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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO DEPARTAMENTO DE DIREITO PÚBLICO BRENO DE LACERDA MOURA DESACATO, STJ E CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE FORTALEZA 2017 BRENO DE LACERDA MOURA DESACATO, STJ E CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE Monografia apresentada ao Programa de Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Alex Xavier Santiago da Silva. FORTALEZA 2017 BRENO DE LACERDA MOURA DESACATO, STJ E CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE Monografia apresentada ao Programa de Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito. Aprovada em: ___/___/______. BANCA EXAMINADORA ________________________________________ Prof. Dr. Alex Xavier Santiago da Silva (Orientador) Universidade Federal do Ceará (UFC) _________________________________________ Prof. Dr. Daniel Maia Universidade Federal do Ceará (UFC) _________________________________________ Mestranda Lara Teles Fernandes Universidade Estadual do Ceará (UFC) Aos meus pais, José Máximo de Moura e Carmem Miranda de Lacerda. AGRADECIMENTOS Aos meus pais, Máximo e Carmem, e à minha irmã, Amanda, principalmente, pelo constante incentivo a estudar, pelo apoio incondicional em todos os momentos da minha vida, pela amizade, pelo carinho, pelo amor. À minha namorada, Anahisa, pelo apoio durante este momento crucial da graduação, pelas dicas especiais de pesquisa, pelo incentivo a escrever, pelo carinho, pela compreensão das minhas ausências. Aos amigos da vida que a faculdade de direito da UFC me deu, Karina, Laura, Lucas, Letícia, Marcos, Marina, Rafael, Walisson, Gabriel, dentre outros. Aos amigos da vida que o colégio Nossa Senhora das Graças me deu, Alice, Beatriz, Caio, Denise, Gabriel, Kelly, Levi, Paula, Raul, Vivian, Derek, dentre outros. Ao meu professor orientador, Alex Xavier, que topou o desafio de me orientar, mesmo com pouco tempo para a conclusão deste trabalho, que verdadeiramente me orientou, deu dicas, fez correções, explicou com cuidado e buscou extrair deste aluno o máximo possível. RESUMO O presente trabalho de conclusão de curso de Direito busca, dentre outras coisas, analisar o crime de desacato em face do controle de convencionalidade, espécie de instrumento de compatibilização de normas que se propõe a modificar todo o ordenamento jurídico brasileiro. A noção de direito pautada apenas nas leis produzidas internamente não é suficiente, o direito também é globalizado, as fronteiras não mais impedem o intercâmbio de normas jurídicas, tratados internacionais ratificado no Brasil são normas plenamente aplicáveis ao ordenamento jurídico pátrio como se fosse produzida pelo legislativo brasileiro. Discute-se assim a eventual superioridade e interpretação da Convenção Interamericana de Direitos Humanos em face do delito de Desacato previsto no Código Penal, lei ordinária, principalmente com base na decisão da 5ª Turma do STJ. Palavras-chave: Desacato. Controle de Convencionalidade. Decisão da 5ª Turma do STJ. ABSTRACT The present work of conclusion of Law course seeks, among other things, to analyze the crime of contempt in face of the convention control, a kind of instrument of compatibility of norms that proposes to modify the entire Brazilian legal system. The notion of a right based only on domestically produced laws is not enough, law is also globalized, borders no longer prevent the exchange of legal norms, international treaties ratified in Brazil are standards fully applicable to the legal order of the country as if produced by the brazilian parlament. It discusses the possible superiority and interpretation of the Inter-American Convention on Human Rights in face of the crime of Contempt in the Criminal Code, ordinary law, mainly based on the decision of the 5th Panel of the Superior Justice Cort. Keywords: Contempt. Convention Control. 5th Panel of the Superior Justice Cort decision. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CIDH Comissão Interamericana de Direitos Humanos STJ Superior Tribunal de Justiça STF Supremo Tribunal Federal CF/88 Constituição Federal de 1988 OAB ONU Ordem dos Advogados do Brasil Organização das Nações Unidas SUMÁRIO 1 – INTRODUÇÃO..................................................................................................................11 2.1 - DESACATO: OFENSA À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA............................................13 2.2 - ANÁLISE DO TIPO PENAL...........................................................................................15 2.2.1 – NÚCLEO DA CONDUTA...........................................................................................15 2.2.2 – SUJEITO ATIVO..........................................................................................................17 2.2.3 – SUJEITO PASSIVO.....................................................................................................18 2.2.4 – OUTROS ELEMENTOS DO TIPO.............................................................................20 2.2.5 – BEM JURÍDICO TUTELADO.................................................................................. 22 2.2.6 – DO ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO................................................................. 23 2.2.7 – DA CLASSIFICAÇÃO, DA PENA, DA AÇÃO E DAS CONSEQUÊNCIAS PROCESSUAIS........................................................................................................................24 3 - DA ANÁLISE DO JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL Nº 1.640.084/SP STJ............................................................................................................................................28 3.1 – DA ANÁLISE FÁTICA DO CASO.................................................................................28 3.2 – DA ANÁLISE DOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO.................................................30 3.3 – DA RECENTE DECISÃO DA 3ª TURMA DO STJ...............................................36 4 - DOS RELEVANTES ASPECTOS JURÍDICOS ARGUIDOS A PARTIR DO RESP 1.640.080/SP.............................................................................................................................40 4.1 – DESACATO E DESCRIMINALIZAÇÃO.....................................................................40 4.2 – CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE COMO INSTRUMENTO MODERNO DE REGULAÇÃO DE NORMATIVIDADE NACIONAL....................................................43 4.3 – DO RESPEITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DA REALIDADE DA OPRESSÃO DA POPULAÇÃO VULNERÁVEL PELAS AUTORIDADES......................................................................................................................53 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................59 11 1 INTRODUÇÃO O crime de desacato é um dos delitos mais comumente cometidos na sociedade, percebe-se isto quando cotidianamente os noticiários narram prisões feitas por policiais atuando em manifestações populares. Percebe-se também a grande insidência deste delito, quando se verifica, no Processo Judicial Eletrônico do Ceará – PJE-CE, sistema que gerencia os processos dos juizados especiais cíveis e criminais do Ceará, a existência de mais de mil e seissentos processos por crime de desacato entre os anos de 2014 e 2017. Assim, a decisão da 5ª Turma do STJ pelo afastamento da tipificação criminal do desacato, apesar de ser sem efeito erga omnes, possui a capacidade de causar uma verdadeira revolução na forma como a sociedade encara o serviço público, principalmente na seara policial e judicial, bem como na forma como o direito é aplicado. Isso porque, um dos argumentos colacionados pelo Ministro Relator foi a incompatibilidade do art. 331do Código Penal, lei ordinária, com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, norma recepcionada com caráter de supralegalidade, realizando assim o chamado Controle de Convencionalidade. Este acórdão paradigmático reforça a ideia de que o direito brasileiro, cada dia mais, se torna um direito internacional, ou seja, cada vez mais as normas previstas em tratados internacionais ratificados pelo Brasil regulam a vida neste país. Trata-se, em verdade, de uma modificação na cultura jurídica, ou seja, os juízes, promotores, defensores públicos, advogados, estudantes de direito devem estudar e aplicar não só as leis produzidas pelo legislativo brasileiro, mas também, e talvez mais, as normas produzidas internacionalmente e internalizadas neste país, pois ambas são possuidoras de força vinculante. O fato de existirem hoje inúmeros tratados internacionais internalizados no Brasil, alguns deles ratificados apenas para o país ficar “bem visto” no âmbito internacional, pode ser perigoso para a segurança jurídica, porém muitas das conquistas para os direitos humanos se deram por intermédio dos tratados internacionais e por pressões oriundas de outros países. Desta forma, importante levar em consideração todos estes fatores neste trabalho que inicia explicando no primeiro capítulo o que é o crime de desacato, sua tipificação, seus elementos, delimitando assim o objeto de estudo. Passa o segundo capítulo para uma análise crítica da decisão da 5ª STJ, seus fatos e argumentos. Ressalte-se o último subtópico deste capítulo, para analisar uma decisão mais recente da 3ª Seção do STJ contrária à da 5ª turma. 12 No terceiro capítulo, buscou-se analisar as consequências da suposta descriminalização do desacato, bem como da repercussão do fundamento do controle de convencionalidade, terminando com uma olhar mais agussado para a realidade que envolve o crime em estudo, qual seja, o uso da tipificação deste crime como forma de subjulgação da camada mais pobre e vulnerável da sociedade. 13 2.1 - DESACATO: OFENSA À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Segundo Michaelis, desacatar significa faltar ao respeito, desrespeitar, afrontar. Trata-se da junção das partículas “des” e “acatar”. A primeira, denota uma ideia negativa, ou seja, significa não. Já a segunda, emite a ideia de respeito (Michaelis 2008; p. 262). Interessante notar a sinonímia entre o verbo desacatar e o verbo afrontar. Isso porque, este denota uma gama muito variada de ações capazes de incidir no verbo. O desacato é considerado um ilícito penal há muito tempo, porém com outras nomenclaturas. Inicialmente, não havia um crime autônomo de desacato, mas sim uma causa majorante do crime de injúria pela circunstância da vítima ser uma autoridade pública específica, não qualquer funcionário. No direito romano, havia a figura delitiva chamada injuria atrox, que considerava crime o ato de injuriar ou ofender magistrados. Posteriormente, na Idade Média, além do magistrado como sujeito passivo, passou-se a proteger especialmente também os sacerdotes. Somente em 1810, o Código Francês tornou o crime de desacato um crime autônomo, além de ampliar os sujeitos passivos, passando a abarcar quaisquer funcionários públicos (Pagliaro 1999; p. 204). As penas para estes crimes eram muito graves, podendo chegar à deportação e até mesmo à morte (Bitencourt 2012; p. 255) Interessante notar-se que, naquela época, protegia-se especificamente uma classe de servidores públicos, em detrimento de outras. Mostrando assim que o objetivo do crime de desacato naquela época não era proteger o Estado e sua moral, mas sim um grupo privilegiado que precisava de meios para se manter no poder, ou seja, uma “desculpa” legitimada pela lei para subjulgar as classes socialmente inferiores. Cesare Beccaria fala sobre os crimes de lesa-majestade, que seriam um conjunto amplo de condutas que de alguma forma ofendiam o Rei, podendo se expressar em traição, violação da dignidade, da honra. Analisa o autor a irrazoável desproporção entre a conduta considerada delituosa e a pena imposta, pois muitas vezes as palavras ou ideias expressadas sem intuito de ofensa são consideradas pelo soberado, ao seu bel prazer, como criminosas, levando o infrator a sofrer penas terríveis (Beccaria 2013; p. 68). O mesmo autor acima citado afirma que um governo autoritário, para se manter no poder, inicia sua dominação pelo controle da opinião, pois tem receio de que as pessoas que tem coragem de falar mal do governo influenciem outros com suas ideias e, assim, consigam tirar do poder quem lá está (Beccaria, 2013; p. 79). Necessário dizer que Cesare Beccaria, na época que o referido autor escreveu o livro Dos Delitos e Das Penas, vivia sob a proteção de um monarca, o que indubitavelmente 14 refletiu na sua escrita, fazendo com que Beccari deixasse de escrever tudo o que queria, sendo comedido para não criar riscos de ser preso por ofender a moral e a dignidade de seu rei. Interessante notar aqui o cuidado de Beccari, quando escreveu o capítulo “dos crimes de lesa- majestade”, capítulo este que não possui mais do que dois parágrafos, demonstrando aqui o receio deste em ultrapassar o limiar entre a crítica construtiva e a ofensa, problema este ainda presente atualmente. Já no direito brasileiro, inicialmente, tinha-se, nas Ordenações Filipinas (livro V, Título 50), os crimes de injúria cometidos contra julgadores e seus oficiais, sendo portanto, uma salvaguarda para uma classe de servidores, qual seja, a dos servidores do judiciário (Bitencourt 2012; p. 255). Já o Código Criminal de 1830, nos arts. 229 a 246, trazia o legislador um aparato jurídico para os crimes de calúnia e injúria. No art. 231, havia a calúnia contra qualquer depositário ou agente de autoridade pública em razão de seu ofício, sendo um tipo específico. Já em relação à injúria, tinha-se uma modalidade qualificada no §2º do art. 237, fazendo o legislador a mesma especificação de agente público que o art. 231. Interessante notar, no art. 236, a especificação das modalidades de cometimento do crime de injúria, como a imputação de vícios ou defeitos que possam expor ao ódio ou ao desprezo público, ou a ofensa que puder prejudicar a reputação de alguém, dentre outras. Percebe-se a extrema amplitude da forma de injúria, podendo dar azo a que qualquer palavra que desagradasse o agente de autoridade pudesse se enquadrar nestes crimes. O Código Criminal de 1890 trouxe o crime de desacato como um crime autônomo no art. 134. Dizia que configurava desacato a ofensa a funcionário público, no exercício das funções, por meio de palavras, atos, ou com a falta de consideração ou a falta de obediência hierárquica. Finalmente, em 1940, foi editado o vigente Código Penal, que trouxe, no art. 331, o crime desacato. Nota-se que houve diminuição no texto em relação à texto do Código Criminal, mas, conforme Plagiaro, tal diminuição deu maior amplitude ao crime em tela, ou seja, maior liberdade para interpretações (Plagiaro 1999; p. 204). O crime em estudo possui alguns motivos para existir. O legislador, em face da necessidade de impedir tal ilícito, resolveu erigir tal conduta à categoria de ilícito penal, acreditando que a maior repressão à esta conduta faria diminuir ou extirpar tal ato. Segundo Fernando Henrique Mendes de Almeida, o crime de desacato é uma proteção ao interesse público, assim, em sendo o funcionário público representante da Administração Pública, precisa ele de meios idôneos para bem fazer seu ofício (Almeida 15 1955; p. 185). Pagliaro justifica a incriminação desta conduta, além do interesse público no respeito à administração pública, o fato de a ofensa ao funcionário público trazer a esteuma carga psicológica muito pesada e negativa, deixando-o muito estressado ao ponto de possivelmente prejudicar seu censo de decisão, fazendo com que tome decisões errôneas ou sem a devida cautela, o que pode prejudicar o Estado e consequentemente os particulares (Pagliaro 1999; p. 205). Neste sentido também, Bitencourt leciona que o delito em tela ocorre geralmente em situações onde a carga emocional é muito acentuada, principalmente na seara policial e judicial, onde há forte risco de uma mudança drástica na vida da pessoa. Assim, nestas áreas, esquecem-se estes funcionários públicos de analisar a condição pessoal do particular e simplesmente se albergam de tal crime para realizar sua função pública, sem levar em consideração a dignidade e a saúde da pessoa comum (Bitencourt 2012; p. 264). O autor ainda fala no prestígio da administração que, sem a moral e a honra que lhe são inerentes, impossível seria os particulares ou outros Estados considerarem suas decisões, argumentos, propostas, pois ficaria desvalorizada pela falta de respeito que as pessoas teriam contra aquela. Ficaria assim o Estado sem eficácia para realizar qualquer ato (Pagliaro 1999; p. 205). Não parece plausível, em uma primeira análise, porém, que os fundamentos apontados sejam suficientes para erigir a conduta de desacatar funcionário público ao patamar de ilícito penal, isso porque o direito penal é a ultima ratio, ou seja, só deve ser chamada a intervir quando extremamente necessário para a proteção da sociedade. Aparenta mais ser o crime de desacato um meio de coerção indevida por meio do qual o Estado usa para obter os seus desejos sem ser questionado, sem ser criticado. Não se está querendo dizer que o ato de desacatar alguém não seja ilícito, porém, em tese, não haveria necessidade de tal ser um ilícito penal, bastando a seara cível para reprimir tal conduta. 2.2 - ANÁLISE DO TIPO PENAL 2.2.1 – NÚCLEO DA CONDUTA O crime de desacato, previsto no art. 331 do Código Penal, faz parte do título “Dos Crimes Contra a Administração Pública”, mais especificamente do Capítulo “Dos Crimes Praticados por Particular contra a Administração em Geral”. Tal artigo afirma ser 16 crime o ato de “Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”. O verbo do crime é “desacatar”, ou seja, humilhar, desprezar, faltar com o respeito, menosprezar, menoscabar, desprestigiar, dentre outros sinônimos. Pagliaro, sintetizando a conduta de desacatar, diz que esta significa ofender a honra e o prestígio (Pagliaro 1999; p. 207). Resta a dúvida do que exatamente seria honra e prestígio. Honra pode ser objetiva, ou seja, a forma como uma pessoa vê a outra; ou subjetiva, a forma como cada pessoa se considera, se valoriza, se enxerga digna de respeito. Prestígio é um conceito muito próximo de honra objetiva, sendo sinônimo de reputação, fama. Tal verbo pode ser realizado de inúmeras formas, por meio de palavras, de gestos, de ações (vias de fato), de escritos, de ameaças, ou qualquer meio que deixe claro a vontade do particular em ofender a honra da administração pública e do funcionário (Gonçalves 2006; p. 155). Aqui reside uma das principais celeumas em torno do crime de desacato. Isso porque trata-se de um verbo que possui inúmeras formas de realização e, por isso, pode gerar inúmeras interpretações díspares, o que ocasiona insegurança jurídica e arbitrariedades. Chamar um funcionário público de “vagabundo”, “relapso”, “mentiroso”; brandir um facão desafiando policiais, ou mesmo alguém abaixar as calças em tom de ironia e dizer para policiais irem revistá-lo são condutas que a Justiça já considerou enquadradas em desacato (Andreucci 2012; p. 155). Nelson Hungria, citado por quase todos os professores penalistas doutrinadores da atualidade, fala em “falta de acatamento”, ou seja, a pessoa não respeita a outra, interfere de forma brusca e acintosa na paz de outrem, maculando sua honra e sua dignidade, fazendo-o se sentir mal pela falta de respeito à sua pessoa. O eminente autor elenca um rol exemplificativo de formas de se desacatar, por exemplo quando alguém xinga outra, conta mentiras sobre esta, agride fisicamente e verbalmente, ameaça, faz gestos obcenos, grita com outrem, dentre outros meios. (HUNGRIA 2004; p. 424.) O verbo desacatar, apesar de bem conceituado, abarca uma infinidade de meios de cometimento, de forma que entender que um fato acontecido no dia a dia se amolda perfeitamente à hipótese de incidência especificado no art. 331 pode ser, muitas vezes, bastante complicado. Isso porque a linha que separa o entendimento pelo desacato do entendimento pela crítica construtiva ou liberdade de expressão é muito tênue. Imagine-se uma pessoa que chega a um departamento público para realizar procedimento necessário para se habilitar motorista, imagine-se que este particular esperou por muitas horas para que um servidor público realizasse um procedimento que outros servidores fazem com muita rapidez, 17 este particular então, enraivecido pela situação, fala para o servidor público que ele é uma “lesma”. Neste caso, hipotético, mas muito comum no cotidiano das repartições públicas, a pessoa quis dizer que o servidor era lento, fazendo assim uma crítica pelo seu modo de atuar no serviço público, cobrando indiretamente mais celeridade do funcionário. Porém, o servidor sentiu-se ofendido pelo fato de ter sido chamado de lento, e principalmente por ter sido comparado a um animal conhecido por ser pegajoso. Pergunta-se, houve desacato? O exemplo citado não está muito longe da realidade, trata-se de fato comum na vida diária do serviço público e que comumente chega às portas do judiciário para que os magistrados respondam a pergunta acima formulada. O judiciário, formado por diferentes cabeças pensantes, ora se posiciona afirmando que houve crime, ora diz que se trata de mera crítica e liberdade de expressão. Lélio Braga Calhau afirma que apesar de o crime de desacato ser necessário à ordem pública, errou o legislador ao criar um tipo penal muito aberto, podendo enquadrar no crime uma infinidade de condutas, gerando assim insegurança jurídica na aplicação do referido delito (CALHAU, 2004). O italiano Luigi Ferrajoli afirma que uma norma penal não pode dar margem para dúvidas, ou seja, o tipo penal tem que ser bem claro sob pena de possibilitar arbitrariedades (FERRAJOLI, 2006). Tal abertura excessiva da norma é uma afronta direta ao princípio da legalidade, visto que, apesar de expresso em lei, perde o indivíduo particular a garantia de não ser preso por algo não expresso em lei à medida que a decisão pelo enquadramento no crime é praticamente feita pela autoridade pública. Ou seja, o limite da lei a que o policial, por exemplo, é obrigado a respeitar praticamente se perde quando deixa ao seu entendimento o que seja afrontoso à moral pública. 2.2.2 – SUJEITO ATIVO O sujeito ativo é qualquer pessoa, ou seja, qualquer pessoa física pode cometer o crime de desacato. Pessoa jurídica não pode ser sujeito ativo, pois, dentre outros motivos, não é capaz de proferir palavras, gestos, ameaças, agressões física diante do funcionário público, apesar de muitas vezes, um anúncio, propaganda, texto publicado em rede social da pessoa jurídica, por exemplo, possa afetar a honra e o prestígio da Administração Pública de forma muito mais danosa que uma conduta feita por uma pessoa física diante somente do funcionário público. Trata-se, portanto, de crime comum quanto ao sujeito ativo. 18 Há controvérsia doutrinária quanto a possibilidade de funcionário público cometer desacato contra outro funcionário, ou seja, um agente público ser sujeito ativo do presente crime. Sobre esta possibilidade, Celso Delmanto elencatrês doutrinas. A primeira, capitaneada por Nelson Hungria, diz que o agente público somente pode ser autor se o fizer fora do exercício da função e não se valendo da sua condição de servidor, assim somente cometeria desacato se, por exemplo, estivesse de férias, fosse parado em uma blitz e começasse a xingar o policiais. Já Bento de Faria afirma que só é possível um agente público ser sujeito ativo se o ofensor for inferior hierárquico do ofendido. Em terceira posição, tem-se Heleno Fragoso e Magalhães Noronha, para quem agente público pode ser autor do crime independentemente da sua condição (Delmanto 2016; p. 1392). Tais digressões teóricas são importantíssimas, isso porque o dia a dia de uma instituição pública é feito por várias pessoas que se conhecem e estão juntas em prol de um objetivo comum, qual seja, realizar os objetivos do interesse público. Assim, muitas vezes há discordâncias na maneira como atingir esses objetivos, na forma como os servidores se portam, no fato de fazerem algo considerado de forma errado, não escapando portanto às instituições os conflitos internos entre servidores. Nesse ínterim, fica a dúvida: no caso de servidor humilhar outro, no exercício da função, restaria configurado desacato? Ou o fato de o elemento “autor do crime ser agente público” poderia levar à configuração de outro crime, por exemplo, o abuso de autoridade? Autores como Antonio Pagliaro, Rogério Greco, Guilherme Nucci, Damásio de Jesus, dentre outros autores concordam com Heleno Fragoso e Magalhães Noronha, para quem o sujeito ativo podia ser funcionário público independentemente da hierarquia entre os agentes públicos, prestigiando assim o interesse público que restaria afetado em sua honra sendo o autor particular ou público. 2.2.3 – SUJEITO PASSIVO O sujeito passivo é o Estado, a principal vítima que o crime busca resguardar. Porém, também é sujeito passivo, ainda que em plano secundário, o funcionário público atingido. Funcionário público é um dos elementos essenciais do tipo. Trata-se de norma penal em branco que remete o tipo incriminador a um elemento contido em outra norma. Esta norma que contém o sentido para completar o art. 331 é o art. 327 do Código Penal, que traz o 19 conceito de funcionário público para efeitos penais, ou seja, quem é considerado funcionário público como pessoa passível de cometer crimes ou sofrer crimes. O art. 327 descreve funcionário público como sendo aquele que, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta e concessionárias de serviço público. Vê-se que também o art. 327 traz um preceito que precisa da complementação conceitual de outras normas ou da doutrina, pois o que seria cargo, função, emprego? Guilherme de Souza Nucci bem faz a distinção entre estas três modalidades de trabalho do funcionário público. Cargo seria o um posto criado por lei onde se especificaria os deveres e direitos, restando à pessoa que ocupar o posto o ônus de cumprir tudo que a lei determinar que aquele cargo tem que fazer. Seria o caso do cargo de delegado de polícia, em que o posto é ocupado temporariamente por uma pessoa até que deixe o cargo por aposentadoria, morte, vontade própria, restando vago o cargo para que outra pessoa ocupe. Emprego público diferenciar-se-ia do cargo pois enquanto neste o deveres e direitos estão inscritos em lei, naquele estão inscritos em contrato regido por normas de direito do trabalho (regime celetista), sendo assim mais maleável. Já função pública seria o serviço prestado à administração pública que não se enquadra nem em cargo, nem em emprego público, seria o exemplo do jurado em júri criminal (Nucci 2015; p. 1439). Bom ressaltar que este elemento é essencial para a consunção do crime em tela. Isto porque em não sendo a vítima funcionário público, inexistente será o crime de desacato, podendo recair sobre outros tipos penais, como injúria, difamação ou calúnia. Muito comum casos em que o suposto autor do crime consegue provar que desconhecia que a aparente vítima era funcionária pública, recaindo assim sobre a excludente de tipicidade, pois faltou vontade e consciência de humilhar a administração pública. Imagine-se a situação do policial à paisana em diligência policial é desmerecido por particular, sem que este tivesse conhecimento de que se tratava de policial, não pode o servidor público alegar desacato se não havia dolo, até porque não havia consciência do suposto autor, em menosprezar o servidor público. Exemplo de tal fato se pode ver no julgado TJRJ, AC 0020381- 41.2011.8.19.0001, Relª Desª Elizabeth Gregory, j. 2/9/20141. Ressalte-se, mais um vez, que o sujeito passivo principal do crime é o Estado, 1 “apelante desconhecia o fato de o senhor de camiseta regata preta para quem teria proferido as palavras descritas na inicial, tratava-se de funcionário público. Inexiste, portanto, o dolo, consistente na vontade deliberada de desprestigiar a função exercida pelo sujeito passivo (TJRJ, AC 0020381- 41.2011.8.19.0001, Relª Desª Elizabeth Gregory, j. 2/9/2014” 20 isso porque o funcionário público, quando no exercício da função, está trabalhando em nome da Administração Pública, tudo o que faz neste mister faz como se fosse a Administração Pública que estivesse fazendo, a vontade emanada pelo servidor em seus atos é a vontade do órgão, da instituição, como se uma cabeça pensante única fosse. Da mesma forma, quando o servidor público comete um ilícito que prejudica terceiros, a responsabilidade civil recai sobre a Administração Pública, como se esta tivesse realizado o ilícito, restando ao particular entrar com a ação civil contra o Estado. Por isso que, quando o servidor sofre ofensa no exercício da sua função ou em razão dela, a imagem e a honra que está sendo maculada, principalmente, é a da administração pública, apesar de um pouco complicado de se visualizar tal desiderato. A pessoa que detém o cargo público será o segundo sujeito passivo, que apesar de sentir-se ofendido, em suma, muito mais do que o Estado pessoa jurídica, não será o principal ofendido. 2.2.4 OUTROS ELEMENTOS DO TIPO Um dos outros elementos do tipo é o fato de o funcionário público, na condição de vítima, estar em exercício da função quando do desacato. Aqui o agente público está trabalhando em prol da administração e em nome desta, tal fato presume que qualquer ato de menosprezo em desfavor do servidor é desacato. Segundo Fernando Capez, pouco importa se o ato ofensivo tenha relação com a função pública, ou seja, caso o autor do crime dirija-se a um auditor da justiça do trabalho que está fiscalizando uma empresa e diga que este é “corno”, ou o chame de “gordo”, xingamentos pessoais, com nítido propósito depreciatório, restará configurado o crime desacato. Assim, não importa o local em que se encontra o servidor, se este estiver trabalhando em prol da administração e for desmerecido injustamente, ainda que por uma característica pessoal, restará consumado o crime em tela. (Gonçalves 2011; p. 753) Ressalte-se que este elemento não é obrigatório, podendo também o crime se configurar quando presente um quarto elemento típico, qual seja, o desacato em razão do encargo público. Aqui, o crime se configura quando o agente público não está no exercício da função pública, mas o autor do crime profere insultos ao servidor por razão de aquele ser servidor. É o caso, por exemplo, do gari que está viajando de férias, porém é interpelado por um morador que diz que “quem trabalha com lixo é lixo”. Evidente está a vontade do autor de desmerecer o trabalho do servidor. Lélio Braga Calhau, chama o fato de a vítima estar em exercício de função 21 como Nexo Funcional Ocasional, e o fato de a vítima não estar em exercício, mas a ofensa ter-se dado em razão dela,de Nexo Funcional Causal. (Calhau 2012; p. 45) Assim, em sendo a ofensa perpetrada contra servidor público que não esteja em exercício, e tal ofensa não se relacione ao trabalho do servidor, poderá restar configurado os crimes contra a honra do art. 138 a art. 145, do Código Penal. A doutrina e a jurisprudência elencam ainda outro elemento do tipo que, apesar de não estar expresso no artigo em comento, é essencial para a configuração do crime. Trata- se da necessidade de o autor e réu estarem em um mesmo local, não necessariamente um de frente para o outro, mas de modo que o servidor possa, por meio dos sentidos, principalmente o auditivo, captar a ofensa perpetrada contra si e contra a administração (Masson 2014; p. 601). Deste forma, não existe crime de desacato por e-mail, por carta, por escritos na internet, apesar de tais formas possuírem uma capacidade de ofensa à honra da administração pública muito maiores que um xingamento dirigido somente a um servidor em um local específico. Isso porque a ofensa feita pela internet possui uma capacidade de se espalhar e se tornar permanente nas redes sociais, como se um crime permanente fosse. Magalhães Noronha traz uma interessante doutrina. Afirma que não há a necessidade de o servidor ouvir a ofensa, restando configurado quando tomou conhecimento da ofensa posteriormente (Noronha 2010; p. 309). Tentando exemplificar esta afirmativa, imagine-se que um particular faz um gesto obsceno ao funcionário público, a exemplo do famoso “cotoco”, porém, pelo fato de este estar sem os seus óculos de grau no momento, não conseguiu visualizar, acreditando a vítima que a pessoa estava gesticulando um “ok!” com o dedo polegar; ocorre que, no dia seguinte, o segurança mostra ao servidor uma filmagem em que resta nítido o particular ofendendo o agente público, assim, configurado está, segundo Noronha, o crime de desacato. Em suma, para a configuração do crime de desacato, necessário se faz a presença física no mesmo ambiente, de autor e vítima, de modo que este possa perceber a ação daquele. Não restando configurado, portanto, desacato, quando o menosprezo se dê por carta, e-mail, declaração em redes sociais, podendo configurar algum dos crimes de honra. A publicidade do ato ofensivo, ou seja, o fato de terceiros ficarem sabendo do ocorrido, segundo doutrina majoritária, não é elemento necessário para a configuração do delito. Assim, não importa se o crime ocorreu em local público ou em sala fechada estando presente somente a vítima e o autor, caso haja desacato, consumado está o crime. O problema de o desacato ter sido cometido em local fechado é a veracidade da prova, isso porque em havendo dúvida sobre o alegado pelo servidor e o alegado pelo réu, suposto autor do crime, e 22 sendo estes depoimentos as únicas provas, deve o juiz absolver o réu pelo princípio do in dubio pro reo, que prevalece sobre o princípio administrativo da fé pública dos agentes públicos. (Jesus 2014; p. 1028) 2.2.5 – BEM JURÍDICO TUTELADO O bem jurídico tutelado é a honra, moral, prestígio da Administração Pública. Isso como forma de evitar que os atos do Estado percam sua eficácia, em face do possível desrespeito por parte dos particulares ou outros Estados que veriam a Administração Pública perder seu poder coercitivo. Assim, protege-se o interesse público em ter um Estado eficaz. A Constituição Federal, em seu artigo 5º, elencou direitos de personalidade inerentes à pessoa humana, necessários para a configuração da sua dignidade. O Estado, apesar de ser uma pessoa jurídica, possui direitos de personalidade que precisam ser respeitados, como o direito à imagem (a exemplo da bandeira nacional, que é um símbolo que não pode ser conspurcardo), e o direito à honra, principalmente e talvez unicamente, a honra objetiva, ou seja, aquela que mácula a forma como as pessoas veem as outras. Cleber Masson fala em desempenho normal, assim protege-se o normal andamento do serviço público, para evitar a perda da continuidade do trabalho do Estado, matéria essencial ao pleno desenvolvimento da sociedade (Masson 2014; p. 601). O mesmo autor fala ainda, em consonância com a doutrina majoritária, que também se protege a honra do funcionário público diretamente ofendido. Este, na maioria das vezes, sofre mais os efeitos a agressão do que o próprio Estado e, consequentemente, a população em geral. Inviável estaria a administração pública de realizar suas necessidades, atos e serviços públicos, muitos dotados de poder de império, ou seja, poder de o Estado obrigar que se cumpra algo em nome da lei e em prol do interesse de todos, caso não fosse dotada de instrumentos e meios para coibir atos de poucos particulares que, não concordando com a vontade da maioria, votada pelos representantes do povo, realizam atos excessivamente onerosos em desfavor da sociedade. Exemplificando, imagine-se que o órgão de proteção do meio ambiente, na figura de um biólogo auditor-fiscal, embargue uma obra que está afetando o curso de um rio que abastece parte de uma cidade; imagine-se que os operários, indignados com a situação quebrem o vidro do carro do auditor e o desmereçam em sua função, maculado está o propósito do servidor público, que se viu impedido de realizar um ato necessário para o bem da maioria da sociedade em face de uma reação descabida de particulares. 23 Assim, vê-se o crime de desacato como um destes instrumentos de coerção, ou seja, uma forma de intimidar e evitar que as pessoas impeçam o regular exercício do serviço público, da Administração Pública em prol da consecução do interesse comum. 2.2.6 DO ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO É um crime que somente comporta a modalidade dolosa, não havendo modalidade culposa. Importante aqui analisar a necessidade de o autor do crime agir com dolo específico de desonrar a administração, ou se bastaria o dolo genérico, ou seja, aquele decorrente da ação do tipo penal. Isso porque na hipótese do art. 331 que descreve uma conduta passível de pena não diz que o autor precisa agir “com o fim de” macular a honra da Administração Pública, bastando apenas que cometa um ato que desprestigie o agente. Assim, não precisaria o órgão incriminador, em tese, nem o juiz, buscar nos fatos circunstâncias que demonstrasse o animus do autor do crime, visto que não é possível ao juiz ou ao Ministério Público saber o que há na mente do criminoso quando da ação delituosa. Não configura o dolo delito em tela, segundo Fernando Capez, o fato de o agente criticar, censurar um agente público, mesmo que forma ríspida ou exasperada, ou ainda o particular retorquir uma agressão do funcionário público. Segundo o mesmo autor, atos de grosseria, em que fica evidente que o particular é uma pessoa mal educada, porém desprovida de interesse de macular a honra da Administração Pública, não são passíveis de configurar desacato (Capez 2012; p. 447). O STF, no Habeas Corpus nº 83.233/RJ2, ao analisar o elemento subjetivo do tipo, afirma ser este a vontade livre e consciente (dolo) de agir com a finalidade de desprestigiar a função pública do ofendido. Assim, necessário se faz o juiz, quando do julgamento ou antes mesmo, procurar provas e circunstâncias que demonstrem que realmente o agente agiu com dolo de menosprezar, não apenas querendo fazer uma crítica. Cléber Masson, posicionando-se contrário à decisão do STF, afirmando dentre outras coisas que o verbo desacatar já torna evidente a intenção de menosprezar a administração pública, não precisando o juiz perquirir pelo animus específico de menosprezar o serviço público (Masson 2016; p. 605). Além do STF, o STJ também possui julgados que evidenciam o posicionamento pela necessidade de dolo específico de ofender a administração pública, como 2 “No crime de desacato, o elemento subjetivo dotipo é a vontade livre e consciente de agir com a finalidade de desprestigiar a função pública do ofendido” STF HC nº 83.233/RJ, Rel. Min. Nelson Jobim, 2ª Turma, j. 04.11.2003. 24 o seguinte julgado: STJ, HC 25421/RJ Rel. Min. Paulo Gallotti, 6ª T., DJ 20/3/2006, p. 354, em que afirma que, restando comprovando a ausência da intenção de menosprezar o servidor público, falta justa causa para a ação penal3. Fernando Capez analisa ainda a possibilidade de o estado de raiva, de ira, de ânimo exaltado elidir a configuração do crime de desacato. Afirma o autor existirem duas posições. A primeira, majoritária nos tribunais, entende que este estado em que se encontra o agente exclui o elemento o dolo, pois falta a vontade de conspurcar a imagem do Estado. Poderá, neste caso o agente responder pelos crimes de injúria, difamação ou calúnia. Assim, para configurar desacato, o agente teria que estar calmo, com os ânimos não exaltados. A segunda corrente afirma que o estado de ira do agente não ilide o crime de desacato, isso porque a grande maioria dos desacatos ocorre com os ânimos exaltados. Ainda, segundo esta corrente, o próprio código penal, no art. 28, I, ao falar da culpabilidade, diz que a emoção ou paixão não são excludentes da culpabilidade, ou seja, há crime mesmo que a pessoa esteja com estado emocional alterado. Fala também que, segundo ramificação doutrinária desta última corrente, o fim de desprestigiar a administração pública é desnecessário, ou seja, basta o autor realizar um ato ofensivo (Capez 2012; p. 448). 2.2.7 DA CLASSIFICAÇÃO, DA PENA, DA AÇÃO E DAS CONSEQUÊNCIAS PROCESSUAIS É crime de forma livre, ou seja, pode ser cometido de inúmeras formas, por meio de falas, gestos, vias de fato, escrita (no caso de o autor escrever e mostrar à vítima no mesmo momento). Ainda, é crime comissivo, ou seja, necessita o autor do crime fazer algo. A doutrina fala na possibilidade de ser cometido via omissão imprópria, quando o autor tinha a obrigação de evitar que servidor público fosse ofendido, porém não o fez, quedou-se inerte (Greco 2017; p. 1700). Importante característica do crime em comento é o fato de ser crime formal, de consumação instantânea, ou seja, tendo o criminoso proferido as palavras ofensivas em face do servidor, consumado está o crime. Há controvérsia na doutrina no sentido de saber se há necessidade de o agente público se sentir ofendido para a configuração do delito. Aqui, renasce a discussão sobre o sujeito passivo. Se considerarmos que o sujeito passivo principal é o Estado, prescinde de necessidade do servidor sentir-se ofendido, isso porque a ofensa será 3 ”[...]Restando evidente a ausência de intenção de desrespeitar, ofender ou menosprezar funcionário público noexercício da função, falta justa causa para a ação em que a paciente é denunciada pela prática de desacato (STJ, HC 25421/RJ Rel. Min. Paulo Gallotti, 6ª T., DJ 20/3/2006, p. 354).” 25 aferida por elementos objetivos do caso concreto pelo juiz, não sendo ao agente público cometido a função de interpretar a situação geradora do crime. Ao contrário, caso se afirme que o servidor precisa sentir-se ofendido para configurar o crime, derrubada estará toda a teórica envolta no crime de desacato, sua necessidade como tipo penal, sua função de segurança do prestígio e respeito do Estado, pois assim, o principal sujeito passivo do crime será o agente público, não o Estado. No exemplo do funcionário que somente percebeu que se tratava de um “cotoco” o gesto feito pelo particular, o momento consumativo do crime não seria quando o funcionário ficou sabendo da “verdade” pelas câmeras, mas sim quando o gesto efetivamente ocorreu, pois, conforme foi dito, trata-se de crime formal, a ação do agente faz consumar o crime independentemente de resultado, e o principal sujeito passivo do crime é o Estado, não importando a carga psicológica que se colocou sobre o servidor em momento posterior. Outra classificação para o crime de desacato é que este é um crime monosubjetivo, ou seja, basta apenas uma pessoa para perpetrar o delito, ao contrário dos crimes plurissubjetivos, em que para configuração necessário a presença de mais de um indivíduo. Ainda na parte de classificação, tem-se que o citado delito pode ser considerado unissubsistente ou plurissubsistente. Este ocorre quando é possível fracionar o inter criminis, desde o momento da preparação à execução, possibilitando a forma tentada. Aquele, crime unissubsistente, ocorre quando não é possível este fracionamento. Interessante classificação é a que afirma ser crime transeunte, ou seja, crime que não deixam vestígios passíveis de prova pericial. O mero ato de proferir palavras de menosprezo contra servidor público não deixam resquícios materiais para auferimento por perícia ou por exame de corpo de delito (Greco 2017; p. 1700). Outra questão relevante é saber se seria possível o funcionário público ofendido entrar com uma ação privada pelo crime de injúria, difamação ou calúnia, mesmo que o particular já esteja respondendo pelo desacato. Conforme as lições de Cezar Bitencourt, pelo princípio da consunção, ou seja, crime meio é absorvido pelo crime fim, os referidos crimes de ação privada são absorvidos pelo desacato, salvo o crime de calúnia que, por ser crime mais grave, geraria concurso formal (Bitencourt 2013; p. 221) Nesta senda, pergunta-se se seria possível o servidor público vitimado pelo desacato entrar com ação civil de reparação de danos morais e materiais eventualmente sofridos pelo crime em comento, ou se esta legitimidade ativa seria apenas do Estado, principal sujeito passivo deste delito. Não há empecilho para tal, podendo ambas as vítimas, 26 servidor e Estado, servirem-se da justiça cível para buscar a reparação pelo dano sofrido, isso porque conforme entendimento consolidado na jurisprudência as esferas cível e penal são separadas, não havendo bis in idem na condenação pelo mesmo fato em juízos materiais diferentes. Guilherme Nucci traz uma variável interessante ao crime, qual seja, o fato de o agente público ficar indiferente à ofensa do agressor ilide a configuração do crime, ou seja, segundo o autor, o fato de o funcionário público se achar indiferente ao ato agressivo do particular impede a consumação do delito de desacato, pois aqui não restaria configurada a ofensa da administração pública (Nucci 2015; p. 1442). A pena do crime desacato é de detenção de 06 (seis) meses a 02 (dois) anos, ou multa. Assim, em regra, somente cabe o regime de prisão semi-aberto ou aberto, salvo necessidade de se transferir para o regime fechado. Os crimes de calúnia, difamação e injúria possuem penas de detenção de, respectivamente, 06 meses a 02 anos, 03 meses a 01 ano e 01 a 06 meses. Sendo que nos dois primeiros crimes há a cumulação das penas de detenção com multa, já no último há a possibilidade do juiz aplicar somente a pena de multa. Porém, importante salientar-se que o capítulo que trata dos crimes contra a honra possui, no art. 141 CP, circunstâncias majorantes das penas destes crimes. Assim, no art. 141, II, há a majorante de 1/3 (um terço) da pena se o crime contra honra for cometido contra funcionário público, em razão de suas funções, podendo assim em alguns casos ultrapassar a pena do crime de desacato. A ação penal é pública incondicionada, pois evidente o interesse público em coibir tais crimes. Pela pena máxima imputada ser de 02 anos, deve, em regra, o crime ser julgado em um juizado especial criminal, conforme art. 60 e 61 da Lei nº 9.099/95. Normalmente a competência é Estadual, salvo se houver ofensa a interesse da União, quando então a competência passa para o Juizado Especial Federal. Pela dinâmica dos juizados especiais, quando alguém é preso ou indiciado pelocrime de desacato, o delegado de polícia lavra um Termo Circusntanciado de Ocorrência (TCO), onde consta os fatos, as partes envolvidas, testemunhas, e a data designada para audiência preliminar a ser realizada no Juizados Especial Criminal do local do fato. Nesta audiência, conforme o art. 76, havendo os requisitos, o Ministério Público oferece a proposta de transação penal, para evitar de denunciar o suposto agressor e desde já este se comprometer a cumprir uma pena. É de conhecimento geral que a grande maioria dos casos se resolvem nesta fase pré-processual, em que o susposto autor do crime prefere cumprir desde logo as medidas restritivas de direito ou multa, ao invés de sofrer com os atos processuais, um 27 condenação e com o medo de ser privado de sua liberdade. Maurício Ferreira Cunha afirma que, proposta a transação, pode o juiz recusar homolar tal acordo, principalmente quando visualizar atipicidade da conduta, ausência de justa causa para a ação ou indícios mínimos (Cunha 2014; p.126). Porém o que se vê são acordos feitos para acabar o mais rápido possível com o processo, evitando-se gastos com a máquina do judiciário, quando, em verdade, muitos casos, poderiam ser resolvidos com o juízo de valor do magistrado entendendo pelo caráter crítico da manifestação do particular, ou seja, entendendo que o susposto desacato era, na realidade, uma manifestação da insatisfação da pessoa para com o serviço público. Carmem Silvia Fullin narra um caso em que o suposto autor do desacato estava completamente convencido da sua inocência, pois sabia que somente ofendeu verbalmente os policiais após estes terem sido ríspidos e agressivos na abordagem, porém a juíza, o promotor e a defensora pública disseram que o melhor para ele era aceitar pagar 2 salários míninos para não ter o processo iniciado e assim evitar de ser condenado, e também porque seria difícil para ele provar que era inocente (Fullin 2011; p. 143). Interessante notar aqui a valoração da prova, pois dá-se maior valor ao testemunho do policial que conduziu ao suposto autor, do que à afirmação categórica deste de que foi agredido primeiramente, o que demonstra uma falha na busca por justiça. Assim, resta evidente que muitos dos crimes de desacato não são julgados, pois acredita-se que a grande maioria das pessoas acusadas pelo referido crime preferem aceitar a proposta de suspensão do processo, para se verem livres de uma possível condenação, do que recusar e sofrer com o andamento processual, e isso pode refletir em um direito pautado mais pela celeridade do que para a efetiva justiça. Em regra, ninguém é preso pelo crime de desacato, o máximo que pode acontecer, pela realidade da falta de abrigos, é a pessoa ter que ir assinar o nome em algum local. Porém, o grande problema do crime em estudo é o seu uso para privar momentaneamente as pessoas de sua liberdade, ou seja, é um meio da polícia pegar um pessoa, prender por metade de um dia, para fazer procedimentos na delegacia e restaurar uma situação de normalidade. Fica então a dúvida se tal uso do crime de desacato é legítimo. 28 3 - DA ANÁLISE DO JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL Nº 1.640.084/SP STJ 3.1 – DA ANÁLISE FÁTICA DO CASO O recurso especial em análise decorre de um processo penal em desfavor de Alex Carlos Gomes. Segundo consta no relatório do Ministro Relator, Sr.Ribeiro Dantas, o réu teria subtraído, mediante grave ameaça e utilizando-se de uma barra de ferro, uma garrafa de conhaque “Dreher”, com preço médio em torno de R$ 10,00, da proprietária e vítima Faedra de Jesus Tavares, configurando supostamente o crime de roubo. Em seguida à subtração, foi preso em flagrante pelos policiais militares André Luiz Eduardo Gonçalves e Luiz Teixeira Fernandes, oportunidade em que começou a fazer xingamentos e gesticular obscenamente para os agentes públicos que estavam exercendo sua função, cometendo em tese o crime de desacato. Ainda, o réu teria colocado dificuldade para ser preso, ameaçando e agredindo fisicamente os referidos funcionários públicos, opondo-se de várias formas à execução do ato pelos policiais, incorrendo supostamente no crime de resistência. Algumas premissas podem ser observadas nesta sinospse fática. Primeiro, o autor nitidamente estava sobre forte emoção e nervosismo1, pois é fato notório e conhecido que alguém ser preso não é uma notícia que se receba com muita facilidade por aquele que está sendo preso. Pode-se dizer, assim, que é esperável do homem médio que se recuse, não concorde com o procedimento, acredite fielmente que não merece esse tipo de punição por parte dos agentes públicos, sendo no mínimo escusável o comportamento do réu. Gonçalves Maia fala em um conceito chamado de compreensível emoção, que seria o estado emocional turbulento pelo qual qualquer homem comum passaria, ou seja, trata- se de uma condição esperável das pessoas, nada fora do comum. Traz o autor este conceito para explicar a figura do homicídio privilegiado do Código Penal Português que prevê o tipo mais benéfico para aquele que matar outrem sob o estado de compreensível emoção (Gonçalves 2004; p.484). Assim, apesar de o tipo penal do desacato não trazer qualquer excludente que envolva o estado emocional do agente, há doutrina e a jurisprudência diverge sobre a necessidade de o autor estar calmo para ser considerado detentor de dolo de desmerecer a função pública, e o conceito de forte emoção pode ser extraída dos conceitos de violenta 1 “Não configura o proferido em momento de exaltação e nervosismo (TJSP, RT 526/357; TACrSP, RT752/622, 642/306; TRF da 1a R., mv — RT 781/692; Ap. 6.458, DJU 16.4.90, p. 6990; TRF da 5a R., Ap. 1.401, DJU” 29 emoção prevista no homicídio privilegiado do Código Penal Brasileiro, ou mesmo do Código Penal Português. Neste sentido, há julgados que afirmam a inexistência de desacato quando a pessoa que está sendo presa se irresigna com a situação e desfere palavras de baixão calão em nítido intuito de mostrar seu descontentamento com o ato, ou seja, mesmo para aqueles que entendem haver a necessidade de dolo específico, não estaria aqui a finalidade precípua de desprestigiar a administração pública configurada. Há ainda a possibilidade de tal resposta mais perturbadora advinda do particular configurar legitima defesa putativa, ou seja, a pessoa acredita estar sofrendo uma injusta agressão e, por isso, faz o que está a seu alcance e nos limites da proporcionalidade para evitar a ação. Aqui, o autor imagina que a ação do policial, por exemplo, é ilegítima, porém esta é verdadeiramente legal e dentro da normalidade, e assim caso se considere descupável, ou seja, se pelas circunstâncias se puder esperar que a pessoa incorra em erro, o autor é isento de pena. A segunda premissa é o fato de o réu estar sendo processado por dois crimes que, em alguns casos, pode-se ter um absorvido pelo outro, em face do princípio da consunção do direito penal, em que o crime fim absorve o crime meio, deixando este último de ser imputado ao réu. Não é incomum haver juízes que entendem pelo absorvição do crime de desacato pelo de resistência. Assim, pelas circunstâncias do fato, em usando o réu de palavras, gestos vias de fato para irresignar-se contra o ato legal, e, em decorrência destes atos com nítido objetivo de demonstrar a contrariedade ao ato, o réu acabar por ofender a honra, moral, dignidade do agente público, restará absorvido o crime de desacato pelo de resistência, pois o desacato foi mero meio usado pelo autor do crime para cometer o delito de resistência2. No presente caso concreto, pelo que se narra no relatório do Min.Ribeiro Dantas, poder-se-ia considerar que o desacato foi mero meio que o Sr. Alex Carlos Gomes se utilizou para resistir aos atos de prisão dos policiais, tanto que chegou à ameaçá-los e agredi-los fisicamente. Rogério Greco, citando Lélio Braga Calhau, afirma que difere a resistência do desacato porque na primeira a ofensa tem por objetivo a não realização do ato administrativo 2 No crime complexo, constituído de ofensas verbais e físicas a funcionário público, com o fim específico de resistir ao cumprimento de uma ordem legal, o desacato fica absorvido pela resistência (TJDF, Ap. 12.946, DJU 5.8.93, p. 30265). Tendo ocorrido a regressão do desacato para a resistência, e levando-se em conta as circunstâncias de tempo, lugar e motivação, e verificada a unitariedade episódica dos fatos, ocorre a absorção do desacato pela resistência (TACrSP, mv— RT 824/609). 30 por parte do funcionário, já o segundo tem por objetivo desprestigiar a administração pública. Afirma o autor que entre os referidos crimes haveria concurso, não absorção pelo princípio da consunção, já que as motivações seriam diferentes e, por isso, impossível um ser considerado meio do outro. (Greco 2017; p. 1688). 3.2 – DA ANÁLISE DOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO O Ministro Relator inicia a discussão acerca do crime de desacato falando sobre o controle judiciário como uma forma de garantia de proteção à pessoa humana em consonância com a Convenção Americana de Direitos Humanos, buscando assim maior legitimidade para seus argumentos. O Ministro cita os arts. 1º, 2º e 29º da referida convenção, dando destaque para as medidas de “outra natureza”, que não a legislativa, para assegurar e tornar efetivo os direitos previstos no Pacto San Jose da Costa Rica. Mazzuoli entende, interpretando esta cláusula aberta de “medidas de outra natureza” presente no art. 2º do referido pacto, que os direitos na convenção não são protegidos apenas por leis, mas também por atos do executivo, do judiciário, enfatizando a proteção da pessoa de várias maneiras. Assim, legítima a ação do STJ para decidir pela maior ou menor proteção das pessoas (Mazzuoli 2009; p. 27). Sobre a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, também chamada de Pacto San José da Costa Rica, tem-se que é um dos mais importantes tratados internacioanis de direitos humanos da América. Traz este tratado um conjunto de normas de direito civil e político para serem implementados e respeitados pelos países signatários. O Brasil internalizou este tratado em 06 de novembro de 1992 com a promulgação do Decreto 678/1992, tendo reconhecido também, em 1998, a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos para julgar dissídios relacionados à violação de direitos humanos envolvendo indivíduos e/ou países da América. O ministro relator passa a analisar o caráter supralegal do Pacto San José da Costa Rica. Cita como decisões paradigmas o Recurso Extraordinário nº 466.343/SP, de 03 de dezembro de 2008, e o Recurso Especial 914.253/SP, de 04 de fevereiro de 2009. No primeiro recurso, julgado no Supremo Tribunal Federal, acolheram os ministros a tese de que os tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil anteriormente à Emenda Constitucional nº 45/2004 ou com quórum não especial tem força supralegal, ou seja, na pirâmide kelsiana de hierarquia das normas, estes tratados estariam abaixo da Constituição, mas acima das leis ordinárias. Neste julgamento, o STF julgou ilícita a prisão do depositário 31 infiel prevista nas leis ordinárias, apesar de a Constituição Federal de 1988 prever a possibilidade de tal prisão. No segundo recurso citado, o STJ acolheu a tese da supralegalidade dos tratados de direitos humanos, fazendo referência à decisão no recurso extraordinário acima explicitado. Assim, passou o STJ a entender, em consonância com o STF, que o Pacto San Jose da Costa Rica possui força supralegal. Desta forma, ao reconhecer a supralegalidade do Pacto de San Jose da Costa Rica, o STJ confirmou a possibilidade de haver o Controle de Convenionalidade em nosso ordenamento jurídico. Tal controle se caracteriza pela possibilidade de se reconhecer a invalidade de uma lei ordinária por ser contrária à um Tratado com hierarquia supralegal. Ressalte-se que não se trata de revogação da norma, mas sim de invalidação, tornando-a sem eficácia para gerar efeitos jurídicos. O controle de convencionalidade, idealizado com esta nomenclatura por Valério Mazzuoli, é, portanto, um instrumento de compatibilização das normas de um ordenamento jurídico. Pois, em havendo conflito de normas em face de um caso concreto, deve o judiciário se posicionar pela aplicabilidade de uma ao invés de outra, ou mesmo da possibilidade da aplicação de ambas, caso seja possível, em uma interpretação que acolha a teoria do diálogo das fontes, por exemplo. Fala Mazzuoli que tal espécie de controle deve ser realizado pelo judiciário brasileiro em face dos tratados internalizados, que se tornaram parte do ordenamento jurídico brasileiro, tratando de adaptar as leis ordinárias aos preceitos dos tratados internacionais (Mazzuoli 2011; p.133) Assim, o segundo ponto relevante trazido pelo Ministro Relator é que o Pacto San José da Costa Rica é hierarquicamente superior ao Código Penal Brasileiro, lei recepcionada após a Constituição Federal de 1988 com natureza de lei ordinária, apesar de formalmente ter sido criada como Decreto-Lei, e, portanto, as normas do Código Penal podem ser invalidadas pelo referido Pacto Internacional. Sobre a competência do STJ, tem-se que esta é definida na Constituição Federal de 1988 no art. 105. Dentre os assuntos de responsabilidade de julgamento do STJ está o julgamento de recurso contra decisão que contrarie ou deixe de aplicar tratado, art. 105, III, “a”, CF/88. Interessante notar que tal competência era do Supremo Tribunal Federal, porém, objetivando melhorar a prestação judiciária, o Congresso entendeu que seria melhor a criação de um novo órgão julgador, o STJ, e designar a este algumas competências, usando da Emenda Constitucional nº 45/2004 para reorganizar o poder judiciário. 32 Fátima Nancy Andrighi afirma que o julgamento de recurso especial é a função mais importante do STJ, pois com isso uniformiza os julgamentos dos juízes e desembargadores de todo o Brasil, objetivando que o direito brasileiro seja aplicado da mesma forma em todo o país (Andrighi 2013; p. 1450). Assim, a não aplicação do direito presente nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil é causa geradora de pressuposto para o recurso especial, ainda mais porque é muito comum os juízes brasileiros esquecerem os tratados internacionais ou simplesmente ignorá-los, não dando a estas normas internacionais o devido respeito e consideração que merecem. Valério Mazzuoli afirma, sobre o Pacto San Jose da Costa Rica, que esta é desconhecida no Brasil, os juízes brasileiros apenas aplicam os tratados quando estes já foram considerados pelo STF ou STJ como no caso do julgamento da invalidade da prisão do depositário infiel. Nos outros casos em que seriam aplicáveis os tratados internacionais, talvez muito em função do desconhecimento da existência destas regras por parte de magistrados, advogados, defensores públicos ou promotores, os juízes simplesmente deixam de aplicá-los (Mazzuoli 2009; p. 7). No presente caso, os Desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo, quando do julgamento do caso que gerou o recurso especial em apreço, afirmaram que a Convenção Interamericana de Direitos Humanos não é incompatível com o crime de Desacato, ou seja, interpretaram a norma internalizada de forma que não haveria conflito entre estes regramentos. Porém entendeu o STJ que houve contrariedade na aplicação da Convenção. Ressalte-se que somente os tratados de hierarquia infraconstitucional, ou seja, não equiparados à emenda constitucional pelo fato de ter sido aprovadona duas casas do Congresso em dois turnos por 3/5 (três quintos) dos votos, poderiam servir de norma paradigma para controle de convencionalidade no STJ. Caso o tratado fosse aprovado com quórum especial, seria, portanto, norma constitucional, podendo somente servir de controle de constitucionalidade no STF. Em um segundo momento, passou o Ministro Relator a comparar o art. 13 da Convenção Interamericana com o art. 331 do Código Penal, para efeitos de conflitos de normas e eventual superposição de uma sobre a outra. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, na qual se baseou principalmente o ministro em seu voto, no relatório especial de 1995 afirmou que as leis que punem o desacato legitimam o abuso de autoridades, são instrumento para calar a população, como forma de evitar manifestações contrárias ao governo, e proporcionam um 33 desnivelamento entre particulares e agentes públicos, ferindo assim o princípio da democracia e da igualdade (CIDH 1995). Ainda, esta Comissão, em 27 de outubro de 2000, aprovou a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, em que consignou, no princípio nº 11, que as leis de desacato violam a liberdade de expressão e a liberdade de informação, atentando assim contra o art. 13 do Pacto San Jose da Costa Rica. A justificativa da Comissão Interamericana para tal conclusão é, segundo o tópico 50, que: é necessário o indivíduo ter plena liberdade para se expressar, pois imprescindível para o regular controle da administração pública e em prol do interesse público; não haveria justificativa plausível para o funcionário público receber um proteção especial em face do particular; tal desnível inibe o normal controle da democracia, vez que os cidadãos se veem compelidos a não dizer tudo o que pensam do governo; em sendo o agente público um longa manus do Estado, qualquer crítica dirigida àquele deve ser entendida como dirigida á Administração Pública; a coerção, consequência da lei penal de desacato, inibe a livre manifestação de pensamento, pois a população sente o risco de ser presa ou ter que pagar multas; o medo das sanções penais inibe as críticas construtivas, pois o particular, em face do alto grau de abstração das leis penais de desacato ou do variado juízo de valor que pode fazer o agente público, tem medo de ser punido por qualquer crítica que faça; os agentes públicos devem ser mais tolerantes às críticas, pois representam a vontade de toda sociedade, e devem sofrer maior controle da população; Percebe-se que a referida Comissão buscou ampliar o conteúdo normativo do art. 13 do Pacto San Jose da Costa Rica, porém pode-se ter por infundada tal ampliação por talvez ferir expressamente o mesmo artigo. O Inciso 2 do art. 13 da Convenção fala que não pode haver censura prévia de manifestação de pensamento, ou seja, não pode o Estado, antes do particular expressar-se, proibir sua manifestação, pois isso vai contra um dos princípios que servem de base para qualquer democracia. Porém, afirma o inciso que tal manifestação, caso viole direitos ou reputação de outras pessoas, ou viole a segurança nacional, a ordem pública, saúde ou a moral pública, pode ser responsabilizada posteriormente. Condiciona tal responsabilidade à lei prévia e que tal punição seja necessária para proteger tais bens jurídicos. Assim, o art. 331 do Código Penal, que criminaliza a conduta de desacato à funcionário público, estaria em consonância com o art. 13 do Pacto San Jose da Costa Rica, pois trata-se de responsabilização posterior à conduta do particular, prevista em lei, e que serve para proteger a moral e a ordem pública. Porém, resta saber se tal punição criminal é 34 necessária para assegurar tais direitos, ou se bastaria uma punição administrativa ou cível. Valério Mazzuoli, discorrendo sobre o art. 13 da Convenção Interamericana, afirma que o direito à liberdade de expressão não pode ultrapassar o limite do razoável e violar os direito ao respeito e á reputação, à moral e ordem pública, à saúde e segurança pública. Ou seja, entende que o direito à liberdade de expressão não é absoluto, possui limites que não devem ser ultrapassados sob pena de violar direitos alheios. O mesmo autor diz ainda que tais violações podem ser passíveis de reprimenda via leis de natureza civil, administrativa e, mais importante para este estudo, criminal. Concorda, portanto, o autor que é razoável haver leis penais para limitar a liberdade de expressão (Mazzuoli 2009; p. 140). O autor acima citado critica a falta de definição do que seria “ordem pública”, “moral pública” para efeitos de limitação do direito de liberdade de expressão. Porém, com base no art. 29 da mesma convenção, que aduz que os direitos assegurados na convenção interamericana não podem ser interpretados de forma a permitir que os Estados ou indivíduos suprimam os direitos nesta prevista ou limitem de forma maior do que a norma permite. Assim, pode-se dizer que a liberdade expressão tem limites, porém estes não podem ser de tal monta que acabem com a livre manifestação do pensamento. (Mazzuoli 2009; p. 141). Pode-se dizer que um dos principais assuntos geradores de divergência nos tribunais é justamente o acima exposto, saber qual o limite para a liberdade de expressão, pois sabe-se que tal direito não é absoluto, visto que comumente pode ferir a esfera de direitos de outros. Muito difícil, portanto, a definição prévia de medidas para saber se alguém trespassou ou não o limite da liberdade de manifestação de pensamento, geralmente é uma análise que se faz em cada caso concreto. Fábio Konder Comparato afirma que a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, de 1969, é praticamente uma cópia do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966. De fato, tem-se no art. 19 do referido pacto uma regra semelhante ao escrito na Convenção de 1969. Naquela, da mesma forma que nesta, há a previsão da liberdade de manifestação de pensamento limitada à eventual punição posterior por violação à segurança nacional, ordem, moral e saúde pública (Comparato 2007; p. 367). A 5ª Turma do STJ, citando André de Carvalho Ramos, entendeu ainda que as recomendações da CIDH, na figura do princípio nº 11, assumem força normativa interna. Tal se deu, pois o Brasil, ao aceitar se submeter à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, submeteu-se a toda a Organização dos Estados Americanos, abarcando assim a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão com função semelhante à do MPF em relação às cortes brasileiras (Ramos 2015; p. 234). 35 Conclui André de Carvalho Ramos neste sentido pois a Corte Interamericana, no caso Loayza Tamayo vs peru, sustentou que o princípio da boa-fé, presente no Pacto San José da Costa Rica, gera um dever aos países signatários de tentar ao máximo cumprir as deliberações da Comissão Interamerica de Direitos Humanos. (Ramos 2015; p. 234). Serviu-se deste entendimento o Ministro Relator para legitimar a sua escolha pela interpretação ampliativa do art. 13 da Convenção de 1969 dada pela CIDH. Não significa isso que as decisões da Comissão Interamericana são vinculativas das decisões do STJ, servem apenas de parâmetro interpretativo, pois, ao contrário, estar-se-ia violando toda a sistemática jurisdicional brasileira consagrada no órgãos do judiciário nos art. 102 e seguintes da Constituição Federal de 1988. A Procuradoria Federal dos Direitos Humanos, na figura da Sra. Deborah Duprat entrou no STF com Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental com o objetivo de ver declarada a inconstitucionalidade do art. 331 do Código Penal Brasileiro. Argumenta a procuradora que o crime de desacato impede que o cidadão controle os atos dos agentes públicos, ofende o princípio da igualdade, e que o fato de o Brasil ainda não ter retirado esta conduta do rolde crimes do código penal compromete este país no cenário internacional. Não se sabe até que ponto a negligência do Brasil fere sua imagem no âmbito internacional, isso porque a conduta de desacatar funcionário público é crime em vários países, não só da América, mas também em países da Europa, Ásia, dentre outros. O controle da Administração Pública não resta impedido pelo crime de desacato, tal se dá, por exemplo, por meio dos instrumentos de controle disponíveis como a denúncia anônima aos órgãos competentes, a crítica construtiva, o crime de abuso de autoridade, a existência de vários órgãos responsáveis pela fiscalização da administração pública, dentre outros. Valério Mazzuoli, citando o juiz Benedetto Conforti, avalia que para uma maior uniformização do direito e e proteção dos direitos humanos, necessário se faz que os juízes de direito dos países interpretem e apliquem aos casos concretos que chegam para julgamento o direito internacional na forma como interpretado pelos juízes internacionais, nas cortes internacionais, buscando assim que a jurisdição internacional sirva de parâmetro para o judiciário interno. Mais uma vez a 5ª Turma do STJ busca argumentos para legitimar a sua posição em consonância com os órgãos internacionais, ou seja, busca aquele tribunal julgar conforme julgaram a corte interamericana. 36 Entende o Ministro Relator que a adesão do Brasil ao Pacto San José da Costa Rica traz consigo não só a regra escrita no documento assinado pelo países americanos, mas também as normas que deste derivem, ou seja, o sentido extraído pela Corte Interamericana e pela Comissão Interamericana por meio da interpretação. Traz ainda a 5ª Turma o princípio pro homine, ou seja, a norma deve ser interpretada de forma mais favorável à pessoa humana. Trata-se de critério hermenêutico elencado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos na Opinião Consultiva nº 5/1985. Usa este princípio o Relator para rebater a ideia de que no crime de desacato o sujeito passivo principal é o Estado, não o funcionário público em si. Trata-se portanto de uma inversão de valores, em que a prioridade de proteção é a figura abstrata do Estado, enquanto o funcionário público, quem mais sofre com a agressão, somenet subsidiariamente é tutelado. Outro relevantíssimo argumento que trouxe o Relator é o fato de o juízo de valor feito pelo funcionário público ser muito complexo. Entende o ministro que já está pacificado que reclamação ou crítica à atuação de agente público não configura crime de desacato, porém, até o caso chegar à um juiz para desconfigurar o crime, o constrangimento sofrido pelo particular por culpa do servidor público é por demais danoso á dignidade. Assim, o crime de desacato possui um grau de abstração na sua forma de se cometer que gera no servidor público uma ideia de que qualquer coisa proferida com si, em sua função, que o deixou consternado gera crime. Isso porque é fato notório que ninguém gosta de ser criticado, as pessoas não esperam ser contrariadas, e quando o são muitas vezes não sabem com reagir, partem para o confronto. O STJ, neste julgado, traz o exemplo da Promotora de Justiça que disse ao Corregedor Geral da Procuradoria de Justiça Estadual “nunca ouvi tanta besteira” e foi acusada por crime de desacato, somente tendo a ação sido trancada no STJ, após longo processo nas instâncias ordinárias. Tudo isso serve para demonstrar que dependendo do servidor público, um mero gesto, ou uma crítica boba pode gerar um processo penal e o particular sofrer não a punição da pena, mas a punição da espera agonizante de ter um processo em curso contra si, a punição de ter que comparecer ao fórum, à delegacia ou ao ministério público para dar depoimentos, a punição de ter que contratar advogados caros, a punição de ficar acompanhando, dentre outros danos. 3.3 – DA RECENTE DECISÃO DA 3ª SEÇÃO DO STJ (HC 379.269/MS) No dia 24 de maio de 2017, a 3ª Seção do STJ, decidiu que desacato à 37 funcionário público no exercício de sua função ou em razão dela continua a ser crime, não havendo invalidade desta norma em face do Pacto San Jose da Costa Rica. Trata-se, o caso concreto, de denúncia contra o Sr. Magno Leandro Santos Angélico pelos crimes de dirigir veículo automotor sob influência de álcool, desobediência e desacato. Pugnou a defesa o reconhecimento da absorção do crime de desacato pelo crime de desobediência, sendo tal tese acatada pelo juiz de 1º grau, porém, após recurso do Ministério Público, foi derrubada tal tese. Chegando ao STJ, em 16 de novembro de 2016, o Ministro Relator indeferiu o pedido liminar de aplicação do princípio da consunção sob a alegativa de que não havia urgência para tal decisão e também que qualquer escolha dos juízes deve-se dar em um juízo mais aprofundado de ideias e dos elementos constantes no processo. Após a decisão da 5ª Turma do STJ pela descriminalização do delito de desacato, entenderam os ministros da 3ª Seção do STJ que seria mais prudente para a segurança jurídica, para evitar assim que uma turma decidisse contrária à outra, levar o julgamento do HC 379.269/MS para a 3ª seção, desta forma, o colegiado afetou o recurso, ou seja, trouxe-o para o colegiado julgar. O citado colegiado, composto por 10 Ministro, decidiu pelo não conhecimento do Habeas Corpus, sendo que dois ministros votaram pelo não conhecimento cumulado com concessão de ordem de ofício para excluir da ação penal o crime de desacato, os demais, com exceção de dois que não votaram por motivos diversos (um estava ausente, outro era o presidente do julgamento), votaram pela não conhecimento da referida ação. Assim, dos dez ministros da 3ª seção, seis votaram pela continuação da validade do crime de desacato, e dois votaram pela invalidade. Os argumentos trazidos pelos ministros são relevantíssimos. O Ministro Relator do Acórdão, Sr. Antonio Saldanha Pinheiro, considera o crime em estudo um instrumento a mais de proteção do servidor público contra o que ele chamou de “ofensas sem limites”. Novamente aqui, vê-se a problemática de saber que limites são estes, se seriam limites predispostos, ou se dependeria da análise do caso concreto pelo magistrado, ou pelo servidor público afetado. Percebe-se aqui que o crime de desacato é um meio de coerção que objetiva o bom trabalho do funcionário público, ou seja, segundo o Ministro, o delito em questão serve como instrumento de proteção ao servidor público para que este consiga trabalhar corretamente, sem ter medo de sofrer ofensas. Percebe-se aqui uma prevalência da proteção do Estado em face do particular. Ainda, segundo consta no voto vencedor, o crime de desacato não viola a 38 liberdade de expressão, pois não impede o particular de manifestar seu pensamento, serve apenas como meio de se evitar excessos, para que o cidadão exercite sua liberdade de expressão com civilidade e educação, ou seja, dentro dos limites da urbanidade. Daniel Sarmento, comentando o art. 5, IV, CF/88, diz que a liberdade de expressão não é direito absoluto. Apesar de ser uma dos direitos mais importantes consagrados na Constituição Federal e comumente ter preferência em face a outros direitos, há limites para sua atuação. Assim, quando em conflito com outros direitos fundamentais, deve-se ponderar os interesses baseando-se principalmente no princípio da proporcionalidade. Fala o autor que eventuais abusos ou lesões a direitos de outras pessoas devem ser punidos posteriormente (Sarmento 2013; p. 257). O Ministro Rogerio Schietti Cruz, acompanhando o voto do relator do acórdão, trouxe outros argumentos importantes. O primeiro é que, conforme foi dito na decisão da 5ª Turma sobre
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