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11 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará A Perda Alargada Enquanto Instrumento de Combate às Organizações Criminosas: A Atuação do Ministério Público Frente ao Crime Organizado Adna Leonor Deó Vasconcelos1 RESUMO Verifica-se, atualmente, não somente no contexto nacional brasileiro, mas, também, no âmbito internacional, no que se pode chamar de aldeia global, a impregnação pela criminalidade organi- zada e econômica de extensos setores de atividade, atrativos como meio de reciclagem e lavagem de enormes receitas produzidas pelas atividades criminalmente ilícitas. A problematização da pes- quisa parte da interrogação: a perda alargada se faz necessária no ordenamento jurídico brasileiro para uma resposta efetiva e eficaz ao crime organizado? Nesse contexto, a atuação do Ministério Pú- blico se revela positiva, porque a instituição, de base constitucional, apresenta-se como principal enfrentador das estruturas criminais organizadas, destacando-se as ações políticas e sociais que está desenvolvendo frente àquela forma de criminalidade tão peculiar. Para subsidiar a empreitada científica, a natureza metodológica foi a qualitativa, documental e teórica. A principal finalidade foi construir uma discussão jurídica acerca da perda alargada enquanto meca- nismo de enfrentamento àquela forma de criminalidade organizada, mormente o combate aos lucros decorrentes da atividade criminosa, 1 Membro do Ministério Público do Estado do Ceará. Promotora de Justiça na Comarca de Hidrolândia-CE. E-mail: adna.vasconcelos@mpce.mp.br 12 consciente que os benefícios econômicos advindos da ilicitude tem amplitudes bem diversas, uma vez que a ação ministerial consegue cercear o infrator dos rendimentos obtidos com as práticas crimi- nosas, despontando nisto a importância do Ministério Público como instituição que detém a missão indelegável de empreender o combate à criminalidade, que, organizada como se encontra, compromete a própria existência do Estado Democrático. Palavras-chave: Organizações criminosas. Perda alargada Mi- nistério Público. ABSTRACT It is nowadays not only in the Brazilian national context but in the international context, within what can be called the global village, the impregnation by organized and economic crime of extensive sectors of activity, attractive as a means of recycling and washing of enormous revenues produced For criminally illicit activities. The questioning of research is based on the question: is the widespread loss necessary in the Brazilian legal system for an effective and effective response to organized crime? In this context, the Public Prosecutor’s Office proves to be positive, since this constitutional base is the main contender of organized criminal structures, highlighting the political and social actions it is developing in the face of such a peculiar form of criminality. To subsidize the scientific endeavor the methodological nature was qualitative, documentary and theoretical. The main purpose was to construct a juridical discussion about the widespread loss as a mechanism to confront that form of organized crime, mainly the combat to the profits derived from the criminal activity, conscious that the economic benefits from the ilicitude have very diverse amplitudes, since this institute Makes it possible to restrain the offender from the proceeds obtained through criminal practice, in this, the importance of the Public 13 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará Prosecutor’s Office as an institution that has the non-delegable mission to undertake the fight against crime. Organized crime that compromises the very existence of the Democratic State. Keywords: Criminal organizations. Extended loss. Public Ministry. SUMÁRIO: 1 – INTRODUÇÃO. 2 – AS ORGANIZAÇÕES CRIMI- NOSAS. 3 – A PERDA ALARGADA. 4 – A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO COMBATE ÀS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS. 5 – CON- SIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS. 1 INTRODUÇÃO Nos dias de hoje, verifica-se, não somente no contexto nacional brasileiro, mas no âmbito internacional, dentro do que se pode con- vencionar chamar de aldeia global, a impregnação pela criminalidade organizada e econômica de extensos setores de atividades, atrativos como meio de reciclagem e lavagem de enormes receitas produzidas pelas atividades criminalmente ilícitas, como o tráfico de pessoas, de armas, de droga, de metais e pedras preciosas, da corrupção e da fraude, para falar apenas dos mais ostensivos, e isto é um fato. De uma forma incipiente, pode-se apontar uma tentativa de de- limitação do conceito de criminalidade organizada como as formas de aparecimento de fenômenos criminosos dotados de certo grau de racionalidade organizativa, com recurso a planos e meios pessoais e materiais geralmente sofisticados, com o objetivo de obtenção de avultados lucros ilegítimos e com possíveis conexões em mais de um Estado, recorrendo quando necessário à violência ou à sua iminência, dotados de mecanismos de apagamento ou dissimulação dos vestígios dos processos criminosos. Especialmente no contexto brasileiro, as doutrinas construíram suas bases conceituais acerca das organizações criminosas a partir 14 de características peculiares, tais como a previsão de lucros, hierar- quia, divisão de trabalho, ligação com órgãos estatais, planejamento das atividades e delimitação da área de atuação, sendo destacada, infelizmente, um modelo de organização criminosa institucionalizada no ambiente do Estado Republicano. Por sua vez, enquanto mecanismo de enfrentamento àquela for- ma de criminalidade organizada, mormente o combate aos lucros decorrentes da atividade criminosa, consciente que os benefícios eco- nômicos advindos da ilicitude têm amplitudes bem diversas, a perda alargada permite cercear o infrator dos rendimentos obtidos com as práticas criminosas. É inquestionável a necessidade da declaração de perda dos instrumentos e dos objetos (ou produtos) do fato ilícito deva se concretizar no âmbito da criminalidade organizada. Neste contexto, a atuação do Ministério Público, enquanto ins- tituição cujas sólidas bases encontram-se alicerçadas na estrutura constitucional brasileira, sendo-lhe atribuído o caráter de “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo- -lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos inte- resses sociais e individuais indisponíveis”, conforme disposição do art. 127, caput, da Carta Magna de 1988, frente às organizações criminosas se reveste de grande importância e necessidade, pois nos dias de hoje o mero tecnicismo legalista do cotidiano das atividades ministeriais não é suficiente para a efetivação das disposições consti- tucionais inerentes às funções do Parquet, devendo este atuar a partir de uma dimensão diferenciada e moderna, qual seja, a atuação enquanto fomentador de políticas públicas e mobilização social. A problematização levantada na pesquisa elege a seguinte interro- gação como ponto de partida para a discussão: “a perda alargada se faz necessária no ordenamento jurídico brasileiro para uma resposta efetiva e eficaz ao crime organizado?”. Nisto, a presente pesquisa, de natureza qualitativa, documental e teórica, tem com finalidade levantar uma discussão jurídica acerca das organizações criminosas 15 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará e a perda alargada como importante e eficaz instrumento de combate àquela forma de criminalidade muito bem estruturada, bem como a atuação do Ministério Público como instituição garantidora da higidez do Estado Democrático de Direito. Para subsidiar a empreitada cien- tífica, foram realizadas pesquisas junto às referências bibliográficas. O trabalho foi estruturado em três capítulos. O primeiro momento voltou-se para uma análise teórica acerca das organizaçõescrimi- nosas sendo confrontadas e discutidas as disposições doutrinárias e as legislações relacionadas. No segundo momento, buscou-se re- alizar um debate acerca do instituto jurídico da perda alargada, enfocando a sua importância instrumental no direito penal para o combate às organizações criminosas. Por fim, no terceiro e último momento da pesquisa, procurou-se discorrer sobre a atuação do Mi- nistério Público como principal enfrentador das estruturas criminais organizadas, destacando-se as ações políticas e sociais que está desenvolvendo frente àquela forma de criminalidade tão peculiar. 2 AS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS Inicialmente, é interessante observar que, ao contrário da possi- bilidade de elaboração de uma definição normativa de organizações criminosas, a exposição de uma base conceitual consoante a dou- trina se apresenta como uma necessidade para melhor entender as disposições jurídicas acerca do assunto. Nesse contexto, é de ser lembrado que o presente estudo não toma sobre si a audácia de esgotar em numerus clausus o rol de conceitos e caracterizações da modalidade criminosa em comento, mas busca destacar uma compreensão básica ou comum acerca da temática. Vale ressaltar que cada organização criminosa assume caracte- rísticas peculiares e incrível poder variante, amoldadas às suas ne- cessidades, condições e facilidades encontradas no território no qual atuam ao ponto de mudarem de “roupagem” que possibilite a sua 16 identificação. Visam, assim, à operacionalização dos crimes plane- jados, com o fim de angariar rendas mediante atividades criminosas. 2.1 ASPECTOS CONCEITUAIS A reunião de pessoas com a finalidade de cometer ilícitos penais, fazendo muitas vezes do crime um meio de vida, não é um fenô- meno recente na história da humanidade. Ao longo dos anos, constata-se que as estruturas criminosas encontram-se cada vez mais organizadas em simulacro de verdadeiro modelo empresarial. Há na doutrina controvérsia acerca da existência ou inexistên- cia das chamadas organizações criminosas. A referida discussão concentra-se basicamente em duas teorias, a saber, a teoria do mito e a teoria da conspiração. Segundo a Teoria do Mito, o Estado cria condutas abstratas, mas autônomas, impõem-se penas mais altas e rigorosas, bem como reduzem-se os benefícios dos acusados de tais práticas. Para os defensores dessa teoria não existe organização criminosa, esta figura seria fruto do próprio Estado opressor que na tentativa de re- lativizar direitos e garantias individuais e legalizar a manifestação do direito penal do inimigo. Como seguidores desta teoria podemos citar Zaffaroni (1996, p. 46), segundo o qual não existem organizações criminosas, sendo seu conceito uma criação ou categoria forjada a partir da história. Vale frisar que em palestra realizada no dia 11 de janeiro de 2013, na Universidade de Mar del Plata, o referido professor Ar- gentino passou a reconhecer a existência do crime de organização criminosa, apesar de ser muito citado como defensor da teoria do mito no tocante à existência do delito de organização criminosa (GOMES, 2014). Santos (1994) argumenta que “(...) o conceito americano de crime organizado é do ponto de vista da realidade, um mito: do ponto de 17 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará vista da ciência, uma categoria sem conteúdo; e do ponto de vista prático, um rotulo desnecessário [...]” (SANTOS, [...]” (SANTOS, 1994, p. 216). Por sua vez, Hireche (2005), também defensor da Teoria do Mito, entende que não existe a figura delitiva da organização cri- minosa. Isso porque a multiplicidade de conceito inviabiliza uma definição cientifica da temática, logo há apenas o delito de quadrilha e bando (2005). Em geral, os defensores da teoria do mito são aqueles que pa- trocinam a defesa para a grandes organizações criminosas. Nesse sentido, cabe transcrever as palavras de Baltazar (2010): O discurso do mito, além de estar presente em estudos acadêmicos, consiste em uma antiga estratégia de defesa, adotada tanto na Itália, pelos defensores dos líderes mafio- sos nos megaprocessos, e nos Estados Unidos quanto no Brasil. Na Itália, é antiga, e ainda presente a resistência ao paradigma associativo, representada pela afirmação de que a máfia não seria organização, mas um modo de vida ou atitude, caracterizada pela resistência siciliana ao poder central ou uma exagerada autoestima [...]. (BALTA- ZAR, 2010, p. 79). Em contraposição à teoria do mito surge a teoria da conspiração, a qual defende a existência do crime de organização criminosa, bem como entende como um verdadeiro risco a própria existência do es- tado Democrático de Direito, tendo em vista que, devido ao grande acumulo de capitais, a criminalidade organizada opera na cooptação de agentes públicos por meio da corrupção. A Teoria da Conspiração concebe as organizações criminosas como um risco latente ao Estado de Direito, que seria transformado em Estado criminoso. Isso porque com os grandes ganhos finan- ceiros, conseguem a cooptação de agentes públicos por corrupção e intimidação, atingindo os órgãos de persecução penal (GOMES, 2015, p. 15). 18 As duas teorias são em verdade dois extremos. Contudo, é inegá- vel a existência de organizações criminosas não apenas em nosso território nacional, mas como fenômeno global. As organizações cri- minosas não são abstratas, irreais como indica a teoria do mito, uma criação do Estado para legitimar a supressão de direitos e garantias no âmbito criminal. São condutas criminosas de alta complexidade que exigem do Estado uma resposta mais enérgica, bem como me- canismos diferenciados de investigação. Além disso, a política criminal não deve ser centrada apenas e tão somente na observância dos direitos e garantias do réu, mas também e igualmente prevista no texto constitucional, na proteção do direito à segurança e a vedação à proteção insuficiente, seguindo a linha do modelo funcionalista teleológico do professor alemão Claus Roxin, mencionado por Gomes (2014). Como exemplo da existência de verdadeiras organizações crimi- nosas, podemos citar as normas, enunciados e legislações em vários países do mundo que tratam da temática. 2.2 DIMENSÕES E VARIAÇÕES DO CRIME ORGANIZADO Em uma exposição na Universidade de Tucumã, realizada em 2012, Luigi Ferrajoli, classificou o crime organizado em três grandes grupos. São eles: criminalidade organizada estruturada por poderes criminais privados, criminalidade organizada estruturada por pode- res econômicos privados e criminalidade organizada estruturada por agentes públicos (dos poderes públicos, dos políticos, dos parla- mentares e prefeitos, dos juízes, policiais, fiscais, agentes do estado), também denominada de endógena ou criminalidade dos poderosos (na doutrina alemã “kriminalität der mächtigen) (GOMES, 2014). A primeira classificação da criminalidade organizada é denomi- nada de criminalidade organizada estruturada por poderes criminais privados são, em geral, grupos mais agressivos que normalmente 19 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará utilizam-se da miséria, de pequenos delinquentes (são o corpo, braços e pernas da organização), exploram a mão de obra barata do miserável, do necessitado, otimizando seus lucros e benefícios (exploram jovens desempregados, mulheres, ex-presidiários, pessoas dos grandes conjunto habitacionais). Nesse tipo de organização há células ostensivas espalhadas, são apenas operacionais, são elas que desenvolvem o trabalho de rua, de entrega de organização local e dis- tribuição de drogas etc. No entanto, esse tipo de organização possui o núcleo pensante que não aparece, é camuflado, clandestino, não residem nas “favelas”, não estão na linha de frente da criminalidade. Esse tipo de organização criminosa conta com apreciávelpoder econômico, sua infiltração estatal não é tão profunda, mas há a presença dos agentes do estado considerando que é impossível a existência e manutenção de organização criminosa sem a partici- pação de agentes estatais, conta, assim, com enorme poder de fogo suficiente para intimidar quem surge como obstáculo a suas tarefas. Como exemplo desse tipo de organização criminosa em nosso país podemos citar o Primeiro Comando da Capital - PCC e o Comando Vermelho - CV. Por sua vez, a criminalidade organizada estruturada por poderes econômicos ou criminalidade de empresa são aquelas que têm como característica central a utilização de grandes empresas para pratica de crimes. Não fazem uso de violência ou ameaça, mas investem em corrupção de agentes públicos para perpetração dos delitos e aquisição de poder. Normalmente, essas empresas criminosas nas- cem fora do Estado, mas passam a corromper agentes públicos, e infiltram-se nas mais altas cúpulas dos poderes estatais. Esse ramo do crime organizado atua na pratica de crimes ambientais, finan- ceiros e econômicos, lavagem de capitais, sonegação, evasão de dividas, licitações públicas, tráfico de armas, animais e pessoas. Segundo Mendroni (2012) é a forma empresarial de organização criminosa, conceitua o autor: 20 Formada no âmbito de empresa lícitas- licitamente cons- tituídas. Neste formato, também modernamente chamada de organização criminosa, os empresários se aproveitam da própria estrutura hierárquica da empresa. Mantém as suas atividades primarias lícitas, fabricando, produzindo e comercializando bens de consumo para, secundariamente, praticar crimes fiscais, crimes ambientais, cartéis, fraudes (especialmente em concorrência - licitações, dumping, lavagem de dinheiro, falsidades documentais, mate- riais ideológicos, estelionato etc. (MENDRONI, 2012, p. 32). A terceira classificação de organização criminosa é denominada de criminalidade organizada estruturada por agentes públicos - poderes públicos, dos políticos, dos parlamentos, dos prefeitos, dos juízes, dos policiais, dos fiscais- intitulada de endógena. Esse formato de criminalidade são organizações constituídas por elite docolarinho branco, pessoas que estão acima de qualquer sus- peita. É constituída dentro da própria estrutura do Estado, desviando bilhões dos cofres públicos. É a mais séria ameaça à democracia, por meio dessa criminalidade retira-se a possibilidade de realização de diversa políticas publica em prol da sociedade. O autor Mendroni (2012), preleciona: [...] trata-se de uma espécie de organização criminosa em que o agente age dentro do próprio Estado, em todas as esferas – Federal, Estadual, Municipais, envolvendo, conforme a atividade, cada um dos Poderes, Executivo, Legislativo ou Judiciário. É formada essencialmente por políticos e agentes públicos de todos os escalões, envol- vendo portanto, necessariamente, crimes praticados por funcionários públicos contra a administração pública (cor- rupção, concussão, prevaricação, etc.) mas também, quase que inevitavelmente outras infrações penais como aquelas que se relacionam direta ou indiretamente (são exemplos conhecidos no Brasil: o caso do mensalão, Sanguessugas, dos Correios, Satiagraha, Castelo de Areia, Caso das má- fias dos Fiscais (SP), etc. (MENDRONI, 2012, pp. 23-24). Preleciona Silva e Gomes (2015) que O bem jurídico ultimo que está em jogo, quando se 21 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará 21 trata de crime organizado que envolve o poder público, é a própria democracia, ou seja, o Estado de Direito. São os fundamentos dos bens públicos que entram em crise, nesse caso. A capacidade intimidativa e corruptiva do crime organizado afeta, ademais, a própria função pública de proteção e de garantia. Ela proscreve a garantia das garantias, que é a função protetiva jurisdicional. (SILVA e GOMES, 2015, p. 28). Por fim, os autores acima nominados elencam uma quarta classificação das organizações criminosas, que seriam os grupos mafiosos, também chamados de tradicionais ou clássicos, sendo exemplos as máfias italianas, japonesas, russas etc, e possuem es- truturas complexas espalhadas quase no mundo inteiro, com nítida divisão de tarefa em que se misturam atividade licita e ilícita. Dessa forma, percebe-se que dentre todas as classificações e/ ou modalidades do crime organizado é facilmente constatado a presença da criminalidade organizada em nosso país em todas as suas formas. Temos vários exemplos de criminalidade endógena, a exemplo da operação lava jato, que há mais de três anos apura os devastadores delitos denominados de colarinho branco, sendo a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro que o Brasil já teve. Avalia- se que o volume de recursos desviados dos cofres da Petrobras, maior estatal do país, esteja na casa de bilhões de reais, bem como as grandes facções criminosas que atuam, inicialmente, no tráfico de substâncias ilícitas, mas que se desdobra em uma série de outros delitos, por exemplo, o homicídio muitas vezes decorrente da disputa de território para comercialização de drogas, tráfico de arma de fogo, branqueamento de capitais, dentro outros delitos. Além disso, os crimes de empresas que figuram nos procedimen- tos licitatórios, causando imensuráveis prejuízos à administração pública e consequentemente ao interesse público e a toda sociedade. Ademais, pode haver a interconexão das diversas formas de crimi- nalidade organizada conforme detalhado acima. 22 2.3 ORIGEM E EVOLUÇÃO DO CRIME DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA NO BRASIL O primeiro documento normativo em nosso sistema penal a mencionar organização criminosa foi a Lei nº 9.034/94, que em sua redação original indicava em sua ementa que a referida legislação dispunha “sobre a utilização de meios operacionais para prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas”. No entanto, a referida lei não trouxe a definição do delito. Não há descrição de conduta formal e materialmente típica denominada de organização criminosa, ou seja, não houve a definição de um fato típico, ilícito e culpável de uma conduta juridicamente prevista como o crime de organização criminosa. No indicado documento legislativo há referência ao art. 288 do Código Penal Brasileiro (Decreto- Lei nº 2.848/1940), que tratava do delito, à época, definido como o delito de quadrilha ou bando, bem como houve a definição e regulação de alguns dos meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas. A mencionada lei criada com a finalidade de combater ilícitos praticados por organização criminosa, trouxe diversas formas de combater a tal organização, meios de prova, indicando inclusive a quantidade de pessoas duas para se configurar uma organização criminosa, contudo não definiu nos termos legais o que é uma or- ganização criminosa. Desse modo, em se tratando de matéria penal, cabe frisar como vetor do sistema o Princípio da Reserva Legal previsto no art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição da República Federativa do Brasil, que preceitua que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Assim, para proibir condutas sob a ameaça de sanção é imprescindível que a conduta esteja definida previamente em lei. 23 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará 23 Todavia, não basta a previsão legal, é necessário, para que a conduta se subsuma ao tipo penal, que a lei seja clara na delimita- ção da conduta intitulada como delito, pois é vedado a lei criar tipos penais com conceitos vagos ou imprecisos. Nesse sentido preleciona Queiroz (2001): O princípio da reserva legal implica a máxima determina- ção e taxatividade dos tipos penais, impondo-se ao Poder Legislativo, na elaboração das leis,que redija tipos penais com a máxima precisão de seus elementos, bem como ao poder judiciário que as interprete restritivamente, de modo a preservar a efetividade do princípio. (QUEIROZ, 2001, p. 23-24) Verifica-se, assim, que, embora a Lei nº 9.034/95 seja o primeiro diploma legislativo a tratar do tema organização criminosa, não trouxe a previsão de uma conduta típica, ilícita e culpável como delito intitulado de organização criminosa, limitando-se a equiparar organização criminosa ao delito de quadrilha ou bando. Posteriormente, a Lei nº 9.034/95 foi alterada pela Lei nº 10.270/2001 a qual tentou diferenciar o delito de quadrilha ou bando do delito de organização criminosa, porém não trouxe a definição legal do que seja organização criminosa para fins penais. A convenção das Nações Unidas contra o crime organizado trans- nacional, convenção ratificada pelo Brasil por meio do Decreto-Lei nº 5.025/2004, em seu art. 2º, conceituou o que seria grupo criminoso organizado. A partir da definição prevista no documento internacional referido acima, ratificado pelo Brasil, o qual possui status de lei ordinária na ordem jurídica interna, alguns doutrinadores, bem como o Superior Tribunal de Justiça2, passaram a aplicar tal conceito em âmbito nacional para aproveitamento dos mecanismos de investigação previsto na Lei nº 9.034/95, e para reconhecimento do crime 2 STJ. HC 77.771-SP, Quinta Turma. Rel. Min Laurita Vaz. Julgamento em 30.05.2008. 24 antecedente na hipótese da Lei nº 9.613/98, legislação esta que “dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências”. Contudo, em 31 de maio de 2012, o Supremo Tribunal Federal3 declarou ser atípico o delito de organização criminosa, sendo in- viável a utilização do conceito previsto na convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional, ainda que apenas, e tão somente, para aplicar os mecanismos de investigação da Lei nº 9.034/95. Dessa forma, com a finalidade de cumprir os tratados inter- nacionais firmados pelo Brasil, os quais estabelecem como objetivo o combate à crescente criminalidade organizada, o poder legislativo promulgou a Lei nº 12.694/2012, a qual passou a tipificar o delito de organização criminosa conceituando tal conduta em seu art. 2º nos seguintes termos: Para os efeitos desta Lei, considera-se organização crimi- nosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estrutu- ralmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, me- diante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional. (Lei nº 12.694/2012). Embora celebrada a tipificação do delito de organização crimino- sa, a previsão legal trazia restrições quando da sua aplicação, tendo em vista que estabelecia que o conceito se restringia às hipóteses previstas na própria norma. Assim, surgiu divergências doutrinarias quanto à aplicação da norma ao caso concreto. Alguns doutrinado- res brasileiros defendiam a ampliação do campo de incidência do 3 STF. HC nº 96.007/SP. Primeira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgamento em 12.06.12. 25 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará conceito de organização criminosa, mesmo que em interpretação desfavorável ao acusado, dentre eles podemos citar o Brasileiro (2013) e Dupret (2012). Noutro sentido, defendendo que a aplicação a outras hipóteses, fora dos casos previstos na própria norma, configuraria interpretação extensiva, vedada no âmbito criminal quando em prejuízo do réu, podemos citar o autor Baltazar Júnior (2014). Em meio à contenda sobre a ampliação ou não do conceito de organização criminosas a hipóteses além das previstas na lei de referência, é elaborada a Lei nº12.850/2013, que põe fim a referi- da discussão, revogando expressamente a Lei nº9.034/1995, que tratava do combate ao crime organizado, conforme já mencionado acima como primeiro diploma legislativo que tratou do tema or- ganização criminosa, trazendo um novo conceito de organização criminosa aplicado para todos os fins penais definição agora não passível de dúvidas. O referido diploma legislativo acaba com a discussão por prever um conceito claro e preciso do que seja organização criminosa. Nesse sentido dispõe o art. 1º, §1º, da Lei nº 12.850/2013: Art. 1º. Esta Lei define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento cri- minal a ser aplicado. § 1º. Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que infor- malmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional. Em sendo assim, constata-se que apenas em 2012, nosso orde- namento jurídico passa a prever, expressamente, o delito de organização criminosa, mas apenas no ano seguinte, 2013, o conceito é aperfeiçoado visando a alcançar todos os fins legais. 26 Desse modo, enquanto no direito comparado estudava-se meca- nismos mais eficazes no combate à criminalidade organizada, bem como instituía-se novos instrumentos processuais penais, dentre eles o confisco alargado, tendo em vista que as antigas ferra- mentas não mais conseguiam dar respostas efetivas a esse novo formato de delinquência na tentativa de cumprir o velho adágio de que “o crime não compensa”, o Brasil sequer tinha como conduta típica definindo o delito de organização criminosa. 2.4 COMETÁRIOS AO TIPO PENAL PREVISTO NA LEI Nº 12.850/2013 O diploma legislativo brasileiro que passou a tipificar o crime de organização criminosa de forma clara visando a alcançar o conceito de criminalidade organizada para todo os fins foi a Lei nº 12.850/2013, sancionada em 02 de agosto de 2013. Assim, como já mencionado, nos termos do art. (?) § 1º da Lei nº 12.850/2013 são organizações criminosas: § 1º. Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que infor- malmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional. A lei institui um critério finalístico para definição do aglomerado de pessoas como organização criminosa, consistente na obtenção direta ou indiretamente de vantagem de qualquer natureza. No tocante a esse critério finalístico, por ser uma expressão vaga, surgem críticas doutrinarias a respeito da matéria. Nesse sentido, cabe transcrever as considerações do autor Baltazar Júnior (2010): 27 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará As organizações criminosas em sua essência visam o lucro. A referência a vantagem de qualquer natureza, não apenas a econômica, dificulta a distinção entre organizações crimi- nosas e grupos terroristas, o que é agravado pela expressa extensão da aplicação da lei às organizações terroristas internacionais”. (BALTAZAR JÚNIOR, 2010, p. 1.269). Por outro lado, Cabette (2014) defende que a expressão da norma em comento visa justamente evitar celeumas que normalmente se instalam quando se utiliza a expressão pura e simples da “vantagem”. A expressão vantagem de qualquer natureza contida na norma incriminadora em referência tem por objetivo alcançar todas as si- tuações em que pessoas reúnem-se parapratica de crimes visando a auferir vantagens, expressão que dever balizada pelo julgador ao verificar as circunstâncias do caso concreto. 2.4.1 Pluralidade de agentes O delito em estudo é do tipo plurissubjetivo, plurilateral ou de concurso necessário, ou seja, para sua consumação exige-se pelo menos quatro agentes. Vale frisar que para caracterização da organização criminosa computa-se o número de adolescentes e crianças. A própria lei estabelece como causa de aumento fixada em 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços) nas hipóteses em que há comprovada participação de crianças e adolescentes na crimina- lidade organizada. Além disso, pode ser imputado o delito de organização criminosa ainda que não seja possível identificar todos os integrantes, desde que exista prova segura de sua existência. A temática é pacifica na doutrina e na jurisprudência. Nesse sentido preleciona Greco (2014): [...] desde que se tenha certeza da existência dos demais membros que integravam o grupo, mas que se manti- veram no anonimato, ou seja, não foram identificados e qualificados pela autoridade policial. O fundamento nessa hipótese, frise-se, é a convicção, a 28 certeza cabal de que outras pessoas faziam parte do grupo criminoso, perfazendo o total mínimo exigido pelo tipo em estudo [...]” (GRECO, 2014, p. 914). Na mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça tem posição no sentido de que “para a configuração do delito de quadrilha não é necessário que todos os integrantes tenham sido identificados. Basta a comprovação de que o bando era integrado por quatro ou mais pessoas.”4 2.4.2 Associação estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente A ideia de estruturalmente organizada pressupõe os elementos de estabilidade e permanência, a união não pode, pois, restringir-se à pratica de um único crime, porque assim teríamos o concurso de pessoas ou até a incidência do delito de associação para prática de crimes prevista no art. 288 do Código Penal Brasileiro. Nesse sentido ensina Tasse (2014): Não há, desta feita, como pensar em crime organizado sem o predicado da estabilidade. A estabilização das re- lações, tanto de hierarquia quantos de objetivos, forma o elemento que mantém unidos os integrantes do organismo, fortalecendo-o enquanto agrupamento paralelo do Estado, especializado na atividade criminosa. (TESSE, 2014). Outra questão importante é que não importa saber qual a atividade que cada integrante desenvolve para manutenção e desenvolvimento da organização criminosa. 4 STJ. HC 52.989/AC. Quinta Turma. Rel. Ministro Felix Fischer. Julgamento em 23.05.2006. 29 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará 2.4.3 Pratica de infrações penais graves ou transnacionais A reunião de pessoas na forma de organização criminosa além dos requisitos indicados acima (estabilidade, permanência estruturada mediante a divisão de tarefas, pluralidades de agentes com o intuito de obter vantagem), exige ainda que a organização tenha por objetivo a pratica de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 04 (quatro) anos ou com caráter de transnacio- nalidade do crime. Caso a organização criminosa se dedique à pratica de infração penal com caráter transnacional, não será preciso aferir a pena do crime praticado, claro se contemplado com os demais requisitos necessários para caracterização das organizações criminosas. A doutrina ensina que são infrações transnacionais aqueles deli- tos que atravessam fronteiras, são os chamados delitos a distância. Desse modo, verifica-se que a Lei nº 12.850/13, além de tipificar penalmente a conduta descrita como organização criminosa, tratou das técnicas especiais para investigação dessa nova forma para pratica de infrações penais. Formando, portanto, em um impor- tante instrumento legal criado a partir do reconhecimento da diferen- ciação da criminalidade comum da criminalidade organizada. Assim, trouxe mecanismos diferenciados de perseguição compatíveis como essa nova faceta do mundo do crime, que supera fronteiras e que exige medidas transnacionais para sua repressão. 3 A PERDA ALARGADA Os formatos das atuais organizações criminosas assemelham- se, e muito, aos grandes modelos empresarias, os quais possuem estrutu- ra hierarquizada de poder, com divisão de tarefas, transnacionalidade das atividades desenvolvidas, tendo como meta central auferir lucros por meio da prática de crimes. Para tanto, assim como nas grandes 30 empresas, fazem-se necessários vultosas quantias, valores e bens para manutenção de todo o sistema organizacional criminoso. Nesse viés, considerando o número cada vez mais crescente de grupos, organizações e/ou facções criminosas, verificou-se que o direto penal tradicional baseado tão somente na pena de prisão e multa não se mostrava mais eficaz o suficiente no combate às hie- rarquizadas estruturas de poder que têm como objetivo central a pratica de infrações penais. Assim, com a disseminação dessa nova fase da criminalidade, os mecanismos clássicos de repressão ao crime acabaram por fomentar ainda mais as práticas ilícitas, haja vista que a pena de prisão, não raras vezes, é tratada como “consequência do negócio”, como risco das atividades desenvolvidas. Nesse sentido, havia por parte do Estado, como aplicação tão somente de mecanismo clássicos de repressão, um verdadeiro incentivo, fazendo do crime um meio de vida, demonstrando assim que o crime “compensa”. Surge, então, no direito comparado, vale ressalvar que não há previsão legal em nosso País, ainda, e, portanto, o pressente traba- lho menciona a legislação Portuguesa como referência acerca da temática, a denominada perda alargada ou confisco alargado ou recuperação de ativos, o qual se busca sair do eixo classicamente criado da pena privativa de liberdade para o eixo de privação eco- nômica dos autores dos crimes, quando há condenação por crimes graves elencados previamente em lei. Procura-se fazer com que o criminoso além da pena pessoal, tenha verdadeira “quebra” financeira, impedindo a retroalimentação no mundo da ilicitude, suprimindo os ativos dos autores, para que não possam usufruir do produto do delito, mesmo após o cumprimento das demais sanções penais impostas em decreto condenatório. 31 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará 3.1 ASPECTOS CONCEITUAIS DA PERDA ALARGADA A perda alargada é uma medida de política criminal aplicada em diversos países do mundo, com o objetivo de prevenir e combater a crescente criminalidade organizada e a criminalidade econômica financeira, atingindo o centro econômico financeiro das grandes facções criminosas com a decretação da perda de bens e valores em favor do Estado, não só com relação aos bens e valores conexos com o delito imputado em sentença, mas, também, alcançando todo patrimônio em que não haja comprovação de que foram adquiridos por meio de origem lícita. Há quem denomine de confisco alargado de bens ou simplesmen- te perda de bens alargada. Seja qual for a capitulação, o conceito é sempre o mesmo referindo- se a perda de bens e valores das organizações criminosas, não apenas como efeito secundário da sentença penal condenatória nas hipóteses fixadas em lei, como por exemplo, nos casos de perda dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito, ou do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminosa, mas, também, atingindo o acúmulo de patrimônio em que há presunção de que foram adquiridos por meio de práticas ilícitas, práticas criminosas. A finalidade da perda alargada é fazer com que todo o lucro das atividades criminosas, todo acúmulo da riqueza auferido com a pratica dos delitos, seja perdido, seja recuperadopelo Estado, desestruturando a organização financeiramente, sem prejuízo da responsabilização pessoal dos autores dos delitos, na tentativa de demonstrar que o crime não compensa. Desse modo, diferentemente da previsão da perda de bens e valores em favor da União, como efeito automático da senten- ça penal condenatória, com previsão expressa no Código Penal 32 Brasileiro, precisamente no art. 91, inciso II, alíneas “a” e “b”5, a perda alargada visa justamente a alcançar bens e valores que não têm relação com delito imputado no decreto criminal. Ou seja, obje- tiva alargar as consequências da decisão condenatória para atingir o acúmulo de patrimônio da organização ou do criminoso em que não foi possível vincular ao fato descrito da sentença, mas que por presunção e diante da não comprovação de sua origem licita, bem como em decorrência da desproporcionalidade em relação ao seu rendimento lícito, requisitos estes variáveis a depender da legislação adotada, utilizando-se no presente trabalho, conforme menciona- do, a legislação portuguesa acerca da matéria, faz-se concluir que provêm de comportamento criminoso. Assim, a perda alargada surge no direito comparado exatamente para suprir essa lacuna no tocante aos bens da organização crimi- nosa ou dos criminosos não alcançados pelo efeito secundário da sentença penal condenatória, surge como medida mais enérgica na prevenção e repressão às grandes estruturas criminosas que se espalham e desenvolvem de maneira desenfreada em todo o mundo. 3.2 A PERDA ALARGADA NOS PAÍSES EUROPEUS No âmbito do direito comparado, várias legislações vêm adotando o mecanismo jurídico da perda alargada. A repercussão internacional de novas medidas para o enfrentamento da criminalidade or- ganizada é verificada em reiteradas convenções mundiais. Nesse sentido, temos como exemplo, a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotró- picas, de Viena de 1988, convenção está aprovada pelo Congresso 5 Art. 91. São efeitos da condenação: […] II - a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito; dos produtos ou instrumentos do crime ou de qualquer valor auferido em decorrência da prática de um fato criminoso, um dos efeitos da sentença penal condenatória, que a doutrina clássica denomina de efeito automático da sentença penal. 33 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará Nacional Brasileiro por meio do Decreto Legislativo n° 162, de 14 de junho de 1991, logo possuindo força de lei no território brasileiro, a qual destaca: [...] Reconhecendo a necessidade de reforçar e comple- mentar as medidas previstas na Convenção Única de 1961 sobre os Estupefacientes e nesta Convenção tal como modificada pelo Protocolo de 1972 Emendando a Convenção Única de 1961 sobre os Estupefacientes e na Convenção sobre as Substâncias Psicotrópicas de 1971, a fim de fazer face à amplitude e difusão do tráfico ilícito e suas graves consequências; Reconhecendo igualmente que é necessário reforçar e intensificar os meios jurídicos eficazes de cooperação in- ternacional em matéria penal para eliminar as actividades criminosas internacionais de tráfico ilícito; [...] Artigo 5º PERDA 1 - As Partes adoptam as medidas que se mostrem necessárias para permitir a perda: a) De produtos provenientes de infracções estabelecidas de acordo com o n.º 1 do artigo 3.º ou de bens cujo valor corresponda ao valor desses produtos; b) De estupefacientes, substâncias psicotrópicas, materiais e equipamentos ou outros instrumentos utilizados ou des- tinados a serem utilizados, por qualquer forma, na prática das infracções estabelecidas de acordo com o n.º 1 do artigo 3.º 2 - As Partes adoptam igualmente as medidas que se mostrem necessárias para permitir às suas autoridades competentes identificar, detectar, congelar ou apreender produtos, bens, instrumentos ou quaisquer outras coisas a que se refere o n.º 1 deste artigo, para efeitos de eventual perda. [...] 7 - As Partes podem considerar a possibilidade de inverter o ónus da prova no que diz respeito à origem lícita dos pre- sumíveis produtos ou outros bens que possam ser objecto de perda, na medida em que os princípios do respectivo direito interno e a natureza dos procedimentos judiciais e outros o permitam. Outro exemplo em âmbito internacional a ser indicado é também oriundo da Organizações das Nações Unidas - ONU, e trata-se da Convenção das Nações Unidas Contra a Criminalidade Organizada 34 Transnacional, concluída em Nova Iorque, em 15 de novembro de 2000, também aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 231, de 29 de maio de 2003, cujo artigo 12.º, sob a epígrafe, dispõe: [...] Perda e apreensão, estabelece no n.º 1 que Os Estados Partes adotarão, na medida em que o seu ordena- mento jurídico interno o permita, as medidas necessárias para permitir a perda: a) Do produto das infrações previstas na presente Conven- ção ou de bens cujo valor corresponda ao desse produto; b) Dos bens, equipamentos e outros instrumentos utilizados ou destinados a ser utilizados na prática das infrações pre- vistas na presente Convenção [...], acrescentando no n.º 7 que os Estados Partes poderão considerar a possibilidade de exigir que o autor de uma infração demonstre a prove- niência lícita do presumido produto do crime ou de outros bens que possam ser objeto de perda, na medida em que esta exigência esteja em conformidade com os princípios do seu direito interno e com a natureza do processo ou outros procedimentos judiciais [...]. Vislumbra-se, assim, nos documentos internacionais acima in- dicados, alguns instrumentos que apontam no mesmo sentido da perda alargada, sem, contudo, tratar expressamente da temática. Todavia, em 2014 a expressão perda alargada, objeto de estudo do presente trabalho de pesquisa, apareceu de maneira explicita, em se tratando de documento com grande alcance no cenário internacional, na Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 03 de abril de 2014, que trata sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime, que entrou em vigor no vigésimo dia seguinte ao da sua publicação, veio estabelecer regras mínimas sobre o congelamento de bens tendo em vista a eventual perda subsequente e para a perda dos produtos do crime. Desse modo, os Estados-Membros ficaram vinculados a proceder à transposição da aludida Diretiva, devendo colocar em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias ao seu cumprimento até 4 de outubro de 2015. 35 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará Assim, no aludido diploma estrangeiro houve expressamente menção à perda alargada, a Diretiva começa por referir, no consi- derando 11 e 19, o seguinte: 11 - É necessário clarificar a atual definição de produtos do crime de modo a incluir não só o produto direto das atividades criminosas, mas também todos os seus ganhos indiretos, incluindo o reinvestimento ou a transformação posterior de produtos diretos. Assim, o produto pode incluir quaisquer bens, inclusive os que tenham sido transforma- dos ou convertidos, no todo ou em parte, noutros bens, e os que tenham sido misturados com bens adquiridos de fonte legítima, no montante correspondente ao valor estimado do produto do crime que entrou na mistura. Pode igualmente incluir o rendimento ou outros ganhos derivados do produto do crime, ou dos bens em que esse produto tenha sido transformado, convertido ou misturado. [...] 19 - Para combater eficazmente a atividade criminosa organizada, pode haver situações em que seja conve- niente que a uma condenação penal se siga a perda não apenas dos bensassociados ao crime em questão, mas também de bens que o tribunal apure serem produto de outros crimes. Esta abordagem corresponde à noção de perda alargada. A Decisão-Quadro 2005/212/JAI prevê três conjuntos diferentes de exigências mínimas que os Estados-Membros podem escolher para decidir a perda alargada. Em consequência, no processo de transposição dessa decisão-quadro, os Estados-Membros optaram por diferentes alternativas, o que deu origem a conceitos di- vergentes de perda alargada nas jurisdições nacionais. Essas divergências dificultam a cooperação transfron- teiriça em casos de perda. Por conseguinte, afigura-se necessário aprofundar a harmonização das disposições em matéria de perda alargada, estabelecendo uma norma mínima única [...]. Prevê a Diretiva da União Europeia em seus artigos: Artigo 4º Perda 1. Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda, total ou parcial, dos instrumentos e produtos ou dos bens cujo valor corresponda a tais 36 instrumentos ou produtos, sob reserva de uma condena- ção definitiva por uma infração penal, que também pode resultar de processo à revelia. 2. Se não for possível a perda com base no n.o 1, e pelo menos se tal impossibilidade resultar de doença ou de fuga do suspeito ou arguido, os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda dos instrumen- tos ou produtos nos casos em que foi instaurado processo penal por uma infração penal que possa ocasionar direta ou indiretamente um benefício económico, e em que tal processo possa conduzir a uma condenação penal se o suspeito ou arguido tivesse podido comparecer em juízo. Artigo 5º Perda alargada. 1. Os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para permitir a perda, total ou parcial, dos bens perten- centes a pessoas condenadas por uma infração penal que possa ocasionar direta ou indiretamente um benefício económico, caso um tribunal, com base nas circunstâncias do caso, inclusive em factos concretos e provas disponíveis, como as de que o valor dos bens é desproporcionado em relação ao rendimento legítimo da pessoa condenada, conclua que os bens em causa provêm de comportamento criminoso. 2. Para efeitos do nº 1 do presente artigo, o conceito de infração penal inclui pelo menos os seguintes elementos: a) A corrupção ativa e passiva no setor privado, conforme disposto no artigo 2º da Decisão-Quadro 2003/568/JAI, bem como a corrupção ativa e passiva em que estejam implicados funcionários das instituições da União ou dos Estados-Membros, conforme disposto respectivamente nos artigos 2º e 3º da Convenção relativa à luta contra a corrupção em que estejam implicados funcionários; b) As infrações relativas à participação em organização criminosa, conforme disposto no artigo 2º da Decisão- -Quadro 2008/841/JAI, pelo menos nos casos em que a infração ocasionou um benefício económico; c) O aliciamento ou o recrutamento de uma criança para participar em espetáculos pornográficos ou explorar uma criança para tais fins, como fonte de rendimento ou de qualquer outra forma, se a criança tiver atingido a maioridade sexual, conforme disposto no artigo 4º, nº 2, da Diretiva 2011/93/UE; a distribuição, difusão ou transmissão de pornografia infantil, conforme disposto no artigo 5º, nº 4, dessa diretiva; a oferta, fornecimento ou disponibilização de pornografia infantil, conforme disposto no artigo 5º, nº 5, dessa diretiva; a produção de pornografia infantil, conforme disposto no artigo 5º, nº 6, dessa diretiva; d) A interferência ilegal em sistemas e a interferência 37 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará ilegal nos dados, conforme disposto respectivamente nos artigos 4º e 5º da Diretiva 2013/40/UE, quando um nú- mero significativo de sistemas de informação for afetado mediante o uso de um dos meios previstos no artigo 7º dessa diretiva, concebido ou adaptado essencialmente para esse fim; a intencional produção, venda, aquisição para uso, importação, distribuição ou qualquer outra forma de disponibilização dos instrumentos utilizados para cometer infrações, pelo menos em casos de alguma gravidade, conforme disposto no artigo 7º dessa diretiva; e) As infrações penais puníveis nos termos de um dos atos aplicáveis indicados no artigo 3º ou, se esse ato não esta- belecer um limiar, nos termos do direito nacional aplicável, por uma pena privativa de liberdade cujo máximo não pode ser inferior a quatro anos. [...]. Em geral, os países europeus aplicam os mesmos requisitos legais para concretização da perda alargada, e isso se deve também pela vinculação da diretiva, devendo-se ter em conta que “diretiva é um ato jurídico legislativo da União Europeia o qual vincula os Esta- dos- Membros destinatários um, vários ou o conjunto dos mesmos, quanto ao resultado a alcançar, mas deixa às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios” oriunda da União Europeia, citada acima. Os requisitos comuns são: 1) uma condenação criminal; 2) a condenação referir-se a delitos previamente estabelecidos em lei; 3) não comprovação da origem ilícita do acumulo patrimonial; e 4) a desproporcionalidade do patrimônio com os rendimentos lícitos do condenado. Dessa forma, tomando por base a referida diretiva vários países que compõem o bloco econômico, político e social, legislaram acerca da matéria. Verifica-se no direito espanhol, no artigo 127º, nº 1, do Código Penal a previsão da perda alargada. No tocante à matéria, recentemente, este artigo 127º foi sujeito a alterações mediante a Lei Orgânica 1/2015, de 30 de março, que ampliou o catálogo de crimes e sujeito a diferentes pressupostos de aplicação nas hipóteses da perda alargada. Assim, há previsão de que apenas determinados crimes indicados 38 na lei sujeitar-se-ão à medida da perda alargada , entre os delitos arrolados, art. 127, a, podemos citar, como exemplo, o tráfico de seres humanos, crimes relativos à prostituição, à exploração sexual e à corrupção de menores e de abusos e agressões sexuais a menores de dezesseis anos, crimes contra a propriedade intelectual ou indus- trial, branqueamento de capitais, crimes contra a Fazenda Pública e a Segurança Social, crimes contra os direitos de cidadãos estrangei- ros, crimes de falsificação de moeda, crimes de terrorismo, crimes cometidos no seio de uma organização ou grupo criminoso, etc.,. Exigem-se indícios objetivos fundados que tais bens ou rendi- mentos sejam provenientes de uma atividade criminosa e não se comprove a sua origem lícita, bem como sempre que constatado que há: art. 127,a - 2º ocultação de propriedade ou qualquer direito de dispor dos bens ou efeitos usando pessoas singula- res ou colectivas ou entidades sem personalidade jurídica arquivado ou paraísos fiscais ou territórios de nenhuma tributação que se escondem ou dificultam a determinação do verdadeira propriedade dos bens”. A lei considera, ainda, a possibilidade de em caso de nova con- denação pela pratica dos crimes indicados ser novamente aplicada a perda alargada, verificando- se o alcance da antiga apreensão para decidir se é o caso nova declaração de perda de bens. O artigo 131-21 do Código Penal francês (na redação dada pela Lei n.º 2013-1117, de 6 de dezembro de 2013), prevê a perda de bens moveis e imóveis que tenham servido ou destinado ao cometimento de crimes, assemelhado ao efeito secundário da sentença condena- tória prevista em nossa legislação. Contudo, com relação a perda alargada o critério não é a condenação pela pratica de determina- dos delitos para incidir a perda alargada, mas sim o preceito primário estabelecido, sendo possível nas infrações com pena não inferior a 5(cinco) anos, bem como que o delito tenha proporcio- 39 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará nado acúmulo de riqueza direta ou indireta o confisco de bens alcançará os que pertençam ao condenado ou de queele tenha a livre disposição, sempre que nem o condenado, nem o proprietário consigam justificar a origem de tais bens. No ordenamento jurídico Italiano há previsão muito assemelhada à legislação portuguesa. Assim, o artigo 12.º, sexies, prevê a perda alargada na hipótese de desproporcionado e injustificada os bens de titularidade ou posse de pessoas condenadas por crimes previamente elencados na lei. Por sua vez, a Alemanha prevê a possibilidade da perda alargada (erweiterte Verfall em seu no § 73d do Código Penal), em 1992, norma inclusive declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, também elenca quais os crimes que podem ser abrangidos pelo re- gime da perda alargada, podendo a perda incidir sobre os bens que estejam na titularidade ou na posse do autor ou participante, sempre que as circunstâncias justifiquem a suposição de que estes foram obtidos por meio ou para a prática de outros fatos ilícitos. No Reino Unido, o Proceeds of Crime Act, de 2002, a perda do acúmulo de riqueza oriunda da atividade criminosa pode se dar mediante o confisco penal ou civil. O confisco penal há também se refere aos delitos para quais se aplicará o regime da perda alargada, exigindo-se que o agente tenha se beneficiado com pratica delitiva no montante não inferior a 5.000 euros, e que reste caracterizado, regras bem delimitadas na legislação, indicando inclusive os núme- ros de condenações, que o agente fez do crime um meio de vida. Exige-se mais requisitos para decretação da perda alargada, mas quando aplicada tem efeito retroativo alcançando bens anteriores ao processo. Há a possibilidade de o réu afastar a regre, desde que comprove a origem lícita dos bens, mas ainda assim, o órgão julgador poderá afastar as provas produzidas, desconsiderando-as sempre que houver risco de injustiça. 40 Já o confisco administrativo alcança os bens obtidos por meio de atividade criminosa, de valor superior a 10.000 euros, ou os bens que se sub-rogam no lugar deles, fixando-se, previamente, os delitos em que se permiti o regime da perda alargada. 3.3 A NATUREZA JURÍDICA DA PERDA ALARGADA Não há na doutrina consenso no tocante à natureza jurídica da perda alargada ou confisco alargado como denominam alguns doutrinadores. Vale frisar que a depender da natureza jurídica do instituto todas as normas de regência mudam, variando de acordo com a classificação elencada. Há quem entenda se tratar de um instituto de origem no direito penal, e sendo assim, todas os princípios e normas jurídicas regentes a este seriam automatica- mente aplicáveis ao instituto da perda alargada. Já outros enxergam a medida como um procedimento autônomo decorrente de sentença penal condenatória. Por fim, há quem entenda a perda alargada como procedimento administrativo decorrente de sentença penal condenatória, não possuindo, portanto, caráter de procedimento penal, mas pena autônoma. Em geral a discussão concentra-se em duas frentes, a saber, ter a medida caráter penal ou ser apenas um confisco administrativo. Com efeito, defendendo ser uma medida penal podemos citar como exemplo o escritor português Dias (2010), que assim define: [...] confisco de bens [...] cumpre finalidades político-cri- minais idênticas à da perda de bens e vantagens relacio- nadas com a prática do crime, sendo a sua natureza [...], pois, eminentemente penal, constituindo [...] um efeito da pena. Uma vez que o confisco ampliado pressupõe uma condenação e que enquanto medida excecional deve ter pressupostos mais apertados do que a perda das vanta- gens do crime, nomeadamente quanto a terceiros, mais adequado seria considerá-lo um efeito da pena, inaplicável por isso em caso de absolvição. (DIAS, 2010, p. 23). 41 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará Noutro sentido, argumentando ser a perda alargada uma medida administrativa, e, portanto, simples de ser solucionada, é o pen- samento de Cunha (2004): [...] trata-se, pois, de uma medida de caráter não penal (no sentido de que nada tem a ver com um crime), de caráter análogo a uma medida de segurança (uma sanção de suspeita, condicionada à prova de um crime). No fundo, uma sanção administrativa prejudicada por uma anterior condenação penal. (CUNHA, 2004, p. 121). Assim, a natureza jurídica implicará, a depender do entendimento adotado, em uma série de restrições ou aplicação simplificada do regime da perda alargada. Contudo, seja qual for a natureza jurídica adotada em um Estado Democrático de Direito, é necessário cumprir os requisitos legais para tal restrição do direito. A perda alargada não pode ficar ao arbítrio do legislador ou apenas do executor da medida como ocorria outrora. 3.4 A LEGISLAÇÃO LUISTANA E A APLICAÇÃO DA PERDA ALARGADA Conforme já indicado o presente trabalho usou como referência a legislação portuguesa acerca da perda alargada, haja vista que não há , ainda, lei vigente no nosso País tratando da temática, bem como em razão da lei lusitana, não ela, ter sido utilizada como parâmetro para a apresentação de projeto de lei de iniciativa do Ministério Público Federal que tramita no Congresso Nacional, tendo sido incluída no “pacote” intitulado como “dez medidas contra a corrupção” que causou verdadeiro alvoroço nas Casas Legislativas do nosso País. Inicialmente cumpre transcrever a exposição de motivos da Lei lusitana nº 5/2002, a justificativa para norma criada: 42 Este propósito do legislador encontra-se expressamente assumido na exposição de motivos constante da Proposta de Lei n.º 94/VIII (que esteve na origem da referida Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro), onde se refere, a esse respeito, que […] a eficácia dos mecanismos repressivos será insufi- ciente se, havendo uma condenação criminal por um destes crimes [identificados no artigo 1.º], o condenado puder, ainda assim, conservar, no todo ou em parte, os proventos acumulados no decurso de uma carreira criminosa. Ora, o que pode acontecer é que, tratando-se de uma atividade continuada, não se prove no processo a conexão entre os fatos criminosos e a totalidade dos respectivos proventos, criando-se, assim, uma situação em que as fortunas de origem ilícita continuam nas mãos dos criminosos, não sendo estes atingidos naquilo que constituiu, por um lado, o móbil do crime, e que pode constituir, por outro, o meio de retomar essa atividade criminosa», acrescentando-se ainda que, com este regime, se prevê que […] em caso de condenação por um dos crimes previstos no seu artigo 1.º, se aprecia a congruência entre o patrimônio do arguido e os seus rendimentos lícitos. O valor do patrimônio do arguido que seja excessivo em relação aos seus rendimentos cuja licitude fique provada no processo são declarados perdidos em favor do Estado. Desse modo, utilizando-se dos fundamentos indicados na ex- posição de motivos ora transcritos, bem como considerando os documentos internacionais que tratam da perda alargada a legisla- ção portuguesa prevê como pressupostos para o regime da perda alargada; 1) condenação em razão da pratica de um dos crimes previamente estabelecidos em lei, art. 1 da Lei nº 5/2002; 2) a existência de patrimônio do condenado; 3) a incompatibilidade do patrimônio do condenado com seus rendimentos lícitos. Assim, nos termos da Lei nº 5/2002, art. 1º, a condenação deve ter ocorrido em razão da prática dos seguintes crimes: a) Tráfico de estupefacientes) Terrorismo, organizações terroristas, terrorismo internacional e financiamento do terrorismo; c) Tráfico de armas; d) Tráfico de influência; e) Recebimento indevido de vantagem; f) Corrupção ativa e passiva, incluindo a praticada nos setores públi- co e privado e no comércio internacional, bem como na atividade 43 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará desportiva; g) Peculato; h) Participação económica em negócio; i) Branqueamento de capitais; j) Associaçãocriminosa; l) Pornografia infantil e lenocínio de menores; m) Dano relativo a programas ou outros dados informáticos e a sabotagem informática, nos termos dos artigos 4.º e 5.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, e, ainda, o acesso ilegítimo a sistema informático, se tiver produzido um dos resultados previstos no n.º 4 do artigo 6.º daquela lei, for realizado com recurso a um dos instrumentos referidos ou integrar uma das condutas tipificadas no n.º 2 do mesmo artigo; n) Tráfico de pesso- as; o) Contrafação de moeda e de títulos equiparados a moeda; p) Lenocínio; q) Contrabando; r) Tráfico e viciação de veículos furtados. Vislumbra-se, assim, a taxatividade, em razão do princípio da legalidade, do elenco de delitos para os quais é possível aplicar o regime da perda alargada. Ou seja, não havendo condenação pela pratica dos crimes indicados, ainda que demonstrado que o criminoso acumulou riqueza em decorrência da prática penal, ain- da que o fato seja grave, repugnante socialmente, esse mecanismo processual não será desencadeado. Da analise acerca dos delitos descritos verifica-se, em geral, que são praticados por organizações criminosas, bem como tem como objetivo central uferir lucros. Cumpre esclarecer que é necessária a condenação penal transita- da em julgado para aplicação da perda alargada, não se exigindo que a decisão seja oriunda de tribunal coletivo ou de juiz singular e muito menos que siga rito especial. No tocante ao requisito patrimônio do condenado cumpre frisar que se faz imprescindível a existência de patrimônio do conde- nado. Assim, para efeitos de perda alargada constitui o patrimônio do condenado: Para efeitos desta lei, entende-se por «patrimônio do arguido» o conjunto dos bens: a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da 44 constituição como arguido ou posteriormente; b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou median- te contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido; c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino. 3 - Consideram-se sempre como vantagens de atividade criminosa os juros, lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111.º do Código Penal. Constata-se que o conceito de propriedade, para fins do me- canismo da perda alargada, atinge não só os bens de titularidade do condenado, mas, também, os bens em relação aos quais ele tenha disponibilidade e benefício. Alcança ainda os bens e transferência de valores irrisórios, presunção de fraude, ocorridas nos últimos 5 (cinco) anos. O momento da fixação do valor é o da liquidação realizada pelo Ministério Público, nos termos estabelecidos no art. 8º da lei lusitana. Por fim, o último requisito exigido em lei para concretização da perda alargada é a desproporcionalidade do patrimônio do acusado com seus rendimentos lícitos. Assim, se o condenado tem bens relacionados à prática do crime, nesse caso incidirá a chamada perda clássica, comumente tratada com efeito secundário da sentença condenatória, ou os bens são compatíveis com seus rendimentos lícitos, não há então que se falar em perda alargada de bens ainda que os demais requisitos se façam presentes na decisão condenatória. É necessário aferir o montante incongruente, o que é feito, segundo a lei portuguesa, pelo Ministério Público nos prazos estabelecidos. Conde (2012) indica que na doutrina portuguesa há autores que defendem a existência de mais um requisito, qual seja, a prova a ser produzida pela acusação, da carreira criminosa do condenado. Nesse sentido o autor menciona que: 45 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará Para além destes pressupostos legais do confisco, a genera- lidade da doutrina nacional tem acrescentado que o Minis- tério Público deverá ainda demonstrar uma carreira crimi- nosa anterior. Segundo esta concessão restritiva, compete ao Ministério Público «demonstrar a probabilidade de uma máxime criminosa, de uma máxime criminosa da mesma espécie dos crimes previstos no catálogo, por tal forma que se possa dizer que o patrimônio incongruente tem uma fonte substancialmente análoga. Só depois disso é que deveria verificar-se a inversão do ônus da prova» 229. Esta exigência suplementar, imposta apenas por via exegética, não tem em nosso entender grande justificação, acabando por redundar numa espécie de revogação interpretativa do novo regime legal. No fundo, significa repristinar a prova da relação entre o crime pressuposto e o patrimônio que com este regime inovador se quis dispensar. Exigir esse pressuposto adicional, será impor ao Ministério Público uma máxime probatio: é quase impossível demonstrar - ainda que com base em padrões probatórios menos exigentes - a probabilidade de uma atividade criminosa, máxime de um crime do catálogo, quando se investigou e não se recolheram indícios suficientes da sua prática. (CONDE, 2012, p. 99). Desse modo, o instituto da perda alargada consiste em moderno mecanismo de recuperação de ativos obtidos por meio criminoso, o qual exige uma série de requisitos para seu desencadeamento, sempre respeitando o contraditório, isto é, a possibilidade de o réu fazer prova em contrário da presunção de aquisição lícita dos bens indicados, sistema diferenciado e muito do confisco praticado em estados ab- solutistas, os quais eram utilizados com fins econômicos e políticos, sem qualquer possibilidade de defesa ou oitiva do condenado. 4 A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO COMBATE ÀS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS No moderno mundo globalizado, praticamente já não mais há fronteiras. Se essa interconexão global possui, inegavelmente, incon- táveis benefícios, por outro lado, propicia facilidades à criminalidade 46 econômica organizada, que movimenta, atualmente, significativos recursos financeiros em todo o mundo e, assim, representa um complexo desafio a ser enfrentado pelos Estados. Essa nova forma de delinquência em muito se diferencia da crimi- nalidade clássica, mormente pela massiva movimentação financeira que promove e por não conhecer qualquer forma de fronteiras, bem como por se revelar pouco sensível às ainda hegemônicas penas privativas de liberdade - muito por conta da “fungibilidade” dos in- tegrantes das organizações criminosas, facilmente substituíveis por novos agentes. Nesse contexto, os tradicionais institutos penais de combate ao crime - incluído, destacadamente, as próprias penas privativas de liberdade - revelam-se vetustos e pouco eficientes no combate à criminalidade econômica organizada, de modo que o moderno Direito Criminal vê-se compelido a cunhar novos institutos voltados àquele fim. Nesse cenário, a perda alargada afigura-se como necessária alter- nativa aos tradicionais - e, hoje, pouco eficientes - instrumentos de que se serve o Direito Penal clássico. Trata-se de instituto semelhante à perda clássica e à perda por equivalente, previstas no art. 91, inc. II, “b”, e § 2º, do Código Penal Brasileiro, mas que se diferencia de tais efeitos secundários da condenação, por permitir que se decrete o confisco de bens para além daqueles estritamente vinculados ao crime em razão do qual houve condenação, conquanto se satisfaça uma gama de requisitos necessários para tanto. A ameaça que as organizações criminosas representam para a democracia brasileira causam a erosão da legitimidade dos meca- nismos de representação e da credibilidade dos seus representantes, bem como das instituições públicas. A promoção da Ação Penal Pública constitui função institucional exclusiva do Ministério Público, conforme o art. 129, inc. I, da Constituição Federal Brasileira e, nisto, tal atribuição faz com que recaia sobrea instituição ministerial tamanha responsabilidade no 47 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará dever de zelar pela sociedade como um todo, sendo certo que o dano social provocado pelas organizações criminosas contribui com a descrença em toda a estrutura democrática de direito brasileira, mormente na sistemática judicial diante dos crimes pra- ticados por aquelas criminosas. Por outro lado, considerando os princípios institucionais do Ministério Público, uma atuação voltada para a prevenção e a re- pressão eficaz às atividades de organizações criminosas exigem do Parquet ações, não somente legalistas e formais, mas, sobretudo, a partir de iniciativas de políticas públicas mobilizadoras de todos os sujeitos da sociedade de forma a alcançar a transformação da realidade social. 4.1 BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO BRASILEIRO NAS CONSTITUIÇÕES A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 conferiu à instituição Ministério Público uma posição de destaque ao inseri- -lo no capítulo IV, que trata das funções essenciais à Justiça, dedi- cando uma seção inteira ao órgão, atribuindo a importante missão de defesa “da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, art. 127 da Carta Magna, além de menciona-lo em outros artigos esparsos no texto constitucional. A doutrina discute acerca da posição da instituição Ministério Público no quadro da organização dos poderes da República Fede- rativa do Brasil estabelecido na atual Constituição. A partir da análise da evolução histórica de todas as nossas Cartas Constitucionais vislumbra-se que a Carta de 1988 conferiu um papel de destaque ao Ministério Público, desvinculando-o, propositalmente, de todos os poderes constituídos da República. A Constituição de 1824 sequer fazia referência a instituição, mencionado apenas a figura do Procurador da Coroa como órgão 48 de acusação no juízo do crime. Na Carta de 1891 havia a figura do Procurador Geral da República como membro do Supremo Tribunal Federal, sendo este indicado pelo Presidente da República. Como a promulgação da Constituição de 1934 houve de forma expressa menção à instituição que era órgão de cooperação do governo. A Carta Magna de 1937 representou um enorme retrocesso para a Ins- tituição do Ministério Público. Isso porque houve apenas algumas referências esparsas ao P a r q u e t no decorrer do texto. Todavia, em 1946, a instituição retoma o seu triunfo. Conforme preleciona Sauwen Filho (1999) com o “[...] advento da Constituição Federal de 1946 viria a consolidar a independência do parquet, em relação aos demais órgãos governamentais, apartando-o da esfera de abrangência de qualquer dos poderes do Estado”. (SAUWEN FILHO, 1999, p. 148). Em 1967 o Ministério Público aparece como órgão do Poder Judiciário, e, posteriormente, em 1969, é incluído no capitulo pertinente ao Poder Executivo. A carta de 1988 representou um ver- dadeiro avanço em termos de garantias e independência conferidas ao órgão ministerial. Contudo, apesar do destaque conferido pela atual constituição brasileira, a doutrina ainda discute acerca da posição do Ministério Público no quadro da organização dos Poderes. Há quem defenda que o Ministério Público estaria vinculado ao Poder Executivo, mesmo possuindo autonomia. Por sua vez, outros entendem ser a instituição um quarto poder da república, tendo em vista a gama de garantias e prerrogativas conferidas ao órgão. E por fim, há quem enxergue na Instituição um órgão dotado de autonomia, participante do sistema de freios e contrapesos, sem integrar nenhum dos poderes constituídos da república. Para Bastos e Martins (1988), o Ministério Público só se torna a instituição por nós conhecida a partir do Estado de Direito, e somente A partir de então, fixada a sua posição de órgão defensor da sociedade e não do Rei, o Ministério Público começa a 49 Cadernos do Ministério Público do Estado do Ceará sofrer as consequências das vicissitudes por que passa o próprio Estado, liberal no século XIX, parcialmente inter- vencionista no século XX, até o momento atual, marcado pelo recuo do Welfare State em benefício de políticas mais liberais no campo econômico e social. De qualquer sorte o Estado remanesce uma entidade tão complexa que, mesmo dele se abstraindo a atividade econômica - que melhor cabe nas mãos dos particulares –, a ele incumbem funções extremamente acrescidas em razão, inclusive, do próprio crescimento da interferência recíproca dos problemas de um Estado em outro. O crime demanda um combate internacionalmente organizado. O terrorismo idem. O mesmo acontece com a defesa da ecologia. Nes- ses, e em muitos outros pontos, o Estado não pode olhar somente para o limite do seu território, mas é obrigado a perscrutar o caminho por que segue o próprio mundo, não perdendo oportunidade de insinuar-se nas grandes corren- tes do comércio internacional, assim como fazer escolhas corretas no que diz respeito à sua integração em blocos econômicos. Não se quer com isso dizer que o Ministério Público tenha por função interferir em todos esses as- suntos, mas sim deixar certo que a própria sociedade se tornou mais complexa, fato ao qual a ordem jurídica não se pode manter indiferente, daí o surgimento dos direitos difusos, dos direitos coletivos, esferas nas quais o Ministério Público ganha, sem dúvida, dimensões que não tinha no passado. (BATOS e MARTINS, 1988, p. 03). Neste contexto, a Carta Magna de 1988, no tocante às atribuições ministeriais estabelece, no art. 129 que as funções institucionais são: Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou represen- tação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição; V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas; 50 VI - expedir notificações nos procedimentos adminis- trativos de sua Competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva; VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior; VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito Policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais; IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas. Trata-se de rol meramente exemplificativo, uma vez que o inc. IX daquele dispositivo constitucional (art. 129, da CF/88) possibilita ao Ministério Público exercer outras funções que lhe forem confe- ridas, desde que compatível com sua finalidade, ou seja, desde que na defesa da sociedade. Consagra Fontes (2006) que: [...] na Constituição de 1988, nenhuma instituição do Es- tado saiu tão fortalecida e prestigiada como o Ministério Público, em relação aos nossos textos constitucionais an- teriores. A instituição foi, com efeito, consideravelmente transformada pelo constituinte de 1988, que desejou fazer dela uma garantia geral da ordem jurídica, independente dos três Poderes da República. Essa independência (orgâ- nica, administrativa e funcional) pode ser analisada em relação aos três Poderes (§1º). [...] (FONTES, 2006, p. 18). Vislumbra-se que o
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