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LETALIDADE POLICIAL E A ADPF 635 (ADPF DAS FAVELAS) Kevin Wilton Sousa Moura1 RESUMO Em meio a tantas ações policiais, que causaram muitas baixas de pessoas de comunidades de baixa renda, felizmente o Supremo Tribunal Federal contribuiu tanto para o debate, quanto com ações efetivas, no âmbito jurídico, de responsabilização das autoridades e adoção de critérios para as ações policiais. Adotando o método de pesquisa bibliográfica, este trabalho buscou desenvolver o conceito de letalidade policial, para não se confundir com uso excessivo da força, bem como traçar os fundamentos teóricos, jurídicos e sociais, que motivam a instituição policial como um todo a perpetrar em verdadeiro assassinato de populações das comunidades. É apresentado um estudo estatístico das mortes causadas pela polícia, principalmente a militar. E contra tudo isto é estudada as decisões do STF na ADPF 635, por meio da qual houve um avanço no combate à letalidade policial no Rio de Janeiro, e promoveu um amplo debate nas mídias e no meio acadêmico. Palavras-chave: Polícia Militar. Comunidades. Mortes. STF. 1 INTRODUÇÃO A violência das ações policiais nas comunidades de baixa renda é tema ainda pouco debatido, em razão de sua ínfima adesão popular, pois, é comum se ouvir, “bandido bom é bandido morto”. É dever da academia debater cientificamente o fenômeno letalidade policial. Por meio de pesquisa bibliográfica este artigo pretende abordar o tema da letalidade policial, em sua fundamentação teórica e considerações estatísticas dos dados de mortes causadas pela polícia. Na oportunidade é também estudada as decisões do Supremo Tribunal Federal em apreciação de ações judiciais contra as ações policiais em favelas do Rio de Janeiro. Busca-se contribuir com a discussão e encontrar alternativas para o melhoramento da ação policial, para que os agentes ajam segundo critérios internacionais e obedeçam, em qualquer hipótese, os direitos humanos. 1 Acadêmico de Direito da Universidade Federal de Roraima (kevinwilm2@gmail.com). 2 LETALIDADE POLICIAL: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS 2.1 CONCEITO Em primeiro lugar, tratemos de conceituar letalidade policial, que, em síntese, se refere às mortes decorrentes de ações perpetradas por policiais, ou, melhor dizendo, “uso da força letal – ou letalidade policial – refere-se àquelas situações em que a ação policial teve consequências fatais para o cidadão” (LOCHE, 2010, p. 44). Letalidade policial não se confunde com uso excessivo da força: Conforme Adams (1999), força letal, ou, como recorrentemente chamado aqui, a letalidade policial, refere-se a situações em que o uso da força é suscetível de consequências letais para a vítima; uso excessivo da força refere-se a situações em que o agente policial emprega mais força do que o permitido, quando julgado em termos de diretrizes ou normais legais. (NUNES, 2014, p. 20). A distinção dos conceitos de letalidade policial e uso excessivo da força é oportuna, aqui, para se delimitar o tema em discussão. Em 2015, o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública computou 3.009 vítimas da letalidade policial2, e a conceituou como "morte decorrente de intervenção policial", "homicídio doloso cometido por policiais, em serviço e fora" como também “ocorrência de homicídio doloso definida como "reações de policiais militares com provável excludente de ilicitude (reações a roubo e tentativa de roubo)" (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2016, p. 27). 2.2 POSSÍVEIS FUNDAMENTOS INSTITUCIONAIS DA LETALIDADE POLICIAL São permitidas às polícias se utilizarem de armas de fogo, que são letais. Ocorre que, nas circunstâncias da letalidade policial, a arma de fogo é utilizada fora das atribuições constitucionais, aplicando, na prática, pena de morte às vítimas, o qual é fortemente vedado pela Constituição, nos termos do art.5º, LIV. 2 A análise aqui é voltada às Polícias Militares, não abarcando as Polícias Civis, pelas razões demonstradas a seguir: “Não se pode olvidar que o quantitativo de Policiais Militares no Brasil é cerca de quatro veze superior ao de Policiais Civis, alcançando em 2013 o montante de 425,2 mil policiais militares, enquanto que no mesmo ano os números de policiais civis eram de 117,6 mil (G1, 2015). Tais dados podem ser um dos motivos que justifiquem o maior número de casos de letalidade envolvendo policiais militares frente aos números envolvendo policiais civis, ainda que não se mantenha a proporção do quantitativo de servidores”; “Às Polícias Militares são atribuídas 1.576 mortes em situação de confronto no ano de 2014, enquanto que no mesmo período às Polícias Civis foram responsáveis por 121, em situações iguais” (GOMES, 2016, p. 14). A exposição das forças policiais militares a situações de confronto - o que dá maior oportunidade à letalidade - pode ser explicada em função das suas atribuições constitucionais: As atribuições, desta forma, impostas às Polícias Militares as tornam mais suscetíveis a situações de confronto, uma vez que para o desempenho de seus deveres legais estas atuam de forma ostensiva e com a incumbência de preservar a ordem pública, devem percorrer todas as áreas do território, sobretudo às áreas com alto índice de criminalidade. Assim, como um dos reflexos desta maior exposição da Polícia Militar se tem nestas corporações os maiores números de letalidade decorrente de intervenção policial [...] (GOMES, 2016, p. 15). Outra explicação é que as Polícias Militares funcionam segundo metodologia própria das forças armadas, as quais, institucionalmente, doutrinam-se no combate ao inimigo, art. 144, §6º da CF/88 . Não é, no entanto, esta a demanda às Polícias Militares, é, por outro lado, “polícia ostensiva e a preservação da ordem pública”, nos termos do art. 144, §5º da CF/88. Como ensinam Costa e Lima: [...] a formação e o desenvolvimento institucional das polícias militares brasileiras foram condicionados pelo isomorfismo, num processo de homogeneização com as forças armadas: as forças policiais foram criadas a partir de um modelo militar de policiamento, à semelhança do que se observa nas forças armadas, mais especificamente no exército... Entretanto, na perspectiva de que a função do exército é a de proteção do Estado nacional, acionado em casos de guerra, a formação das polícias militares brasileiras se deu na lógica de “combate ao inimigo”, e não em função das demandas que enfrentariam no policiamento ostensivo. (COSTA e LIMA, apud NUNES, 2014, p.47). O modelo próprio das Polícias Militares não deveria ser o de forças auxiliares do Exército, adotando a lógica do combate ao inimigo. A Polícia Militar é constantemente convocada para exercer sua atividade, a qual é vista como se atuasse numa guerra urbana, e o inimigo não é qualquer invasor externo, mas um nacional que praticou conduta criminosa, e é punido segundo métodos alheios ao devido processo legal, num Estado Democrático de Direito. Em muitos destes “combates”, o infrator está armado, “o que pode conferir legitimidade aos policiais militares de eliminar, por meio da morte, o referido indivíduo, atitude esta que incide diretamente nos números de letalidade” (GOMES, 2016, p. 15). 3 LETALIDADE POLICIAL E A OPINIÃO PÚBLICA A opinião pública, aquela da maioria da população, mensura por pesquisas de opinião, é a favor da violência policial para o combate à criminalidade, tanto é assim o FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, em sua pesquisa de 2014, mostrou que 50% dos entrevistados é a favor de “bandido bom é bandido morto”, no entanto, quase a totalidade destes mesmos opinantes - 95% - reconhece que “a polícia deve preservar a vida acima de tudo”. É certo que há um evidente equívoco aqui na consciência das pessoas: como ser a favor de que a polícia proteja a vida acima de tudo, porém aceitar que o “bandido” é bom morto? Não faz qualquer sentido.O mais grave ainda é que, como o entendem alguns estudiosos, o “bandido” não é ser humano, portanto não é tão reprovável: Segundo se depreende da explicação, se o bandido não é humano, não teria inerentes à sua condição direitos e garantias fundamentais, como o direito à vida, logo a violação desta por policiais não seria reprovável. Esta pode se configurar como uma das formas de tentar encontrar coerência entre a alta aprovação das condutas letais contra os considerados criminosos, e a preservação da vida desses indivíduos, de igual forma, “humanos” (GOMES, 2016, p. 19). É como se o valor da vida da pessoa humana tida por criminosa tivesse diminuído; é como se, depois de cometido o crime, aquela pessoa perdesse o status de pessoa e de humana, podendo ser alvo, por fim, da ação letal policial, sem qualquer reprovação; [...] o “bandido” não é ser humano. Daí a palavra de ordem da opinião pública obscurantista “Direitos humanos para humanos direitos”. (ALMEIDA, 2009, p. 223). Por outro lado, é interessante notar que em pesquisa realizada pela Revista Galileu 62% das pessoas relataram ter medo de serem vítimas da violência policial, e este medo sobe para 67% das pessoas quando a elas é perguntada se a violência vem da Polícia Militar (MERLINO, 2016). De todo modo, o policial, seja de qualquer instituição, deve pautar sua conduta necessariamente de acordo com a estrita legalidade, segundo os melhores e mais avançados procedimentos de abordagem, prisão e encaminhamento ao Poder Judiciário, sempre resguardando todos os direitos daquela pessoa humana, que por motivos variados, cometeu um crime. A nenhum policial, a nenhuma instituição, é dada a palavra final sobre a vida da pessoa humana. No Brasil, em tempos normais, não é dado ao Estado o poder de tirar a vida de quem quer que seja. É, acima de tudo, dever do Estado garantir a vida, isto sim, porque é direito fundamental, cláusula pétrea da Constituição Federal. 4 A IMUNIDADE DOS AGENTES PÚBLICOS ENVOLVIDOS EM AÇÕES POLICIAIS LETAIS As ações policiais letais ganham certa legitimidade perante o público, e tal pode ser explicado em razão dos estereótipos, imagens e crenças que a sociedade tem das execuções policiais, pois de certo modo essas práticas têm uma continuidade histórica no Brasil, desde a Ditadura Militar, pois desde esta época a polícia atua sendo uma política de contenção social: Segundo Torres, Guimarães e Faria (2005), do ponto de vista dos direitos humanos, ações como estas ultrapassam os limites de atuação estabelecidos pela lei no cumprimento do mandato legal da polícia (2005, p. 263), e ganham legitimidade social porque a relação entre polícia e população negra e/ou baixa renda – maioria das vítimas dessas ações – é estruturada a partir de imagens, crenças e estereótipos que ficam sedimentados no conjunto das representações sociais construídas pela sociedade (TORRES; GUIMARÃES; FARIA, 2005, p. 264). Ou ainda, conforme alertam Paulo Sérgio Pinheiro e outros pesquisadores que se dedicaram a observar o período de transição entre ditadura civil-militar de 1964-1985 para a democracia recente, inaugurada em 1988, as práticas autoritárias mobilizadas pela polícia demonstram a continuidade da violência estatal sobre as classes populares, reflexo de uma política de contenção social, onde o uso da força é um método privilegiado para conter comportamentos considerados inadequados (PINHEIRO; IZUMINO; FERNANDES, 1991) (FERREIRA, 2019, p. 122). No contexto da grande quantidade de mortes causadas pela letalidade policial, é triste notar que há baixo impacto social, com pouca repercussão nos meios de comunicação, a rechaçar a violência. Há a ineficiência do Estado em punir criminalmente estes agentes. Há pesquisas demonstrando essa falta de penalidade, “em regra os policiais envolvidos em homicídios classificados como autos de resistência não são penalmente responsabilizados” (SOUZA, 2010, p. 192). Em outros casos, a punição dos agentes policiais vai depender mais da consciência individual ante de agentes fiscalizadores, que tomam iniciativas cabíveis, ““as circunstâncias dos homicídios não são apuradas, a não ser que motivações pessoais e/ou entendimentos particulares de atores isolados imponham um rigor maior na investigação de determinados casos” (MISSE, 2013, p. 132). Exemplo disso é violência policial no Massacre do Carandiru, que após a atuação da Polícia Militar, houve a morte de 111 presos. E, segundo Marta Machado e Maíra Machado (2015), até 2015 “nenhuma autoridade foi responsabilizada pelo Massacre e apenas uma parte dos policiais que participaram da invasão foi condenada criminalmente em primeira instância, 22 anos depois dos fatos” (MACHADO; MACHADO, 2015, p. 81). Todo este panorama da letalidade policial “constitui uma situação de violação de direitos fundamentais ao tempo em que reforça a inviabilização do próprio Estado de Direito” (FERREIRA, 2019, p. 124). É oportuna, neste sentido, a preocupação das autoridades públicas quanto às atuações policiais em comunidades no Rio de Janeiro, por exemplo. Foi nas partes mais empobrecidas da cidade que, em 2020, houve grande escalada de violência policial. Foi nesse momento que uma coalizão de organizações, movimentos e coletivos de favela do RJ obteve uma intervenção sem precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) na política de segurança pública do estado, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, que ficou conhecida como ADPF das Favelas. 5 ADPF 635 (ADPF DAS FAVELAS) Neste contexto da violência policial, mais especificamente no Rio de Janeiro, é que o Partido Socialista Brasileiro (PSB) ajuizou a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635, com o pedido de que se reconhecesse e fossem sanadas ofensas a preceitos fundamentais constitucionais, “decorrentes da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro marcada pela ‘excessiva e crescente letalidade da atuação policial’” (RIO DE JANEIRO, 2022). Na ação é pedido que o Estado do Rio de Janeiro elabore e encaminhe ao Supremo Tribunal Federal, em no máximo 90 dias de prazo, um plano visando à redução da letalidade policial e ao controle de violações de direitos humanos pelas forças de segurança fluminenses, que contenha medidas objetivas, cronogramas específicos e previsão dos recursos necessários para a sua implementação (RIO DE JANEIRO, 2022). Na ADPF 635 ainda há as seguintes ações a serem tomadas pelo Estado do Rio de Janeiro: b) Determinar que o Estado do Rio de Janeiro se abstenha de utilizar helicópteros como plataformas de tiro ou instrumentos de terror; c) Determinar que os órgãos do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, ao expedir mandado de busca e apreensão domiciliar, indiquem, da forma mais precisa possível, o lugar, o motivo e o objetivo da diligência, vedada a expedição de mandados coletivos ou genéricos; [...] f) Determinar que os agentes de segurança e profissionais de saúde preservem todos os vestígios de crimes cometidos em operações policiais, de modo a evitar a remoção indevida de cadáveres sob o pretexto de suposta prestação de socorro e o descarte de peças e objetos importantes para a investigação; [...] i) Determinar a obrigatoriedade de se elaborar, armazenar e disponibilizar relatórios detalhados ao fim de cada operação policial (PSB, 2019). Em julgamento o Ministro Edson Fachin decidiu por deferir a medida cautelar para determinar (i) que, sob pena de responsabilização civil e criminal, não se realizem operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a epidemia do COVID-19, salvo em hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com a comunicação imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro - responsável pelo controle externo da atividade policial; e (ii) que,nos casos extraordinários de realização dessas operações durante a pandemia, sejam adotados cuidados excepcionais, devidamente identificados por escrito pela autoridade competente, para não colocar em risco ainda maior população, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária”, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux (BRASIL, 2020a) A liminar foi deferida no julgamento em Tribunal Pleno, no dia 5 de agosto de 2020. É oportuno destacar o contexto pelo qual se fundamentou o pedido de liminar, deferido pelo STF. Ocorreu que “em um contexto de pandemia e isolamento social, quando indicadores criminais caíram, não houve redução no número de operações ou em sua letalidade” (OSMO; FANTI, 2021, p. 2129). De acordo com o relatório produzido pelo Observatório de Segurança do Rio de Janeiro (2020), no mês de abril de 2020 o número de operações policiais superou o do mesmo período em 2019 e a quantidade de mortes decorrentes de intervenção policial foi 57,9% maior. Em 15 de maio, uma operação voltada a prender um traficante matou 13 pessoas no Complexo do Alemão, o que foi repudiado pela CIDH via twitter poucos dias depois. Em meio à pandemia, os moradores tiveram que recolher parte dos corpos. Outra questão levantada para corroborar a tese do pedido de liminar, é que, naquelas regiões comunitárias do Rio de Janeiro, os seus moradores passavam por momentos de escassez de alimentos e outros itens básicos. Para atendê-los, movimentos humanitários se organizaram para distribuir cestas básicas, roupas, produtos de higiene e limpeza, e demais itens necessários à comunidade. Toda essa ajuda humanitária era interrompida por ação policial nas comunidades, cujas doações eram paralisadas em função dos constantes tiroteios. Houve até casos de mortes em meio às doações de cestas básicas (ALMEIDA, 2020). O acontecimento nevrálgico que muito aqueceu os debates acerca da violência policial foi a morte do adolescente João Pedro Mattos Pinto. Tinha 14 anos. Foi morto na cidade de São Gonçalo, em operação da Polícia Civil. O adolescente estava junto a outros, quando, em uma operação policial que invadiu a casa da tia dele, a casa em que estava, sofreu um tiro de fuzil. Em helicóptero da polícia foi levado o rapaz, e a família, impedida de acompanhá-lo, permaneceu muitas horas sem informações sobre o seu paradeiro (PSB et. al, 2020). O caso repercutiu muito na imprensa. O caso mostrou imensa brutalidade policial - que por sua vez é comum e recorrente contra adolescentes, pobres e crianças -, especialmente porque, segundo familiares, João Pedro brincava dentro de casa, justamente em obediência às recomendações sanitárias de isolamento social, e foi ali, inocente, assassinado. Felizmente, a decisão do STF, mesmo em caráter liminar, surtiu efeitos contra esse panorama de violência policial: A concessão da tutela, com a determinação de que as operações deveriam se restringir a situações absolutamente excepcionais, produziu uma redução substancial nos números de operações policiais e de mortes provocadas pela polícia nos meses subsequentes, com centenas de vidas poupadas. Para além disso, abriu espaço para que se levasse ao processo um debate de fundo sobre o modelo de segurança pública adotado no RJ (OSMO; FANTI, 2021, p. 2131). E esse debate de fundo é o que se pretende levar a cabo neste trabalho, porque é preciso discutir o tema da letalidade policial, com argumentos sólidos, baseados somente em métodos provados e evidências científicas, não apenas por uma questão ideológica de um ou outro político de ocasião: O período de vigência da tutela incidental permitiu que se demonstrasse, como apontou Daniel Hirata (entrevista 2021), que a visão de que a violência policial seria um mal necessário para a manutenção da ordem não se sustenta, pois junto com a restrição das operações policiais a situações excepcionais se observou uma redução na prática de crimes contra a vida e contra o patrimônio, bem como nos tiroteios. Foram produzidas evidências de que as operações não favorecem a redução dos crimes, ao contrário, parecem contribuir para o seu incremento (Hirata, entrevista 2021; GENI/UFF; FOGO CRUZADO, 2020). Na audiência pública promovida na ação, pesquisadores do campo apresentaram a hipótese de que, em lugar de atentar aos direitos fundamentais e aos princípios do serviço público, a realização das operações policiais está associada a interesses privados e à expansão das milícias (v. HIRATA, 2021; NUNES, 2021; MISSE, 2021). Sublinharam que não se pode justificar as mortes provocadas pela polícia com o objetivo de combater o crime, não só porque a vida não seria sacrificável em favor do controle da criminalidade, mas também porque a letalidade policial não produz esse efeito. Defenderam, por fim, que é possível uma política de segurança pública que resguarde os direitos humanos (OSMO; FANTI, 2021, p. 2132) Em julgamentos de embargos de declaração, o Plenário do STF decidiu que: a) determinar ao Estado do Rio de Janeiro que elabore e encaminhe ao STF, no prazo máximo de 90 (noventa) dias; b) cabe às forças de segurança examinarem diante das situações concretas a proporcionalidade e a excepcionalidade do uso da força, servindo os princípios como guias para o exame das justificativas apresentadas; c) criar um grupo de trabalho sobre Polícia Cidadã no Observatório de Direitos Humanos localizado no Conselho Nacional de Justiça; d) que só se justifica o uso da força letal por agentes de Estado quando, ressalvada a ineficácia da elevação gradativa do nível da força empregada para neutralizar a situação de risco ou de violência, (i) exauridos demais meios, inclusive os de armas não-letais, e for (ii) necessário para proteger a vida ou prevenir um dano sério, (iii) decorrente de uma ameaça concreta e iminente. Cabe ao Executivo local sopesar, de um lado, a necessidade de reduzir o risco de dano desnecessário aos direitos humanos nas operações policiais nas favelas, e de outro, as ameaças enfrentadas pelos agentes públicos no cumprimento de seus deveres estatais; e) que o agente do Estado possa desde logo fazer uso de força potencialmente letal, quando se fizerem necessárias e proporcionais à ameaça vivenciada no caso concreto; f) reconhecer, sem efeitos modificativos, a imperiosa necessidade de, nos termos do art. 227 da Constituição Federal, haver prioridade absoluta nas investigações de incidentes que tenham como vítimas quer crianças, quer adolescentes; g) indeferir, o pedido constante do item “h” da petição inicial, mantendo o sigilo dos protocolos de atuação policial no Estado do Rio de Janeiro; h) para reconhecer a obrigatoriedade de disponibilização de ambulâncias em operações policiais previamente planejadas em que haja a possibilidade de confrontos armados; i) indeferir o pedido para que eventual descumprimento da decisão proferida por este Tribunal seja investigado pelo Ministério Público Federal (BRASIL, 2022). 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em resposta às constantes ações policiais violentas, a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 635, a ADPF das favelas, veio para frear, segundo seus poderes, a brutalidade contra as comunidades de baixa renda. Muito avanço ocorreu com as medidas judiciais adotadas pelo STF. É oportuno, portanto, que os demais poderes públicos, executivos e legislativos, nas esferas estaduais e federais, promovam políticas públicas, investimento e treinamentos aos agentes, para que procedam, progressivamente, para sempre priorizarem a defesa dos direitos humanos, sem jamais atentar contra a vida e evitarem perturbar o sossego das comunidades, não só do Rio de Janeiro - âmbito da ADPF - mas em todo o Brasil. Que o nosso país seja exemplo de segurança pública - é tarefa árdua, de muitas resistências, mas é nosso dever,da academia, de lutar por isso. REFERÊNCIAS ALMEIDA, A. M. Impunidade e banalização da violência dos agentes do Estado. Projeto História, São Paulo, n. 38, p. 221-223, 2009. ALMEIDA, Pauline. “Jovem é morto durante a entrega de cestas básicas no RJ; vizinhos criticam PM”. Uol, 21 mai. 2020. 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Monografia (Especialização em http://www.forumseguranca.org.br/storage/download/anuario_2015.retificado_.pdf Segurança Pública) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais, 2016. LOCHE, Adriana. A letalidade da ação policial: parâmetros para análise. TOMO, São Cristóvão, n. 17, p. 39-56, 2010. MACHADO, Maíra Rocha; MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Carandiru não é coisa do passado: um balanço sobre os processos, as instituições e as narrativas 23 anos após o massacre. São Paulo: FGV Direito SP, 2015. MERLINO, T. Quem tem medo da polícia?. Galileu, 2016. Disponível em: http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2016/08/quem-tem-medo- dapolicia.html. Acesso em 13 de fevereiro de 2022. MISSE, Michel; GRILO, Carolina Christoph.; TEIXEIRA, César Pinheiro.; NERI, Natasha Elbas. Quando a polícia mata: homicídios por “autos de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: CNPQ/NECVU/ Booklink, 2013. NUNES, Samira Bueno. 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