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Nas Rodas de Verso...
Memória de Cantigas da tradição oral brasileira
Simone da Silva Aranha
Introdução
Apresento aqui um resumo da comunicação para o IV Seminário de Pesquisa do Centro de
Memória da UNICAMP, na qual discuto alguns aspectos de uma pesquisa em andamento no
Programa de Mestrado em Multimeios-IA/Unicamp, sobre a Memória de Cantigas da
Tradição Oral Brasileira trazidas por migrantes nordestinos para a cidade de Campinas.
Neste estudo pretendo registrar essas cantigas, privilegiando as vozes das próprias
informantes -seu jeito de falar, cantar, contar. Um segundo objetivo é observar a
existência e a forma da transmissão da tradição, isto é, como essas cantigas eram
vivenciadas antes do processo migratório, se é que o eram, e de que forma essas cantigas
são vivenciadas no cotidiano, aqui, em Campinas. E, por fim, analisar como se dá a relação
de transmissão de saberes entre velhos, jovens e crianças.
"Aquele mocismo! Cantando soprando e barrendo café"
 Dona A. L.
Tenho acompanhado o Grupo de Terceira Idade que freqüenta o Movimento Assistencial
Espírita Maria Rosa, conhecido como "Casa da Sopa", que atua no Jardim Campineiro,
Campinas-SP desde 1978. Fiz o primeiro contato por telefone com a Assistente Social que
me informou que o grupo reúne-se semanalmente, às sextas-feiras, pela manhã. Na
minha primeira visita cheguei tarde: 9:30h. Quase todas tinham ido embora, menos D. A.
L., com quem comecei a conversar....eu disse que queria aprender cantigas. Ela sorriu:
"Menina você vai me fazer lembrar de Minas Gerais!!!", Dona A. é de Padre Paraíso, no
Vale do Jequitinhonha1, nordeste de Minas Gerais, mora em Campinas há 32 anos, contou
que cantava muito nas colheitas de café e já foi cantando uma Cantiga de Roda de Verso:
"Ô Bela, Ô Belinha ! Ô Bela, namorada minha...." , aprendi a cantar e logo ela entoou a
segunda voz, junto comigo, eu jogava um versinho que sabia que era do Vale e ela
completava. Fui cantando outras Rodas que sabia, ela cantava junto, se lembrava de outra
e assim fomos........ me abraçou e beijou muito na hora de ir embora.....2
As Cantigas de Roda de Verso têm uma estrutura3 de um refrão que todos cantam juntos,
e depois alguém "joga um versinho", que é uma estrofe em quatro versos, cantado, em
geral, na mesma melodia do refrão, em seguida volta-se ao refrão e esta seqüência vai se
repetindo....
Cantiga "Bela Belinha", Informante Dona A. L., 61 anos, Padre Paraíso-MG
Refrão
Ô Bela, Ô Belinha,
Ô Bela, namorada minha..
Verso
Tanto verso eu sabia,
Veio o vento e carregô
Namorar e querer bem
Minha memória inda ficou
Lá no céu tem três estrelas
Todas três em carreirinha
Assim correm teus segredos
Da tua boca prá minha
Volume 4
Número 4
Fevereiro 2006
ISSN 1677-7816
Outra característica marcante das Rodas de Versos é a sua estrutura em "duas vozes", ou
seja, duas linhas melódicas cantadas ao mesmo tempo, uma mais grave e outra mais
aguda. A tradição das Rodas de Verso é muito viva ainda hoje, principalmente entre a
população rural nos interiores do país. A partir de outras observações minhas e de outros
pesquisadores4, pude constatar que uma Roda de Verso, a Sereia, também é muito
conhecida, sendo cantada com variações melódicas do Vale do Jequitinhonha ao interior da
Bahia, por exemplo. No dia que conheci Dona. A. também cantamos a Sereia e, a partir
desta informação, resolvi voltar na semana seguinte, chegar bem cedinho, e começar por
ela......
"Eu morava na areia, Sereia
Me mudei para o sertão, Sereia
Aprendi a namorar, Sereia
Com aperto de mão, Ô Sereia"
Abrimos uma roda com cerca de 40 senhoras, a grande maioria migrantes do Vale do
Jequitinhonha e do nordeste brasileiro (Bahia, Alagoas, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, PI).
A partir de então tenho ido com freqüência quase semanal ao encontro dessas mulheres,
com elas registrei mais de 15 Rodas de Verso e cerca de 70 versinhos.
Segundo Alberto Ikeda "Todo ser humano possui uma identidade sonora (...) essa voz marca
a individualidade de cada um. Extensivamente, podemos dizer que também os grupos
humanos, de certa forma, possuem a sua 'voz' ou suas 'vozes'"5
Creio então que utilizar o registro sonoro é fundamental no incentivo ao processo de
rememoração, como desencadeador da memória, inclusive mostrando os registros já
realizados para diferentes informantes. Sobre este ponto, Simson (1998:24) observou que,
em seu trabalho sobre o carnaval negro paulistano:
"a utilização do recurso da música como detonador da memória deveria ser para ele (o
informante) uma experiência já vivenciada anteriormente, pois esse entrevistado não
dispensava a companhia do seu pandeiro para realizar a tomada dos depoimentos orais"
De outro lado acredito que uma das principais dificuldades na transcrição da oralidade (tanto
para um texto como no caso dos depoimentos, quanto para a notação musical no caso das
cantigas) é justamente a perda das entonações, do tipo de colocação da voz (ressoadores),
das pausas, das emoções...nem sempre é possível codificá-las em forma de texto ou
símbolos musicais. Mais precisamente quanto à transcrição musical, José Miguel Wisnik
coloca que, por vezes, é muito difícil transcrever melodias que valorizam mais o timbre da
voz do que a própria melodia (Bosi 1987:171). No mesmo sentido Sandroni (1999) ressalta
que a audição das gravações é fundamental para o esclarecimento das transcrições feitas
por Mário de Andrade6.
Assim, creio que o suporte em multimeios, baseado no registro em alta qualidade dos
depoimentos e das manifestações culturais, permite que esse registro possa funcionar como
desencadeador da memória dos depoentes e também como forma de divulgação desta
memória, mantendo aspectos muito importantes da oralidade.
Notas de Rodapé
1 O Vale do Jequitinhonha é uma das regiões mais pobres do Brasil e culturalmente mais aproximado do Nordeste que do
Sudeste do país.
2 O ato de lembrar passa pela afetividade, segundo Meneses (1991:15) "recordar - no sentido forte, aqui também
etimológico: colocar (de novo) no coração."
3 Neste sentido podemos dizer que é atualmente uma manifestação cultural "criola", anexando influências lusitanas,
africanas, etc. apresentando a mesma estrutura do Partido Alto e do Samba de Roda.
4 Aqui estou me referindo a extensa pesquisa sobre a tradição oral brasileira, e em específico, a tradição infantil realizada
pela etnomusicóloga Lydia Hortélio. Também cabe citar a pesquisa de campo realizada por Paula Vanina Cencig e equipe da
ONG Fundo Cristão, no Vale do Jequitinhonha durante o ano de 2003 e outra pesquisa de campo de caráter informal que
realizei em Lençóis- BA em 2001.
5 "O paradigma que infalivelmente surgiu no contexto antropológico da música será sempre sonoro: ouvir e aprender a
ouvir a sonoridade dos outros signifca entendê-los melhor, da mesma forma que entender as sonoridades alheias vai fazer
com que entendamos melhor o nosso meio ambiente sonoro também, reconhecendo e respeitando alteridades" (Oliveira
Pinto: 2001, p.275).
6 "(...) as duas toadas publicadas nas Danças Dramáticas apresentam seis bemóis na armadura de clave, o que
corresponde à tonalidade de sol bemol maior. A leitura da música dos respectivos refrões nos convence no entanto de que
a verdadeira tonalidade é, em ambos os casos, ré bemol maior (...) É só pela escuta das gravações que ficamos sabendo
que estas melodias estão em ré bemol mixolídio, com dó bemol (...)".
Volume 4
Número 4
Fevereiro 2006
ISSN 1677-7816
Bibliografia
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Fevereiro 2006
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