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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS FACULDADE NACIONAL DE DIREITO A SITUAÇÃO DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS NO BRASIL INGRID DE ANDRADE RODRIGUES RIO DE JANEIRO 2020.2 2 INGRID DE ANDRADE RODRIGUES A SITUAÇÃO DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS NO BRASIL Monografia de final de curso, elaborada no âmbito da graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como pré-requisito para obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação da Professora Dra. Mariana Trotta Dallalana Quintans RIO DE JANEIRO 2020.2 3 CIP - Catalogação na Publicação 4 INGRID DE ANDRADE RODRIGUES A SITUAÇÃO DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS NO BRASIL Monografia de final de curso, elaborada no âmbito da graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como pré-requisito para obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação da Professora Dra. Mariana Trotta Dallalana Quintans Data da Aprovação: 01/06/2021 Banca Examinadora: _______________________________________ Orientadora: Mariana Trotta Dallalana Quintans _______________________________________ Membro da Banca Philippe Oliveira de Almeida _______________________________________ Membro da Banca Renata Versiani 5 Aos amores da minha vida: Isonete, Célinho, Leda (in memorian) e Iracema e todas as mulheres que mantêm seus lares através do trabalho doméstico. 6 AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus e meus Guias por toda a saúde, força e proteção. Aos meus incríveis e maravilhosos pais, que sempre se esforçaram e abdicaram muito pela minha educação, sem vocês eu jamais chegaria até aqui. Agradeço a minha irmãzinha Kassia por me amar todos esses anos. Ao meu namorado Tiago que me enche do mais puro amor todos os dias da minha vida. Ao Henrique, irmão que Nacional me deu, sem você essa faculdade não faria sentido. A minha grande e incrível amiga Mariana Cruz, que entende como é morar quilômetros da faculdade e compartilha seu grande amor por mim. A minha incrível, sensacional e querida Isabelle Dessimoni que por mim deveria ser a diretora dessa faculdade (Junto ao Goiano). A minha pista de dança Mariana Chrysostomo, obrigada por tudo. Aos meus gatos Nina, Liv, Jujuba, Pirulita, Pretinha e Amarelo por toda companhia nas noites de ansiedade. Agradeço à minha orientadora, Mariana Trotta, por todos os aprendizados na faculdade e, especialmente, por não me deixar desistir de concluir essa graduação. Por fim, agradeço a mim mesma por não desistir de construir um futuro melhor para minha família e para mim e ir contra todas as previsões negativas que eram feitas para a minha vida. Eu venci. 7 RESUMO A presente monografia tem como objetivo apresentar a situação das trabalhadoras domésticas brasileiras e um recorte sobre como a Pandemia de Covid-19 agravou a vulnerabilidade dessas mulheres, seja no ambiente laboral (casa de uma família) ou no trajeto para o trabalho. Nesse segmento, o presente trabalho abordará uma breve análise histórica do surgimento do emprego doméstico no Brasil, mostrando a forma de como este é um reflexo do período de escravidão no país na atualidade, mantendo os mesmos padrões. Será feita uma análise da luta das mulheres negras para conquistar e garantir direitos para a categoria, tamanha a desvalorização desta no Brasil. Por fim, serão apresentadas propostas com possíveis soluções para uma segurança de emprego digna para essas trabalhadoras a partir do ponto de vista dos filhos dessas mulheres. Palavras-chave: Trabalho doméstico - resquícios de escravização - Covid-19 - Racismo Estrutural. 8 ABSTRACT This monography has the objective to present the situations of Brazilians’ domestic workers and a cutting from how the COVID-19 Pandemic aggravated this women’s vulnerability both at work environment (family's house) and on commute to work. On this segment, the present work will approach a brief historical analysis of the domestic work's appearance in Brazil showing how it's a reflection from slavery on the country on present keeping the same pattern. It will analyse the black women's fight to conquer the category's rights such is the devaluation. Finally, it will be presented proprosal with possible solutions to ensure security and dignity for this workers from the point of view from their children. Keywords: domestic work - slavery's remnant - covid-19 - structered racism. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 11 QUEM SÃO AS TRABALHADORAS DOMÉSTICA NO BRASIL 14 1.1 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA SITUAÇÃO DAS MULHERES EM EMPREGO DOMÉSTICO NO BRASIL 14 1.2 RACISMO E AS EMPREGADAS DOMÉSTICAS 19 1.3 GÊNERO, CLASSE E RAÇA DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS 23 PROCESSO DE LUTA E RECONHECIMENTO DE DIREITOS DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS 27 2.1 LAUDELINA DE CAMPOS MELLO: UMA VIDA DE LUTA PELAS DOMÉSTICAS 28 2.2 A IMPORTÂNCIA DO MOVIMENTO NEGRO DE MULHERES PELO RECONHECIMENTO DOS DIREITOS DAS DOMÉSTICAS 31 2.3 A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 72: BUSCA POR AMPLIAÇÃO DE DIREITOS DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS 35 2.4 LUTA EM VÃO? 38 OS IMPACTOS DA PANDEMIA DA COVID -19 NA VIDA DAS MULHERES TRABALHADORAS DOMÉSTICAS. 40 3.1 CASOS DE ABUSOS SOFRIDOS POR TRABALHADORAS DOMÉSTICAS E VIOLAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS 40 3.2 SAÚDE DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS 44 3.3 CASO MIGUEL E O RACISMO ESTRUTURAL 45 3.4 AÇÕES DE COMBATE A VULNERABILIDADE DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS DIANTE A PANDEMIA DE COVID-19 47 3.4.1. A atuação do FENATRAD na luta por segurança de direitos das trabalhadoras domésticas na Pandemia da Covid-19. 47 3.5 O EMPREGO DOMÉSTICO E A ESCRAVIZAÇÃO CONTEMPORÂNEA: RELATO DE CASOS MARCANTES NO BRASIL 49 10 3.5.1 Caso Alto Pinheiros, São Paulo 50 3.5.2 Caso Madalena 51 3.6 Escutar quem vive na pele: a carta manifesto dos filhos e filhas das trabalhadoras domésticas. 56 CONCLUSÃO 59 REFERÊNCIAS 62 11 INTRODUÇÃO Antes de começar oficialmente, gostaria da licença acadêmica para explicar brevemente meus motivos pessoais para a escolha do presente tema a partir da minha perspectiva. Como filha de uma mulher que já trabalhou como manicure, babá, cuidadora de idosos e majoritariamente doméstica, cresci vendo minha mãe chegando do trabalho exausta, cheia de reclamações das patroas e até então, com o local social no qual eu e minha família nos encontramos, considerava tudo isso normal, “coisa de gente rica”. Por considerar tudo que minha mãe e todas as mulheres que trabalham no ramo do serviço doméstico têm é comum, nunca entendi exatamente a reclamação e hoje entendo que nem minha mãe sabia o nível de abusos que ela enfrentava todos os dias sendo doméstica de mulheres de classe média/alta na região de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Minha maior preocupação sempre foi com minha mãe não perder o emprego, pois somos pobres, minha mãe doméstica e meu pai pedreiro na época - hoje auxiliar de serviços gerais, não subimos na escala social -, e sendo pobres com poucas oportunidade de emprego, sempre tive muito medo de minha mãe ficar desempregada e assim não termos o básico para sobreviver. Com isso, me recordo de sempre conversar com minha mãe, a orientando que esquecesse certas coisas que seus patrões faziam e assim, manter o emprego. Meu pensamento começou a mudar a partir da educação, mais precisamente em 04/04/2016, data do meu primeiro dia de aula na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a minha maior conquista. Chegar a esse momento foi fruto da dedicação dos meus pais que lutaram pela minha escolaridade, oportunidade que eles não tiveram. Minha vivência na Nacional de Direito não foi fácil. Na primeira aula de uma professora em específico, minha turma presenciou uma cena lamentável feita por ela, onde não esconde seu preconceito por mim e os demais alunos cotistas. Tirando certos episódios, ser aluna da Nacional também me proporcionou uma formação social que me deixa muito orgulhosa. A partir das aulas de sociologia jurídica em 12 conjunto com as aulas de direito constitucionale penal, comecei a perceber que o que eu considerava como tratamento normal das patroas para minha mãe nada mais era do que uma série de abusos. Abusos que minha mãe aguentou por muitos anos para manter meus estudos até aqui. Passei a entender a refletir sobre todas as reclamações rotineiras de trabalho da minha mãe e agora, com um olhar crítico e entendendo desigualdade social, racismo, patriarcado, divisão sexual do trabalho, escravização e diversas mazelas sociais presentes na formação do Brasil, entendi que o emprego doméstico precisa ser estudado, analisado a partir de quem viveu na pele e assim, articular -e principalmente agir- para a realização de efetivas mudanças. Agora, ajudo minha mãe a diferenciar o que faz parte do seu trabalho e o que é abuso e não permito mais que ela se submeta às situações nas quais enfrentava para me sustentar. Esse trabalho é minha tentativa, como filha de doméstica, de me redimir por essas mulheres que sofreram tantas atrocidades nesse emprego e principalmente, minha mãe, e por quando criança eu entender que abuso é coisa normal de gente rica e que para manter um emprego se deve aguentar calada. Nesse sentido, como base nas contribuições da epistemologia feminista negra, defendida por autoras como Lélia Gonzalez, parte da minha experiência como filha de empregada doméstica para refletir academicamente sobre o tema. Dessa forma, o presente trabalho visa abordar o emprego doméstico no Brasil e como essa atividade carrega uma carga histórica de heranças coloniais, machistas e consequentemente racistas. O tema já previamente estabelecido e acordado teve que ser modificado haja vista a Pandemia de Covid-19, situação na qual jamais imaginei enfrentar na minha vida e que acarretou uma piora expressiva na relação de trabalho das empregadas domésticas. Com isso, o trabalho irá abordar o trabalho doméstico e os abusos enfrentados pela categoria ao longo de anos em busca de reconhecimento de direito e como todos esses direitos arduamente conquistados são desrespeitados na prática pelos empregadores. 13 O primeiro capítulo analisa quem são as mulheres que em maioria integram o trabalho doméstico no Brasil através de dados do IPEA1, com uma breve análise do contexto histórico e colonial que se integra ao emprego doméstico que mantém até hoje heranças do período de escravização. Trata também do racismo muito forte na categoria do trabalho doméstico que é predominantemente realizado por mulheres negras. Termina fazendo uma análise de gênero, classe e raça dessas trabalhadoras. O segundo capítulo trabalha o processo de reconhecimento e inclusão de direitos para as trabalhadoras domésticas, com destaques à Laudelina de Campos Melo, pioneira na luta por reconhecimento de direitos pelas domésticas. Trata também a importante e crucial participação dos movimentos sociais, em especial o movimento de mulheres negras, na inclusão de direitos trabalhistas para as domésticas na Constituição Federal e a luta pela ampliação desses direitos em relação aos demais trabalhadores na Emenda Constitucional nº72. O terceiro capítulo vai tratar dos impactos da Pandemia de Covid-19 na vida das trabalhadoras domésticas e como aumentou a situação de vulnerabilidade das mesmas. Serão tratados casos de abuso contra trabalhadoras domésticas que ganharam grande repercussão na mídia pelos requintes de crueldade dos empregadores. Também será abordado a questão da saúde das trabalhadoras domésticas na pandemia e ações de sindicatos e associações de empregadas domésticas por direitos e assistência social a essas trabalhadoras visando a proteção do emprego. Por fim, o terceiro capítulo se encerra com um pedido de medidas de proteção para as domésticas durante os tempos de pandemia. Concluindo, faço uma reflexão sobre todo o exposto indicando e incentivando as denúncias via canais oficiais contra trabalho escravo e assistência jurídica para domésticas que se sentirem lesadas por seus empregadores. 1 PINHEIRO, L. et al. Os Desafios do Passado no Trabalho Doméstico do Século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD Contínual. Brasília: Ipea, nov. 2019. 35 p. il. (Texto para Discussão, n. 2.528). Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2528.pdf>. Acesso em: 24/04/2021. https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2528.pdf 14 1. QUEM SÃO AS TRABALHADORAS DOMÉSTICA NO BRASIL Neste primeiro capítulo será abordado como surgiu o trabalho doméstico no Brasil e como esse trabalho sofre com os resquícios de escravização herdados pelo período de colonização do Brasil. Será mostrado como o tratamento dos empregadores para com suas trabalhadoras domésticas são carregados de heranças e saudosismo dessa época da história brasileira e os reflexos na vida dessas mulheres hoje. Será também realizada uma análise dessas trabalhadoras domésticas em relação à raça, gênero e classe e como e como tudo isso advém do período de escravização perpetuado pelo racismo estrutural2 presente em nossa sociedade. 1.1 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA SITUAÇÃO DAS MULHERES EM EMPREGO DOMÉSTICO NO BRASIL O trabalho doméstico no Brasil, em comparação a outros países, vai muito além de ser apenas mais uma forma de laborar. O Brasil é um país com grande desigualdade social, fruto de anos de escravidão da população negra e esses fatores geram consequências nos empregos mais comuns as classes menos privilegiadas, dentre eles, o do empregado doméstico. Ter uma empregada hoje é um status social herdado pelo período de escravidão do Brasil. Conforme trabalhado por Juliane Teixeira3, ter uma empregada doméstica e tratá-la de modo diferente de como se trata qualquer outro trabalhador de categoria diversa é um resquício de escravidão bem explícito dentre todos que ainda circulam livremente e cada vez mais fortes na sociedade brasileira. 3 TEIXEIRA, J. C.; CARRIERI, A. P. . As Patroas sobre as Empregadas: Discursos Classistas e Saudosistas das Relações de Escravidão. In: BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. SECRETARIA DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES.. (Org.). 8º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero: redações, artigos científicos e projetos pedagógicos premiados. 1ed.BRASÍLIA: Presidência da República, Secretaria de Políticas para as Mulheres., 2013, v. 8, p. 31-68. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/sobre/publicacoes/publicacoes /2013/2013_spm_8premio_livro_web.pdf. Acesso em: 24/04/2021. 2 ALMEIDA, S. Racismo Estrutural. 7. ed. São Paulo: Jandaíra, 2021, p. 50. https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/sobre/publicacoes/publicacoes/2013/2013_spm_8premio_livro_web.pdf https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/sobre/publicacoes/publicacoes/2013/2013_spm_8premio_livro_web.pdf 15 O status social aqui é bem marcante quando entendemos o conceito de se ter uma doméstica mesmo quando não é necessário ter. Famílias com mais recursos financeiros e consequentemente melhor qualidade de vida não podem ‘’perder tempo’’ realizando tarefas domésticas. O homem não pode por ser homem e provedor, já a mulher branca com condições não pode pois tem quem faça, a doméstica, que é paga para isso. Pessoas com recursos financeiros pagam uma doméstica pelo simples fato de não querer realizar seus afazeres e não querer cuidar do seu próprio lar, porque é mais fácil pagar uma empregada. É o que Helena Hirata4 afirma ao trabalhar Joan Tronto, teórica do care que aborda a ética do cuidado, afirma quando diz que as famílias que possuem mais recursos financeiros recebem cuidados independentemente de suas necessidades. Mesmo que fique em casa e tenha tempo para, uma socialite ou um empreendedor não podem perder tempo com afazeres domésticos. Entender que o emprego doméstico é uma categoria que sofre com resquícios do tempo de escravização da população negra não é algo que carece de muita análisepara se chegar a essa conclusão analítica. Com o ‘’fim’’ da escravidão no Brasil em 1888 não houve sequer uma tentativa de realização de políticas públicas de realocamento e assistência aos pretos e pretas. Os livros de história do Brasil ensinam que foram libertos e só, após a abolição vida e história dos negros do Brasil acaba sem nenhuma análise posterior do que aconteceu com essas pessoas além do corriqueiro quilombos e favelas. Os negros foram largados sem emprego, sem casa, sem uma estrutura digna não para recomeçar e sim para começar uma vida. O fim da escravização não anulou o racismo, apenas fez com que esses libertos não tivessem a chance de estar no mercado de trabalho de forma igualitária, como dito por Jamile Araújo em artigo para o site Brasil de Fato5: 5 ARAÚJO, J. “A abolição veio e não libertou”. O 13 de maio deve ser um dia de denúncia e luta para acumular forças rumo à realização da verdadeira abolição. Brasil de Fato, Salvador, 13 de maio de 2017. Seção: Opinião. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2017/05/13/artigo-a-abolicao-veio-e-nao-libertou. Acesso em: 18/05/2021. 4 HIRATA, H. Gênero, classe e raça Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais . Tempo Social, [S. l.], v. 26, n. 1, p. 61-73, 2014. DOI: 10.1590/S0103-20702014000100005. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/84979. Acesso em: 18 maio. 2021. https://www.brasildefato.com.br/2017/05/13/artigo-a-abolicao-veio-e-nao-libertou 16 A abolição, da forma que foi feita, não alterou as péssimas condições de vida do negro, tampouco o inseriu de forma igualitária, na sociedade capitalista que se gestava, a fim de reparar as consequências do passado de escravização. Pelo contrário, sem qualquer tipo de reparação, indenização ou política social, os negros ficaram “a própria sorte” ou “próprio azar”. E em grande parte, sem uma alternativa de trabalho, moradia, saúde e alimentação, ou seja, de sobrevivência6. Assim, a desigualdade social sempre esteve presente na história dos negros no Brasil e se perpetua até hoje com reflexos vívidos na vida dessa população e aqui, em especial, para as empregadas domésticas negras. Com isso, podemos ver que o grande número de mulheres negras e domésticas hoje advém do fato de, nos tempos de escravização, ser esse o papel dessas mulheres que ficavam na casa grande, o de realizar as tarefas domésticas, cuidar das crianças, das refeições. Com a Lei Áurea e sem oportunidades de emprego, muitos escravos continuaram na casa de seus antigos donos, realizando a mesma tarefa que realizavam antes da abolição, seja por receber um valor ínfimo, seja para apenas ter um teto e comida para sobreviver. O grande número de mulheres negras no âmbito do trabalho doméstico, de acordo com Rodrigo Vargas et. al em refenrência a obra de Suel Kofes, advém também do fato em que, após a escravidão, houve a mantenção de empregos a população negra quem fossem no estilo mandar e obedecer7, e que essas atividades eram baseadas pela cor, onde as pessoas somente cabiam trabalhos braçais nos quais recebiam ordens de superiores brancos, mantendo assim a hierarquização presente nos tempos de escravização. Juliane Teixeira8 explica que essa relação das empregadoras com suas domésticas e as formas de tratamento a elas dadas são uma espécie de “saudosismo’’ dos tempos de escravização. As empregadas não são mais as fiéis e leais propriedades que eram na época do 8 TEIXEIRA, J. C.; CARRIERI, A. P. . As Patroas sobre as Empregadas: Discursos Classistas e Saudosistas das Relações de Escravidão. In: BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. SECRETARIA DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES.. (Org.). 8º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero: redações, artigos científicos e projetos pedagógicos premiados. 1ed.BRASÍLIA: Presidência da República, Secretaria de Políticas para as Mulheres., 2013, v. 8, p. 31-68. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/sobre/publicacoes/publicacoes /2013/2013_spm_8premio_livro_web.pdf. Acesso em: 24/04/2021 7 FIGUEIRA, Hector Luiz Martins; VARGAS, Rodrigo Gindre. DO ESCRAVO DE FORNO E FOGÃO AO EMPREGADO DOMÉSTICO: uma análise crítica sobre a aplicabilidade da Lei Complementar n. 150/2015. Revista do Curso de Direito da Uniabeu, v. 10, n. 1, p. 91-110, 2018. Disponível em: https://revista.uniabeu.edu.br/index.php/rcd/article/view/3269. Acesso em: 24/04/2021. 6 Ibidem https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/sobre/publicacoes/publicacoes/2013/2013_spm_8premio_livro_web.pdf https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/sobre/publicacoes/publicacoes/2013/2013_spm_8premio_livro_web.pdf https://revista.uniabeu.edu.br/index.php/rcd/article/view/3269 17 Brasil colônia e, uma vez que não existe mais a oficialidade de se ter um escravo, tem-se a inovação, cria-se novos modos de perpetuação das práticas racistas e de relação de poder do período de escravização no modo como os empregadores tratam suas trabalhadoras domésticas. Isso tudo fruto de uma sociedade construída na base do racismo e desigualdade social. A autora nos dá um exemplo clássico muito presente nas tardes das famílias brasileiras: a boa, fiel, pobre e simples empregada, sempre ali, de avental, lenço no cabelo, aparecendo somente em cenas do jantar da família principal ou cuidados dos filhos de seus patrões como se mãe fossem e claro, sendo representada por uma mulher negra. De uma certa maneira ja está enraizado na sociedade o papel dos negros nas novelas, o de serviçal, especial em relação a mulher negra, que é a empregada doméstica. Quando pensamos na figura da doméstica automaticamente vem em mente uma Tia Nastácia9. Em relação ao negro na dramaturgia, o cineasta Zoel Zito Araújo afirma10: Nenhum dos grandes atores negros parece ter escapado do papel de escravo ou serviçal na história da telenovela brasileira, mesmo aqueles que quando chegaram à televisão já tinham um nome solidamente construído no teatro ou no cinema, como Ruth de Souza, Grande Otelo, Milton Gonçalves e Lázaro Ramos11. Justamente por essa relação de 338 anos de escravização e todo o racismo que sempre existiu desde o Brasil Colônia, que o país tem essa relação com o emprego doméstico. Essa é a razão da Tia Nastácia vir em mente quando se pensa em uma empregada doméstica, essa é a razão das domésticas nas novelas terem sempre as mesmas características pois às mulheres negras são automaticamente associados aos empregos do ramo doméstico, como dito por Jamile Cruz: O pensamento colonial produziu nesse sentido a imagem da mulher negra e do homem negro intrinsecamente ligado a trabalhos manuais, de força e servis, naturalizando a idéia de que estes nasceram sobretudo para executar estas funções. Deste modo a mulher negra nascera para ser mucama, ama de leite, cozinheira, arrumadeira, lavadeira, costureira dentre outros, possuindo para isso dotes inatos, ao 11 Ibidem 10 ARAÚJO, Joel Zito. O negro na dramaturgia, um caso exemplar da decadência do mito da democracia racial brasileira. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 3, p. 979-985, 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2008000300016&script=sci_arttext. Acesso em: 27/04/2021. 9 CHAVES, Jader Santos. “UM PÉ NO TANQUE E OUTRO NA COZINHA”: ESTIGMA E PRECONCEITO RACIAL NA OBRA “HISTÓRIAS DE TIA NASTÁCIA” DE MONTEIRO LOBATO. Disponível em: http://www.congressods.com.br/terceiro/images/trabalhos/GT2/pdfs/jader_santos.pdf. Acesso em: 27/04/ 2021. https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2008000300016&script=sci_arttext http://www.congressods.com.br/terceiro/images/trabalhos/GT2/pdfs/jader_santos.pdf 18 contrário do branco que de igual forma nasceu para mandar, gerenciar e dominar12. A figura da mulher negra e doméstica sempre existiu desde a colonização, é basicamente obrigatório para as famílias com maiores recursos financeiros ao longo da história ter sua “criadagem’’, são herançasherdadas da escravização, da colonização europeia, das relações de poder e status social. As famílias ricas não podem perder tempo com afazeres domésticos, eles não nasceram para isso, são gerações de bisnetos, netos e filhos que foram criados por babás e empregadas e assim, continuam com as mesmas práticas sendo repassadas de pais para filhos, ensinando perpetuando práticas racistas para a nova geração de abastados. E essas práticas são bem nítidas e naturalizadas pela sociedade: como o quarto de empregada, o elevador de serviço, o próprio uniforme de doméstica13. O tratamento dado para a empregada doméstica de “que é como se fosse da família” é manchado de racismo, machismo e desvalorização. A doméstica tem que usar roupa branca, cuidar das crianças, da casa, do cachorro, ficar num quartinho em anexo da mansão ou num quarto sem ventilação perto da área de serviço, fazer um trabalho excepcional, servir bem as visitas e ao mesmo tempo ser invisível. Em relação ao quarto da empregada, segundo James Houlston, citado por Nanah Vieira14: Tanto no projeto como no uso, essa área de serviço faz apelo ao mais atávico dos valores da classe média: a cozinha do apartamento continua a ser a cozinha da casa-grande, um lugar afastado do espaço de vida do patrão; é o lugar dos empregados, raramente o da dona de casa: a empregada continua a ser uma escrava cuja presença é malvista nas áreas da família; e seu pequeno quarto com a porta abrindo para o tanque de lavar roupa no corredor de serviço ainda é a senzala15. Com essa análise, foi possível fazer uma análise sobre a trabalhadora doméstica de 15 Nanah Vieira apud HOULSTON, 1993, p.188 14 VIEIRA, Nanah Sanches. O trabalho da babá: trajetórias corporais entre o afeto, o objeto e o abjeto. 2014. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/16822. Acesso em: 18/05/2021. 13 RIBEIRO, S. Sua empregada nunca foi e nunca será da família. Marie Claire. São Paulo, 16/02/2019. Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/Blogs/BlackGirlMagic/noticia/2019/02/sua-empregada-nunca-foi-e-nunca-s era-da-familia.html. Acesso em: 25/04/2021. 12 DA CRUZ, Jamile Campos. O Trabalho doméstico ontem e hoje no Brasil: legislação, políticas públicas e desigualdade. Anais do Seminário Nacional da Pós-Graduação em Ciências Sociais-UFES, v. 1, n. 1, 2011. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/snpgcs/article/view/1632. Acesso em: 27/04/2021. https://repositorio.unb.br/handle/10482/16822 https://revistamarieclaire.globo.com/Blogs/BlackGirlMagic/noticia/2019/02/sua-empregada-nunca-foi-e-nunca-sera-da-familia.html https://revistamarieclaire.globo.com/Blogs/BlackGirlMagic/noticia/2019/02/sua-empregada-nunca-foi-e-nunca-sera-da-familia.html https://periodicos.ufes.br/snpgcs/article/view/1632 19 acordo com as raízes coloniais presentes na relação de emprego dados a essa categoria, onde os resquícios de escravização se mostram presentes e repassados de geração em geração. 1.2 RACISMO E AS EMPREGADAS DOMÉSTICAS É necessário fazer algumas ponderações sobre a situação das empregadas domésticas na sociedade brasileira e como os resquícios da escravização das pessoas negras e a forma de abolição formal refletem em atitudes racistas na nossa sociedade atual, em especial na categoria do emprego doméstico que é predominantemente feminino, negro16 e realizado pelas mulheres das classes menos abastadas. De Acordo com Creuza Maria Oliveira em entrevista concedida ao Jornal Diário Gaúcho17, o trabalho doméstico é desvalorizado por ser um trabalho braçal e realizado por mulheres se comparado ao trabalho intelectual de uma pessoa com graduação, o que torna o cenário de desvalorização ainda mais alarmante para classe das trabalhadoras domésticas que sofrem com preconceitos e estimações por não terem uma graduação, já que o emprego doméstico “qualquer um pode fazer”. Com isso, podemos concluir que o emprego doméstico no Brasil tem um perfil. Ele é historicamente composto por mulheres, negras, com baixo nível de escolaridade e das classes mais baixas. É um trabalho o onde é normalizado o ato de servidão é uma herança social dos tempos de escravização, conforme Bertolin et al18: Patroas e empregadas participam de uma relação de identidade mediada pela lógica de servir aos outros como algo “natural”, embora essa relação de trabalho tenha dois efeitos contraditórios: de um lado a questão de classe e de outro, a identidade de gênero, raça/cor que é estabelecida entre as mulheres, que aponta para uma diferença estrutural entre mulheres, que se apoia na profunda desigualdade que caracteriza as 18 BERTOLIN, P. T.M; ANDRADE, D. D; MACHADO, M.S. Mulher, sociedade e vulnerabilidade. Erechim: Deviante, 2017. E-book. Disponível em: https://www.editoradeviant.com.br/wp-content/uploads/2017/06/mulhersociedadeevulnerabilidade.pdf. Acesso em: 06/05/2021. 17 OLIVEIRA, C. M. O trabalho braçal não é valorizado: depoimento. [26 de junho, 2015]. Porto Alegre: Jornal Diário Gaúcho. Entrevista concedida ao Diário Gaúcho. Disponível em:https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2015/06/o-trabalho-bracal-nao-e-valorizado-diz-lider-nacional- das-domesticas-4789079.html. Acesso em: 25/04/2021. 16 PINHEIRO, L. et al. Os Desafios do Passado no Trabalho Doméstico do Século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD Contínual. Brasília: Ipea, nov. 2019. 35 p. il. (Texto para Discussão, n. 2.528). Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2528.pdf>. Acesso em: 24/04/2021. https://www.editoradeviant.com.br/wp-content/uploads/2017/06/mulhersociedadeevulnerabilidade.pdf https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2015/06/o-trabalho-bracal-nao-e-valorizado-diz-lider-nacional-das-domesticas-4789079.html https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2015/06/o-trabalho-bracal-nao-e-valorizado-diz-lider-nacional-das-domesticas-4789079.html https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2528.pdf 20 relações sócio-raciais no Brasil. O Texto Para Discussão nº 2528 do IPEA19, traz dados sobre o trabalho doméstico no Brasil com uma análise sociodemográfica, racial e de gênero. Dados disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em conjunto com PNAD Contínua, mostram que o emprego doméstico é predominantemente feminino20. Em 2018, 6,2 milhões de pessoas estavam ocupadas na categoria do serviço doméstico, sendo que desse total, mais de 4 milhões, sendo 63% do total de trabalhadores domésticos, compostos por mulheres negras. Como já trabalhado, o emprego doméstico é protagonizado em maioria por mulheres negras pelo fator histórico do Brasil ser um dos últimos países a abolir a escravidão sem dar nenhuma assistência a essa população, o que trás reflexos na sociedade até os dias atuais. Então, é um emprego realizado pela mulher negra pelos resquícios de escravização e das tarefas domésticas como sendo coisas de mulher. Os baixos níveis de escolaridade e renda dessas mulheres também se dá pelo contexto histórico desigualdade política, econômica e jurídica21. Quando se tem um conjunto como o abordado, emprego característico de mulher negra, pobre e sem estudo pode-se chegar a uma conclusão lógica que implique no resultado dessa carga histórica dos tempos de colonização; o racismo. Silvio Almeida em sua obra explica três esferas do racismo, a individualista, a institucional e por fim, a estrutural que seria um conjunto de todas as formas de racismo. O racismo individualista é tratado como uma patologia ou irracionalidade , um ato individual daquela pessoa em específico, ou seja, um ato isolado. Esse racismo individualista22 seria tratado pela justiça com aplicações de leves sanções civis e penais, não admitiria o racismo em si, somente uma espécie de preconceito e, dessa forma: “não haveria sociedades ou instituições racistas, mas indivíduos racistas, que agem isoladamente ou em grupo”. Com 22 Ibidem, p. 36. 21 ALMEIDA, S. Racismo Estrutural. 7. ed. São Paulo: Jandaíra, 2021,p. 50. 20 PINHEIRO, L. et al. Os Desafios do Passado no Trabalho Doméstico do Século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD Contínual. Brasília: Ipea, nov. 2019. 35 p. il. (Texto para Discussão, n. 2.528). Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2528.pdf>. Acesso em: 24/04/2021. 19 PINHEIRO, L. et al. Os Desafios do Passado no Trabalho Doméstico do Século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da PNAD Contínual. Brasília: Ipea, nov. 2019. 35 p. il. (Texto para Discussão, n. 2.528). Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2528.pdf>. Acesso em: 24/04/2021. https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2528.pdf https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2528.pdf 21 isso, o ato racista de um empregador não seria um problema da sociedade em si, somente específico daquele empregador e, por isso, normalizado. Já o racismo institucional23, seria a concepção de que o racismo não seria somente um comportamento individualista e sim como as instituições funcionam, dando privilégios e criando desvantagens para certos grupos da sociedade exclusivamente pela sua raça, o que em relação ao emprego doméstico, explica o porquê desse emprego ser caracterizado como de mulheres negras. Dessa forma, Silvio Almeida explica que “o que se pode verificar até então é que a concepção institucional do racismo trata o poder como elemento central da relação racial. Com efeito, o racismo é dominação”. Por fim, o racismo estrutural, conceito trabalhado por Silvio Almeida em obra homônima onde “o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas econômicas, jurídicas e até familiares”24. Toda essa carga histórica em conjunto ao racismo estrutural se faz presente na construção do Brasil como sociedade, acarretando grandes problemas diários a serem enfrentados por essas mulheres no seu emprego dia após dia. A vida das trabalhadoras domésticas é muito dura, causando impactos físicos e psicológicos nessas mulheres, predominantemente negras e sem escolaridade, mães, avós, irmãs, filhas que pertencem às classes mais pobres. Para quem se encontra socialmente inserido nas classes menos favorecidos é extremamente comum ter até mais de 3 domésticas no círculos familiar e por muitas vezes, infelizmente, é comum normalizar certas condutas de abuso feitos pelos ''patrões'' para com as domésticas pois estamos habituados, como sociedade, a aceitar tudo que os mais favorecidos fazem para mantermos os nossos empregos, uma relação de ‘’submissão’’. Submissão essa que, como já trabalhada, vem do resquício da escravização. O fato da naturalização do tratamento para com as domésticas é algo tão enraizado e tão natural presente em nossa sociedade que às vezes no dia a dia, acabamos por reproduzir tais tratamentos como por exemplo as expressões cotidianas: “hoje é dia de Maria’’, “Maria tá de folga hoje’’. 24 Ibidem, p. 50. 23 ALMEIDA, S. Racismo Estrutural. 7. ed. São Paulo: Jandaíra, 2021, p. 40. 22 Para o empregador, em especial as mulheres brancas empregadoras, ter uma empregada ali, de branco, cuidando de seus filhos, de sua casa e empurrando o carrinho de seu bebê no shopping é status social, é demonstrar que mesmo não trabalhando e tendo tempo para cuidar da casa e de seus filhos é mais fácil contratar alguém que faça esse serviço pois, uma socialite, uma família que tenha boas condições financeiras jamais poderia perder tempo com limpeza, isso é coisa de doméstica. É demonstrar o poder aquisitivo de se ter uma doméstica, uma babá para os filhos, um jardineiro, um motorista. Como analisado por Lélia Gonzalez (1984, p. 235)25, a mulher negra que exerce a função de doméstica ou babá simplesmente é a mãe, pois além de todos os afazeres domésticos, cuida das crianças, ensina a falar, conta histórias, acalenta o sono da noite, enquanto a mãe apenas gera a criança, não fazendo seu papel de mãe pois já paga alguém para realizar essa tarefa pois, “a branca, a chamada legítima esposa, é justamente a outra que, por impossível que pareça, só serve prá parir os filhos do senhor. Não exerce a função materna. Esta é efetuada pela negra. Por isso a ‘mãe preta’ é a mãe”. Muitas vezes, essas mulheres não fazem o mínimo de cuidados com seus próprios filhos e essas crianças acabam tendo referência materna nas empregadas domésticas porém, ao tempo que vão tomando conhecimento e amadurecimento, vão sendo ensinados pela família a tratar a doméstica de forma desigual, formando uma geração de pessoas que desvalorizam essas domésticas, perpetuando o pensamento desigual e racista, demonstrando o status social de se ter uma doméstica. No contexto da escravização no Brasil veremos escravas cuidado da casa, dos patrões, dos filhos dos patrões - até porque não tinha oportunidade de cuidar dos seus próprios filhos -, tinham um quarto na casa grande perto da cozinha pois era lá que passavam boa parte do dia. Ao conversar com domésticas não é raro escutar as situações de violações de direitos e da dignidade que as mesmas enfrentam, como: ter que usar roupa específica; não assinarem a 25 GONZALES, L. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4584956/mod_resource/content/1/06%20-%20GONZALES%2C%20L %C3%A9lia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf. Acesso em: 25/04/2021. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4584956/mod_resource/content/1/06%20-%20GONZALES%2C%20L%C3%A9lia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4584956/mod_resource/content/1/06%20-%20GONZALES%2C%20L%C3%A9lia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf 23 Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS); ter o quarto de empregada como único local na casa onde podem “ficar a vontade”; trabalhar sempre a mais do que o horário estabelecido sem hora extra; ir a shopping e eventos para cuidar das crianças; só comer na cozinha uma comida específica e em talheres específicos; não poder circular em determinadas áreas da casa se não for para limpeza; negar faltas justificadas para questões de saúde e se eventualmente acontecer, fazer desconto salarial ou compensação; tratamentos degradantes e nomes pejorativos; agressões físicas e psicológicas e; em níveis extremos, o cárcere privado. Portanto, como dito por Stephanie Ribeiro26,”sua empregada não é da família, seu quartinho nos fundos não é caridade e ter uma negra limpando sua sujeira, vestindo branco e carregando seus filhos é colonial. E se você paga “direitinho”, amor, não faz mais que a obrigação’’. 1.3 GÊNERO, CLASSE E RAÇA DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS Para analisar a questão do emprego doméstico no Brasil é necessário uma análise interseccional27. Interseccionalidade, conceito trabalho por Kimberlé Crenshaw e aqui utilizado o trabalho de Helena Hirata28, consiste inicialmente na intersecção de raça, gênero, classe e sexualidade que estruturam as experiências de vida das mulheres negras. É o cruzamento de diversas categorias que respeitam a individualidade de cada mulher pois deve-se respeitar o ponto de partida, lugar social e vivências de cada mulher. Portanto, a interseccionalidade visa formas de combate às opressões que múltiplas e cruzadas. A partir da interseccionalidade, temos dentro do emprego doméstico três problemas aplicados aos fatores raça, gênero e classe dessas mulheres. 28 HIRATA, H. Gênero, classe e raça Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais . Tempo Social, [S. l.], v. 26, n. 1, p. 61-73, 2014. DOI: 10.1590/S0103-20702014000100005. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/84979. Acesso em: 18 maio. 2021. 27 CRENSHAW, Kimberle W. (2004). A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA.Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem. Disponível em: https://we.riseup.net/assets/372740/Kimberle-Crenshaw.A-interseccionalidade..de-raza-y-geCC80nero.pdf. Acesso em: 26/04/2021. 26 RIBEIRO, S. Sua empregada nunca foi e nunca será da família. Marie Claire. São Paulo, 16/02/2019. Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/Blogs/BlackGirlMagic/noticia/2019/02/sua-empregada-nunca-foi-e-nunca-s era-da-familia.html. Acesso em: 25/04/2021. https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/84979 https://we.riseup.net/assets/372740/Kimberle-Crenshaw.A-interseccionalidade..de-raza-y-geCC80nero.pdf https://revistamarieclaire.globo.com/Blogs/BlackGirlMagic/noticia/2019/02/sua-empregada-nunca-foi-e-nunca-sera-da-familia.html https://revistamarieclaire.globo.com/Blogs/BlackGirlMagic/noticia/2019/02/sua-empregada-nunca-foi-e-nunca-sera-da-familia.html 24 O emprego doméstico é um trabalho predominantemente feminino, o que fica bem claro quando compreendemos a questão da divisão sexual do trabalho29 e como ela é também uma forma de divisão social do trabalho. Divisão sexual do trabalho30 consiste no fato de que para homens e mulheres são atribuídos diferentes cargos e responsabilidades, única e exclusivamente por conta de seu sexo biológico. Essa divisão é bem nítida pois, de uma maneira histórica em nossa sociedade, temos homens em trabalhos de relevante fator social e produtivos e as mulheres em empregos com caráter reprodutivo, ou seja, temos aqui a imposição da mulher bela, recatada e do lar31. Nesse sentido, temos as mulheres, no caso em questão mulheres negras, sendo a maioria da categoria do emprego doméstico que aqui é majoritário para mulheres a partir do ponto de vista da divisão sexual do trabalho dentro da ótica de separação de trabalho entre homens e mulheres e hierarquização pois, o trabalho da mulher é desvalorizado em comparação ao trabalho exercido pelo homem32. A divisão sexual do trabalho acaba acarretando um outro (dentre os vários) problemas a serem enfrentados por essas mulheres: a dupla jornada de trabalho. As mulheres que exercem o emprego doméstico enfrentam a dupla jornada pois, após um dia inteiro de trabalho com cuidados do lar de seus patrões (isso quando não dormem no trabalho e só retornam ao lar aos finais de semana ou até de 15 em 15 dias), tem que chegar em casa e cuidar de sua própria casa e família, sendo um esforço muito desgastante pois, como sabemos, “é um trabalho de mulher”. 32 KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, H. et al (org.). Dicionário Crítico do Feminismo. Editora UNESP : São Paulo, 2009, p. 67–75. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4098403/mod_resource/content/1/Kergoat%20p.67-75%20in%20Dicio nario_critico_do_feminismo%202009.pdf. Acesso em: 25/04/2021 31 LINHARES, J. Marcela Temer: bela, recatada e “do lar”. Veja Online, São Paulo, 2016. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/. Acesso em: 27/04/2021. 30KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. Trabalho e cidadania ativa para as mulheres: desafios para as políticas públicas. São Paulo: Coordenadoria Especial da Mulher, p. 55-63, 2003. 29 KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, H. et al (org.). Dicionário Crítico do Feminismo. Editora UNESP : São Paulo, 2009, p. 67–75. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4098403/mod_resource/content/1/Kergoat%20p.67-75%20in%20Dicio nario_critico_do_feminismo%202009.pdf. Acesso em: 25/04/2021. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4098403/mod_resource/content/1/Kergoat%20p.67-75%20in%20Dicionario_critico_do_feminismo%202009.pdf https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4098403/mod_resource/content/1/Kergoat%20p.67-75%20in%20Dicionario_critico_do_feminismo%202009.pdf https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4098403/mod_resource/content/1/Kergoat%20p.67-75%20in%20Dicionario_critico_do_feminismo%202009.pdf https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4098403/mod_resource/content/1/Kergoat%20p.67-75%20in%20Dicionario_critico_do_feminismo%202009.pdf 25 A divisão sexual do trabalho não fica registrada somente no ambiente de trabalho em si, ela também gera reflexos nas relações familiares internas onde os trabalhos domésticos ficam por conta das mulheres que aqui, após uma longa jornada de exploração, tem que realizar tudo de novo, gerando ainda mais exaustão nessas mulheres. Toda essa divisão é devido ao mundo patriarcal33 no qual estamos inseridos, onde o homem assume uma posição de privilégios em relação a mulher no que diz respeito a divisão sexual do trabalho, manchado por racismo34. Por vivermos em um país totalmente desigual, essas mulheres por muitas vezes não possuem outra opção a não ser se sujeitar a muitas situações degradantes para manter o emprego que traz subsistência para sua família principalmente em se tratando de famílias uniparentais35. Em sua obra Racismo Estrutural, Silvio Almeida36 explica que as mulheres negras são historicamente “empurradas” aos serviços essenciais que não produzem valor econômico, como babás e domésticas recebendo consequentemente salários mais baixos, o que é fruto de um país desigual sem proteção social para a categoria. É o que Crenshaw37 afirma ser quando diz “subordinação estrutural”, são mulheres marginalizadas com poucos recursos que acabam não tendo muitas opções e recorrem ao trabalho doméstico e “cuidando primeiramente de suas famílias e, depois, das famílias e necessidades das patroas’”38, fruto da divisão sexual do trabalho e machismo de gerações presentes na sociedade. Com isso, as mulheres negras, pobres e com pouca escolaridade seguem sendo o rosto 38 CRENSHAW, Kimberle W. (2004). A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem. Disponível em: https://we.riseup.net/assets/372740/Kimberle-Crenshaw.A-interseccionalidade..de-raza-y-geCC80nero.pdf. Acesso em: 26/04/2021. 37 CRENSHAW, Kimberle W. (2004). A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem. Disponível em: https://we.riseup.net/assets/372740/Kimberle-Crenshaw.A-interseccionalidade..de-raza-y-geCC80nero.pdf. Acesso em: 26/04/2021. 36 ALMEIDA, S. Racismo Estrutural. 7. ed. São Paulo: Jandaíra, 2021. 35 MARIN, Angela; PICCININI, Cesar Augusto. Famílias uniparentais: a mãe solteira na literatura. Psico, v. 40, n. 4, 2009. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/revistapsico/article/view/2683/4927. Acesso em: 27/04/2021. 34 ALMEIDA, S. Racismo Estrutural. 7. ed. São Paulo: Jandaíra, 2021. 33LERNER, Gerda; TUSELL, Mónica. La creación del patriarcado. Barcelona: Crítica, 1990. Disponível em: https://www.libroesoterico.com/biblioteca/Varios/VARIOS%203/151595186-La-Creacion-Del-PATRIARCADO. pdf. Acesso em: 18/05/2021. https://we.riseup.net/assets/372740/Kimberle-Crenshaw.A-interseccionalidade..de-raza-y-geCC80nero.pdf https://we.riseup.net/assets/372740/Kimberle-Crenshaw.A-interseccionalidade..de-raza-y-geCC80nero.pdf https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/revistapsico/article/view/2683/4927 https://www.libroesoterico.com/biblioteca/Varios/VARIOS%203/151595186-La-Creacion-Del-PATRIARCADO.pdf https://www.libroesoterico.com/biblioteca/Varios/VARIOS%203/151595186-La-Creacion-Del-PATRIARCADO.pdf 26 do emprego doméstico no Brasil, enfrentando todas as consequências que a escravização deixou como legado para as classes mais abastadas em relação ao tratamento com essas domésticas, além da dupla jornada do trabalho em relação divisão sexual do trabalho onde os homens seguem não se responsabilizando pelas tarefas domésticas39 e as empregadoras brancas seguem tendo maior visibilidade no mercado de trabalho quando deixam toda a tarefa domésticas para sua empregada e assim “apaziguar eventuais tensões e conflitos causados por um estremecimento da divisãosexual tradicional do trabalho”40. Além de todas essas questões que envolvem gênero, classe e raça dessas mulheres, também temos problemas envolvendo o direito trabalhista e os retrocessos dos direitos conquistados pelas domésticas. Direitos esses que foram conquistados por mulheres negras que entendiam e entendem da realidade e demanda da classe das trabalhadoras domésticas e que lutaram, insistiram e mostraram sua voz para conquistar os direitos -embora desrespeitados- das trabalhadoras domésticas, tendo o início dessa luta tomado mais força por volta dos anos 1980, de dentro de coletivos feministas negros para a Constituinte. 40 PINHEIRO, L. et al. Vulnerabilidade das trabalhadoras domésticas no contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil. Brasília: Ipea, jun. 2020. (Nota Técnica, n. 75). Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/200609_nt_disoc_n_75.pdf. Acesso em: 27/04/2021. 39 PINHEIRO, L. et al. Vulnerabilidade das trabalhadoras domésticas no contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil. Brasília: Ipea, jun. 2020. (Nota Técnica, n. 75). Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/200609_nt_disoc_n_75.pdf. Acesso em: 27/04/2021. https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/200609_nt_disoc_n_75.pdf https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/200609_nt_disoc_n_75.pdf 27 2. PROCESSO DE LUTA E RECONHECIMENTO DE DIREITOS DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS Além de todas as questões trabalhadas que envolvem gênero, classe e raça dessas mulheres, existem os problemas envolvendo o direito trabalhista e a retrocessos dos direitos lentamente conquistados pelas domésticas através da luta dos coletivos de mulheres negras aos longos dos anos 1970 e 1980 em especial na Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1987/1988. Neste capítulo, será abordado inicialmente a luta pioneira de Laudelina de Campos Mello nos direitos das empregadas domésticas e como foi reconhecido o trabalho doméstico como vínculo trabalhista com uma breve análise de sua vida militando em prol da categoria a partir da Dissertação de Mestrado de Elisabete Aparecida Pinto41. Em seguida, será trabalhado como os direitos das empregadas domésticas foram reconhecidos na Constituição Federal através do seu art. 7º, parágrafo único. Esses direitos foram conquistados através de pressão popular daquelas que entendem e sofrem na pele todas as problemáticas envolvidas no emprego doméstico: mulheres negras. Será abordado também o roll do art. 7º que somente obteve maiores direitos para as trabalhadoras domésticas com a Emenda Constitucional nº 72, explicando como os direitos dessas trabalhadoras foi pela primeira vez implementado e como ocorreu a mudança do art. 7º em relação a ”igualdade” de direitos das empregadas domésticas para com os trabalhadores rurais e urbanos. O foco será o trabalho de Benedita da Silva, que foi eleita Deputada Constituinte, que em conjunto com Jurema Batista e Lélia Gonzalez, levaram em pauta, junto aos movimentos sociais e especial o das mulheres negras, questões primordiais e essenciais para sociedade na época pós Ditadura Empresarial Militar como: racismo, direito dos indígenas, das pessoas com deficiência, homossexuais e trabalhadoras domésticas. 41PINTO, Elisabete Aparecida. Etnicidade, genero e educação: a trajetoria de vida de D. Laudelina de Campos Mello (1904-1991). 1993. 2v. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, [SP. Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/253758. Acesso em: 18/05/2021. http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/253758 28 2.1 LAUDELINA DE CAMPOS MELLO: UMA VIDA DE LUTA PELAS DOMÉSTICAS Em se tratando de trabalho doméstico e luta por direitos, se fala Laudelina de Campos Mello, mulher negra que dedicou sua vida militante na categoria sendo a pioneira na luta e conquista dos primeiros direitos das domésticas, principalmente em relação ao reconhecimento do trabalho doméstico como vínculo empregatício. Para contar a história de Laudelina, será utilizado a dissertação de mestrado de Elisabete Aparecida Pinto42. Nascida em 1904 em Poços de Caldas, Minas Gerais, somente 18 anos após a “abolição” em 1888, Laudelina começou nas tarefas domésticas desde criança. Sabe-se que aos 7 anos de idade ela já cuidava dos irmãos menores para a mãe trabalhar, tendo a atividade de militante se iniciado aos 16 anos43 em organizações de movimento negro. Entre 16 e 17 anos, foi quando Laudelina começou “oficialmente” a trabalhar como doméstica, inicialmente para a família do político e ex-presidente Juscelino Kubitschek. Um marco na vida de atuação efetiva na militância foi a mudança de Laudelina de Minas Gerais para Campinas, São Paulo em 1992 com 18 anos. Elisabete Pinto44 relata que em São Paulo, inicialmente Laudelina trabalhou para uma família influente até o ano de 1924, aos 20 anos. O tratamento recebido de seus empregadores era a típica relação com resquícios de escravização presentes na nossa cultura racista: “minha relação com eles era mais escravocrata mesmo, eu era copeira”45. Do ano de 1924 até 1936 Laudelina trabalhou para diversas famílias influentes. Elisabete conta que a consciência militante e política de Laudelina se consolidou oficialmente em 1933, quando Laudelina chegou a fazer parte da Frente Negra Brasileira, associação de 45 Ibidem 44 PINTO, Elisabete Aparecida. Etnicidade, genero e educação: a trajetoria de vida de D. Laudelina de Campos Mello (1904-1991). 1993. 2v. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, [SP. Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/253758. Acesso em: 18/05/2021. 43 Quem foi Laudelina de Campos Melo, pioneira na luta por direitos de trabalhadores domésticos no Brasil. BBC Brasil, 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-54507024. Acesso em: 18/05/2021. 42 PINTO, Elisabete Aparecida. Etnicidade, genero e educação: a trajetoria de vida de D. Laudelina de Campos Mello (1904-1991). 1993. 2v. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, [SP. Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/253758. Acesso em: 18/05/2021. http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/253758 https://www.bbc.com/portuguese/geral-54507024 http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/253758 29 negros em São Paulo. Promulgada a lei de sindicalização em 1931, Laudelina em 1936 buscou, antes da criação da associação, a sindicalização para assim poder agir mais o lado político e não somente o social que seria permitido em níveis de associação. Porém, a lei promulgada exigia 5 anos de associação firmada, entre outros requisitos, para finalmente se poder criar a sindicalização. Com isso, após a influência e assentamento do pensamento político e crítico, no ano de 1936, ano marco para o pioneirismo de Laudelina, ela e mais três militantes formaram a primeira associação de trabalhadoras domésticas dia 08/07/1936 em Santos, São Paulo. A associação intitulada Associação das Empregadas Domésticas, tinha como objetivo principal a proteção das trabalhadoras domésticas em um sentido de assistência social, o que era viável em se tratando de associação, tudo sempre voltado com o objetivo final e principal: a luta pela sindicalização. Como associação, Laudelina buscava equiparação de direitos com os demais trabalhadores do país em relação aos direitos a eles concedidos. Com isso, Elisabete narra a tentativa de sindicalização de Laudelina ainda no ano de 1936, - considero importante a transcrição da fala de Laudelina explicando a tentativa de sindicalização e como sua tentativa foi impedida por conta do cenário político da época -: Com a estória do Sindicato, nós aproveitamos, a Associação Foi fundada dia 8 de julho de 1.936, no dia 5 de setembro...ia haver um Congresso de trabalhadoresna capital que era Rio de Janeiro, então o profº Geraldo Campos, aconselhou que se fizesse um apanhado sobre as Leis das empregadas domésticas e o profº Lobato foi, tirou das Leis Trabalhistas os parágrafos e os itens para montar a pauta do Congresso. O Getúlio já tinha instituído as Leis Sindicais e ia haver o primeiro Congresso, aliás era dirigido pelo avô do Collor. Naquela época ele era o 1º Ministro do Trabalho do P.T.B.. As empregadas domésticas foram destituídas das leis trabalhistas, nós estávamos criando um movimento para ver se conseguia o registro do Sindicato… mas quando nós chegamos no Rio tinha sido suspenso o Congresso, o Ministro do Trabalho que aliás era o… avô do Fernando Collor. Naquela época falava-se muito em comunismo, os capitalistas e os banqueiros, eles tinham pavor, então os capitalistas, os banqueiros, os milionários começaram a criticar contra o encontro dos trabalhadores, que o encontro iria fomentar uma greve contra os patrões, então foi suspenso… O profºGeraldo veio embora para São Paulo, e eu fiquei no Rio para ver se entrava em contato com alguém, p´ra ver o que ia resolver. Eu fiquei no Rio uns três a quatro dias, no terceiro...um dia eu consegui com o secretário do Ministro, p´ra que ele deixasse eu falar com o Ministro. (...) Fui falar com o Ministro, mas não adiantou nada porque não havia possibilidade de enquadramento da classe, as empregadas domésticas foram destituídas porque não traziam economia para o país. Até hoje eles dizem que as empregadas domésticas não trazem economia para o país. (...) 30 de repente(são)elas que fazem a economia… Nós trazemos economia, ele saem pra trabalhar, principalmente a classe média, ele têm que trabalhar fora e então passam a escravizar a empregada doméstica46. A grande conquista de Laudelina em transformar a associação em sindicato só veio correr 52 anos após o início de tudo, em 1988 depois de anos de luta. Sobre a transformação de associação em sindicato, Laudelina finalmente pode-se atuar politicamente e não só no social. Nesse período, Laudelina se ausentou da militância, retornando em 1982, já com 78 anos. Com esse resumo da atuação política e primordial da luta de Laudelina pela classe das trabalhadoras domésticas -peço minhas escusas por ser um breve relato, Laudelina merece livros sobre sua atuação-, fica demonstrado que o início da luta por reconhecimento e inclusão de direitos às trabalhadoras domésticas começou com uma mulher negra, empregada doméstica, que viveu na pele os resquícios de escravização presentes no trabalho doméstico e dedicou sua vida pela causa. Sua militância além da assistência para as mulheres, realizou as primeiras conquistas políticas para categoria, entre elas, a do ano de 1972, quando foi sancionado a Lei 5.859 de 1972 reconhecendo o trabalho doméstico como função, estabelecendo assim a assinatura da Carteira de Trabalho e Previdência Social, tudo isso fruto da luta de Laudelina pela Categoria47 e passo crucial para o início da luta por reconhecimento e igualdade de direitos em relação aos demais trabalhadores. Após 86 anos de vida e luta, Laudelina de Campos Mello faleceu em 1991, deixando seu histórico de luta em um legado que se perpetua até os dias atuais na luta pelos direitos das trabalhadoras domésticas. Foi da luta de Laudelina que, em 1997 foi criada a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD). A FENATRAD é um conjunto de associações de trabalhadoras domésticas atuantes na luta por reconhecimentos de direitos para a categoria, sendo uma organização dessa categoria. 47 Institucional. Fenatrad. Disponível em: https://fenatrad.org.br/institucional/. Acesso em: 18/05/2021. 46 PINTO, Elisabete Aparecida. Etnicidade, genero e educação: a trajetoria de vida de D. Laudelina de Campos Mello (1904-1991). 1993. 2v. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, [SP. Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/253758. Acesso em: 18/05/2021. https://fenatrad.org.br/institucional/ http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/253758 31 A atuação do FENATRAD não ficou somente no âmbito nacional, também se expandiu na política internacional48, com atuação na 100ª Conferência Internacional do Trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT), realizada em 2011, que resultou em seus esforços na Emenda Constitucional nº 72, ampliando os direitos das domésticas. No âmbito da pandemia, o FENATRAD atua tanto na luta social e política, militando pela saúde das trabalhadoras domésticas que mesmo após anos de luta ainda se mantém vulnerável, conforme será abordado no terceiro capítulo do presente trabalho49. Dessa maneira, vemos o impecável desempenho de Laudelina de Campos Melo, mulher negra mobilizada e organizada em seus coletivos e movimentos sociais, levando para a pauta suas reivindicações das trabalhadoras domésticas. 2.2 A IMPORTÂNCIA DO MOVIMENTO NEGRO DE MULHERES PELO RECONHECIMENTO DOS DIREITOS DAS DOMÉSTICAS A partir de um olhar histórico, pode-se observar que os direitos dos trabalhadores formalizados nos anos de 1940 deixaram de fora a categoria das empregadas domésticas50, em consequência de sermos um país com princípios patriarcais baseados em racismo estrutural, onde o homem é o provedor da família51. Isso por si só já configura um entrave nos direitos das domésticas que, até aqui, não seriam de forma alguma reconhecidos. Após essa formalização, o Brasil enfrentou lastimavelmente mais de 20 anos de Ditadura Empresarial Militar, no qual a população, em especial a negra, sofreu com censura e opressões. O período de redemocratização dos anos 1970 e 1980 foi importante na luta do 51 BERTOLIN, P. T.M; ANDRADE, D. D; MACHADO, M.S. Mulher, sociedade e vulnerabilidade. Erechim: Deviante, 2017. E-book. Disponível em:https://www.editoradeviant.com.br/wp-content/uploads/2017/06/mulhersociedadeevulnerabilidade.pdf. Acesso em: 06/05/2021. 50 BERTOLIN, P. T.M; ANDRADE, D. D; MACHADO, M.S. Mulher, sociedade e vulnerabilidade. Erechim: Deviante, 2017. E-book. Disponível em: https://www.editoradeviant.com.br/wp-content/uploads/2017/06/mulhersociedadeevulnerabilidade.pdf. Acesso em: 06/05/2021. 49 Institucional. Fenatrad. Disponível em: https://fenatrad.org.br/institucional/. Acesso em: 18/05/2021. 48 SOUZA DE ARAUJO, V.; BARROS DE OLIVEIRA, R. “CUIDA DE QUEM TE CUIDA” A LUTA DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19 NO BRASIL. Revista Trabalho Necessário, v. 19, n. 38, p. 126-151, 27 fev. 2021. Disponível em: https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/article/view/48187. Acesso em: 18/05/2021. https://www.editoradeviant.com.br/wp-content/uploads/2017/06/mulhersociedadeevulnerabilidade.pdf https://www.editoradeviant.com.br/wp-content/uploads/2017/06/mulhersociedadeevulnerabilidade.pdf https://fenatrad.org.br/institucional/ https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/article/view/48187 32 movimento de mulheres negras que puderam, finalmente, levantar a pauta de suas questões em níveis nacionais e, dentro dessas pautas, o que um governo patriarcal e racista não fez, dar direitos para as trabalhadoras domésticas. Dessa forma, tendo em mente que o feminismo se mantinha dentro dos muros da academia e não dava espaço para o debate de racismo, Lélia Gonzalez se tornou um destaque no início desse movimento de mulheres negras que, após muita pressão e luta, iriam ter suas demandas levadas à Constituinte e, consequentemente, gerando uma vitória para a categoria52. Gonzales53, co-fundadora do MNU (Movimento Negro Unificado) entendia que o feminismo (branco) não deixava espaço para o debate do racismo e da luta das mulheres negras pois, essas mulheres brancas, teriam um esteriótipo formado em relação as mulheres negras: o da mulher raivosa, agressiva, que não saberia levantar um debate acadêmico: No meio do movimento das mulheres brancas, eu sou a criadora de caso, porque elas não conseguiram me cooptar. No interior do movimento haviaum discurso estabelecido com relação às mulheres negras, um estereótipo. As mulheres negras são agressivas, são criadoras de caso, não dá para a gente dialogar com elas, etc. E eu me enquadrei legal nessa perspectiva aí, porque para elas a mulher negra tinha que ser, antes de tudo, uma feminista de quatro costados, preocupada com as questões que elas estavam colocando54 (grifo nosso). Com a necessidade de uma luta que fosse voltada para a questão da mulher negra na sociedade levando em consideração a realidade dessas mulheres, surgiram grupos como Reunião de Mulheres Negras Aqualtune (REMUNEA), Luiza Mahin e NZINGA. O grupo NZINGA fundado por Lélia Gonzalez após sair da direção do Grupo Luiza Mahin em 1982, é especial na luta das mulheres negras (não tirando de forma alguma os outros movimentos anteriores que serviram de alicerce para as conquistas) pois era um coletivo com enfoque nas discussões de raça e gênero voltado para mulheres pobres que alcançou grande visibilidade nacional, o que possibilitou mais forças para o reconhecimento 54 Lélia Gonzales em entrevista ao JORNAL NACIONAL DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO, 1991, p. 09 53 MNU JORNAL. Entrevista Lélia Gonzalez. Jornal Nacional do Movimento Negro Unificado, Bahia, p. 8-9, maio. jun. jul. de 1991. Disponível em: http://blogueirasnegras.org/wp-content/uploads/2013/07/entrevista-lelia-mnu.pdf. Acesso em: 06/05/2021. 52 SANTOS, E. M. S. Movimento De Mulheres Negras No Rio De Janeiro: Amefricanidade, Interseccionalidade E A Implementação De Políticas Públicas Na Constituinte De 1988. 2015. Monografia (Bacharel em Direito) - Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro. http://blogueirasnegras.org/wp-content/uploads/2013/07/entrevista-lelia-mnu.pdf 33 das demandas das mulheres negras na constituinte55. Após a criação do NZINGA, no ano de 1986 nasce Centro de Mulheres de Favela e Periferia do Rio de Janeiro (CEMUFP), com participação de Benedita da Silva, onde começaria de fato uma articulação e discussões sobre negritude e constituinte não só no Rio de Janeiro e sim em patamares nacionais, sobretudo, as demandas das mulheres negras da periferia em relação à educação, saúde e racismo56. Todas essas mulheres em seus respectivos coletivos feministas negros tiveram um papel primordial para a conquista dos direitos constitucionais garantidos as trabalhadora domésticas hoje. Sem uma articulação coletiva e pressão política por reivindicação por direitos das mulheres negras no passado, não seria possível, por exemplo, abrir uma demanda trabalhista em face de um empregador que não cumpriu um acordo de trabalho com sua trabalhadora doméstica. Também no ano de 1986 ocorreram as eleições gerais para que fossem escolhidos os parlamentares que iriam compor a Assembleia Nacional Constituinte, tomando posse em 1987. Cabe aqui destacar o papel de representatividade exercido por Benedita da Silva (PT) pois foi através dela, que a demanda de reivindicação por direitos da classe das trabalhadoras domésticas foi ouvida e levada para a Carta Magna. Natália Neris57 em seu trabalho explica que durante o processo da constituinte houve uma grande mobilização dos movimentos sociais para fazer com que suas demandas chegassem a Assembleia Nacional Constituinte, que de fato fossem escutadas e incluídas no texto constitucional, sendo essa mobilização feita através de apoio a candidatos e candidatas negras - em especial, Benedita da Silva (PT)- e levando adiante suas putas em encontros dos respectivos movimentos sociais: 57 SANTOS, N. N. S. A voz e a palavra do Movimento Negro na Assembléia Nacional Constituinte (1987/1988): um estudo das demandas por direitos. São Paulo. 2015. Dissertação (Mestrado em Direito) - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, 2015. 56 SANTOS, E. M. S. Movimento De Mulheres Negras No Rio De Janeiro: Amefricanidade, Interseccionalidade E A Implementação De Políticas Públicas Na Constituinte De 1988. 2015. Monografia (Bacharel em Direito) - Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro. 55 SANTOS, E. M. S. Movimento De Mulheres Negras No Rio De Janeiro: Amefricanidade, Interseccionalidade E A Implementação De Políticas Públicas Na Constituinte De 1988. 2015. Monografia (Bacharel em Direito) - Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro. 34 Tem-se nesse período registros na imprensa negra (Boletim do Conselho Estadual da Comunidade Negra de São Paulo) o incentivo ao voto à candidatos/as negros/as (...) E também o esforço em alertar a comunidade negra para a importância das eleições daquele ano. Uma matéria do informativo do Nzinga - Coletivo de Mulheres Negras de modo bastante didático discorre sobre a Constituição e Constituinte para seus leitores/as58. O papel de Benedita da Silva (PT) em prol das trabalhadoras domésticas foi notável à época da Constituinte e é até hoje forte na memória dessas trabalhadoras. Benedita da Silva59 ao iniciar seu papel com representante das mulheres na constituinte afirma: Meus principais projetos como deputada enfocavam os direitos da mulher e da criança, negros e minorias. Lutei muito pela garantia do ensino gratuito, porque considero a educação um direito fundamental. Também trabalhei pelo reconhecimento profissional das empregadas domésticas e das trabalhadoras rurais. Era a primeira mulher negra a entrar no Congresso e, mais uma vez, tive que me impor para poder apresentar minhas propostas60. Benedita da Silva além de ser representante da mulher negra sempre deixou claro em seu papel como constituinte que era uma representante também dos homossexuais e das empregadas domésticas, e em sua atuação na Assembleia Nacional Constituinte essas trabalhadoras tiveram, finalmente, seu direito reconhecido com a então regulamentação do trabalho doméstico61. As mulheres negras obtiveram vitórias significativas na constituinte entre elas a regulamentação do trabalho doméstico através do trabalho da Constituinte Benedita da Silva, que foi parcialmente regulamentado através do art. 7º da Constituição Federal. Importante ressaltar que aqui é dito parcialmente regulamentando tendo em vista que, para as domésticas não foram concedidos todos os direitos dados aos demais trabalhadores. É compreensível que uma categoria profissional que nunca antes tivera uma 61SANTOS, E. M. S. Movimento De Mulheres Negras No Rio De Janeiro: Amefricanidade, Interseccionalidade E A Implementação De Políticas Públicas Na Constituinte De 1988. 2015. Monografia (Bacharel em Direito) - Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro. 60 SANTOS Apud BENJAMIN & MENDONÇA, 1997, p. 75 59 SANTOS, E. M. S. Movimento De Mulheres Negras No Rio De Janeiro: Amefricanidade, Interseccionalidade E A Implementação De Políticas Públicas Na Constituinte De 1988. 2015. Monografia (Bacharel em Direito) - Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro. 58 SANTOS, N. N. S. A voz e a palavra do Movimento Negro na Assembléia Nacional Constituinte (1987/1988): um estudo das demandas por direitos. São Paulo. 2015. Dissertação (Mestrado em Direito) - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, 2015. 35 regulamentação e sempre foi marginalizada devido os resquícios de escravização presentes no emprego doméstico, comemore a vitória do reconhecimento de direitos e regulamentação da trabalhadora doméstica porém, o art. 7º da Constituição Federal (Texto promulgado em 05/10/1988)62, não trouxe as domésticas pela igualdade de direitos aos trabalhadores urbanos e rurais, o que só foi se realizar com a Emenda Constitucional nº 72 onde temos, novamente, a atuação de Benedita da Silva pelas trabalhadoras domésticas. Em seguida, serão abordadas as mudanças feitas com a implementação da Emenda Constitucional nº 72para as trabalhadoras domésticas e, adiante, seus efeitos na prática. 2.3 A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 72: BUSCA POR AMPLIAÇÃO DE DIREITOS DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS O texto constitucional promulgado em 05/10/198863 finalmente concedeu a categoria das trabalhadoras domésticas alguns direitos após pressão e luta dos movimentos sociais em principal ao movimentos de mulheres negras através da Deputada Constituinte Benedita da Silva, onde o art. 7º da Constituição Federal concedia às domésticas: Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos; II - seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário; III - fundo de garantia do tempo de serviço; IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; V - piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho; VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo; VII - garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável; VIII - décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria; IX - remuneração do trabalho noturno superior à do diurno; X - proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa; 63Ibidem 62 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10.1988/CON1988.asp. Acesso em 07/05/2021. https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10.1988/CON1988.asp 36 XI - participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei; XII - salário-família para os seus dependentes; XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; XIV - jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva; XV - repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; XVI - remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinqüenta por cento à do normal; XVII - gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal; XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; XIX - licença-paternidade, nos termos fixados em lei; XX - proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei; XXI - aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo de trinta dias, nos termos da lei; XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; XXIII - adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei; XXIV - aposentadoria; XXV - assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até seis anos de idade em creches e pré-escolas; XXVI - reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho; XXVII - proteção em face da automação, na forma da lei; XXVIII - seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa; XXIX - ação, quanto a créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de: a) cinco anos para o trabalhador urbano, até o limite de dois anos após a extinção do contrato; b) até dois anos após a extinção do contrato, para o trabalhador rural; XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; XXXI - proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência; XXXII - proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos; XXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de quatorze anos, salvo na condição de aprendiz; XXXIV - igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso. Parágrafo único. São assegurados à categoria dos trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV, VI, VIII, XV, XVII, XVIII, XIX, XXI e XXIV, bem como a sua integração à previdência social. (Constituição Federal, texto promulgado em 05/10/1988) (grifo nosso) Pode-se perceber que a então Constituição Federal promulgada não dava direitos iguais às domésticas se comparado aos demais trabalhadores rurais e urbanos, concedendo a essas trabalhadoras somente nove direitos dos trinta e quatro direitos garantidos aos demais 37 trabalhadores. Para que ocorresse a ampliação dos direitos das empregadas domésticas seria necessário o artigo da Constituição ser alterado para poder incluir mais direitos a essa categoria. Novamente aqui, temos a luta de Benedita da Silva para a ampliação desses direitos na busca de uma maior igualdade para a categoria, o que ocorreu com a promulgação da Emenda Constitucional nº 72 em 2013. A Emenda que teve como origem a PEC 66/2012, que teve como relatora Benedita da Silva, mais conhecida como PEC das Domésticas, modificou o então parágrafo 7º da Constituição Federal na qual se formulou uma ‘’extensão do conjunto dos direitos trabalhistas às trabalhadoras domésticas’’64, na busca de uma certa equivalência aos outros trabalhadores: Parágrafo único. São assegurados à categoria dos trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV, VI, VII, VIII, X, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XXI, XXII, XXIV, XXVI, XXX, XXXI e XXXIII e, atendidas as condições estabelecidas em lei e observada a simplificação do cumprimento das obrigações tributárias, principais e acessórias, decorrentes da relação de trabalho e suas peculiaridades, os previstos nos incisos I, II, III, IX, XII, XXV e XXVIII, bem como a sua integração à previdência social. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 72, de 2013) (Art. 7º da Constituição Federal)65 A nova redação do parágrafo único do art. 7º66 garante às trabalhadoras domésticas importantes direitos como: - proteção do salário na forma de acordo com a lei; - duração do trabalho que não se não poderá ser superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, podendo haver compensação e redução ante acordo ou convenção coletiva de trabalho; - remuneração do serviço extraordinário a hora de trabalho acordada, no mínimo, em cinqüenta por cento à do normal; - redução dos riscos inerentes ao trabalho, - reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho; 66 Ibidem 65 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 64 BERTOLIN, P. T. M; ANDRADE, D. D; MACHADO, M.S. Mulher, sociedade e vulnerabilidade. Erechim: Deviante, 2017. E-book. Disponível em: https://www.editoradeviant.com.br/wp-content/uploads/2017/06/mulhersociedadeevulnerabilidade.pdf. Acesso em: 06/05/2021. https://www.editoradeviant.com.br/wp-content/uploads/2017/06/mulhersociedadeevulnerabilidade.pdf 38 - proibição de diferença de salários; - proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência; - proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer
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