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60 11 CULTURAS AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA NA SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA O século XVI foi marcado por um choque cultural sem proporções na história da humanidade, pois colocou em lados opostos grupos com culturas e visões de mundo antagônicas. Portugueses e indígenas possuíam entendimentos distintos em relação à riqueza, à utilização da terra, ao trabalho, às relações pessoais, à organização social, etc. Esse caldo cultural “engrossa” mais quando um novo elemento entra em cena, o africano. Como você vai ver, aspectos culturais de origem africana e indígena contribuíram para a formação do Brasil. Apesar da violência à qual os indígenas e africanos foram historicamente submetidos, eles conseguiram burlar as regras estabelecidas e sobreviver, mesclando sua cultura à cultura dominante e tornando o Brasil, ao contrário do que pretendiam os colonizadores portugueses, um país plural. 11.1 A colonização do Brasil: táticas de resistência cultural O processo de conquista e colonização das terras brasileiras pelos portugueses se inseriu na lógica da expansão ultramarina europeia, iniciada no século XV pelos reinos ibéricos de Portugal e Espanha e difundido, posteriormente, para as demais nações daquele continente. De maneira geral, esses reinos buscaram expandir o seu território conquistando novos mercados consumidores, obtendo recursos naturais e eliminando outros povos que se opuseram aos seus objetivos. Esse empreendimento colocou em contato visões de mundo antagônicas que dificilmente poderiam conviver de maneira pacífica, uma vez que o modelo colonizador utilizado pelos europeus determinava apenas um padrão de comportamento, o proposto pelos próprios colonizadores, que deveria ser seguido à risca pelos colonizados. Isso traz à tona a violência que todo processo de colonização possui em sua essência: a eliminação do outro, seja física, simbólica ou culturalmente. 61 Certeau (2009), em A Invenção do Cotidiano, analisou como o ser humano consegue criar um modelo de comportamento denominado por ele de “arte de fazer”. Fugindo dos padrões e regras impostos pelo modelo dominante, os indivíduos inventam o seu cotidiano criando, de maneira sutil, diversas “táticas” de resistência e sobrevivência, de modo que códigos e objetos são alterados em seu benefício. Essa noção é de suma importância para que você possa compreender como se deu a permanência de características culturais de africanos e indígenas na cultura brasileira. Essa questão evidencia as condições nas quais a nação brasileira foi forjada. Estava em jogo um projeto político criado pela coroa portuguesa, que deveria ser levado a cabo por indivíduos que vinham para a terra brasilis em busca de fama e riqueza, incentivados pela notícia de que ouro e prata haviam sido encontrados pela coroa espanhola no mesmo continente. Apesar de ser pioneiro no processo das grandes navegações, o reino de Portugal não possuía condições materiais suficientes para efetivar a conquista e a posse do território. Além disso, havia total desconhecimento da fauna e da flora da região, uma vez que o litoral brasileiro é formado por aproximadamente 7.300 km de extensão, habitados então por povos distintos. 11.2 Os indígenas sob o olhar europeu: entre o bom e o mau selvagem A expansão ultramarina levou os europeus ao encontro de um continente até então desconhecido por eles: a América. Da mesma maneira, houve um conhecimento das populações nativas dessa região, que, apesar de possuírem características heterogêneas entre si, se assemelhavam por se diferenciarem física e culturalmente dos europeus. No aspecto cultural, é emblemática a percepção das diferenças na organização social, a qual diferia bastante dos modelos preconizados pelas sociedades europeias. A percepção das diferenças entre indígenas e europeus suscita um debate acerca da humanidade daqueles. Os portugueses se questionavam sobre a 62 existência da alma indígena e sobre a possível conversão dos índios. Sobre essa questão, veja o que afirma Laplantine (2007, p. 37–38): A grande questão que é então colocada, e que nasce desse primeiro confronto visual com a alteridade, é a seguinte: aqueles que acabaram de ser descobertos pertencem à humanidade? O critério essencial para saber se convém atribuir- -lhes um estatuto humano é, nessa época, religioso: o selvagem tem uma alma? O pecado original também lhes diz respeito? O olhar europeu sobre a população nativa cria dois modelos que servem de explicação para a percepção a respeito dos indígenas durante o processo de colonização. Esses arquétipos inserem grupos inteiros sob uma mesma denominação, estabelecendo modelos de ação perante a população nativa. São eles: o “bom selvagem” e o “mau selvagem”. A definição de mau selvagem recai sobre aqueles indivíduos que possuem estas três características: “estar nu ou vestido de peles de animais” (aparência física); “comer carne crua/canibalismo” (comportamentos alimentares); “falar uma língua ininteligível” (inteligência, a partir da linguagem) (LAPLANTINE, 2007). Na Figura 1, a seguir, você pode observar dois quadros pintados pelo holandês Albert Eckhout, que esteve no Brasil entre os anos de 1637 e 1644. Neles, é possível identificar a oposição entre o “bom” e o “mau” selvagem. A mulher tupi é representada sob o viés maternal. Ela carrega a vida ao segurar seu filho no colo, eliminando qualquer possibilidade de ameaça. Além disso, transporta um recipiente com água e uma cesta com produtos manufaturados e veste uma saia branca (inserida no seu vestuário pelos colonizadores). Na paisagem, é possível identificar três características que fazem menção à colonização europeia nos trópicos: a bananeira, planta introduzida no Brasil pelos portugueses; a paisagem colonial, com a plantação de cana-de-açúcar; e a casa-grande no engenho. 63 Em contrapartida, a mulher tapuia carrega a morte, um cesto com uma perna decepada. Na sua mão direita, ela segura a mão de outro indivíduo, remetendo à prática do canibalismo. Está nua, mesmo que parcilamente coberta por folhas, e calça sandálias de fibras vegetais. Já a paisagem representa a cena de guerreiros armados, ao fundo, demonstrando a condição natural dessa sociedade sem contato com os “civilizadores” europeus. Esses olhares criados sobre a população nativa demonstram tanto o posicionamento dos nativos em relação aos europeus quanto o modo como estes últimos perceberam as trocas culturais entre os povos. De um lado, posicionam-se aqueles que lutaram contra o invasor, mantendo suas práticas religiosas e culturais e abertamente inimigos do europeu (maus selvagens). Do outro lado, figuram aqueles grupos que aceitaram determinados aspectos da colonização, como roupas, língua e religião, submetendo-se ao poder colonial, mas, apesar disso, não conseguindo tratamento igualitário (bons selvagens). 64 11.3 Índios e negros na literatura brasileira Na literatura brasileira há representações de índios e negros que expõem muito mais a visão do autor do que necessariamente aquilo que ele deseja representar. Tais obras ganham notoriedade por dois aspectos que se relacionam entre si. O primeiro deles é a amplitude de leitores que são capturados pelas páginas dos romances, sendo mais fácil um leitor conhecer uma obra de ficção do que um livro acadêmico. Já o segundo é o fato de que, embora sejam obras de ficção, elas possuem em comum a semelhança com a realidade, o que traz à tona a possibilidade de serem analisadas sob a óptica da verossimilhança. Afinal, em determinada medida, tais obras lançam uma luz sobre a sociedade na qual estão inseridas, demonstrando os medos, anseios e pensamentos de uma época. Conforme destaca Chartier (2010, p. 21), “As obras de ficção, ao menos alguma delas, e a memória, seja ela coletiva ou individual, também conferem umapresença ao passado, às vezes ou amiúde mais poderosa do que a que estabelecem os livros de história [...]”. Tendo como base esse pressuposto, a seguir você vai ver como a ficção criou representações e perfis para africanos escravizados e índios na sociedade brasileira. Você também vai verificar como esses lugares comuns foram sendo considerados pela sociedade como definidores de comportamento da população afrodescendente e indígena no Brasil, sendo retroalimentados por outras mídias, como novelas e filmes. 11.4 Coragem, nobreza e solidariedade: a poesia indianista Gonçalves Dias foi o poeta que deu início à idealização do indígena na literatura brasileira. Na corrente do Romantismo, o nativo é associado à coragem, à compaixão, à bondade, à nobreza e à solidariedade, da mesma forma que os cavaleiros medievais no imaginário europeu. Autor de diversos poemas indianistas, como I-Juca-Pirama, Marabá e Canção do Tamoio, Gonçalves Dias reflete a 65 percepção sobre os indígenas no Brasil enquanto um ideal distante, que não pode mais ser alcançado. I-Juca-Pirama (“aquele que deve morrer”), escrito em 1851, é considerado a obra máxima do autor. Ela conta a história de um nobre índio tupi que, após ser derrotado, torna-se prisioneiro de outra tribo, os timbira. O guerreiro tupi encontra o seu pai com saúde debilitada, pois está velho e doente, então toma uma decisão inusitada, pedindo ao chefe timbira que o deixe voltar para a sua tribo para cuidar do progenitor. Porém, na cultura indígena, esse ato é interpretado como covardia. É isso o que pensa o seu pai quando o guerreiro retorna à tribo para informar a sua decisão. O pai recebe o filho com desprezo e indignação, afinal este humilhou não só a si, mas a toda a sua geração. Então, para provar o seu valor e recuperar a sua honra, o guerreiro decide ir lutar sozinho contra os inimigos. Após vários combates, a vitória é obtida e o chefe da tribo timbira encerra a luta. O pai reconhece o valor do filho, digno de ser chamado novamente de tupi. Em outro poema, Canção do Tamoio, um guerreiro da tribo tamoio explica ao seu filho recém-nascido qual é o seu papel no mundo, como ele deve se comportar frente aos perigos da vida. Ou seja, o pai informa ao filho que tipo de comportamento é esperado que ele exerça, não só pelo seu pai, mas por todos os membros da tribo tamoio e dos outros povos que vierem a ter contato com eles. Veja: I. Não chores meu filho; não chores, que a vida é luta renhida: viver é lutar. A vida é combate, que os fracos abate, que os fortes, os bravos só podem exaltar. II. Um dia vivemos! O homem que é forte não tema da morte; só teme fugir; no arco que entesa tem certa uma presa, quer seja tapuia, condor ou tapir. III. O forte, o cobarde, seus feitos invejam de o ver na peleja garboso e feroz; e os tímidos velhos nos graves conselhos, curvadas as frontes, escutam-lhe a voz! IV. Domina, se vive. Se morre, descansa dos seus na lembrança, na voz do porvir. Não cures da vida! Sê bravo, sê forte! Não fujas da morte, que a morte há de vir! [...] XI. E cai como o tronco do raio tocado, partido, rojado por larga extensão; assim morre o forte! No passo da morte triunfa, conquista mais alto brasão (DIAS, 1852). Outro exemplo das obras indianistas de Gonçalves Dias é Marabá. O termo que dá título à obra é de origem tupi e significa “de mistura”. Nesse poema, Gonçalves Dias expõe o dilema de uma índia mestiça que é recusada pelos índios guerreiros justamente por sua condição. A personagem Marabá possui olhos com 66 “cor das safiras”, rosto “da alvura dos lírios” e “loiros cabelos”, porém não consegue encontrar um guerreiro que a deseje, terminando por viver “[...] sozinha, chorando mesquinha, que sou Marabá!” (DIAS, 1968, p. 325). Essas representações da população indígena presentes nas obras literárias criam um ideal que se encaixa em um perfil de guerreiros honrados. Assim, impossibilita-se outra manifestação cultural e psicológica. Além disso, entra em cena a crença em um tipo indígena preso no passado, que não conseguiu acompanhar o desenvolvimento da civilização brasileira. 12 A ESCRAVIDÃO NO BRASIL: DENÚNCIAS E CRUELDADE No ano de 1869, Joaquim Manuel Macedo publica um romance intitulado As Vítimas-Algozes: Quadros da Escravidão, uma obra de literatura que propõe uma espécie de denúncia contra a escravidão praticada no Brasil. Seu autor era um emancipacionista convicto e defende, utilizando diversos argumentos, o fim da escravidão, pois para ele “A escravidão gasta, caleja, petrifica, mata o coração do homem escravo [...]” (MACEDO, 1869, p. 53). O romance narra a história de três escravizados, todos com características que têm o objetivo de demonstrar como a sociedade era afetada pela escravidão. São eles: Simeão, o crioulo; Pai-Raiol, o feiticeiro; e Lucinda, a mucama. Apesar de ser uma obra de ficção, o autor deixa claro o seu papel de denúncia, na medida em que os textos escritos são “[...] romances sem atavios, contos sem fantasias poéticas, tristes histórias passadas aos nossos olhos, e a que não poderá negar-se o vosso testemunho [...]” (MACEDO, 1869, p. 1). A construção da argumentação de Macedo (1869) é baseada na ideia de que a escravidão era um atraso econômico, uma ideia inaceitável em um país que deveria passar por um processo de modernização, deixando de ser agrícola. Além disso, o autor defende uma linha de pensamento que demonstra a crueldade desse sistema: a escravidão era um veneno e criava inimigos dentro de casa. Isso mostra que Macedo (1869) entende o escravo como o verdadeiro inimigo, pois é
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