, 2000, p. 1). Assim como convidaram “todos os atores públicos e privados das cidades da América Latina e do Caribe a se comprometerem com o apoio à Agricultura Urbana, sua prática e promoção” (CABBANES; DUBBELING, 2000, p.1). Declarações semelhantes, em que governos locais estabeleceram seu compromisso com o desenvolvimento de políticas públicas e programas de apoio à agricultura urbana, ocorreram Dakar (2002), Addis Abeba (2003) e Beijing (2004), o que sugere uma tendência de aumento na institucionalização desse tema em políticas municipais em todo o mundo. (VAN VEENHUIZEN, 2006). Mais recentemente, em 2009, representantes de governos, instituições de pesquisa, ONGs e organizações internacionais de 12 países da América Latina e do 30 Caribe reuniram-se em Medellín, Colômbia, com o objetivo de discutir estratégias para enfrentar as altas taxas de pobreza urbana e de insegurança alimentar na região. O resultado dessa reunião foi uma proposta de transição urbana para a inclusão social, equidade e sustentabilidade, formalizada na Declaração de Medellín, que incitou governos nacionais, estaduais e locais a “incorporar agricultura urbana e peri-urbana, ou UPA, nos seus programas de erradicação da fome e pobreza, garantia de segurança alimentar e nutricional, promoção do desenvolvimento local e melhoria do ambiente urbano” (THOMAS et al., 2014, p.1, tradução livre). Em 2013 a FAO realizou um levantamento do estado da agricultura urbana e peri-urbana na América Latina e no Caribe, com estudos de caso realizados em 13 das maiores cidades da região. A conclusão desse estudo foi de que essa prática é adotada em larga escala na região. E que, segundo a Organização, a agricultura urbana está agora incorporada ao planejamento para o desenvolvimento de “cidades resilientes e sustentáveis”, como parte integrante do que chamaram de “city region food systems”, ou “sistemas alimentares” criados em torno das regiões das cidades. O resultado dessa análise foi publicado em 2014, em um relatório intitulado Growing greener cities in Latin America and the Caribbean: an FAO report on urban and peri- urban horticulture in the region (THOMAS et al., 2014). 2.1.1 O que é agricultura urbana No que se refere ao conceito e definições acerca da agricultura urbana, enquanto que o TFEN e o Relatório Brundtland não oferecem elaborações detalhadas, Smit e Nasr, em 1992, oferecem um dos conceitos mais antigos dentre as publicações analisadas neste trabalho. Esses autores entendem por agricultura urbana: “cultivo de alimentos e combustível dentro dos ritmos diários da cidade ou vilarejo, produzidos diretamente para o mercado e frequentemente processados e comercializados pelos fazendeiros ou seus associados diretos” (SMIT; NASR, 1992, p.141. Tradução livre) - chama a atenção que essa é uma das poucas ocasiões, talvez o único exemplo dentre os textos analisados em que a produção “diretamente para o mercado” é usada explicitamente na definição mesma de agricultura urbana. 31 Mais tarde, em 1996, Smit e seus colaboradores empregam uma definição diferente para agricultura urbana. Segundo eles, a agricultura urbana poderia ser definida simplesmente como “agricultura que ocorre dentro ou nos limites de uma área metropolitana”. Mas, os autores recomendam uma definição mais rica, enfatizando os elementos que caracterizam a agricultura urbana como vem sendo praticada e, ao mesmo tempo, reconhecendo sua grande diversidade. Assim, para eles, uma definição abrangente deveria considerar os seguintes elementos: localização, tipos de atividades, legalidade e acesso à terra, estágios de produção, escala, objetivos, e tipos de grupos envolvidos (SMIT et al., 1996, p. 1). A FAO, no relatório de 1996 também considera a agricultura urbana como sendo tão somente a “produção de alimentos que ocorre dentro dos limites da cidade”, o que envolveria a produção em lugares tão variados quanto quintais, telhados, hortas ou pomares comunitários ou espaços públicos ociosos. Para a FAO, a agricultura urbana inclui operações comerciais que produzem alimentos em estufas e áreas abertas, mas que, em geral, caracteriza-se pela produção em pequena escala, espalhada pela cidade. A diversidade de produtos também seria bastante grande, mas concentrando-seprincipalmente em cultivares que não precisam de muita terra para cultivo, não precisam de muitos insumos, e que são perecíveis, assim, “frutas, verduras, pequenas criações animais, mandioca, milhos, feijões, peixes e ocasionalmente vacas podem ser vistos nas cidades” (FAO, 1996, p. 1, tradução livre). De acordo com a Organização, as características demográficas também variariam “consideravelmente” entre regiões e condições econômicas. Ainda assim, a maioria dos produtores seria formada por residentes mais antigos das cidades, moderadamente pobres, e mulheres. Apesar das diferenças e condições e oportunidades, o perfil geral seria o mesmo tanto em países desenvolvidos como subdesenvolvidos. Para a FAO o aspecto mais importante da agricultura urbana seria a produção de alimentos para auto-consumo de famílias pobres de países subdesenvolvidos, mas a Organização reconhece que esse não é o único elemento relevante da agricultura urbana, sugerindo a grande diversidade de condições, finalidades, práticas e impactos da agricultura urbana (FAO, 1996). Em 1994, colaboradores do IDRC no livro Cities Feeding People destacaram 32 a dificuldade em se definir agricultura urbana, e também peri-urbana. Isso devido não só à grande diversidade de tipos de produtos cultivados, mas também dos meios de distribuição, dos sistemas produtivos e das áreas utilizadas para plantio. Segundo os autores, a falta de uma definição comum e da padronização de algumas variáveis, como medidas de produtividade, vinha dificultando a realização de estudos comparativos. E esses últimos seriam importantes para estimular políticas públicas ligadas ao tema. Ainda assim, os estudos compilados no livro, realizados no Quênia, Tanzânia, Etiópia e Uganda, revelaram algumas características consideradas comuns das iniciativas de agricultura urbana estudadas, como, por exemplo, que a produção urbana de alimentos era importante tanto para a renda quanto para o consumo das famílias. Além disso, ao contrário do esperado, em sua maioria os agricultores urbanos identificados não eram migrantes recém-chegados nas cidades, mas moradores mais antigos, de vários perfis socioeconômicos, ainda que a auto- produção de alimentos seria mais importante principalmente nos domicílios onde a renda era mais baixa, e chefiados por mulheres. E que, apesar da relevância da agricultura urbana, os produtores enfrentariam dificuldades de acesso à terra, falta de informações e assessoria técnica, e o descaso, ou mesmo perseguição de autoridades locais. (EGZIABHER, 1994). Em 1999, Luc Mougeot enfrentou a questão do conceito de agricultura urbana em um grande relatório para o Cities Feeding People Report Series, do IDRC. Ele defendeu a necessidade de amadurecimento do conceito de agricultura urbana e que, para isso, seriam necessárias mais “coerência interna” e “funcionalidade externa” do conceito, para que se tornasse realmente uma “ferramenta útil” (MOUGEOT, 1999). Em última instância, a preocupação do autor era também com a promoção de políticas públicas favoráveis ao tema. Por maior “coerência interna”, Luc Mougeot pretendeu melhorar a correspondência entre a definição de agricultura urbana e sua realidade empírica. Por exemplo, o autor chamou a atenção para a necessidade de se diferenciar “agricultura na zona peri-urbana” e “agricultura peri- urbana”. Assim, nas definições revisadas por Mougeot, excluindo-se os aspectos ligados a “localização”, não haveria diferenças entre a definição de agricultura rural e agricultura urbana. Já no que se refere à “funcionalidade externa”, Mougeot 33 defendeu que o conceito de agricultura urbana precisaria ser claro o suficiente para se complementar e se articular com outros conceitos como, por exemplo, o desenvolvimento urbano sustentável. Dessa forma, Mougeot deu destaque para a principal característica que, segundo ele, distinguiria a agricultura urbana da agricultura rural, que seria sua “integração ao sistema econômico e ecológico urbano”, algo que ele chamou de “eco-sistema” local. Ou seja, não seria a localização que distinguiria a agricultura urbana, mas o fato de que ela está incrustada e articulada com o “eco-sistema” urbano (MOUGEOT, 1999) A partir dessa reflexão, Mougeot propôs a seguinte definição alternativa para agricultura urbana: […] uma indústria localizada dentro (intra-urbana) ou na margem (peri- urbana) de uma vila, cidade ou metrópole, que planta ou cultiva, processa e distribui uma diversidade de produtos alimentares e não-alimentares, (re)utilizando em grande parte recursos humanos e materiais, produtos e serviço encontrados dentro ou no entorno de áreas urbanas, e por sua vez suprindo recursos humanos e materiais, produtos e serviços em sua maioria para aquela área urbana. (MOUGEOT, 1999, p.11, tradução livre). Mais tarde essa definição foi adotada pela UH-Habitat, pelo Programa Especial de Segurança Alimentar da FAO e o Cirad - Centre de coopération internationale en recherche agronomique pour le développement7 (MOUGEOT, 2005). Segundo Mougeot, a agricultura pode ser mais ou menos urbana de acordo com sua capacidade de usar o eco-sistema urbano e, por outro lado, ser usada pelo mesmo sistema. No lado da produção, a integração entre agricultura urbana e o eco- sistema urbano pode ser ilustrada pela sua complementaridade com a agricultura rural. De acordo com Mougeot, a agricultura urbana se distingue da rural na medida em que ela oferece aos mercados produtos distintos daqueles produzidos pela agricultura rural, por exemplo, enquanto a primeira se especializaria em hortaliças perecíveis, a segunda se dedicaria a produção de grãos. Além disso, a agricultura urbana estaria mais voltada para a produção para o auto-consumo, ou para mercados com menos intermediários. No lado dos insumos, a agricultura urbana 7 O Cirad é uma instituição pública de pesquisa ligada aos Ministérios franceses de Educação Superior, Pequisa e Inovação e da Europa e Assuntos Estrangeiros. Suas pesquisas se dão nas áreas de ciências da vida, ciências sociais e engenharias aplicadas à agricultura, alimentação, meio ambiente e gestão de territórios. Sua missão é produzir e transmitir conhecimentos sobre inovação e desenvolvimento agrícola com seus “parceiros do Sul” (CIRAD, 2018) 34 faria mais uso de rejeitos gerados por outras atividades urbanas, como resíduos e efluentes orgânicos. Apesar de reconhecer que há poucas evidências empíricas, Mougeot defende que a agricultura encontrada em todas as cidades seria uma combinação entre agriculturas rural, peri-urbana e intra-urbana, sendo essa última aquela mais integrada ao eco-sistema urbano. E que a agricultura tenderia a se tornar mais urbana e mais integrada ao eco-sistema urbano por processos que se acumulariam ao longo do tempo e que seriam mais numerosos em cidades maiores. Ou seja, para o autor, a agricultura tenderia a se tornar mais urbana na medida em que o tempo passa e as cidades crescem (MOUGEOT, 2005). Sobre algumas características da agricultura e dos agricultores urbanos, diz Mougeot que “todo mundo faz um pouco de agricultura urbana, mas uns fazem mais que outros”, e, por causa dessa diversidade, ele propõe um sistema de classificação de produtores urbanos baseados nos seguintes critérios: zona da cidade, localização do sítio, modelo de tenência da terra, status socioeconômico, sistema de produção, escala de produção, alocação de tempo, destino da produção. Ainda assim, apesar da diversidade, Mougeot afirma que “a maioria dos produtores urbanos são homens e mulheres que cultivam alimentos em grande medida para auto-consumo em pequenos lotes que eles não possuem, com pouco ou nenhum suporte ou proteção” (MOUGEOT, 2005, p. 17, tradução livre). Em geral os produtores seriam de cidades menores, mas em sua maioria não seriamrecém-chegados. Em muitos levantamentos reunidos por Mougeot as mulheres tendem a ser predominantes, mas, segundo o autor, esse fenômeno ainda precisaria ser mais bem compreendido (MOUGEOT, 2005). Além da riqueza de perfis de produtores, outra característica da agricultura urbana que Mougeot destaca é a variedade de sistemas produtivos. Para ele, em geral o tipo de agricultura urbana empregada responderia a restrições externas, principalmente acesso à terra e a insumos. As formas de uso intensivo do espaço seriam encontradas principalmente em áreas centrais, enquanto formas mais extensivas migrariam para as periferias móveis da cidade, acompanhando o desenvolvimento urbano. Nesse sentido, o autor defende a importância do gerenciamento da agricultura urbana, que envolveria decisões sobre produtos 35 produzidos e escalas de operação que seriam permitidas para cada parte da cidade, como uma espécie de zoneamento. (MOUGEOT, 1999). Ainda assim, o autor reconhece que a agricultura urbana é tipicamente oportunista: “está em qualquer e todo o lugar onde pessoas podem encontrar mesmo o menor dos espaços para plantar algumas sementes” (MOUGEOT, 2006, p.5). Curiosamente, Mougeot em 2006 retorna a uma definição de agricultura urbana mais simples, típica da década de 1990: o cultivo, processamento e distribuição de plantas alimentares e não alimentares e cultivares arbóreos e a criação de animais, diretamente para o mercado urbano, tanto dentro quanto na margem da área urbana. Ela faz isso acionando recursos (espaço não usado ou subutilizado, resíduos orgânicos), serviços (extensão técnica, financiamento, transporte) e produtos (agroquímicos, ferramentas, veículos) encontrados nessa área urbana e, por sua vez, gerando recursos (áreas verdes, microclimas, composto), serviços (provisões, recreação, terapia) e produtos (flores, ovos, laticínios) principalmente para essa área urbana (SMIT et al., 1996; MOUGEOT, 2006). Mougeot fez um balanço dos 30 anos de desenvolvimento de políticas em agricultura urbana, e extrai como características gerais principais: que a agricultura urbana não seria nem algo temporário, remanescente de uma cultura rural, nem um sintoma negativo de um desenvolvimento urbano interrompido; que, paradoxalmente, a agricultura urbana seria mais desenvolvida no hemisfério Norte do que no Sul, onde ela seria mais importante para o bem-estar dos citadinos; e que no Sul as políticas de apoio à agricultura urbana seriam menos desenvolvidas, mas também que esse cenário viria se alterando nas últimas décadas (MOUGEOT, 2006). 36 Então, importa reconhecer como, ao longo desses trinta anos de desenvolvimento do tema, variaram o contexto, os problemas observados e as justificativas empregadas pelas ONGs e agências internacionais para a promoção da agricultura urbana. E convém, assim, observar como isso foi representado nas principais publicações internacionais identificadas até agora, conforme será feito a seguir. 2.2 Das motivações atribuídas para o envolvimento c om agricultura urbana. O TFEN apresenta dois problemas gerais que motivaram a realização do projeto e que o conduziram a dar atenção à da agricultura urbana. Ambos estão ligados à crise energética vivida pelo mundo nos anos 1970. O primeiro foi o aumento de preços do barril de petróleo, que significou, para os países de industrialização avançada, dificuldades na aquisição de insumos para abastecer seus sistemas alimentares altamente dependentes de energia e petróleo. Para os países subdesenvolvidos, isso significou possíveis limitações no longo prazo, já que os altos custos de energia e fertilizantes (a base de petróleo) restringiram o potencial de aplicação do pacote tecnológico da Revolução Verde8. O outro problema afligiu especificamente países subdesenvolvidos onde, além das dificuldades ligadas a obtenção propriamente dita de alimentos, somaram-se limitações energéticas para a sua cocção. Ou seja, estava cada vez mais difícil, devido a restrições financeiras e de tempo de trabalho, notadamente para mulheres e crianças, obter lenha para o preparo de alimentos (SACHS; SILK, 1988). É nesse contexto que o TFEN identifica a relevância da agricultura urbana. O projeto se propôs atacar “sinergisticamente” as questões de energia e alimentação. O problema central identificado pelo trabalho seriam as interações entre o aumento dos preços dos combustíveis e o consequente aumento dos custos de transporte e 8 Chama-se de Revolução Verde o processo de industrialização da produção agrícola ocorrido em escala global nas décadas de 1960 e 1970. Esse processo é caracterizado por aumento de escala da produção baseado no uso de máquinas pesadas, herbicidas e fertilizantes químicos, com foco no processamento de alimentos para exportação (Moreira, 2000). 37 da produção agrícola, que iriam “inevitavelmente elevar os preços de alimentos para fora do alcance de milhões de pessoas já famintas”. Na visão dos autores, o crescimento das populações humanas, apesar dos “esforços de reduzir taxas de fertilidade”, deveriam provocar também o aumento das demandas tanto por alimentos quanto por energia. Para eles, os países em desenvolvimento não poderiam resolver o problema da alimentação sem resolver o problema energético e, sem uma solução satisfatória para ambos, seu crescimento econômico seria severamente restringido. A centralidade do nexo entre alimentos e energia exigiria uma abordagem abrangente. Assim, “apenas por meio de um claro entendimento do pivot alimentos-energia a situação pode ser revertida” (SACHS; SILK, 1988, p. 1, tradução livre) O trabalho do TFEN apoiou-se na noção de eficiência no uso de energia e insumos, e no conceito de ecodesenvolvimento (SACHS, 1980). Os eixos do projeto foram o desenvolvimento de sistemas integrados alimentos-energia como catalisadores para o desenvolvimento rural e a industrialização; e a construção de estratégias alternativas de desenvolvimento urbano baseadas em maior autossuficiência. Assim, mesmo que, segundo o relatório, a agricultura urbana não pudesse substituir outras estratégias, e “por isso programas de redistribuição de renda precisam continuar”, ela teria a vantagem de “gerar independência (...) ela usa muitos dos princípios do desenvolvimento local autossuficiente baseado em iniciativas que podem ser tomadas diretamente pelas pessoas locais usando recursos já disponíveis na comunidade” (SACHS; SILK, 1988, p. 5, tradução livre). O artigo de Smit e Nasr de 1992 avança sobre a questão da agricultura urbana por meio de uma abordagem ecossistêmica. O problema principal posto pelo artigo é que cidades sustentáveis precisariam de processos econômicos que fechassem seus “sistemas de circuito aberto”, em que os insumos utilizados são importados de outros locais para áreas urbanas, e os resíduos, por sua vez, são lançados como rejeito na sua “bioregião” ou na biosfera. Para os autores, o crescimento da agricultura urbana, que usa resíduos sólidos e efluentes líquidos como insumos, poderia fechar os “circuitos ecológicos” urbanos, e dar uma utilidade eficiente para os espaços e corpos hídricos desocupados das cidades (SMIT; NASR, 38 1992). Esse artigo foi explicitamente inspirado pelo trabalho do Food-Energy Nexus. É deste último que provêm a inspiração pela promoção da “eficiência” nos processos urbanos e, daí, o interesse na reciclagem de resíduos, na otimização no uso do espaço e de insumos e na conservação de energia. A questão principal do trabalho é como promover, diante da rápida urbanização e crescimento das cidades, especialmente no Terceiro Mundo, uma cidade “ecologicamente eficiente”, onde todos os recursos ociosos são maximizados e a geração de resíduos é minimizada (SMIT; NASR, 1992). A abordagem relacionada à ecoeficiênciada cidade faz parte do contexto da discussão ambiental da época, notadamente da noção de desenvolvimento sustentável, consagrada pelo Relatório Brundtland. A preocupação com a eficiência no uso de recursos fica explícita, por exemplo, na menção à agricultura urbana no Relatório Brundtland, no subcapítulo “O desafio urbano nos países em desenvolvimento”, mais especificamente na seção “Aproveitando mais recursos”. De acordo com o relatório, os recursos disponíveis dentro ou próximo das cidades frequentemente são subutilizados, já que “muitos proprietários de terra mantém muitos locais bem localizados subdesenvolvidos, para mais tarde se beneficiarem do aumento de seu valor na medida em que a cidade cresce”. É nesse espírito, de que a terra seria um recurso subutilizado, que os autores sugerem que os governos deveriam apoiar a agricultura urbana, principalmente onde o mercado de terras é menos desenvolvido, para “reunir terra para o bem comum”. (BRUNDTLAND et al, 1987, p. 211, tradução livre) De acordo com o relatório Brundtland, o rápido crescimento populacional dificulta a provisão de serviços básicos necessários a uma “vida adequada”, como: água limpa, saneamento, escolas e transporte. Já a “expansão física descontrolada” implica em “perdas desnecessárias” de terra (ex. terras agricultáveis e áreas verdes), acompanhadas por impactos ambientais e econômicos. Ainda segundo Brundtland e seus colaboradores, [...] em geral, o crescimento urbano precede o estabelecimento de uma base econômica sólida, diversificada, para suportar a construção de moradias, infraestrutura e emprego. [...] a crise econômica dos anos 1980 39 não apenas reduziu rendas, aumentou o desemprego e eliminou muitos programas sociais, mas também exacerbou a já pequena prioridade dada aos problemas urbanos, aumentando a deficiência crônica de recursos necessários para construir, manter e gerir áreas urbanas (BRUNDTLAND et al, 1987, p. 241). Já ao longo da década de 1990 o foco da relevância dada à agricultura urbana parece se alterar sutilmente, e passa a orbitar mais em torno de questões ligadas à segurança alimentar senso estrito. Por exemplo, o livro de Smit e seus colaboradores de 1996 apresenta o tema de agricultura urbana de uma maneira diferente daquela feita em seu artigo de 1992. O aspecto central não se refere mais, tanto, à eficiência ecológica das cidades. Para os autores, a [...] agricultura urbana é uma atividade econômica significativa, central para as vidas de dezenas de milhões de pessoas ao redor do mundo. É uma indústria em rápido crescimento que é cada vez mais essencial para a segurança econômica e nutricional de residentes urbanos, e que possui amplas implicações econômicas, ambientais e de saúde (SMIT et al., 1996, p. 1, tradução livre). Assim, da mesma forma como em seu artigo de 1992, Smit e os co-autores defendem o papel da agricultura urbana na promoção da “cidade sustentável”. Entretanto, é dada mais atenção à questão alimentar. O problema apresentado seria a “rápida urbanização”, especialmente em países de “baixa renda” e com “carência de alimentos”. Assim, de acordo com os autores, o fenômeno da urbanização incluiria o [...] terrível fato de que a pobreza está deixando de ser predominantemente rural para ser principalmente urbana. Significativamente, insegurança alimentar e desnutrição afetam mais áreas urbanas de baixa renda do que vilarejos pobres, o que exige produção de alimentos dentro de áreas urbanas para prover benefícios não-monetários para os pobres” (SMIT et al., 1996, p. 3, tradução livre). Os autores destacam a oportunidade de se analisar a agricultura urbana à luz dos sistemas, urbanos e nacionais, de oferta e demanda de alimentos. O ponto de partida dessa análise é o reconhecimento que a urbanização afetaria a estrutura de oferta e demanda de alimentos de todo um país. Do lado da demanda, segundo os autores, nas cidades cresceria o consumo de alimentos industrializados, processados, carnes e produtos importados. Do lado da oferta, a urbanização induziria o desenvolvimento de infraestruturas de transporte, processos de acondicionamento, armazenamento e comercialização mais elaborados para prover 40 a cidade com alimentos de áreas rurais remotas e do estrangeiro. Para Smit e seus colaboradores, com a rápida urbanização, mais moradores das cidades precisariam de comida, mas em muitos casos isso não seria acompanhado pela produtividade agrícola e pelos sistemas de transporte e comercialização, principalmente em “países em desenvolvimento”. Ou seja, seria nos momentos em que os sistemas de transporte e comercialização desses alimentos de origens distantes não funcionam bem que a agricultura urbana se tornaria uma opção “competitiva”, e prosperaria (SMIT et al., 1996). Em publicação do IDRC de 1994, alega-se que o interesse pela produção urbana de alimentos resultou da constatação de que esse fenômeno vinha aumentando na África Subsaariana. Isso poderia ser explicado pelo fato de que aquela região era a única parte do mundo onde a produção per capita de alimentos declinou durante a década de 1980, e onde a oferta inadequada de alimentos estava sendo exacerbada por pressões do ajuste estrutural que reduziram a oferta de emprego e a queda de preços de cultivares de exportação que, tanto aumentaram o êxodo rural, quanto reduziram a capacidade dos governos de manter estoques de alimentos. Além disso, naquele momento, a capacidade mundial de oferecer emergencialmente alimentos estaria pressionada por uma crise geral de forme e guerras. Diante desse contexto, para o IDRC, caso as políticas de ajuste estrutural fossem bem-sucedidas, a agricultura urbana deveria crescer ainda mais, devido ao desemprego, ao recuo dos serviços públicos, ao crescimento populacional, à restrição das mulheres aos espaços domésticos, e à demanda crescente pela oferta abundante, regular, barata de alimentos de boa qualidade (EGZIABHER et al, 1994). Na mesma publicação, Mougeot, colaborador do IDRC, reconhece que a agricultura urbana não seria um fenômeno novo, já que haveria registros arqueológicos de produção de alimentos em cidades em períodos tão diversos e antigos quanto o império Persa e as cidades-estados gregas, até cidades pré- Olmecas. O autor também cita exemplos de produção urbana de alimentos no século XX em cidades da Ásia, inclusive com apoio de governantes e planejadores. Mas, afirma Mougeot, a partir da década de 1970 a agricultura urbana viria crescendo em partes do “mundo em desenvolvimento”, segundo ele, devido a 41 fatores como: rápida urbanização, políticas agrícolas ineficientes, sistemas domésticos ruins de distribuição de alimentos, gastos públicos e subsídios reduzidos, cortes nos salários, inflação, desemprego, queda acentuada no poder de compra, e regulações e fiscalização frouxas para o uso da terra, além de guerras, conflitos civis e desastres naturais que prejudicam a produção rural de alimentos e as linhas de abastecimento das cidades (MOUGEOT, 1994). Para Smit e seus colaboradores, ao contrário de ser episódica ou ligada a crises momentâneas, a insegurança alimentar teria se tornado crônica e sistêmica nas cidades, e não se restringiria às classes de renda ou países mais pobres – mas eles não exploram as razões dessa insegurança crônica. Nesse sentido, os autores defendem que a agricultura urbana poderia contribuir para “aliviar essa crise”. Ainda que não fosse “a única resposta para a insegurança alimentar urbana, mas em muitas situações é um elemento essencial dessa resposta, que vai ser um tanto diferente na forma de sua aplicação em cada cidade ou país” (SMIT et al., 1996, p. 22, tradução livre). No relatório State of Food and Agriculture, de 1996, a FAO afirma que, apesar das dificuldades de quantificação precisa, a agricultura urbana teria um “potencial escondido”