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207 VOL 19 No 4 MAR/ABR/MAI 2011 * Editora Paz e Terra, São Paulo, 2010, 336 p. Ditadura e repressão. O autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina Anthony W. Pereira O livro de Anthony Pereira se insere com des- taque na tradição do pensamento social latino- -americano que, desde os anos 1960, vem anali- sando, de forma integrada, os fenômenos do populismo, da dependência, do autoritarismo e da transição para a democracia, incorpo- rando uma dimensão pouco estudada na sua especificidade: os sistemas legais construí- dos pelas ditaduras militares e sua relação com a busca de legitimidade para seu acionar repressivo. Tomando como foco central o caso brasileiro, a obra estabelece dois parâmetros de referência. Em primeiro plano, os regimes do Chile (1973-89) e Argentina (1976-83), com maior aprofundamento na comparação, ampliando posteriormente para uma discussão sobre as medidas de exceção dirigidas a combater os inimigos definidos pelo Estado na Alemanha nazista, na Espanha franquista, no Portugal salazarista e nos Estados Unidos do pós-11 de setembro. Na análise comparativa de Brasil, Chile e Argentina, Pereira estabelece três modali- dades de estratégia jurídica. No primeiro caso, há um grau maior de integração e de consenso entre a justiça civil e a militar, que permite “construir e manter um entendimen- to interorganizacional sobre o significado concreto e a aplicabilidade da lei de segurança nacional” (Pereira, p. 42). Isso também favorecerá a atuação dos advogados e organiza- ções da sociedade civil que defendem presos políticos, com incidência no maior grau de absolvição nos julgamentos comparativamente ao Chile, cuja característica marcante é o predomínio dos tribunais militares separados da justiça civil. Na Argentina, prevaleceu Por Luis Fernando Ayerbe** 25 - Resenha 04 - Anthony Pereira.indd 20725 - Resenha 04 - Anthony Pereira.indd 207 24/02/11 14:4524/02/11 14:45 208 POLÍTICA EXTERNA LIVROS a repressão clandestina, numa guerra suja dirigida a eliminar o inimigo, passando por cima de condicionantes legais. O contraste entre a opção da ditadura argentina com relação aos outros dois casos instiga a pergunta que orienta a pesquisa levada a cabo por Pereira: “Se chegaram ao poder através da força, por que não continuam a exercê-lo, única e exclusivamente, por meio da força, desis- tindo de fingir uma legalidade inexistente?” (p. 283). A resposta a essa indagação conduzirá a uma investigação original que combina um instigante diálogo teórico-metodológico com as pers- pectivas histórico-estrutural da escolha racional e do institucionalismo, e uma exaustiva pesquisa através de bibliografia, documentos e entre- vistas, fazendo emergir uma realidade extremamente complexa sobre as implicações legais da atuação dos militares no Cone Sul. Pereira relativiza o argumento de que o grau de judicialização está vinculado primordialmente ao desafio representado pelas forças da chamada “subversão” em cada país. Remetendo aos estudos do Autori- tarismo Burocrático instigados pela obra de Guillermo O´Donnell, o autor reconhece a existência de um projeto comum de promover a inter- nacionalização das economias latino-americanas sob pressão interven- cionista dos Estados Unidos, cuja concretização através de golpes mili- tares se dá nos casos em que o grau de ativação dos setores populares inviabiliza a via eleitoral. No caso do Brasil, há um grau maior de legi- timação do Estado de exceção em âmbito civil, favorecendo uma implantação do regime com menor intensidade de confronto com os opositores. No Chile, dá-se a derrubada de um governo de esquerda com forte respaldo na sociedade civil, conduzindo a um processo de repressão de amplo espectro, envolvendo prisões, assassinatos e desa- parecimentos. Na Argentina, há um enfrentamento prévio ao golpe com organizações guerrilheiras de alta capacidade de operação, em que a deposição do governo civil representa a eliminação de um escolho ao aprofundamento de uma guerra de extermínio. Essa lógica argumen- tativa é em parte visualizada por Pereira nas abordagens baseadas na escolha racional, em que a percepção de ameaça aos objetivos e inte- resses dos atores que promovem a mudança de regime orientam suas estratégias judiciais. Sem desconsiderar essas duas perspectivas, o autor as considera insu- ficientes para explicar as escolhas de cada regime sobre a forma de lidar com os seus opositores, buscando respostas em abordagens histórico- -institucionais como a de Douglas North. Nos três casos estudados, “as condições herdadas por cada um desses grupos –organizações, procedi- mentos, mentalidades e quadros – eram diferentes e tiveram influência importante sobre as estratégias empregadas por seus dirigentes” (p. 65). Apontando o exemplo da experiência argentina, os atores que pro- movem o golpe em 1976 atribuem ao regime militar de 1966-73 um notório fracasso no enquadramento da militância armada, cujo proces- so judicial foi revertido logo no inicio da volta dos civis com a anistia irrestrita decretada pelo presidente Cámpora. O governo peronista de 25 - Resenha 04 - Anthony Pereira.indd 20825 - Resenha 04 - Anthony Pereira.indd 208 24/02/11 14:4524/02/11 14:45 209 VOL 19 No 4 MAR/ABR/MAI 2011 LIVROS 1973-76 será visto como exemplo da incapacidade do sistema judicial para lidar com as organizações guerrilheiras, cujo fortalecimento será uma marca desse período. A decisão de passar por cima da legalidade no tratamento da oposição será alimentada por essa percepção da his- tória recente e do funcionamento das instituições. O diferente grau de isolamento dos três regimes com relação ao sis- tema civil será também um fator de influência na forma que assume a justiça transicional após a saída dos militares. O Brasil apresenta o menor grau de questionamento da legalidade autoritária em termos de processo dos responsáveis por violação dos direitos humanos, em que a capacidade do regime para conduzir a transição política pesa na hora de rever o passado. No Chile, o processo dos militares e a reforma da legalidade são mais acentuados, embora não na dimensão que adquiriu na Argentina, em que as Forças Armadas, obrigadas a chamar as elei- ções após a derrota na Guerra das Malvinas, passaram a ser processa- das e penalizadas já no primeiro ano do novo governo civil. Buscando testar a capacidade explicativa do esquema analítico utili- zado nos três casos latino-americanos, Pereira amplia o escopo da com- paração, abordando o nível de integração e de consenso entre militares e civis na judicialização da repressão por parte do nazismo alemão, o franquismo espanhol, o salazarismo português e o governo de George W. Bush pós 11/09/2001, especialmente as medidas de exceção deter- minadas pela Lei Patriótica em resposta à Guerra contra o Terrorismo. A comparação mostra uma relação de proximidade entre as expe- riências de Argentina e Alemanha no baixo grau de integração e con- senso, levando à aplicação de uma política de extermínio que passou ao largo das instituições judiciais. Os regimes franquista e pinochetista são parecidos na execução de uma ação inicial ofensiva contra os opositores centrada nos militares, que vai paulatinamente se institucionalizando a partir da consolidação do novo poder. No caso salazarista, prevalece uma repressão dirigida menos ao extermínio do que à contenção dos opositores, com maior nível de integração e consenso entre militares e civis, que o autor associa mais à experiência brasileira. A inclusão dos Estados Unidos, cujo regime político não é compa- rável aos outros seis analisados, busca mostrar a existência de integra- ção e consenso entre militares e civis, incluindo aqui o Parlamento, na aplicação de medidas cujo conteúdo guarda similitude com atos aplica- dos no Cone Sul e na Europa. Pereira destaca três paralelos: 1) “da mesma forma que no Brasil e no Chile, o Executivo norte-americano decretou queuma ‘guerra’ terrorista exigia o uso de um sistema de tri- bunais especiais, controlado pelo Executivo e segregado da justiça civil” (p. 270) para julgamento de não cidadãos sob acusação; 2) estabeleci- mento de regime legal específico para suspeitos de terrorismo, que passam a ser denominados “combatentes inimigos”, no caso dos cida- dãos, passíveis de serem detidos em prisões militares, mesmo sem acusação formal, e “combatentes ilegais”, para os não cidadãos, aos quais não se aplicam as leis internacionais e nacionais para prisioneiros 25 - Resenha 04 - Anthony Pereira.indd 20925 - Resenha 04 - Anthony Pereira.indd 209 24/02/11 14:4524/02/11 14:45 210 POLÍTICA EXTERNA LIVROS ** Luis Fernando Ayerbe é Coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Unesp (IEEI-Unesp). de guerra; 3) como desdobramento do anterior, passa a se justificar e aplicar a tortura para extrair informações dos “combatentes ilegais”. A partir da análise comparativa e do debate com a literatura sobre o tema, Pereira conclui o livro apontando algumas respostas às indaga- ções que motivaram a pesquisa. A decisão de judicializar a repressão, nos casos em que os regimes avaliaram que tinham condições de imple- mentar, caso do Brasil, é motivada pela percepção das vantagens trazi- das pela possibilidade de legitimação legal, diminuindo o perigo de isolamento estratégico que o uso exclusivo da força tende a trazer, caso da Argentina. Para além do direcionamento acadêmico do estudo, Pereira faz um alerta sobre a importância de conhecer os mecanismos utilizados pelos Estados para adaptar as leis à defesa da “Segurança Nacional” de acor- do aos interesses da elite no poder: “Trata-se aqui de uma grave ad vertência feita aos cidadãos das democracias, alertando-os de que também seus direitos podem ser demolidos aos poucos, através de leis, ordens executivas e procedimentos administrativos adotados um de cada vez” (p. 294). 25 - Resenha 04 - Anthony Pereira.indd 21025 - Resenha 04 - Anthony Pereira.indd 210 24/02/11 14:4524/02/11 14:45
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