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Ética e Técnica NO ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO resolução

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1
ETICA
Kleber Duarte
B274e
[ 11891092]
A clínica psicanalítica, onde quer 
que ela seja exercida, põe sempre 
as questões técnicas sob a tutela da 
ética. O clínico, para resistir àquela 
vontade tão humana de fazer as 
coisas acontecerem rapidamente, 
para enfrentar e vencer aquela sen­
sação de que não está fazendo nada, 
deve sustentar-se numa clara visão 
teórica dos processos que assiste e 
isto, no fundo, vem estreitamente 
associado a certas atitudes básicas 
de respeito, atenção, capacidade de 
espera e de participação discreta 
nesses processos. Quanto mais de-
sestruturados e móveis são os exer­
cícios da clínica, quanto menos con­
vencionais — e supostamente sim­
ples — são os "procedimentos" a 
serem "aplicados", mais avulta a 
importância dessa dimensão ética (e 
teórica). O acompanhamento tera­
pêutico é uma dessas situações.
O trabalho de Kleber Duarte 
Barretto é um precioso exemplo do 
que precisa ser considerado e arti­
culado para que o acompanhamen­
to terapêutico de pessoas profun­
damente tomadas pelo sofrimento 
psíquico se mantenha eqüidistante 
tanto de um intervencionismo diri- 
gista onipotente quanto de um mero 
passa-tempo.
N o seu texto, ele consegue 
aproximar o leitor do cotidiano do 
acompanhamento terapêutico com 
tudo que este comporta de desafio,
surpresa, drama e ... hilariedade.
Este cotidiano, contudo, vem sem­
pre articulado a excelentes contra­
pontos teóricos nos quais o pensa­
mento de Donald Winnicott é ex­
posto de forma claríssima e com 
rara precisão. Este contraponto,
que poderia, em mãos menos há­
beis, parecer postiço e impertinen-
te, é facilitado pelo grande achado 
do texto: o de se apoiar nas andan­
ças de D. Quixote e nas suas singu­
lares relações com o escudeiro San- 
cho Pança. Nada mais oportuno 
para servir de espelho às andanças 
pela vasta cidade desta dupla for­
mada pelo acompanhante terapêu­
tico e seu acompanhado, dupla na 
qual, exatamente como na imagi­
nada por Cervantes, ficam muitas 
vezes indistintos os limites entre lou­
cura e sabedoria, entre ingenuida­
de e malícia.
O recurso ao grande romance 
renascentista traz ao texto de Kle- 
ber Barretto um elemento decisivo: 
o humor, a ironia. Sim, porque o 
sofrimento psíquico não pode ser 
enfrentado com o estupor nem ape­
nas com a compaixão lacrimejante; 
é necessária esta extraordinária li­
berdade interior que só um refina­
do senso de humor garante e ex­
pressa. A qui também, uma deter­
minada tonalidade afetiva, uma ati­
tude básica diante do humano e de 
suas mazelas — enfim, uma postu­
ra ética — é a condição para a es­
colha e elaboração de procedimen­
tos técnicos realmente eficazes.
Teoricamente bem concebido, 
impregnado de experiências clínicas 
profundamente verdadeiras e mo- 
bilizantes, literariamente bem estru­
turado e, muitas vezes, engraçadís- 
simo, mas sempre banhado numa 
ironia generosa e libertadora, assim 
é o livro que o prezado leitor tem 
nas mãos. O que mais desejar?
KLEBER D U A R TE B A R R ETTO
Nascido em Itapira-SP. Formado pelo Instituto de Psico­
logia da USP, Mestre e Doutorando em Psicologia Clínica 
pela PUC-SP. Professor da U N IP e responsável pelo estágio 
em Acompanhamento Terapêutico (A T) realizado pelos alu­
nos de graduação em Psicologia, Professor do Centro de Es­
tudos e Pesquisa em Psicanálise da Universidade São Marcos. 
Membro do LET-Laboratório de Estudos da Tr«. icionalida- 
de (PUC-SP).
Luis Cláudio Figueiredo 
(PUC - USP)
F i c h a C a t a l o g r á f i c a
B a r r e t t o , K l e b e r D u a r t e
E t t c a e t é c n i c a n o a c o m p a n h a m e n t o t e r a p ê u t i c o : a n d a n ç a s 
c o m D o m Q u i x o t e c S a n c h o P a n ç a . S ã o P a u l o : U n i m a r c o E d i ­
t o r a , 1 9 9 8 .
2 1 0 p .
B i b l i o g r a f i a
( C a t a l o g a d o p e l o S e r v i ç o d e B i b l i o t e c a d a U n i v e r s i d a d e S ã o M a r c o s )
U n i m a r c o E d i t o r a
A v e n i d a N a z a r é , 9 0 0 
0 4 2 6 2 - 1 0 0 - S ã o P a u l o - S P
t e l . ( 0 * * 1 1 ) 2 7 4 - 5 7 1 1 r . 2 0 6 1 / F a x . ( 0 * * 1 1 ) 6 1 6 3 - 7 3 4 5
E m a i l : u n i m a r c o @ s e r v e r . s m a r c o s . b r 
h o m e p a g e w w w . s m a r c o s . b r
E d i t o r : M a r c e l o P e r i n e
E d i t o r a s s i s t e n t e : L u i z P a u l o R o u a n e t
G r a v u r a d a C a p a : G u s t a v e D o r é
D i a g r a m a ç ã o e c a p a : S i m o n e d e C a s t r o P i n h e i r o M a c h a d o 
R e v i s ã o : M a r e i a R o d r i g u e s N u n e s
C o m i s s ã o E d i t o r i a l
J o r g e C u n h a L i m a , C á s s i o M e s q u i t a B a r r o s , R o b e r t o G i r o l a , 
M y r i a m A u g u s t o d a S i l v a V i l a r t n h o , L u i z G o n z a g a B e r t e l l i , 
L u i z P a u l o R o u a n e t , J o ã o R o d a r t e , P a u l o N a t h a n a e l P e r e i r a d e 
S o u z a , C l a u d i a N e g r ã o B a l b y .
I S B N 8 5 - 8 6 0 2 2 - 1 7 - 9
© U n i m a r c o E d i t o r a - I a E d i ç ã o - 1 9 9 8
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■ 4 G i l b e r t o S a f r a
F i c h a C a t a l o g r á f i c a
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t o r a , 1 9 9 8 .
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A G i l b e r t o S a f r a
S U M A R I O
P r e f á c i o .........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................7
C a p í t u l o I
N o q u a l s e i n t r o d u z o p e r c u r s o s i n u o s o d e s t a c a m i n h a d a .....................................................................1 7
C a p í t u l o I I
O n d e s e c o n t a m a s m o t i v a ç õ e s d e t a m a n h a s a v e n t u r a s ................................................................................................ 2 7
C a p í t u l o I I I
D a i m p o r t â n c i a d a i l u s ã o n a c o n s t i t u i ç ã o d a s u b je t i v i d a d e 
e d a r e a l i d a d e ............................................................................................................................................................................................................................................................................................................3 7
C a p í t u l o I V
N o q u a l s e d i s c u t e m a l g u n s a s p e c t o s d o s o f r i m e n t o h u m a n o .................................................................. 4 7
C a p í t u l o V
D o q u a l s e r e s s a l t a a f u n ç ã o d e h o l d i n g ...................................................................................................................................................................................5 7
C a p í t u l o V I
D a q u e l a f u n ç ã o , m u i t a s v e z e s c o n f u n d i d a c o m a a n t e r i o r 
( h o l d i n g J , p o r c a m i n h a r e m t ã o p r ó x i m a s q u e , c o m u m e n t e ,
n ã o g u a r d a m o s a s d e v i d a s d i s t i n ç õ e s : a c o n t i n ê n c i a .....................................................................................................................6 7
C a p í t u l o V I I
N o q u a l s e t r a t a d a n ã o m e n o s i m p o r t a n t e f u n ç ã o d e
a p r e s e n t a ç ã o d e o b j e t o .................................................................................................................................................................................................................................................................8 7
C a p í t u l o V I I I
N o q u a l s e a b o r d a a f u n ç ã o d e m a n i p u l a ç ã o c o r p o r a l
{ h a n d l i n g ) e o c o n t a t o c o m a s n e c e s s i d a d e s c o r p o r a i s .............................................................................................................. 9 9
C a p í t u l o I X
D o v a l o r d a d e s i l u s ã o , o u a i n d a , d a c a p a c i d a d e d e d i s c r i m i n a ç ã o : 
r e a l i d a d e s u b j e t i v a e r e a l i d a d e c o m p a r t i l h a d a ........................................................................................................................................... 1 0 9
C a p í t u l o X
O n d e s e d i s c u t e a f u n ç ã o d e i n t e r d i ç ã o ........................................................................................................................................................................... 1 1 7
C a p í t u l o X I
D a n ã o m e n o s v a l i o s a f u n ç ã o d e m t e r l o c u ç ã o d o s d e s e j o s 
e a n g ú s t i a s ................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... 1 2 9
C a p í t u l o X I I
D a i n t r i n c a d a e s u t i l f u n ç ã o d e d i s c r i m i n a ç ã o d e c a m p o s
s e m â n t i c o s ..................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... 1 3 5
C a p í t u l o X I I I
N o q u a l s e r e f l e t e s o b r e a f u n ç ã o e s p e c u l a r e a e m e r g ê n c i a d a
e x p e r i ê n c i a e s t é t i c a ............................................................................................................................................................................................................................................................................ 1 4 3
C a p í t u l o X I V
D a q u e l a n ã o m e n o s a p a z i g u a d o r a f u n ç ã o d e a l i v i a r a s
a n s i e d a d e s p e r s e c u t ó n a s ................................................................................................................................................................................................................................................... 1 5 1
C a p í t u l o X V
Q u e t r a t a d a f u n ç ã o d o a c o m p a n h a n t e c o m o m o d e l o
d e i d e n t i f i c a ç ã o ...............................................................................................................................................................................................................................................................................................1 6 3
C a p í t u l o X V I
O n d e s e a d e n t r a n o c a m p o d a t r a n s i c i o n a l i d a d e e s e d i s c u t e 
a p a r t i c i p a ç ã o d a p e s s o a d o t e r a p e u t a n o t r a b a l h o c l í n i c o ......................................................................................... 1 7 1
C a p í t u l o X V I I
E m q u e s e o b s e r v a m a s t r a n s f o r m a ç õ e s o c o r r i d a s e m S a n c h o 
P a n ç a a p a r t i r d a c o n v i v ê n c i a c o m D o m Q u i x o t e e v i c e - v e r s a ; 
e o u t r a s c o n t a s m a s .............................................................................................................................................................................................................................................................................1 8 3
C a p í t u l o X V I I I
D a f u n d a m e n t a ç ã o d o A T c o m o u m c a m p o d o e x p e r i e n c i a r 
e c u j a t é c n i c a p r i v i l e g i a d a d e i n t e r v e n ç ã o é o m a n e j o ........................................................................................................ 1 9 5
C a p i t u l o X I X
Q u e t r a t a d a s r e f e r ê n c i a s b i b l i o g r á f i c a s 2 0 7
P R E F Á C I O
A c o n c e i t u a ç à o e l a b o r a d a p o r W i n n i c o t t s o b r e o b j e t o s e f e n ô m e ­
n o s t r a n s i c i o n a i s d e m a n d a q u e s e t e n h a , n a s i t u a ç ã o c l í n i c a , p r i n c í ­
p i o s e a t i t u d e s d i f e r e n t e s d a q u e l e s t r a d i c i o n a l m e n t e a d o t a d o s n a c l í n i c a 
p s i c a n a l í t i c a .
A s c a r a c t e r í s t i c a s b i o l ó g i c a s e a s p o t e n c i a l i d a d e s p s í q u i c a s d o b e b ê 
f a z e m c o m q u e e l e n e c e s s i t e d e u m t i p o d e c u i d a d o q u e s ó p o d e r á s e r 
m i n i s t r a d o p o r a l g u é m q u e e s t e j a , f r e n t e a e l e e a o s e u d e s e n v o l v i m e n t o , 
e m u m e s t a d o d e d e v o ç ã o e d e r e l a ç ã o e m p á t i c a . O b e b ê t e m , d e s d e o 
i n i c i o d e s u a v i d a , u m a s i n g u l a r i d a d e , q u e s e a p r e s e n t a p e l o s e u r i t m o 
b i o l ó g i c o , s e u p o t e n c i a l m u s c u l a r , p e l a m a n e i r a c o m o o s d i v e r s o s o r g ã o s 
d o s s e n t i d o s s e a p r e s e n t a m e s e d e s e n v o l v e m . E f u n d a m e n t a l q u e e s s a s 
c a r a c t e r í s t i c a s s e j a m c a p t a d a s e i n t e g r a d a s n a m a n e i r a c o m o e l e s e r á c u i ­
d a d o p e l o o u t r o . E v i d e n t e m e n t e , o o u t r o e s t a r á , t a m b é m , p r e s e n t e c o m 
s u a s c a r a c t e r í s t i c a s , c o m s u a h i s t ó r i a , c o m s u a c u l t u r a . O i m p o r t a n t e é 
q u e e s t a r e l a ç ã o s e c o n s t i t u a d e t a l fo r m a q u e p o s s i b i l i t e a o b e b ê e x i s t i r 
c o m o s e r , e n ã o s ó c o m o o r g a n i s m o b i o l ó g i c o . I s t o s i g n i f i c a q u e o 
b e b ê p o d e s e r r e c o n h e c i d o p e l a m ã e e p o d e i n s c r e v e r a s s u a s c a r a c t e ­
r í s t i c a s n a s u b j e t i v i d a d e d a m ã e , o q u e l h e p e r m i t e d e s e n v o l v e r u m 
s e n t i d o d e c o n ü n u i d a d e e u m c e r t o e s ü l o d e s e r .
E s t e s d i n a m i s m o s c o n s t i t u e m u m f e n ô m e n o e m q u e o b e b ê e o 
o u t r o v i v e m e m u m e s t a d o e m q u e n ã o f a z s e n t i d o f a l a r e m s u j e i t o e 
o b j e t o , m a s s i m e m u n i d a d e d e s e r . T e m o s e n t ã o o e s t a b e l e c i m e n t o d a 
s i t u a ç ã o d e i l u s ã o , n a q u a l o q u e é n e c e s s i t a d o é e n c o n t r a d o e a p a r e n t e ­
m e n t e c r i a d o . T r a t a - s e d o n a s c i m e n t o d a r e a l i d a d e s u b j e t i v a , r e s p o n s á v e l 
p e l o e s t a b e l e c i m e n t o d o s e r d o b e b ê n o m u n d o h u m a n o . E i m p o r t a n t e 
e s c l a r e c e r q u e a s i t u a ç ã o d e i l u s ã o a s s i n a l a d a p o r W i n n i c o t t n ã o t e m r e l a ­
ç ã o c o m o c o n c e i t o d e i l u s ã o u t i l i z a d o n a p s i q u i a t r i a . A i l u s ã o n a p s i q u i ­
a t r i a é e n t e n d i d a c o m o u m d i s t ú r b i o p e r c e p t i v o e m q u e u m o b j e t o d a 
r e a l i d a d e é d i s t o r c i d o e v i s t o p e l o i n d i v í d u o d e f o r m a s u b j e t i v a , a o p a s s o 
q u e a i l u s ã o d e W i n n i c o t t c r i a a p o s s i b i l i d a d e d e s e c o n s t i t u i r o s e n t i d o 
m e s m o d e r e a l i d a d e .
7
Klebcr Duarte Barretto
À medida que o bebê prossegue em seu processo maturaciona! 
vai havendo a possibilidade de que ele possa discriminar o si-mesmo 
do outro, o que permite, gradualmente, que ele possa não só existir 
no mundo humano, mas ser com outros humanos. Surgem, então, as
condições para a entrada na realidade compartilhada.
*
E interessante observar que a ilusão vivida no primeiro estágio 
do processo maturacional vai sofrendo metamorfoses. Não é possível 
ir em direção à realidade compartilhada sem que se possa encontrar 
nela algo de si-mesmo. Temos aqui o fenômeno de ilusão a serviço da 
constituição e manutenção da realidade compartilhada, Da mesma 
forma, em determinado momento é possível criar-se uma terceira re­
alidade: a intermediária. Esta terceira realidade chamada por Wínnicott 
de transicional permite que o indivíduo possa suspender o julgamen­
to do que sou eu ou o outro, do dentro e do fora; do passado, do 
presente e do futuro, do imaginado e do acontecido. Abre-se o cam­
po para o jogo, o faz de conta, o era uma vez, e para o repouso ativo. 
O ser do homem cria-se e recria-se neste espaço intermediário em 
formas artísticas através das palavras, imagens, sonoridades, tudo o 
que puder ser utilizado como meio de constituir a sua experiência 
existencial.
O mundo na área intermediária não é só o lugar do encontro 
com o outro, mas também consigo mesmo, com o porvir e com o 
que nunca existirá. Nele temos um espaço privilegiado de interven­
ção em que os diferentes elementos da organização do self podem ser 
trabalhados ou mesmo constituídos. O fato é que nem sempre o paci­
ente tem a possibilidade de funcionar nesta área, o que significa que o 
profissional precisará dispor desta capacidade para trabalhar com os 
aspectos do self de seu paciente. Wínnicott já afirmava que, se o paci­
ente não pode brincar, o primeiro trabalho do analista será ajudá-lo a 
vir a brincar.
Quando trabalhamos dentro da área dos fenômenos transicio- 
nais, podemos nos servir do mundo como campo de jogo. Nesta pers­
pectiva, a rua, os elementos do cotidiano, as situações presenciadas 
em nosso caminhar pela cidade, os objetos da cultura, podem ser ins-
8
trumentos de intervenção para a mobilização e/ou constituição do 
self do paciente, desde que o profissional tenha esta habilidade. Rom­
pe-se o espaço do consultório, ampliando-o, para ir em direção ao 
mundo, o espaço onde o acontecer humano se dá.
Kleber Barretto, através deste trabalho, apresenta de maneira 
consistente e divertida como ocorrem esses processos em sua prática. 
Trata-se de um livro em que o leitor terá a oportunidade de conhecer 
mais profundamente os princípios da clínica winnicottiana, através 
de situações clínicas e o mais interessante: tendo ele mesmo uma ex- 
periência no campo dos fenômenos transicionais. Kleber soube pelo 
uso de um objeto cultural, a obra de Cervantes, trazer o leitor para 
uma situação de ilusão, em que, ao acompanhar as aventuras de Dom 
Quixote e Sancho Pança, ele vai acompanhando as situações teórico- 
clínicas do autor do livro. O leitor é capturado para tornar-se, tam­
bém, um participante das mesmas aventuras clínico-literárias narra­
das ao longo do texto.
Importante assinalar, ainda, que podemos ir percebendo ao lon­
go da leitura como a função de acompanhante terapêutico desloca-se 
pelos participantes da aventura. Em um momento o acompanhante é 
o profissional, em outro, o assim chamado acompanhado, em outros 
ainda, o acompanhante será Dom Quixote ou Sancho Pança. Desta 
maneira, vemos acontecer o fenômeno transicional: a função não é 
possuída por ninguém, ela se dá ali onde ela pode acontecer.
Penso que Kleber traz com este livro uma contribuição funda­
mental, não só para o campo do acompanhamento terapêutico, apre­
sentando um modelo de trabalho nesta área, firmemente conceitua­
do, como também para o campo da psicanálise. Winnicott, com os 
conceitos que formulou, tem obrigado o psicanalista a repensar o seu 
trabalho clínico. O fato é que o analista, na perspectiva winnicottiana, 
intervém não só pela palavra, mas também com os objetos do mun­
do, da cultura. Não só acompanha, mas é acompanhado.
Outro fato que deve ser assinalado é que este livro foi original­
mente a dissertação de mestrado de Kleber. Com isso quero chamar a 
atenção do leitor para um modelo profundamente original de realização
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
9
Kleber Duarte Barretto
de um trabalho acadêmico. O estilo de seu autor, sua experiência de 
vida fazem parte da sua estratégia de investigação e da construção do 
texto acadêmico, sem que o rigor necessário a um trabalho deste por­
te seja perdido.
Kleber costuma citar em conversas com seus amigos um trecho 
de um dos diálogos do filme de Wim Wenders “Asas do Desejo”: 
Para que se possa ser selvagem é preciso ser capaç de manter a seriedade! 
Penso que esta frase sintetiza o estilo de ser de Kleber que o leitor 
poderá saborear ao longo deste livro.
Convido o leitor a montar em seu alazão e cavalgar com nossos 
amigos pelos campos da transicionalidade. Boa Viagem!
São Paulo, 9 de fevereiro de 1998.
Gilberto Safra
10
“M as o que há de louco no m undo, 
eis o que D eus escolheu para confundir os sábios;
o que há de fraco no m undo, 
eis o que D eus escolheu para confundir a força ; 
o que no m undo é sem nome e o que se desprezay
eis o que D eus escolheu.. ”
(1 Cor 1,27-28)
Advertência
Caro leitor, cabe a mim fazer-vos uma advertência 
sobre as histórias que se seguirão e esta vem a ser a seguinte:
Tudo que aqui se diga e que vos cheirar mais a 
confusão...Tudo que aqui se diga e que vos desperte um 
gosto de dogmatismo...Tudo que aqui se diga que vos to­
que de maneira parcial e reducionista...Tudo que vos sal­
tar aos olhos como despropósitos...Tudo isto crediteis na 
conta deste andarilho completamente perdido, que se atre­
veu a relatar andanças por campos que apenas 
vislumbrou...Tudo que aqui se diga a respeito do valoro­
so Dom Quixote dela Mancha e de seu fiel escudeiro 
Sancho Pança, sirva — somente — para aumentar a glória 
e a admiração por ambos conquistadas ao longo dos sécu­
los. Caso em algum momento, caro leitor, tiverdes im­
pressão contrária a esta, favor lembrar-vos de que se tra­
tam de histórias contadas por alguém cujos limites e ína- 
bilidades e insensibilidade, muitas vezes, o cegam para o 
verdadeiro valor dos pequenos grandes gestos...
Viram o homem andar, umas vezes com 
passeando, outras parar, arrimado
sossegada postura, 
à sua lança.
CAPÍTULO
No qual se introduz o percurso sinuoso
desta caminhada
N estas andanças, refletirem os sobre a prática do acom ­panhamento terapêutico (AT)1 utilizando, principalmente, de 
um referencial psicanalítico winnicottiano. As formulações de Win- 
nicott, contribuem bastante, a meu ver, no manejo clínico. Este últi­
mo consistiría nas intervenções, no enquadre ou no cotidiano de um 
sujeito que visam a possibilitar a simbolizaçào de uma questão exis­
tencial e/ou o desenvolvimento de alguma função psíquica. O tema 
do manejo será mais discutido no Capítulo X V III. As formulações 
desse autor também fundamentam teórica e conceitualmente este novo 
procedimento clínico com o qual nos ocuparemos.
A fim de enriquecer as discussões, nos serviremos de exemplos 
clínicos de diversos acompanhantes, de alguns psicanalistas e de quem 
vos escreve. Tenho a honra de comunicar-vos, como bem sabeis, que 
teremos a companhia do memorável cavaleiro andante Dom Quixote de 
la Mancha e de seu fiel escudeiro Sancho Pança. Não deixaremos, é claro, 
suas montarias de lado: o inigualável Rocinante e o inesquecível ruço. 
Eles estarão aqui, para nos auxiliar a explicitar o que se passa na relação 
acompanhante-acompanhado. Eles estarão aqui, acima de tudo, para cum­
prir uma missão das mais importantes, qual seja a de amparar e acompa­
nhar este andarilho completamente perdido.
Além dos pontos mencionados, percorreremos alguns aspec­
tos do desenvolvimento psíquico humano, a partir das funções 
ambientais necessárias para que uma subjetividade se constitua satis­
fatoriamente. Tentei abordá-las dentro de uma perspectiva evolutiva,
Doravante utilizarei AT para designar acompanhamento terapêutico e at para 
acompanhante terapêutico.
17
Klcbcr Duarte Barretto
ou seja, desde as mais básicas e fundamentais até aquelas que se tor­
nam significativas depois que o sujeito já trilhou todo um percurso 
em termos do seu desenvolvimento.
Caro leitor, devo esclarecer-vos que nas páginas que se seguem 
náo encontrareis uma apresentaçào rigorosa e detalhada da história da 
loucura na cultura ocidental. Isto se deve, pelo menos, a dois motivos 
básicos:
O primeiro é que o objeto de estudo deste trabalho nào é a loucu­
ra, mas sim o AT. Talvez, aqueles mais familiarizados com este campo e 
até aqueles que tenham ouvido falar brevemente sobre este procedimen­
to clínico, estejam pensando: mas como escrever sobre AT sem se deter na história 
da loucura? O surgimento do AT não está diretamente ligado ao tratamento das 
psicoses?
A resposta à última pergunta é sim. Nào há como negar esta filiação 
e logo abordaremos este aspecto na breve história do AT. Entretanto, 
temos observado nos últimos anos que este tipo de trabalho vem se am­
pliando cada vez mais, possibilitando intervenções no campo da deficiên­
cia mental, drogadiçào, alcoolismo, depressão pós-parto, casos de aciden­
tados que necessitam de um apoio domiciliar especializado, recuperações 
cirúrgicas, terceira idade e também em casos onde há uma recusa e/ou 
contra-indicação de um trabalho terapêutico no consultório. Assim sen­
do, este livro tem como um de seus objetivos tentar fundamentar esta 
ampliação do campo do AT para além do trabalho em situações de crises 
psicóticas, fato que já ocorre na prática.
O segundo motivo seria a resposta à pergunta levantada anteri­
ormente: mas como escrever sobre o AT sem se deter na história da lou­
cura? Pois é, algo inconcebível se tal assunto nào tivesse sido aborda­
do em outros trabalhos sobre esse campo. Nos dois livros já publica­
dos sobre AT2, o tema da história da loucura foi abordado com mai­
or cuidado. O leitor interessado poderá encontrar nestes livros boas
Susana MAU li R c Silvia R liSN I/K Y (1985) c licjuipc dc AT do Instituto “A 
Casa” (org.) (1991).
18
referências bibliográficas para um aprofundamento no assunto, Quem 
vos escreve também já abordou este tema no artigo “Uma Proposta
V
de Visào Etica para o A T”, apresentado no II Encontro Paulista de 
Acompanhantes Terapêuticos; a partir dos trabalhos desse encontro, 
organizou-se um livro que aguarda publicação pela editora EDUC 
(1998). Assim sendo, para o momento, basta sabermos que a forma 
de interaçào, concepção e/ou tratamento da loucura variou e se trans­
formou ao longo dos séculos. Grosso modo, poderiamos dizer que 
existiu um período em que ela (loucura) fazia parte do convívio soci­
al. Este período foi seguido por aquele em que o confinamento pas­
sou a ser a principal forma de tratamento dos sujeitos ditos “loucos”. 
Ou seja, um período caracterizado por uma grande internação. Hoje 
em dia, estes sujeitos voltam, gradualmente, à convivência cotidiana 
com a família e à comunidade a que pertencem.
Valéria a pena abordar, neste momento, como se constituiu 
historicamente a prática do AT. Ela é herdeira do movimento antipsi- 
quiátnco inglês, da psiquiatria democrática italiana e da psicoterapia 
institucional francesa. Este percurso está bem fundamentado na dis­
sertação de mestrado de Deborah Sereno (USP — 1996). Pelas infor­
mações que disponho, o AT surgiu no início da década de 70 em Bue­
nos Aires. Na Argentina, muitos psicanalistas estiveram ligados aos 
hospitais psiquiátricos. Dessa forma, criaram novas funções para os 
agentes de saúde mental denominadas: auxiliares psiquiátricos e em 
outros lugares, a tendentes terapêuticos. As funções desses agentes fo­
ram o embrião daquilo que mais tarde foi denominado amigo qualifi­
cado e, posteriormente, acompanhante terapêutico. Isto ocorreu à 
medida que o trabalho foi se dando mais na rua, na casa do paciente e 
deixando a instituição psiquiátrica.
O processo acima descrito teve suas influências no Brasil. A 
idéia do auxiliar psiquiátrico passou por Porto Alegre (Clínica Pinei) 
e, por sua vez, chegou às comunidades terapêuticas do Rio de Janei­
ro, principalmente, à Clínica Vila Pinheiros. Porém, no final da déca­
da de 70, com o declínio e fechamento das comunidades terapêuticas, 
os auxiliares psiquiátricos continuaram a ser solicitados por terapeutas 
e familiares que buscavam uma alternativa à internação. Esse traba­
É tica e técnica no acompanhamento terapêutico
19
Klebcr Duarte Barretto
lho foi se solidificando, e hoje, eles se denominam acompanhantes 
psicoterapêuticos.
Faz-se necessário esclarecer que essa atividade, em geral, era 
exercida por estudantes de psicologia, ciências sociais e medicina. Gra­
dualmente, o AT foi se constituindo como um recurso a mais no 
tratamento de pessoas em crises psicóticas. Dada a complexidade dos 
fenômenos dessas crises e o volume de angústia mobilizado, perce­
beu-se que as terapias tradicionais — individual, grupai e familiar, 
além dos remédios — não eram suficientes em determinados casos.
À medida que esta atividade (AT) era cada vez mais requisita­
da, foi havendo uma especialização do acompanhante terapêutico. 
Não só estudantes, mas também psicólogos, terapeutas ocupacionais 
e outros profissionais passaram a trabalhar como acompanhantes.
O surgimento do acompanhamento terapêutico em São Paulo 
teve características um pouco diferentes, ao menos no que diz respei­
to à equipe de AT do Instituto “A Casa”.
A idéia foi trazida por uma psicanalista argentina que fazia par­
te do grupo que implantou o hospital-dia em 1979. No entanto, essa 
função só foi utilizada em 1981 com a denominação de amigo qualifi­
cado. Após alguns anos, observou-se que o termo acompanhante 
terapêutico se adequavamelhor àquilo que estava sendo feito, além 
de evitar algumas confusões. O termo acompanhamento expressava 
uma função que implicava uma ação, uma intervenção junto a um 
outro sujeito, sendo portanto, mais adequado à tarefa que se estava 
realizando. Por outro lado, o uso da palavra “amigo” gerava confu­
sões, na medida em que dificultava a discriminação e a caracterização 
do vínculo entre paciente e esse profissional.
Vivemos um período no qual o tratamento, o cuidado para 
com o outro ganha dimensões muito próximas do dia-a-dia, conside­
rando as potencialidades terapêuticas das atividades e vivências do
*
sujeito. E também com o objetivo de fundamentar esta visão que nos 
propusemos a relatar essas andanças.
20
E tica e técnica no acompanhamento terapêutico
Partiremos, agora, para outras histórias não menos importan­
tes e interessantes. Cabe a mim a honra de apresentar-vos uma pessoa 
da mais alta estima, apesar de que provavelmente o conheceis ou com 
certeza já tendes ouvido falar dele. Pessoa a quem devo mui respeito 
pelos feitos perpetrados em prol dos mais necessitados, os quais lhe 
cobraram fama mundial:
Na região de la Mancha vivia um fidalgo por volta dos seus 50
anos. “Era rijo de compleição, seco de carnes, enxuto de rostoy madrugador; e amigo 
da caça...
#
...E pois de saber que este fidalgo, nos intervalos que tinha de ócio (que eram os mais 
do ano), se dava a ler livros de cavalarias, com tanta afeição e gosto, que se esqueceu 
quase de todo do exercício da caça, e até da administração dos seus bens; e a tanto 
chegou a sua curiosidade e desatino neste ponto, que vendeu muitos trechos de terra de 
semeadura para comprar livros de cavalarias que ler, com o que juntou em casa 
quantos pôde apanhar daquele gênero.
...E m suma, tanto n a q u e la s le itu ra s s e e n fra s e o u , que passava as noites de 
claro em claro e os dias de escuro em escuro, e assim, do pouco dormir e do muito ler, 
se lhe s e c o u o c é r e b r o , de maneira que c h e g o u a p e r d e r o ju íz o . E n c h e u - 
s e - lh c a fa n ta sia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como 
pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e disparates 
impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade toda aquela 
máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia história mais certa no 
mundo.
A fin a i, rematado já de todo o juzjo , deu no mais estranho pensamento em que nunca 
jam ais caiu louco algum do mundo, e fo i: parecer-lhe convinhável e necessário, assim 
para aumento de sua honra própria, como para proveito da república, fa^er-se cava­
leiro andante, e ir-se p or todo o mundo, com as suas armas e cavalo, à cata de 
aventuras, e exercitar-se em tudo em que tinha lido se exercitavam os da andante 
cavalaria, desfazendo todo o gênero de agravos, e pondo-se em ocasiões e perigos, 
donde, levando-os a cabo, cobrasse perpétuo nome e fam a. ” (Cervantes - 1605; pp. 
29 e 30; gnfo nosso)
21
Klcbcr Duarte Barretto
Este trecho apresenta algumas concepções de loucura que exis­
tiam na época em que tudo se passou: perda do juízo face a uma 
erupção imaginativa que, por sua vez, foi causada pela desidratação 
do cérebro do fidalgo, fruto do excesso de leitura. Acreditava-se, nes­
ta época, que a leitura de romances podia ser muito prejudicial à saú­
de das pessoas, especialmente das donzelas. Todas aquelas fantasias 
românticas nào haveríam de fazer bem aos miolos, pois desconectando- 
o da vida prática, colocava o sujeito em um mundo irreal.
Sabe-se que a loucura sempre fez parte da experiência humana e 
a ela (loucura) sempre se atribuíram significados. Esta significação 
oscilou — e ainda oscila — de acordo com a concepção que se tem 
deste fenômeno. Existem diferentes perspectivas que divergem tanto 
naquilo que consideram formas de loucura, suas origens e caracterís­
ticas, quanto em relação à própria noção de loucura enquanto doen- 
ça.
Era uma vez... em outro lado do mundo, por volta de 1910, na 
região de Itapira, cidade do interior paulista, nas vizinhanças de Mogi- 
Mirim, Amparo, Lindóia e Jacutinga; existia uma família que morava em 
um sítio. Eram pai, mãe, filhos e filhas. A mãe dera à luz a mais uma 
criança. Certo dia, seus familiares tiveram um grande choque ao vê-la 
segurando o bebê em cima do poço d’água, ameaçando jogá-lo buraco 
abaixo. A mãe havia enlouquecido, mas os familiares puderam interceder 
e salvar a criança. O grande drama que se instalou na família foi de 
que maneira poderiam cuidar da esposa e da mãe. O único hospital 
que tratava desse tipo de situação, na época, era o Juquerí em Franco 
da Rocha. O pai e outros parentes achavam que em Franco da Rocha 
ela ficaria muito longe da família, mas a preocupação maior era que 
ela fosse maltratada ou recebesse um tratamento desumano. A saída 
encontrada para o dilema foi mantê-la em casa, ou melhor, devido 
aos rompantes de agressividade, decidiu-se construir um aposento 
próximo à casa. Esse aposento simples não era muito grande, com 
janela e porta pequenos. E foi nesse aposento-cela que ela viveu o 
resto de sua vida, cerca de 26 anos. A filha mais velha cuidava da mãe 
nos tratos alimentares e de higiene pessoal como banho, cuidado com
22
É tica e técnica no acompanhamento terapêutico
os cabelos e tudo mais. Esse aposento-cela, anos após a morte de sua 
moradora, deu lugar, por iniciativa da filha mais velha, a uma capeiinha 
com imagem de Nossa Senhora, santinhos e florezinhas de plástico. 
Uma capeiinha como tantas outras... Uma capeiinha dedicada a Ana 
Carolina de Oliveira, minha bisavó por parte de pai.
Ainda nas cercanias de Itapira, nos começos deste século, um 
grupo de pessoas, inspirado pela caridade espírita-crista, preocupava- 
se com as condições em que viviam as pessoas que eles denominavam 
enfermos mentais. Eles (enfermos) viviam como indigentes pela cida­
de, alguns permaneciam presos ou amarrados na casa de seus familia­
res, como minha bisavó; e, os mais perigosos ou incomodativos eram 
levados para as delegacias. Devido aos maus tratos e às condições pre­
cárias, estes logo acabavam morrendo. Aquele grupo de pessoas 
caridosas se condoía das condições subhumanas a que eram submeti­
dos os enfermos e, movido pelo ideal da caridade cristã, via a necessi­
dade de se ter um local adequado para abrigar e cuidar daquele tipo de 
sofrimento. O grupo tentou durante anos dar corpo a esse ideal, mas 
as dificuldades eram inúmeras. Até que um casal resolveu doar um 
pequeno pedaço de terra para se iniciarem as construções. Enquanto 
isso, esse mesmo casal, que possuía família numerosa, dispôs-se a re­
ceber uma enferma em uma das casinhas que possuíam na chácara 
onde moravam. Estas casinhas eram destinadas a algumas famílias ca­
rentes que não tinham onde morar. A esposa do casal tivera a experi­
ência de cuidar da própria mãe que adoeceu (mentalmente) quando já 
estava velhinha, o que a “habilitava” a cuidar da enferma mental que 
chegara recentemente.
O grupo se transformou e se ampliou, assim como aquilo que 
começou nos fundos de uma chácara, somados aos esforços e trabalhos 
de inúmeras pessoas deu origem ao que hoje leva o nome de Fundação 
Espírita Instituto “Américo Bairral”. Nome dado em homenagem a um 
dos idealizadores do projeto, que desencarnou, como dizem os espíritas, 
antes que o sonho tomasse corpo. O casal que cedeu parte da proprieda­
de inicial e que mais tarde iria empenhar todos seus esforços e patrimônio
23
Kleber Duarte Barrctto
na consolidação daquele ideal, chamava-se Onofre Batista e Gracinda 
Batista.
Onofre e Gracinda, juntamente com a maior parte de seus fi­
lhos, trabalharam muito para que um simples albergue se transfor­
masse em um hospital. Na verdade, as circunstâncias fizeram com 
que se transformasse em um grande hospital. Onofre era um dos en­
carregados de levantar fundos para a Instituição, o que fazia através 
de suas viagens como vendedor. Em trocados donativos era, no mais 
das vezes, obrigado a prometer uma ou mais vagas no que já ia se 
tornando um sanatório. Eis que, com o tempo, começou chegar a 
Itapira um grande fluxo de pessoas enfermas mentais. Pessoas que, na 
maior parte das vezes, eram abandonadas na cidade pela família ou 
chegavam de trem sem passagem de volta e apenas com a roupa do 
corpo.
Onofre e Gracinda foram meus bisavós maternos que também 
não cheguei a conhecer pessoalmente. Pais de minha avó. Seu esposo, 
meu avô, mudou-se de Salto-SP para Itapira logo após o casamento e 
juntos trabalharam no hospital por muitos anos. Ela como enfermeira e 
ele como encarregado geral. Mais tarde, vieram a trabalhar, outros tantos 
anos, como enfermeiros na Clínica de Repouso Santa Fé, localizada na 
mesma Itapira. No início, meus avós moraram por muitos anos em uma 
casinha que fazia parte do hospital e foi nessa casinha que minha mãe 
menina e minha tia, ainda menor, passaram a infância.
Mamãe menina cresceu e no colégio se apaixonou pelo profes­
sor de Educação Física, uns pares de anos mais velho e recém regresso 
à cidade. Digo recém regresso, porque esse jovem cheio de ideais era 
filho e fruto da mesma terra e ali retornara para plantar as sementes 
de seus sonhos: constituir família e difundir a prática desportiva na 
comunidade. Papai também correspondia com a mesma paixão àque­
la colegial, o que depois de alguns anos de namoro resultou em casa­
mento. Papai, dinâmico e idealista, além do trabalho no Ginásio e na 
organização de atividades desportivas comunitárias, resolveu implan­
tar um trabalho de esportes no Bairral — maneira como o hospital é 
conhecido na região. Esse trabalho com esportes para enfermos men­
24
tais durou cerca de vinte anos, sendo que boa parte deie íoi realizado 
na Clínica Santa Fé. Nos hospitais aplicou a mesma filosofia de traba­
lho do Ginásio: atividades esportivas variadas, jogos amistosos, olim­
píadas, passeios campestres e acampamentos.
Papai e mamàe tiveram quatro filhos: uma menininha; depois 
de dois anos, nasceu um menininho; e, passando um ano e poucos 
meses veio ao mundo outro menininho; e , finalmente, onze anos 
mais tarde tiveram outro menininho. Assim sendo, aquele que aqui 
rabisca é o menininho que por onze anos foi o sanduíche, o do meio.
Esse menininho sanduíche que, — pensando agora, talvez nào 
fosse à toa - em tenra idade quando perguntado: “o que você vai ser 
quando crescer?”; sempre respondia: “salchicha”, para a diversão e 
deleite dos adultos presentes. Pois bem, esse menininho desde cedo 
era dado às aventuras, às incursões e excursões exploratórias por esse 
mundao. Papai também era dado às aventuras campestres. Ah!, meus 
avós maternos, de quando em quando, hospedavam pacientes ou ex- 
pacientes na própria casa, como forma de auxiliar nas suas recupera­
ções. Um deles, o Dito, tão próximo ficou que passou a fazer parte da 
família. Certo dia, ele contou para esse menininho sobre os macaqui­
nhos que viviam na Rua da Estação, a principal rua comercial da 
cidade. Essas histórias encheram-me a fantasia de curiosidade e vonta­
de de visitar sítio de tão rica vida selvagem a algumas quadras de onde 
minha família morava. E , assim foi que, no dia seguinte, logo pela 
manhãzinha, esse menininho desperta o irmãozinho e ambos dão vazão 
sem serem percebidos e ganham os campos da rua. Iam entusiasma­
dos ante a possibilidade de encontrar ao menos um macaquinho que 
fosse; quando, próximos à zoológica rua, foram avistados por seus 
avós que iam para a Clínica Santa Fé trabalhar. Estes levaram um susto e 
logo trataram de saber o que fazíamos ali tão cedo e tão sozinhos e tão 
longe de casa para crianças tão pequenas. Foi assim, caro leitor, que a 
diligência dos macaquinhos ficou interrompida, a apenas alguns metros 
de sítio tão interessante quanto fantástico.
Graças aos bons ventos da fortuna, melhor desfecho teve a aven­
tura dos sapinhos, uns dois anos mais tarde. É isso mesmo, os sapinhos
E tica e técnica no acompanhamento terapêutico
25
Klcbcr Duarte Barretto
que a Natureza, na estação em que gosta de dar banho na terra e que 
os adultos chamam “das chuvas”; a Natureza presenteou a cidade, ou 
talvez apenas a região onde moravamos, com uma chuva de sapinhos. 
Choveram tantos sapinhos como nunca dantes havia chovido e como 
nunca se viu em nenhum dos anos seguintes. Uma verdadeira infestação 
de sapinhos pelas ruas e calçadas. Uma festa para nós, crianças, essa 
chuva de sapinhos. E assim foi que, mais cedo do que na campanha 
dos macaquinhos, acordei meu írmàozinho e nos munimos de saqui­
nhos plásticos para a coleta dos sapinhos. Alcançamos a rua sem que 
ninguém nos percebesse e partimos em direção à aventura. Nova­
mente, nossos avós nos encontraram a caminho do trabalho, só que 
desta vez, já estávamos há um bom tempo em campo e os saquinhos 
repletos daqueles serezinhos vindos do céu.
A vida desse menininho foi marcada por essas e outras andanças. 
Algumas outras tereis a oportunidade, caro leitor, de compartilhar caso 
prossigais nessa caminhada. Assim, despeço-me com a esperança de que 
possais juntar-vos a nós — Dom Quixote e Sancho Pança e outros mais - 
nessas aventuras.
26
Capítulo
II
Onde se contam as motivações de
tamanhas aventuras
N este meio tempo, solicitou D om Q u ixo te a um lavrador seu vizinho, homem de bem ...e de pouco sal na moleira; tanto em suma lhe disse, tanto lhe 
martelou, que o pobre se determinou a sair com ele, servindo-lhe de escudeiro. Di%ia- 
Ihe entre outras cousas Dom Q uixote que se dispusesse a acompanhá-lo de boa vontade, 
porque bem podia dar o acaso que do p é para a mâo ganhasse alguma ilha, e o 
deixasse p or governador dela. Com estas promessas e outras quejandas, Sancho Pança, 
que assim se chamava o lavrador, deixou mulher e filhos, e se assoldadou p or escudeiro 
do fidalgo.” (Cervantes - 1605; p. 53)
A promessa de Dom Quixote de tornar Sancho Pança governa­
dor de uma ilha parece ter sido a grande motivação para se juntar ao 
fidalgo. O desejo de se ver transformado de lavrador em governador 
significava uma mudança profunda na vida de Sancho: poder, prestí­
gio, riqueza e outras coisas do gênero. Talvez a intenção de se escudeirar 
não possa ser reduzida simplesmente à ganância, sem cairmos em gran­
de injustiça, pois Sancho Pança buscava dar melhores condições de 
vida à sua família; e, assim, abraçou a oportunidade oferecida por 
Dom Quixote, mesmo que isso implicasse em se afastar de seus entes 
queridos. Haveriamos de considerar também como um fator moti- 
vante a promessa de aventura e sonho que semeava a esperança de 
romper as cadeias de uma vida comum e previsível.
O amo já havia partido uma vez de sua aldeia, mas retornou, a 
conselho de um hospedeiro, a fim de melhor prover-se para suas andanças: 
dinheiro e gêneros alimentícios. Dom Quixote pensou, entào, que seria 
interessante ter um escudeiro por companhia, assim como lera nos ro­
mances de cavalaria em que os cavaleiros andantes estavam sempre acom­
panhados por um ajudante de ordens.
2 7
Kleber Duarte Barrctto
Minha grande motivação para me tornar um acompanhante 
terapêutico (ai) era a possibilidade de viver as aventuras que imagina­
va existirem nessa atividade. Imbuído principalmente desse espírito 
aventureiro, alistei-me para as fileiras do AT. Ouvi falar sobre o AT 
quando ainda cursava a faculdade de Psicologia. Achei interessante 
este tipo de atividade, embora as pessoas com quem conversava ques­
tionassem sua validade, pois, em sua opinião, esta função assemelha­
va-se à de “babá de psicóticos”1. Entretanto, algumas histórias conta­
das a respeito desse trabalho despertaram-me o desejo de experienciar 
esse tipo de relação terapêutica com um sujeito.
Além da promessa de aventuras, outros motivos despertaram 
meu interesse. Em primeiro lugar, desde que decidi estudar Psicolo­
gia, tinha vontade de trabalhar com loucura. Sabia que somente uma 
experiência acadêmica não me satisfaria. Então, trabalharcom a lou­
cura era algo que desejava e considerava importante, pois imaginava 
que esse tipo de trabalho poderia me proporcionar um conhecimen­
to mais profundo do psiquismo humano e me colocaria mais em con­
tato com a singularidade do sujeito dito “louco”. Não podemos per­
der de vista a tradição familiar de quem vos escreve, no que tange ao 
trato e ao retrato da loucura.
Lembro-me de um sonho que tive antes de começar a acompa­
nhar: “Estava acompanhando um rapaz. Um pessoal se reuniu para assis­
tir a um filme em seu apartamento. De repente, percebo que ele desapare­
ceu. Começo a procurá-lo desesperadamente. Entro no quarto dos pais e 
vejo que muitas coisas haviam sido quebradas. Revisto os armários e 
nada. No banheiro: coisas jogadas pelo chão, talco espalhado por todo 
lugar, espelho quebrado. Um verdadeiro estrago. Quando finalmente o 
encontro, dou-lhe uma gravata (chave de braço) e levo-o para a sala onde 
seria exibido o filme. Ao chegar à sala, vejo que tem muita gente e fico 
totalmente sem graça de estar segurando aquele cara pelo pescoço. Rapi­
damente solto-o.”
Ksta cjuestão da comparação do at com “babá dc psicóticos” c “enfermeiro de 
luxo” é discutida em BARRKTTO (1996).
28
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Et?ca e técnica no acompanhamento terapêutico
Esse sonho revela algumas questões que me mobilizavam na 
época: um temor de enlouquecer através de uma cnse de destrutividade; 
como empregar a agressividade para lidar com uma situação; submis­
são à opinião grupai, entre outras. Revendo anotações pessoais e tra­
balhos escritos naquela época, percebo que atravessava um período 
de vida em que se colocava mais fortemente a questão da agressividade/ 
destrutividade. Como lidar com elas? Como integrá-las às minhas 
experiências? Como utilizá-las na transformação do meu dia-a-dia? 
De certa forma, aquilo que me motivava ao AT talvez tivesse ecos na 
motivação de Sancho Pança, pois também ansiava por conseguir al­
gum governo sobre essa ilha vulcânica (dimensão da agressividade e 
da destrutividade) que me habitava; e que, por inúmeros motivos, 
tinha de ficar afastada. Qual a possibilidade de integrá-la ao território 
de meu ser sem colocar em risco minha integridade, minha sanidade, 
assim como meus vínculos sociais?
Outro motivo da busca por essa atividade foi o fato do AT ser 
uma prática pouco conceituada. Havia apenas uma publicação sobre 
o assunto na época. A necessidade de sistematizar as experiências em 
termos teóricos interessava-me também, já que parecia tratar-se de 
um campo de trabalho aberto para investigações.
A dimensão de lazer que estava conectada ao trabalho em AT 
me interessou em um primeiro momento. Um trabalho que implica­
va aparentemente em realizar um programa: ir ao cinema, a um bar , 
a um show ou talvez a uma viagem.
Foi com estas expectativas, que fui selecionado para trabalhar 
na equipe de AT do Instituto C<A Casa”, em Maio de 1988.
Uma história de muitas alegrias transformadas em euforia, 
muitas dificuldades transformadas em impotência, dores transforma­
das em sofrimento insuportável e grande vazio. Experiências difíceis 
que desaguaram nesse trabalho que agora vos apresento.
Foram necessários alguns anos de experiência como at e como 
paciente em análise, para que realmente pudesse sentir aquela ativida­
de como trabalho. Alguns anos de trabalho, para que pudesse percebê-
29
Klcbcr Duarte Barretto
lo como terapêutico. Digo terapêutico de mào-dupla, pois sempre 
percebi o quanto o acompanhamento era terapêutico para mim, na 
medida em que tocava em pontos desconhecidos e/ou reprimidos de 
minha subjetividade confrontando-me com minha própria loucura; e 
assim, incrementando o trabalho analítico.
Demorei a me reconhecer um terapeuta. Observava os colegas, 
com mais anos de trabalho e com mais experiência em AT, denomi­
nando-se terapeutas e eu os invejava, pois aquela ainda nào era a mi­
nha vivência.
Penso que se reconhecer terapeuta, ou melhor, reconhecer-se 
trabalhando é uma tarefa bastante árdua, que cada a t tem de empreen­
der. Tarefa árdua, porque no acompanhamento nào existem tantos 
elementos externos invariáveis que se constituam em um enquadre 
claro e definido para se apoiar e ter uma garantia, mesmo que aparen­
te, de que se trata de um trabalho. Estou me referindo às questões de 
enquadre em seus aspectos sensoriais: sala de atendimento, encontro 
com hora marcada, tempo limitado, pagamento, por exemplo. Ape­
sar de os três últimos aspectos estarem presentes na prática do AT, 
nào me davam a impressão de um trabalho. Nessa atividade, nào se 
está em uma sala de consultório ou em uma instituição, mas sim, 
geralmente, assistindo à televisão ou a um filme no cinema, batendo 
papo em um bar ou no quarto do paciente, ou ainda com seus famili­
ares. Habita-se e transita-se pelo espaço privado (casa do paciente) e 
público o tempo todo. Espaços profundamente marcados pela di­
mensão do lazer, do descanso e também do conflito.
O AT, aparentemente, oferece um limite muito tênue entre 
trabalho e lazer. As fronteiras parecem ser praticamente inexistentes. 
No princípio de minha experiência como acompanhante, sentia que 
essas separações nào existiam, o que apesar de dar um “grande bara­
to”, também gerava seu montante de angústia.
Dessa forma, sào incontáveis as situações e momentos em que 
surgiram a dúvida: será que estou trabalhando? Será que isso é um 
trabalho sério? Esta é minha própria loucura tomando conta de tudo, 
ou estou podendo lidar com ela e a do outro?
30
E ííc a e técnica no acompanhamento terapêutico
Quando comecei a trabalhar como acompanhante terapêutico, 
o mais importante para mim era poder estar junto a uma pessoa que 
tivera — ou estivesse atravessando — uma profunda crise psíquica. 
Nào me interessava saber definir psicose, neurose, loucura, ou como 
classificar as manifestações da pessoa acompanhada dentro de um qua­
dro patológico. Sentia um incômodo em relação a essas classificações, 
pois, geralmente, quando as pessoas se utilizam das categorias neuró­
tico e psicótico para entender o funcionamento do paciente, elas se 
colocam dentro do funcionamento neurótico diferenciando-se do fun­
cionamento psicótico. Tenho a impressão de que essa maneira de or­
ganizar os fenômenos clínicos ou a existência humana coloca uma 
distância enorme entre um funcionamento e outro. Distância que me 
parece ainda maior quando se fala em estruturas neurótica e psicótica. 
As vezes, por nào me identificar com esse tipo de abordagem, pensei 
que discordasse por ser louco — senão de todo, pelo menos em parte. 
Ao longo do tempo, fui percebendo que não era o único que tinha 
essa impressão e pude encontrar interlocutores (escritores, psicanalis­
tas e outros) que haviam organizado essas questões de uma maneira 
bastante distinta, uma forma diferente de compreender o ser huma­
no, a vida... Esse encontro de outros interlocutores proporcionou- 
me uma experiência de estar acompanhado, de ser compreendido.
Inicialmente, o próprio fato de estarmos, muitas vezes, envol­
vidos (acompanhado e eu) em situações bastante angustiantes, já me 
absonda toda atenção. Lidar com essas situações representava um gran­
de desafio. Eis um exemplo:
Milton discutia furiosamente com sua mãe por ela nào ter pas­
sado a calça comprida que ele queria usar. Exigia que fosse passada 
naquele exato momento, nào podia esperar; porém, sua mãe e a em­
pregada estavam ocupadas com o almoço. O clima ia ficando cada vez 
mais tenso, até que propus a ele que nós mesmos passássemos a calça. 
Ele disse que nào sabia passar roupa. Comentei que poderia mostrar 
a ele como se fazia. Através dessa intervenção tão simples, foi possí­
vel notar uma mudança imediata em seu humor e ele demonstrou 
toda uma satisfação enquanto passávamos sua calça.
31
Klebcr Duarte Barretto
Essa e inúmeras outras situações que enfrentei e enfrento na 
experiência de acompanhar mobilizam angústias em todos os partici­
pantes presentes nessas ocasiões e exigem do a t alguma intervenção.Outro aspecto de minha experiência como acompanhante, que 
me chamou a atenção, foi perceber que não só as angústias eram com­
partilhadas mas também outros tipos de emoções: momentos de ale­
gria, tristeza e ternura, por exemplo.
Com o passar do tempo, também fui acumulando experiências 
no acompanhamento que tinham a ver com satisfações e prazeres, 
que me levaram a perceber a loucura como expressão de liberdade. 
Enlouquecer implicava em ganho de liberdade interna: fazer coisas 
inusitadas, usar os espaços públicos de maneira incomum, falar e ima­
ginar absurdos. Comecei então a idealizar a loucura, acreditava ser 
essa a única saída de uma vida achatada, ordenada e previsível, que 
muitas vezes cultivamos pessoal e/ou socialmente. Acredito que as 
aventuras que buscava através do acompanhamento estariam relacio­
nadas ao viver “mais louco” do cotidiano, como única alternativa à 
vivência de futilidade e previsibilidade. Gradualmente, fui perceben­
do o recorte parcial que estava fazendo, tanto da qualidade de vida 
dos cidadãos comuns quanto daquele dito louco. Em relação a este, 
por não levar em conta como todo o sofrimento e até desespero com 
os quais ele se depara, são muitas vezes intensificados pelas maneiras 
pouco adequadas através das quais busca lidar com a dor psíquica. 
Por outro lado, em relação aos cidadãos comuns, não considerei aque­
les que desfrutam a vida de maneira criativa e imaginativa, e têm toda 
uma alegria em viver.
Questionei-me, também, sobre o benefício da internação como 
intervenção terapêutica. No início, acreditava que seria suficiente, para 
dar conta da crise, um tratamento que envolvesse hospital-dia, tera­
pia (familiar, grupai e individual), terapia ocupacional, AT e outros 
recursos mais. Achava a internação algo violento e desumanizador. 
Com o passar do tempo, pude perceber que a internação, em deter­
minados momentos e tipos de crise, representava um cuidado para
p
com o paciente e sua família. E claro que havia uma indicação compa­
32
E.t/ca e técnica no acompanhamento terapêutico
tível com o contexto e o momento da crise do paciente. Percebí que 
recorrer à internação poderia propiciar ao paciente e à sua família 
uma intervenção que apontasse para um limite, mas que, também, 
oferecesse um acolhimento e holding. Essas funções são importantes, 
pois possibilitam uma integração mínima e ajudam a evitar que o 
paciente e/ou membros da família mergulhem em um estado que 
Winnicott chamou de angústia catastrófica. Em alguns casos, o AT 
pode funcionar como facilitador na transição de uma internação em 
uma clínica para o trabalho em hospital-dia, por exemplo. Pude ir 
percebendo que a medicação é mais um fator importante no trata­
mento. Em dosagens adequadas, o remédio pode ajudar o paciente a 
viver um nível suportável de angústia, que lhe permite interagir mi­
nimamente consigo — seus pensamentos, emoções, sentimentos e 
pulsões — e com as outras pessoas.
Caro leitor, deixemos essas ilusões e desilusões de quem vos 
escreve para mergulharmos em outras de maior importância.
33
Janto lhe martelou, que o pobre rústico sc determinou a sair com ele.
Capítulo
I I I
Da importância da ilusão na constituição da
subjetividade e da realidade
A companhemos, agora, Dom Quixote, em sua defesa da leitura das histórias da Cavalaria Andante e da importância da imaginação:
‘N ão quero alargar-me mais nisto, pois daqui se pode coligir que qualquer parte que 
se leia de qualquer história de cavaleiro andante há de causar gosto e maravilha a 
quem a ler. Creia-me Nossa M ercê, e, como já lhe disse, le ia e s t e s liv ro s , e v erá 
c o m o lh e d e s te rra m a m e la n c o lia e lh e m e lh o ra m a c o n d iç ã o , s e 
c a s o a tiv er m á E u de mim sei que depois de me ter metido a cavaleiro andante, 
sou bravo, comedido, liberal\ bem-criado, generoso, cortês, auda% brando, paciente, 
sofredor de trabalhos, de prisões, de encantamentos, e ainda que há tão pouco tempo 
me vi metido dentro de uma jaula , como se fosse doido, espero, pelo valor de meu 
braço, ser dentro de poucos dias rei de algum reino, onde possa mostrar o liberal 
agradecimento que o meu peito encerra ...”. (Cervantes - 1605, p. 291; grifo 
nosso).
Dom Quixote não tem dúvida do bem que lhe fizeram as leitu­
ras, e o ter-se tornado cavaleiro andante deu novo sentido à sua vida. 
Ele defende que a leitura dos romances de cavalaria tem um papel 
importante na transformação do humor das pessoas que os leem. Po­
deriamos dizer, então, que a imaginação seria capaz de transformar
um humor melancólico em um sentimento de maior vitalidade. Isso 
parece ser ainda mais marcante, quando o amo decidiu tornar-se mem­
bro da Andante Cavalaria. As características e o refinamento desses 
cavaleiros passam a fazer parte da vida de Dom Quixote. Há uma 
verdadeira mutação a partir do momento em que o velho fidalgo 
decide adotar os princípios desta tão honrada Ordem, como parâmetro
37
Klcber Duarte Barretto
para sua existência. Trata-se de uma nova organização de se/f4 e uma 
nova maneira de estar no mundo.
Segundo Winnicott, o ser humano nasce com um potencial
*
para alucinação. E graças a esse potencial alucinatório que o bebê 
criará sua mãe, quando é possível a ela colocar-se ali onde ele a alucinou. 
Isso quer dizer que, se a mãe é capaz de compreender as necessidades 
do seu bebê e satisfazê-las sem expô-lo a um período excessivo de 
privação, ele viverá a experiência onipotente de estar criando sua mãe, 
conseqüentemente, o mundo.
Nos primeiros meses de vida predomina, do ponto de vista do 
bebê, uma indiferenciaçào màe-bebê; ou melhor, entre eu e nâo-eu, 
pois o eu do bebê ainda não se constituiu enquanto entidade. Há uma 
indiferenciação de corpos, experiência que marca nossos primeiros 
meses de vida, mas que estará presente ao longo dela. Vejamos, como, 
cavaleiro e escudeiro possuem um só corpo:
— M uito me pesa, Sancho, que tenhas dito e continues a di^er que fu i eu 
que te tirei da tua choupana, sabendo tu muito bem que eu não ftq u ei em 
casa. Ju n to s saím os, ju n to s nos fom os, e ju n to s peregrinam os; correu-nos 
a am bos a m esm a fo rtu n a e a m esm a so rte; se a ti te m antearam um a 
ve\, a m im derrearam -m e cem ve%es, e é essa a única vantagem que te 
lev o .
— Isso era de rasção — respondeu Sancho — , porque, segundo Vossa M ercê 
di^ , m ais perseguem as desgraças os cavaleiros andantes do que os seus 
escudeiros.
— Enganas-te, Sancho — redargüiu Dom Q uixote — , porque lá dieçem: 
1quando caput d o l e t e t c .
O self pode ser compreendido como o resultado das potencialidades inatas 
da criança e o holding proporcionado pela mãe nos primeiros meses de vida. 
Constitui-se uma totalidade baseada nas operações do processo maturacional. 
Trata-se dc uma constelação psicológica organizada dinamicamente, dando 
ao indivíduo senso dc continuidade e sentido de vida. K a personalidade orga­
nizada como um todo.
38
Etica e t é cn i ca no acompanhamento t erapêu t i co
— E u cá não entendo outra língua senão a m inha — respondeu Sancho.
— Q uero di%er —* tornou D om Q u ixo te ~ que, quando dói a cabeça, 
todos os membros nos doem; e assim, sendo eu teu amo e senhor, sou a tua 
cabeça e tu és parte de m im , visto que és meu criado; e p o r este motivo o 
m al que me toca ou me tocar há de doer a ti, e a mim o teu.
— A .ssim devia ser — disse Sancho — , mas quando me mantearam como 
m embro estava a m inha cabeça, que era V ossa M ercê, alapardada a ver­
me voar pelos ares, sem sentir dor algum a; e, se os m em bros têm obriga­
ção de se doer dos m ales da cabeça, devia ela ter obrigação de se doer dos 
m ales deles.
— Q uererás ditçer agora, Sancho — respondeu Dom Q uixote — , que me 
não doía quando te m antearam ? e se o di^es, não o digas nem o penses, 
p o rq u e m ais d or sentia eu no m eu esp írito , de que tu no teu corpo A 
(Cervantes - 1615, p. 321.)
Há grande reticênciade Sancho em acreditar que os corpos de 
cavaleiro e escudeiro formam uma unidade, onde o primeiro seria a cabe­
ça, e o outro, os membros. Interessante esta divisão corporal onde cabe 
ao amo o pensar e o decidir, enquanto, ao escudeiro o executar e o agir. 
Existe uma divisào clara de tarefas e atribuições, mas à queixa de Sancho 
Pança de que só a ele cabia a dor quando o mantearam, Dom Quixote 
aponta para uma outra dimensão desta unidade. A fusão dos corpos se dá 
através de uma identificação empática com o corpo do outro a dor 
pode não ser sentida no corpo, mas sim no espírito. De acordo com o 
amo, a dor corporal é distinta da dor psíquica, sendo esta última, 
sempre mais doída que a outra.
No AT, é comum observarmos esta indiferenciaçào de corpos 
entre acompanhante e acompanhado. Perdemos as fronteiras corpo­
rais, e podemos, em um momento, estar dentro do corpo do paciente 
— segundo sua perspectiva e/ou nossa também por que não?! — , em 
outro momento, é ele que nos habita. Freqüentemente, tem-se abor­
dado esse fenômeno, como um chamado do paciente (psicótico, por 
exemplo) à indiferenciaçào. Esta apreensão da situação aponta para
39
Klcbcr Duarte Barretto
uma perspectiva de que se deve combater a mdiscriminação de cor­
pos, algo que só pode nos confundir e fazer-nos perder o rumo. Pen­
so que esta confusão é um risco e, ao mesmo tempo, uma possibilida­
de de compreender a subjetividade do paciente; é uma forma de co­
municação primitiva. Dentro de uma perspectiva winnicottiana, essa 
indiferenciaçào não só é inevitável como necessária, a fim de que se 
possa ajudar o paciente no seu desenvolvimento. Trata-se da possibi­
lidade do terapeuta sustentar a indiferenciaçào quando necessária, sem 
perder sua capacidade de discriminação. Espero que essa posição fi­
que mais clara no decorrer do capítulo.
A esse período, em que predomina a indiferenciaçào e fusão de 
corpos, Winnicott chamou de período de ilusão. Isso implica que, do 
ponto de vista winnicottiano, a onipotência deve ser satisfeita, é fun­
damental que o bebê experiencie a ilusão de criar o mundo para que, 
futuramente, possa viver criativamente.
A mãe, que inicialmente é mãe-ambiente — porque índiferen- 
ciada — pode vir a ser a primeira criação do bebê, se a relação do par 
ocorrer satisfatoriamente. Para que esta experiência de ilusão aconte­
ça, algumas condições precisam ser satisfeitas por parte do meio am­
biente em relação ao bebê: a mãe precisa se adaptar ativamente às 
necessidades do recém nascido. Ela vive um processo regressivo que 
Winnicott denominou preocupação materna primária. Esta se expressa 
por uma uma devoção3 ao recém nascido, há toda uma relação de 
identificação com o bebê que facilita a relação de cuidado. Esse tipo 
de experiência só é possível se todo o processo identificatório e re­
gressivo não coloca em risco a identidade materna. A mãe precisa ter 
recursos psíquicos para sentir que seu ser não está ameaçado. O ambi­
ente terá grande importância, pois tem de oferecer todo um amparo a 
essa mãe, o qual implica em uma função semelhante àquela exercida 
pela mãe com seu bebê. Quando esses aspectos são garantidos, haverá 
grande possibilidade de uma adaptação ativa às necessidades do bebê.
Winnicott ressaltava a devoção exatamente por ser uma capacidade que não 
depende da dimensão intelectual. \l muito mais um movimento cmpático.
40
Efica e técnica no acompanhamento terapêutico
Caso contrário, temos aqui um ponto focal para o estabelecimento 
das psicoses. Winnicott costumava afirmar que o bebê nào existe sem 
a mãe -— ou alguém que exerça essa função — , pois no início da vida 
temos uma dependência absoluta do meio ambiente. Se a experiência 
de ilusão foi satisfatória, o bebê é capaz de criar um objeto subjetivo 
que se desenvolve graças à adaptação mencionada anteriormente. O 
estabelecimento desse objeto subjetivo é fundamental no desenvolvi­
mento da criatividade do sujeito. Em situações em que esse processo 
não ocorreu ele buscará ao longo da vida uma oportunidade de viver 
esta experiência, ou seja, a busca de poder experienciar uma relação 
em que o outro funcione como uma criação do próprio sujeito.
Segundo Winnicott, as necessidades do bebê não se restringem 
à dimensão da sobrevivência física; o ser humano, desde que nasce, 
tem necessidades psíquicas. Uma das necessidades mais importantes 
no início da vida, que precisa ser satisfeita para que haja a experiência 
de ilusão, é o ritmo. O ritmo seria o elemento que pnmeiramente 
apresenta o se lf do bebê, seria seu estilo, sua característica própria. 
Essa marca pessoal mostra-se através do intervalo e do ritmo das ma­
madas, do sono, da movimentação muscular, entre outros. Se o tem­
po do bebê nào for respeitado e satisfeito, ele não terá a possibilidade 
de viver a ilusão de criar o mundo (sua mãe-ambiente) e, assim, terá 
de adaptar-se ao meio ambiente. Dentro da teoria winnicottiana, esse 
fenômeno é conhecido como uma invasão do self que levará o bebê a 
uma reação e não mais criação. Abre-se, então, campo para a forma­
ção daquilo que se denominou falso self. Caso a vivência de ruptura 
de self devido às experiências invasivas, seja prolongada, o bebê po­
derá desenvolver um quadro autístico como forma desesperada de 
lidar com o horror de estar vivo.
Na experiência de invasão dá-se uma perda de sentido do ser, o 
qual só se resgata através do isolamento. Caso essas experiências de 
invasão sejam muito intensas e/ou freqüentes, poderão levar o bebê 
ao abandono do contato com a realidade externa, refugiando-se no 
mundo subjetivo. Temos então os casos de autismo. Se, por outro 
lado, as experiências de invasão nào foram tão disruptivas, elas exigi­
rão do bebê um movimento reativo, ou seja, ele reagirá ao ambiente
41
Klebcr Duarte Barretto
adaptando-se a ele e não mais criando-o. Como dissemos anterior­
mente, forma-se, a partir de então, o falso self Essa seria a tentativa de 
conseguir alguma organização — mesmo que através de uma dissocia­
ção — marcada por uma submissão ao meio ambiente. A existência 
do falso self teria duas funções: articular o sujeito ao mundo e prote­
ger o self verdadeiro, ocultando-o. Este último só pode ser vivido em 
segredo, em uma vida interior secreta.
As experiências de desencontro na comunicação mâe-bebê 
(invasivas e conseqüentemente disruptivas) podem gerar buracos no self 
em formação, Esses buracos seriam necessidades que não puderam ser 
satisfeitas e/ou experiências que não puderam ser simbolizadas pelo 
meio ambiente. As psicoses resultariam, dentro da perspectiva winni- 
cottiana, de necessidades básicas não satisfeitas levando a dimensões 
da existência não simbolizadas. O bebê pode até se adaptar razoavel­
mente bem do ponto de vista social, mas não terá disponível certas 
funções psíquicas. O trabalho clínico com esse tipo de paciente exigi- 
ria do terapeuta toda uma adaptação ativa às suas necessidades para 
que, através da confiança no vínculo, ele possa experienciar pela pri­
meira vez algo que não lhe foi possível no seu desenvolvimento emo­
cional primitivo. Trabalho que implica em sustentar (to hold) todo 
um vínculo de indiferenciaçâo no qual o paciente vive uma depen­
dência absoluta do terapeuta.
A partir das formulações de Winnicott e de autores como Khan, 
Little, Milner, entre outros, passou-se a compreender o papel da ilu­
são não só como um fator fundamental na gênese do psiquismo hu­
mano, como também um elemento indispensável para o processo de 
simbolizaçào; que é necessário para a criatividade, ou seja, o viver 
criativo. Eles reivindicam aos sonhos não só o caráter de realização
de desejos, visão predominante no pensamento psicanalítico, mas tam­
bém o j'tatus de um pensamento, regido por uma lógica sincrética, 
mais comum às expressões artísticas. O sonho deixa de ser lugar ex­
clusivo da realização de desejos reprimidos, mas é, também, lugar de 
expressão de apreensões inconscientes do mundo e de si mesmo. As­
sim, para os analistasdo Grupo Independente da Escola Inglesa de 
Psicanálise, a imaginação é fundamental na constituição da subjetivi-
42
Ética e técnica no acompanhamento terapêutico
dade e da própria realidade. Milner, tal como o poeta e pintor Blake, 
afirma que o que diferencia a espécie humana dos outros animais é a 
imaginação.
Retomando a questão da ilusão e da onipotência, apresentada 
anteriormente, gostaria de discuti-la em relação à prática do AT. Um 
aspecto que sempre chamou a atenção da equipe de AT à qual perten­
ço foi a experiência de onipotência vivida pelo par acompanhante- 
acompanhado. Muitas vezes, essa vivência colocava a dupla em situa­
ções bastante perigosas. Ao mesmo tempo que se validava a onipo­
tência como algo inerente ao vínculo, procurava-se, nas supervisões, 
ficar atento a esse processo e, no momento adequado, poder colocar 
limites no acompanhante.
Durante alguns anos — especialmente 87, 88 e 89 — dizia-se que 
o acompanhante teria de estar disponível para viver uma paixão, que ca­
racterizava o vínculo no AT — pelo menos nos períodos iniciais. Inúme­
ras vezes, lidou-se com o fato de o paciente querer ficar apenas com 
um acompanhante e abandonar o restante do tratamento, pois o at 
era tudo que ele queria e bastava. Algo que preocupava ainda mais 
quando o acompanhante compartilhava a mesma crença. O fenôme­
no por nós (membros da equipe) denominado paixão, penso estar 
sendo entendido nesse trabalho como período de ilusão, onde não há 
diferenciação de corpos, pelo menos para o bebê ou para o paciente e, 
às vezes, até para o acompanhante.
0
E necessário que o terapeuta sustente esse tipo de experiência, 
na perspectiva winnicottiana, a fim de que através dela o paciente 
possa desenvolver e/ou (r)estabelecer funções psíquicas que na sua 
história de vida ficaram comprometidas. Entende-se que os fenôme­
nos psicóticos se originam em falhas na comunicação bebê-meio am- / 
biente nos momentos mais primitivos do desenvolvimento emocio­
nal, onde ainda não existia a diferenciação eu - não-eu. Dessa forma, é 
bastante remota a possibilidade de retomada do desenvolvimento psí­
quico a não ser que se forneça ao paciente esse tipo de experiência e 
que seja possível, através de uma compreensão acompanhada de uma
43
Kleber Duarte Barretto
adaptação ativa às necessidades do paciente, à simbolização da falha 
ambiental. Sendo que essa simbolização não se restringe à fala.
Diz respeito à vivência do paciente ser encontrado nas experi­
ências que jamais foram compartilhadas com outro ser humano e po­
der, então, eventualmente, identificar-se com a cultura.
A meu ver, parece mais profícuo entendermos o fenômeno de 
indiferenciaçào, por parte do acompanhante, desde uma perspectiva da 
devoção (preocupação materna primária) onde nosso ser se ocupa das 
necessidades do outro. A paixão aponta para a intensidade das emo­
ções presentes no vínculo, porém, enfatiza o elemento erótico que 
nem sempre está presente. E claro que não se deve negar a dimensão 
da sensualidade existente no vínculo, mas nem sempre é da ordem do 
erótico. Vale lembrar a distinção que Ferenczi (1966) faz entre a lin­
guagem de ternura — que contempla uma sensualidade — e a lingua­
gem da paixão, marcada pelo erotismo e pela intenção sexual (sedu­
ção). Digo isso por observar que, com certa freqüência, fazem-se indi­
cações de acompanhamento terapêutico em que o acompanhante ocupa 
o lugar de um(a) namorado(a) em função de se acreditar que através 
de uma erotizaçào, o paciente possa sair da estagnação em que se en­
contra. Outro fator que parece contribuir para se privilegiar esse tipo 
de indicação é o fato de que acompanhante e acompanhado fazem 
programas juntos. Penso que, se a paixão passa a ser a característica 
do vínculo para o at, estamos diante de uma distorção da relação; esta 
deixa de estar em função do desenvolvimento psíquico do acompa­
nhado para ser fonte de gratificações do narcisismo do acompanhan­
te.
Talvez fosse interessante poder ilustrar a importância da ilusão 
na subjetividade de uma pessoa através de dois exemplos. José, um 
paciente de 41 anos de idade, passou a comprar durex em papelarias. 
Inicialmente, em uma papelaria próxima à sua casa e depois em pape­
larias no bairro onde viveu grande parte de sua vida (infância e ado­
lescência). O tipo de durex comprado deixou de ser o mais simples e 
passou a ganhar ares de requinte - determinada cor e espessura — , que 
no caso iam se traduzindo no preço do produto. Essas transforma-
44
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
ções na compra do durex também se expressaram no uso que ele fazia 
do mesmo, ou pelo menos no uso que ele dizia fazer: no início, o 
durex funcionava como um acidinho, relembrando as baladas com 
LSD, depois foi utilizado como material de trabalho em seus “proje­
tos”. O fato é que esta história do durex já dura mais de três anos, o 
que faz com que José provavelmente tenha se tornado o maior coleci­
onador de durex na grande São Paulo. Em algumas ocasiões, tivemos 
a oportunidade de limpar e organizar seu apartamento e o curioso é 
que nos durex era expressamente proibido que eu mexesse. A posição 
da equipe de a ts que o acompanham (quatro membros) em relação à 
compra dessas fitas variou, chegando até a uma tentativa de proibição 
a fim de se empregar o dinheiro em outros passeios. Porém, a persis­
tência na compra nunca esmoreceu e até se intensificava em períodos 
de separação como férias e em momentos de forte angústia. Certo 
dia, uma das acompanhantes, já um pouco cansada da repetição do mes­
mo tipo de programa questionou-o sobre o durex, ao que ele respondeu:
0
— E o ponto do sonho!
A resposta parece sugerir a função que tal objeto tem ocupado na 
subjetividade de José: ponto de sustentação do sonho, do processo de 
ilusão. Apesar do acúmulo das fitas, parece não ser possível que inter­
rompamos a atividade de compra, pois isto podería significar o esmaga- 
mento do sonho para ele, neste momento de sua vida.
Outra situação ilustrativa ocorreu quando familiares de André 
- um rapaz com cerca de 14 anos na época e que apresenta um com­
prometimento intelectual — , diante da crença dele em coelhinho de 
Páscoa e papai Noel, resolveram fazer alguma coisa a fim de que ele se 
desse conta do engano em acreditar em tais seres com esta idade. A 
estratégia adotada foi a seguinte: ao se aproximar a Páscoa, sua tia fez 
questão de comprar os ovos com bastante antecedência e deixá-los 
expostos em uma bandeja na sala de jantar. Procurou-se ser o menos 
invasivo possível, assim deixou-se que ele descobrisse por si mesmo 
que lá estavam os ovos e que não haviam sido trazidos por coelhinho 
nenhum. Os dias foram se passando, a Páscoa se aproximando e André 
não “se tocava” da verdadeira face da realidade, cuja procedência os
45
Klcbcr Duarte Barrctto
adultos bem sabiam, e continuava esperançoso pela chegada do 
coelhinho. Seus irmãos, inconformados com a situação, resolveram 
esclarecer, de uma vez por toda, a história. Chamaram-no à sala de 
jantar, apontaram os ovos que lá estavam há dias e começaram a ins­
truí-lo da inexistência de tal animalzinho pascal. André ouviu a argu­
mentação deles por um bom tempo sem se manifestar, até que em um 
determinado momento, levantou-se, dirigiu-se à porta e endereçou-se 
aos seus bem intencionados irmãos da seguinte maneira:
— Eu quero acreditar em coelhinho de Páscoa e me deixem 
acreditar em coelhinho de Páscoa!
A mensagem foi curta e grossa, e expressa com tamanha firme­
za que os deixou perplexos. Não tiveram tempo para réplica, pois 
estavam atônitos, mas isto nem seria necessário porque André batera 
a porta atrás de si ao deixar o sítio do parlatorio.
Como desfazer essas crenças de André, sem com isso, podar 
sua vida imaginativa? Como esclarecê-lo do engano, sem com isso, 
borrar o ponto do sonho? Penso que estamos em um terreno vital 
para todos os seres humanos, principalmente, para esse sujeito que se 
encontrava diante de um comprometimentointelectual. Mas, como 
prosseguir nossa andança, sem entrar no intrincado terreno do sofri­
mento humano?
46
Capítulo
IV
No qual se discutem alguns aspectos
do sofrimento humano
J á sabemos o quanto Dom Quixote viu se transformado após se tornar cavaleiro andante. Apesar de se auto-inflingir penitências atrozes, para demonstrar seu amor à sua Senhora Dulcinéia dei 
Toboso — á qual jamais conhecera — , mas o que seria de um cava­
leiro andante, se nào tivesse uma amada a quem se encomendar nas 
horas mais difíceis, e, a quem guardar fidelidade diante das abor­
dagens e assédios das princesas que deparasse pelo caminho? Ape­
sar disso, essas dores pareciam ser fruto de uma deliberação e nào 
tanto algo genuíno.
Nosso valoroso cavaleiro nào admitiría, de maneira alguma, 
tào disparatada declaração da minha parte; e, a essa hora, já me vejo 
em apuros. Temo que ele invista sua poderosa lança contra mim, em 
desagravo à sua Senhora. Mas Sancho vem em meu socorro dizendo: 
— “Não há fenda que o tempo nào cicatrize”. Espero, assim, que a 
fortuna permita que a misericórdia do nosso amo me alcance ao lon­
go desta caminhada e apague as marcas e os estragos que tal afirmação 
da minha parte, porventura tenha causado.
Como todos bem sabem, Dom Quixote ganhou fama pela bra­
vura, nele nào existe medo; o que já nào se pode dizer de seu leal 
escudeiro, que se destacou mais pela sua simplicidade bondosa do que 
pela sua coragem. Embora muito do contrário atestem os dias em 
que se fez governador da ilha Baratária. Em umas poucas passagens de 
sua história, o amo revela experienciar o medo, ou melhor, um primo 
distante deste: o receio. Discursando sobre as armas e as letras disse:
renturosos foram aqueles séculos que careceram da espantosa fú ria des­
tes endemoninhados instrumentos de artilharia, cujo inventor tenho cá
4 7
Klcbcr Duarte Barretto
de mim p a ra mim que está recebendo no inferno o prêm io devido à sua 
diabólica invenção, com a q u a l proporcionou m eios a um braço infam e 
e covarde para tirar a vida a um valoroso cavaleiro, pois se vê amiudadas 
veiçes que, sem saber-se como nem p o r onde, chega um a bala disparada 
p o r um indivíduo que talve* fugisse espantado com o brilho do fogo que 
p ro d u ziu a m áquina quando deu o tiro, e corta e acaba a vida a um 
m ilita r brioso quando este estava com batendo corajosa e valentem ente 
anim ado pelos sentim entos que acendem e entusiasm am os peitos genero­
sos, vida preciosa que deveria conservar-se p o r longos anos. E consideran­
do eu isto bem, estou capa£ de afirm ar que me pesa no íntimo da alma de 
haver abraçado este exercício de cavaleiro andante em tempos tão detes­
táveis como estes em que vivemos agora; porque, a in d a q u e e u s o u d a ­
q u e le s e m q u e n ã o h a p e r i g o q u e m e ta m e d o , c o n t u d o à s v e z e s m e 
s in to r e c e o s o de que a pólvora e o chumbo m e r o u b e m a o c a s iã o d e 
to m a r-m e fa m o s o e c o n h e c id o p e l o v a lo r d o m e u b r a ç o e p e l o s fio s 
d a m in h a b o a e s p a d a e m to d o s o s â n g u lo s d a terra ... ”
(Cervantes - 1605, p. 230; grifo nosso.)
Interessante notar, que Dom Quixote receia apenas ter sua vida 
roubada pela bala de um covarde e assim estar impedido de mostrar 
ao mundo seu valor. Parece que a única coisa que gera temor nesse 
incomparável cavaleiro é morrer antes de realizar as obras que a Or­
dem da Cavalaria professa. Nào é de sua Senhora Dulcinéia e seu 
amor que ele receia quedar apartado por uma bala, mas sim da possi­
bilidade de vir a se desempenhar, satisfatoriamente, no exercício da 
andante cavalaria.
A partir de Winnicott poderiamos afirmar que o sofrimento 
humano advém da impossibilidade de criar algo que inscreva o self do 
sujeito na realidade compartilhada. Dizendo de outra maneira, o ser 
humano só se realiza na criatividade, que resulta em um sentimento 
de existir, e, se ocorre um desenvolvimento, o sujeito pode vir a sen­
tir-se real, o que implica em uma apropriação do mundo, tornando-o 
pessoal. Sofremos, por nào existirmos psiquicamente na relação com 
o outro. A sensação de futilidade (nâo-existência), a falta de sentido 
na própria vida, são frutos da impossibilidade (incapacidade) do su­
jeito para criar algo próprio no mundo compartilhado. Penso que
48
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
José expressava esse tipo de sofrimento quando dizia: — “Eu sou um 
inútil. Nunca trabalhei...”. Certo dia, quando ele visitava minha casa, 
sentou-se na cadeira da cozinha e se pôs a raspar a unha na mesa. 
Perguntei-lhe o que estava fazendo e ele me disse: — “Estou deixando 
uma marca de recordação...”. Da mesma forma como muitos de nós, 
na adolescência, escrevemos nossos nomes em carteiras, bancos, pare­
des e árvores... Da mesma forma, mas em outra dimensão necessita­
mos inscrever nosso ser na relação com outro sujeito e também na 
cultura. Dessa perspectiva, poderiamos compreender o temor de Dom 
Quixote de não ser capaz de inscrever-se na história da humanidade 
através das suas boas obras. Ele teme que a vida lhe escape antes de 
deixar nela a sua marca, razão pela qual procurava resgatar a Cavala­
ria Andante.
Safra (1995 b) afirma que a única maneira de elaborar a dor 
✓ psíquica é através do uso da imaginação em direção à simbolização. 
Buscamos dar conta do sofrimento através dos mais variados meios, 
mas nem sempre os meios escolhidos favorecem a inscrição da subje­
tividade na realidade compartilhada.
Todavia, Dom Quixote, sobre esta questão, já se pronunciou 
quando disse que a leitura deste gênero de literatura (Romances de 
Cavalaria), pode ser um bom remédio para melhorar o humor. Ago­
ra, como pudemos perceber, transformação, mesmo, ele obteve ao 
ordenar-se cavaleiro; momento a partir do qual, encheu-se de vitali­
dade e refinamento.
Gostaria de utilizar um relato clínico de Renata Caiaffa (1991) 
para ilustrar a importância da imaginação no lidar com situações de 
angústia:
“C erta ve%, num acom panham ento, j á cansada de a n d a r num a ga leria 
de arte, sentei-m e num a m u reta , na esquina da rua H addock Lobo com 
a rua L u ís Coelho, em fren te a um superm ercado. Percebo que L ú cia , a 
p a cien te , me olha estranhada (cum pre notar que esta p a cien te p arece 
encapsulada nao se perm itindo, no social, nada que saia *do tom\ segun­
do ela, nada fora do norm al, precisa, como di%, estar de acordo, vivendo
49
Klcbcr Duarte Barretto
suas questões de modo m uito p ersegu id o ). A esse seu olhar de 
estranham ento , lhe respondo com o convite p a ra se sentar a m eu lado. 
R ia agradece e se segue um diálogo no qual eu lhe ofereço um drinque que 
ela aceita. D igo:
— Franciscus, um drinque p a ra F ú ria .
— Q uem é Franciscus?, ela pergunta.
— M eu mordomo, aquele ali. (A ponto para um ajudante de superm erca­
do .)
— Por que tanta gente p o r aqui? d if Lúcia.
— A h ! E ssa vizinhança! Sabiam que a artista plástica Lúcia (profissão da 
paciente) viria me visitar hoje e todos saíram p a ra vê-la.
(E la ri satisfeita.)
— Q uem é aquela? (A ponta um travesti que passa.)
— M ão é aquela, é aquele, o travesti X uxo .
está “no tom ”
V a i perguntando das moças assanhadas que passam de m inissaia — um 
absurdo , segundo ela — , e dos m oradores da vizinhança. R eclam a da 
dem ora do drinque. E u respondo que o mordomo é um abusado , nunca
Rim os e ela me convida a acom panhá-la até seu atelier. 
Vam os indo em direção à avenida Paulista lotada às cinco da tarde e ela 
me pergunta se todos saem p a ra vê-la. Segundo ela, seu motorista farbas 
deve estar chegando. O M ercedes — ônibus a * u l e branco — p á ra p a ra 
entrarmos e ela vai reclamando de como ele dirige m al e que ê um abusa­
do também. A s ruas estão esburacadas e ela precisa m andar arrum á-las 
até a porta de seu atelier. Pedirá a seu grande amigo diretorde trânsito 
que arrum e. Rim os muito. A o descermos, estou m ais à frente e não repa­
ro que L úcia j á está conversando com um a moça, contando que é artista
50
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
plástica e que está escrevendo um a peça — 'A s fofoqueiras da H addock 
Lobo com L uís C o e lh o A moça se entusiasma, div̂ ser atn% e um papo se 
entabula até L úcia convidá-la para conhecer seu atelier. ” (pp. 98 e 99)
Renata fez uma intervenção bastante importante para Lúcia. 
Através de sua capacidade imaginativa, ela cria uma situação em que a 
acompanhada pôde participar, sem se sentir ameaçada. A a t oferece à 
acompanhada uma experiência em que a imaginação deixa de ser uma 
ameaça (esta parece ser a maneira como ela vivia esta questão, buscan­
do estar sempre “no tom”), e passa a ser um fator que transforma seu 
humor assim como enriquece a relação e seu contato com o mundo. 
Há uma oportunidade da imaginação ser integrada na relação com 
outro ser humano, algo fundamental para a vida dessa moça já que 
também tinha como profissão as artes plásticas.
Uma vez que a imaginação é compartilhada com alguém signi­
ficativo, a relação das duas ganha todo um novo colorido e a própria 
Lúcia é capaz de estabelecer outros contatos utilizando-se dessa di­
mensão imaginativa.
Outro elemento importante é que a a t acolhe a onipotência da 
acompanhada de maneira lúdica. O olhar dos outros não a ameaça 
mais como antes, e passa a ser objeto de uma brincadeira.
Retomemos a questão da ilusão dentro do campo da criatividade. 
Como vimos anteriormente, para Winnicott e outros autores, a cria­
tividade é fundamental — única possibilidade do sujeito vir a ser, de 
se realizar. Mas, será que essa forma de compreender o homem impli­
ca que todos temos de ser artistas, se quisermos nos realizar?
A criatividade, para Winnicott, não se restringe à criatividade 
utilizada pelos artistas profissionais. Segundo ele, existem diferentes 
graus de sofisticação na capacidade criativa. Se tudo corre bem no 
desenvolvimento da relação màe-bebê, este criará sua mãe — dentro 
de sua perspectiva, é claro, pois para um observador a mãe está lá, já 
existe. Assim sendo, o potencial criativo está presente desde o nasci­
mento e dependendo da interação (troca) que o sujeito vai estabele­
cendo com o meio ambiente, ao longo de sua vida, essa criatividade
51
Klcbcr Duarte Barretto
pode vir a se desenvolver ou nào. Esta parece ser a pedra de toque do 
ser humano, dentro desta perspectiva, pois implica que o sujeito te­
nha a possibilidade e a capacidade, nào só de ser criado pelo mundo 
ao seu redor, mas também de criá-lo, transformando-o. Faz-se neces­
sário que o sujeito seja capaz daquilo que Winnicott chamou de gesto 
espontâneo, um movimento — nào necessariamente corporal — que 
parta do self do sujeito; e, não um movimento que seja apenas reativo 
frente a uma invasão do meio ambiente. Susana Mauer e Silvia 
Resnizky (1985), ressaltam que uma das funçòes do a t é “perceber, 
reforçar e desenvolver a capacidade criativa do paciente " Isso favorece­
ría a superação de uma inibição dessa capacidade e estimularia o “de­
senvolvimento das áreas mais organizadas da sua [do paciente] persona­
lidade neurótica em detrimento de seus aspectos mais desajustados” (p. 
41), o que funcionaria como um eixo organizador da personalidade 
do paciente. E prosseguem afirmando:
“A o propor tarefas de acordo com os interesses do paciente, [o acom pa­
nhante] estará ajudando-o a reenconlrar-se com a realidade, com o m un­
do dos objetos, e será promovida e reforçada a noção de processo, oposta à 
concepção m ágica do tempo e do espaço. 0 traço característico desta con­
cepção m ágica de tempo e de espaço é a negação do aspecto p ro cessu a l”. 
(op. cit, idem.)
Apesar de estarmos falando de criatividade, penso que a manei­
ra como Susana e Silvia a compreendem e a utilizam difere bastante 
da abordagem que estamos propondo a partir das formulações winni- 
cottianas. As autoras apresentam um pensamento marcado pela 
dicotomia, característico das metapsicologias freudiana, kleiniana e 
bioniana. Uma personalidade neurótica que se opõe à personalidade 
psicótica; um mundo interno (subjetivo) em oposição ao mundo ex­
terno (objetivo); noção de processo “oposta à concepção mágica do tempo 
e do espaço".
Dentro da perspectiva desenvolvida neste trabalho, a criatividade 
é lugar de existência por excelência, fonte da vitalidade do sujeito, 
que pode vir a inscrevê-lo na relação com outro ser humano. É nesse
52
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
sentido que reconhecer a criatividade de um sujeito torna-se uma ex­
periência integradora do self. A criatividade nào se apresenta apenas 
na dimensão neurótica da personaiidade, mas pode estar presente nos 
aspectos mais desorganizados da vida de uma pessoa. Essa questão do 
aspecto saudável/doentio de um sujeito, da maneira comumente acei­
ta, é recontextualizada por Winnicott (1954-5):
"...minha sensação [é] de que a saúde aparente com um falso self não tem 
valor para o paciente. A doença, com o verdadeiro self não ocultado, por 
mais dolorosa que seja, é o único estado bom, a não ser que possamos 
voltar com o paciente, como terapeutas, e remover a situação de fracasso 
ambiental o r i g i n a l (p. 471)
Vemos que Winnicott nào tem como parâmetro de saúde o 
ajustamento social, ou ainda, o ajustamento psíquico. Ele tem como 
critério aquilo que pode ser verdadeiro ou falso em relação à existên­
cia do paciente. Vale lembrar que esse parâmetro do falso ou verda­
deiro é unicamente referido à existência do sujeito — dentro de sua 
história pessoal, familiar, cultural — ; e, de forma alguma, à realidade 
externa.
A criatividade é importante nào só porque reconecta o sujeito 
ao mundo dos objetos (realidade compartilhada),6 mas por possibili­
tar o (re)encontro do sujeito com sua vitalidade (seu estilo, suas carac­
terísticas). A expressão criativa, promove, então, o sentimento de es­
tar vivo (sentir-se real) e pertencer à espécie humana. Em uma nota de 
rodapé, Winnicott (1945) afirma:
4Através da expressão artística, há a esperança de manter contato com 
nossos sei ves primitivos, onde se originam os sentimentos mais intensos e 
sensações amedrontadoramente agudas e somos realmente pobres, se so­
mos apenas sãos” (grifo e tradução nossos do original:... and we are 
poor indeed i f we are only sane).
Winnicott sempre usava um qualificativo quando falava da realidade, a fim de 
enfatizar sua posição dc que não existe uma realidade pura, objetiva; ela c 
sempre construída, compartilhada, ou seja, um produto cultural.
53
Klebcr Duarte Harretto
Peço desculpas ao leitor por ver-me, agora, obrigado a retornar 
a outras questões mais primitivas ou iniciais. Vejo que estas andanças 
pelo desenvolvimento psíquico humano serão repletas de idas e vin­
das, e de um ziguezaguear constante. Espero não vos causar enjoo e 
aborrecimento.
54
\ alha-me Deus! — exclamou Sancho
Capítulo
V
Do qual se ressalta a função de Holding
Voltemos ao encontro de Dom Quixote e Sancho Pança, quando este aceita sair pelo mundo, na condição de escudeiro, à cata de 
aventuras, ou melhor, deixemos as aventuras ao destemido Dom Qui­
xote, pois, Sancho, vinha mais interessado é no governo d’alguma 
ilha. Partiram os dois quando ainda era noite, sem que ninguém os 
visse. Tomaram a mesma direção do campo de Montiel, primeira jor­
nada de Dom Quixote, para onde este partira solitário.
“Q uando nisto iam , descobriram trinta ou quarenta m oinhos de vento, 
que há naquele campo. A ssim que Dom Q uixote os viu, disse para o escu­
d e iro :
— A aventura vai encam inhando os nossos negócios m elhor do que o 
soubem os d eseja r; p o rq u e, vês a li, amigo Sancho P ança, onde se desco­
brem trinta ou m ais desaforados gigantes, com quem penso fatçer bata­
lha, e tirar-lhes a todos as vidas, e com cujos despojos começaremos a enri­
quecer; que esta é boa guerrae bom serviço fa ~ a D eus quem tira tão má 
raça da face da terra.
— Q uais gigantes? — disse Sancho Pança.
— A qu eles que ali vês — respondeu o amo — , de braços tão compridos, 
que alguns os tem de quase duas léguas.
— Olhe bem Vossa M ercê — disse o escudeiro — , que aquilo não são g i­
gantes, são m oinhos de vento; e o que parecem braços não são senão as 
velas, que tocadas do vento faeçent trabalhar as mós.
Bem se vê — respondeu Dom Q uixote que não andas corrente nisto
57
Klcbcr Duarte Barretto
das aventuras; sâo gigantes, são; e, se tens medo, tira-te d a í e põe-te em 
oração enquanto eu vou en tra r com eles em fera e desigual batalha.
D izendo isto, m eteu esporas ao cavalo Rocinante, sem atender aos gritos 
do escudeiro, que lhe repetia serem moinhos de vento, e não gigantes, os 
que ia acometer. M a s tão cego ia ele em que eram gigantes, que nem ou­
via as vo^es de Sancho nem reconhecia, com o estar já muito perto, o que 
era ; antes ia dizendo a brado:
— N ão fujais, covardes e vis criaturas; é um só cavaleiro o que vos inves­
te.
Levantou-se neste come nos um pouco de vento, e começaram as velas a 
m over-se; vendo isto D om Q u ixo te, disse:
— A in d a que movais m ais braços do que os do gigante B riareu7, heis de 
mo p a ga r.
E dizendo isto, encom endando-se de todo o coração à sua S en ho ra 
D ulcinéia, pedindo-lhe que em tamanho trânsito o socorresse, bem cober­
to da sua rodela, com a lança em riste, arrem eteu a todo o galope do 
R ocinante, e se aviou contra o p rim eiro m oinho qu e estava d iante , e 
dando-lhe um a lançada na vela, o vento a volveu com tanta fú ria , que 
fe% a lança em pedaços, levando desastradam ente cavalo e cavaleiro, que 
fo i rodando m iseravelm ente pelo campo afora. A c u d i u S a n c h o P a n ç a 
a s o c o rrê - lo , a to d o c o r r e r d o s e u a s n o ; e q u a n d o c h e g o u a o a m o , 
r e c o n h e c e u q u e n ã o s e p o d ia m e n e a r ta l fo ra o tra m b o lh â o q u e d era 
c o m o cavalo .
— í ralha-me D eusl — exclamou Sancho. —- N ão lhe disse eu a Vossa M er­
cê que reparasse no que fa sja , que não eram senão moinhos de vento, e 
que só o podia desconhecer quem dentro na cabeça tivesse outros?
Um dos gigantes que lutaram contra os deuses, que tinha cem braços, segundo a 
m itologia.
58
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
— Cala a boca, amigo Sancho — respondeu Dom Q uixote; — as coisas da 
guerra são de todas as m ais sujeitas a continuas m udanças; o que eu creio, 
e deve ser verdade, é que aquele sábio Frestáo, que me roubou o aposento 
e os livros, transform ou estes gigantes em m oinhos, p a ra me fa lsea r a 
glória de os vencer, tamanha é a inim izade que me tem ; mas ao cabo das 
contas, pouco lhe hão de valer as suas m ás artes contra a bondade da 
m inha espada .
I 'alha-o Deus, que o pode! — respondeu Pança.
E , ajudando-o a levantar, o tornou a subir para cima do Rocinante, que 
estava tam bém m eio desabado. Conversando no passado sucesso, conti­
nuaram caminho p a ra Porto E ápice, porque p o r a li, divja Dom Q uixote, 
nao era possível que se não achassem m uitas e diversas aventuras, p o r ser 
sítio de grande p a s s a g e m (Cervantes - 1605, pp. 54 e 55 - grifo nosso.)
Vemos que apesar de todas as advertências de Sancho Pança, 
nosso cavaleiro se arremeteu com toda fúria contra os gigantes do 
campo de Montiel. Sancho resignou-se a desaconselhá-lo de tal 
investida, porém, não tentou impedi-lo fisicamente. Esperou o de­
senrolar de tamanho sucesso, no qual nosso amo levou a pior. O que 
seria de Dom Quixote caso seu fiel escudeiro ali não estivesse para 
socorrê-lo? Como havería de montar Rocinante novamente? Ou an­
tes, como haveria de pôr-se em pé? São nestas situações, que nos da­
mos conta da importância do escudeiro: do seu amparo e apoio para 
desfazer aquilo que nao teve bom curso. Assim como os cavaleiros 
andantes saem à cata de emendar todas as situações que porventura 
carreguem algum erro ou injustiça e exijam do seu exercício alguma 
intervenção ou mediação, também, os escudeiros os acompanham a 
fim de poder, igualmente, dar amparo a seus senhores em ocasiões 
adversas.
Parece-me importante discutirmos essa função de amparo e 
apoio exercida pelos escudeiros e também por muitas outras pessoas 
nesse mundo afora. Abordaremos o amparo e o apoio tanto na di­
mensão de uma presença, de um estar-junto, como na dimensão de 
uma sustentação (apoio) física mesmo.
59
Klebcr Duarte Barretto
Sei, amigo Sancho Pança, que estranharás o termo que utiliza­
remos para essa funçào, já que o que conheces é tua própria língua e 
nào a estrangeira. Entretanto, para certas coisas nào encontramos um 
correspondente em nossa língua materna que faça jus às suas implica­
ções na língua de origem. Pensando bem, faremos um esforço para
A essa funçào exercida por escudeiros, màes, pais, ats e outros 
mais, Winnicott denominou holding. Para esse autor, a função de 
holding (ou sustentação, meu caro Sancho) é tudo que, no ambiente, 
fornecerá a uma pessoa a experiência de uma continuidade, de uma 
constância tanto física quanto psíquica. Então, a maneira como uma 
mãe segura seu bebê e dispensa a ele outros cuidados estarào ligados a 
essa funçào ambiental de holding que exercida continuamente possi­
bilitará que o bebê adquira alguma integração.
Como vimos anteriormente, nascemos indiferenciados com o 
meio ambiente, vivendo uma experiência de nào-integração. A partir 
dos cuidados e experiências que o bebê vive com sua mâe-ambiente, 
constituem-se núcleos de eu, ou seja, áreas da existência marcadas pela 
sensorialidade, mas que sofreram alguma humanizaçào graças à 
intermediação de um outro ser humano, que pertence a uma determi­
nada cultura.
Esses núcleos de eu sâo marcas sensoriais que apresentam a mãe 
com seu cuidado e sua cultura e, ao mesmo tempo, carregam caracte­
rísticas do bebê. Se o ambiente é capaz de fornecer ao bebê uma expe­
riência de constância e de continuidade, ele poderá, gradualmente, ir 
integrando os diferentes núcleos de eu. Isto nào siginifica que a mãe 
nào deva se separar (ausentar-se) do bebê por um minuto, fato por si 
só impossível. Essa continuidade é dada pelo respeito ao ritmo do 
bebê; um cuidado e uma presença materna que levam em conta esta 
característica do recém-nascido e podem modular os períodos de au­
sência de acordo com a capacidade do bebê de suportá-los.
Na aventura que há pouco relatamos, podemos notar a presen­
ça dessa funçào na maneira como Sancho aguarda Dom Quixote lan-
“agradar a gregos e troianos”, com o risco de desagradar a ambos, é 
claro.
60
■
Eli ca e técnica no acompanhamento terapêutico
çar-se contra os gigantes, e, também, quando o socorre, ajudando-o a 
se levantar. O holding é dado pela presença de Sancho: em um primei­
ro momento pela nào-interferência na ação de Dom Quixote; e, pos­
teriormente, auxiliando-o a se pôr em pé e até montar Rocinante. 
Essa possibilidade de Sancho estar ao longo do acontecimento, ofere­
ce a oportunidade do nosso cavaleiro se recompor (integrar-se) a fim 
de continuar suas andanças.
— Esta idéia — comenta Sancho — de presença física e psíquica me cheira 
mais à confusão que ao claro pensar, pois nesses assuntos tenho como mo­
delo meu amo, que ao pôr-se a falar sobre determinado assunto, o fa~ 
com tamanha maestria que até a mim — camponês que sou — quedam 
claras algumas idéias.
Frente a este comentário de nosso amigo Sancho Pança, tenta­
remos esclarecer aquilo que ficou nebuloso e obscuro nos parágrafos 
anteriores.
Quando falamos em presença, mais facilmente tendemos a pen­
sar no estar-junto fisicamente, mas este pode vir acompanhado de 
uma presença afetiva. Esta, tem a ver com a capacidade de uma pessoa 
estar em contato com as angústias do outro, através de uma atitude 
empática. Durante uma visita a uma amiga e seu primeiro bebê, de 
cerca de dois meses, ela me contou que nos momentosem que ele 
chorava angustiadamente por cólica ou alguma outra causa que não 
fome, a melhor maneira de acalmá-lo era pegando-o no colo e aguar­
dando um tempo. Entretanto, ela observava que se ela estivesse irrita­
da ou sem paciência por alguma razão qualquer, tornava-se impossí­
vel tranqüiiizá-lo. Assim, para esta tarefa não bastava simplesmente 
pegar o bebê no colo, era necessário que se estivesse tranquila, pois só 
então ele poderia se acalmar. Quando ela se encontrava irritada, o pai 
do bebê assumia a tarefa.
O holding é dado pelos aspectos invariantes do meio ambiente 
que tanto podem ser os objetos concretos de uma sala, um quarto e/ou 
um carro; quanto à disponibilidade de uma outra pessoa estar junto 
de nós, atenta às nossas necessidades ao longo do tempo. Essa vivência
61
Klcber Duarte Barretto
aponta para a possibilidade de encontrar-se e integrar-se no tempo. 
Nesse sentido, o setting analítico cumpre fundamentalmente essa fun­
ção. Bleger (1988) assinala os elementos psicóticos, tanto do paciente 
quanto do analista, que ficam depositados nos aspectos invariantes 
do enquadre. Poderiamos pensar, também, na função de holding 
exercida pelas instituições. Margaret Little (1990) relata a importân­
cia da hospitalização:
“Assim, quando se aproximavam as féria s de verão, D.W. me dis­
se que queria que eu fo sse internada em um hospital, como uma paciente 
voluntária, (para certificar-se de que eu não cometería suicídio*. Investi 
contra ele fu riosam en te; acho que bati nele, embora não tenha certeza. 
D. W. agarrou os meus pulsos e me segurou, mas não me machucou. Aca­
bei concordando, com a condição de que ele garantisse que eu não seria 
submetida a eletrochoque, poderia ter um quarto particular, sair se qui­
sesse (fa^er a minha própria escolha), e de que ele me levaria lá e traria de 
volta. D. W. concordou com tudo isso, e cumpriu o prometido. Deixou 
claro que também manteria contato comigo no hospital.
Nós fom os para o hospital um dia depois do término do Congresso 
Internacional [de Psicanálise] em Londres (1953). Na plataforma da es­
tação ferroviária, D. W. percebeu que eu estava agarrada à sua capa im­
permeável, apavorada. Ele me deu o braço e, quando chegamos, disse: 
‘Você está sendo muito corajosa \ Em seguida, acrescentou algo sobre a 
minha ‘criatividade inata*, que eu não entendi e de que não me lembro, 
mas depois descobri que havia sido importante, porque se relacionava 
com a espontaneidade. ** (pp. 59 e 60)
Dependendo da história de vida de um sujeito, a cela solitária 
de uma prisão pode ser profundamente tranqüilizadora. Eis o que 
nos relata um paciente de Khan (1988) que sofreu inúmeras experiên­
cias de ruptura e invasão desde sua infância, culminando com a expe­
riência de ser prisioneiro de guerra em um campo de concentração:
‘‘A ssim dei comigo num a cela p equ en a , com um a ja n elin h a três m etros 
acima. M esmo durante o dia, quase não entrava nenhum a lu%. Para dor­
m ir, tinha um colchão sem travesseiro. N a d a m ais. K han, aquela foi a
Ética e técnica no acompanhamento terapêutico
noite m ais tra n qu ila da m inha vida; eu não tinha nenhum a responsa­
bilidade e estava sendo cuidado. D orm i como um a criança”(p ,3 7 ). E co n ­
tinua: “M as o diretor teve uma idéia brilhante: eu levaria um cão polici­
a l e seria acom panhado p o r um gu arda arm ado. Isso durou oito meses.
F o i o período m ais tranquilo e sereno da m inha vida. Sabia que não ia 
durar muito. ” (p. 38)
Percebemos, como havíamos mencionado no Capítulo II, atra­
vés desses relatos, a importância da hospitalização e/ou de uma insti­
tuição como forma de cuidado.
No acompanhamento, em muitos momentos do percurso com 
um paciente, essa função (holding.) exerce um papel marcante. São 
momentos em que simplesmente estamos ali, juntos do nosso acom­
panhado — caminhando ou parados —- compartilhando, às vezes, 
uma dor ou a conclusão de alguma tarefa; talvez, o momento que a 
antecede, ou quando nos aproximamos do final do encontro. Situa­
ções em que percebemos que não há o que fazer ou dizer; e, o fato de 
estarmos ali, nossa presença, já significa bastante para nosso acompa­
nhado. Penso que o valor dessa experiência não se dá somente por 
haver um corpo junto ao corpo do paciente — a proximidade de dois 
corpos — , mas por ser um corpo habitado, um corpo atento, um 
corpo que carrega a história do próprio vínculo. Em outras palavras, 
a experiência é integradora porque o sujeito está sendo acompanhado 
por um corpo simbólico (simbolizado e simbolizante), e não somen­
te matéria física. Um outro sujeito que é capaz de testemunhar e com­
partilhar as experiências do acompanhado. A estabilidade e a cons­
tância nas atitudes do terapeuta também exerceriam uma função de 
holding. Em relação ao referencial teórico adotado pelo at/analista, 
existem aspectos importantes dessa função. Se os referenciais teóricos 
estão integrados ao próprio ser do terapeuta e à sua personalidade, 
haverá um favorecimento do holding. Por outro lado, se os referenciais 
não estão bem integrados, ou ainda, adotamos diferentes referenciais 
que são contraditórios entre si, poder-se-á colocar o paciente em con­
fusão, o que dificultará e/ou romperá o vínculo de confiança. Caso 
isto ocorra a função de holding estará comprometida.
63
Klcber Duarte Barretto
Se o ambiente nào é capaz de fornecer um bom holding, na 
melhor das hipóteses, nào se estabelece uma relação de confiança. O 
sujeito não pode contar com o vínculo para suprir necessidades pri­
mitivas; então, mantém uma integração (organização) do tipo falso 
selj. Entretanto, nos sujeitos em que essa organização é precária — 
crises psicóticas ou primeiros meses de vida, — se as necessidades não 
são supridas, advêm as angústias de desintegração e dispersão de eu, 
de despedaçamento e fragmentação dos membros do corpo e de estar 
caindo em um vazio, em um vácuo. Estaríamos, como mencionamos 
anteriormente, no campo de angústias psicóticas, onde as falhas nessa 
função predispõem o sujeito à esquizofrenia. Winnicott costumava 
dizer que esse estado de integração pode ser perdido, caso nào durma­
mos por algumas noites.
No relato de Renata (pp. 49 e 51), poderiamos pensar na fun­
ção de holding, na medida em que ela oferece e sustenta um campo de 
experiência para a paciente, prom ovendo, assim, uma maior 
integração. Também, no episódio com Milton (p. 31), em que ele 
queria que sua calça fosse passada, imediatamente, pela sua mãe; pen­
so que essa função está presente no momento em que se intervém, 
garantindo que aquela tarefa (passar a calça) aconteceria, e que juntos 
poderiamos dar conta dela.
Para que o a t exerça a função de holding é necessário que ele 
também possa ter vivido e internalizado essa função. Só é possível 
dar holding a alguém na medida em que se experimenta relativa tran- 
qüilidade. Essa experiência psíquica depende: da fé e da esperança do 
at em que o processo possa atingir o bom termo; das relações 
internalizadas pelo acompanhante ao longo da sua história de vida e 
do instrumental que a teoria possa lhe dar para compreender o fenô­
meno que presencia. Na maior parte das vezes, o profissional nào 
consegue exercer essa função, porque lhe é difícil aceitar e compreen­
der que “faz algo” ao nào fazer absolutamente nada — só estar presen­
te. Essa questão é bastante importante de ser compreendida ao se ava­
liar as necessidades de cada sujeito. Tenho observado que é forte a 
concepção de que o AT deve ocorrer na rua, fora da casa do acompa­
nhado. Nào é à toa que o encontro entre a dupla (acompanhante-
64
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
acompanhado) é mais comumente chamado de “saída”. Essa denomi­
nação, fruto da concepção acima mencionada, leva em alguns casos a 
um prejuízo no trabalho de AT, especialmente no que se refere à 
função de holding. Muitas vezes, acaba existindo uma pressão para 
que a dupla faça um passeio, ou seja, saia de casa como se essa fosse arazão do acompanhamento. Se não ocorreu uma saída, algo houve de 
errado, o trabalho não se deu, talvez a mdiscriminação tenha tomado 
conta do a t e assim por diante. Há que se avaliar cada situação em 
particular e a qualidade desse “permanecer em casa”. Não podemos 
negar, é claro, que muitas vezes a família necessita que o sujeito saia 
não só por acreditarem que isso seria um sinal de melhora, mas tam­
bém porque necessitam de um descanso. No acompanhamento de 
João, o: combinado (enquadre) com sua mãe era de que durante o 
tempo do nosso encontro, ela sairia de casa para cuidar de seus afaze­
res, o que favorecia que o nosso tempo recebesse o destino que ]oào 
queria lhe dar: passeio ou permanência em casa.
Confiante de que as dúvidas de Sancho tenham sido esclarecidas, 
passaremos adiante. Ou talvez, para o lado, pois não se dão dois pas­
sos à frente sem que se tenha que voltar outros tantos, ao se abordar 
tarefa tão espinhosa e complexa quanto o desenvolvimento psíquico 
humano.
65
Klebcr Duarte Barretto
Se o ambiente nào é capaz de fornecer um bom holding, na 
melhor das hipóteses, nào se estabelece uma relação de confiança. O 
sujeito nào pode contar com o vínculo para suprir necessidades pri­
mitivas; então, mantém uma integração (organização) do tipo falso 
self. Entretanto, nos sujeitos em que essa organização é precária — 
crises psicóticas ou primeiros meses de vida, — se as necessidades não 
são supridas, advêm as angústias de desintegração e dispersão de eu, 
de despedaçamento e fragmentação dos membros do corpo e de estar 
caindo em um vazio, em um vácuo. Estaríamos, como mencionamos 
anteriormente, no campo de angustias psicóticas, onde as falhas nessa 
função predispõem o sujeito à esquizofrenia. Winnicott costumava 
dizer que esse estado de integração pode ser perdido, caso nào durma­
mos por algumas noites.
No relato de Renata (pp. 49 e 51), poderiamos pensar na fun­
ção de holding, na medida em que ela oferece e sustenta um campo de 
experiência para a paciente, prom ovendo, assim, uma maior 
integração. Também, no episódio com Milton (p. 31), em que ele 
queria que sua calça fosse passada, imediatamente, pela sua mãe; pen­
so que essa função está presente no momento em que se intervém, 
garantindo que aquela tarefa (passar a calça) aconteceria, e que juntos 
poderiamos dar conta dela.
Para que o a t exerça a função de holding é necessário que ele 
também possa ter vivido e internalizado essa função. Só é possível 
dar holding a alguém na medida cm que se experimenta relativa tran- 
qüilidade. Essa experiência psíquica depende: da fé e da esperança do 
at em que o processo possa atingir o bom termo; das relações 
internalizadas pelo acompanhante ao longo da sua história de vida e 
do instrumental que a teoria possa lhe dar para compreender o fenô­
meno que presencia. Na maior parte das vezes, o profissional não 
consegue exercer essa função, porque lhe é difícil aceitar e compreen­
der que “faz algo” ao não fazer absolutamente nada - só estar presen­
te. Essa questão é bastante importante de ser compreendida ao se ava­
liar as necessidades de cada sujeito. Tenho observado que é forte a 
concepção de que o AT deve ocorrer na rua, fora da casa do acompa­
nhado. Não é à toa que o encontro entre a dupla (acompanhante-
64
acompanhado) c mais comumente chamado de “saída”. Essa denomi­
nação, fruto da concepção acima mencionada, leva em alguns casos a 
um prejuízo no trabalho de AT, especialmente no que se refere à 
função de holding. Muitas vezes, acaba existindo uma pressão para 
que a dupla faça um passeio, ou seja, saia de casa como se essa fosse a 
razão do acompanhamento. Se não ocorreu uma saída, algo houve de 
errado, o trabalho não se deu, talvez a indiscriminaçào tenha tomado 
conta do a t e assim por diante. Há que se avaliar cada situação em 
particular e a qualidade desse “permanecer em casa”. Não podemos 
negar, é claro, que muitas vezes a família necessita que o sujeito saia 
não só por acreditarem que isso seria um sinal de melhora, mas tam­
bém porque necessitam de um descanso. No acompanhamento de 
João, oicombinado (enquadre) com sua mãe era de que durante o 
tempo do nosso encontro, ela sairia de casa para cuidar de seus afaze­
res, o que favorecia que o nosso tempo recebesse o destino que João 
queria lhe dar: passeio ou permanência em casa.
Confiante de que as dúvidas de Sancho tenham sido esclarecidas, 
passaremos adiante. Ou talvez, para o lado, pois não se dão dois pas­
sos à frente sem que se tenha que voltar outros tantos, ao se abordar 
tarefa tão espinhosa e complexa quanto o desenvolvimento psíquico 
humano.
Ética e técnica no acompanhamento terapêutico
65
Capítulo
VI
Daquela função, muitas vezes confundida com a ante­
rior (holding) por caminharem tão próximas que, co- 
mumente, não guardamos as devidas distinções:
a continência
Para esta empreitada contarei, novamente, com a ajuda do nosso incansável amigo e protetor Dom Quixote de la Mancha, nosso 
escudeiro e suas respectivas cavalariças. Temo, somente, que a paciên­
cia do leitor nào alcance o final de tão longa jornada; mas àqueles que 
perseverarem, com certeza nào se arrependerão.
Certa feita, amo e escudeiro estavam atravessando uma selva 
quando se depararam com duas formosíssimas pastoras. Na verdade, 
tratava-se de donzelas vestidas de pas toras, pois assim o souberam, 
tão logo foi quebrado o silêncio em que a visão de figuras das mais 
belas os havia mergulhado. Vinha a ser que as jovens estavam com 
seus familiares por aqueles campos, a fim de resgatarem uma nova e 
pastoril Arcádia. Ou seja, todos trajavam vestimentas pastoris e passa­
vam os dias recitando poemas, tocando instrumentos musicais. Nào 
tardou para que uma das moças os reconhecessem como sendo Dom 
Quixote de la Mancha e seu gracioso escudeiro Sancho Pança, pois o 
fato de terem sido historiados e referidos em livro, em muito colabora­
va para espalhar a fama e as aventuras de ambos. Como não poderia 
deixar de acontecer, logo foi feito o convite para que os dois se juntas­
sem à Arcádia. Foram recebidos com todas as honrarias a que pessoas 
desse vulto têm direito: ao amo coube a cabeceira de mesas postas, 
ricas, abundantes e asseadas. Findo tão saboroso repasto com esse gru­
po, cerca de trinta ao todo, de belos e belíssimas pas toras, tão bem 
trajados quanto hospitaleiros, resolveu Dom Quixote dar mostras de 
sua gratidão e para isso se impôs tarefa à altura de seus anfitriões. O
67
Klcbcr Duarte Harretto
gesto de gratidào vinha a ser a proclamaçào de que nào havia no mun­
do formosura e cortesia que excedessem as que se encerravam nas 
ninfas que ali se encontravam em trajes pastoris. Exceçào feita, é cla­
ro, à senhora de sua alma: Dulcinéia dei Toboso. A fim de tornar o 
gesto ainda mais digno e valoroso, lançou em forma de um decreto, 
colocando-se no meio do caminho que por ali passava. Aquele ou 
aqueles que por ali viessem, deveríam concordar com a proclamaçào 
feita, pois se a alguém acudisse um parecer contrário, desafiava-o des­
de já o destemido Dom Quixote. E foi mais ou menos com estas 
palavras que acabo de descrever que nosso amo feriu os ares postando- 
se no meio do caminho. Estabeleceu, ainda, um período de dois dias 
para dar como acabada a tarefa. Por duas vezes bradou as mesmas 
palavras, e d u a s vesçes d e ix a ra m de s e r ouvidas p o r q u a lq u e r a v en tu rei­
ro. Mas a fortuna soprava seus bons ventos, pois que dali a pouco se 
avistou pelo caminho uma turba de homens a cavalo vindo de tropel8 
e com g ra n d e p re s s a . O lanceiro que 11 v in h a m a is a d ia n te , com eçou a 
di% er com g ra n d e s b ra d o s p a r a D o m Q u ix o t e :
— A fa sta-te do cam inho, homem do D iabo, que estes touros te despeda­
çam .1
— E ia , canalha! — respondeu Dom Q uixote — para mim nào há touros 
que valham , ainda que sejam dos m ais bravos que ] aram a cria nas suas 
ribeiras. C onfessai, m alandrinos, assim à carga cerrada, que é verdade o 
que eu a q u i p u b liq u ei, senão comigo travareis batalha.
N ao teve tempo de responder o vaqueiro, nem D om Q uixote de se desvi­
ar, ainda que o quisesse; e assim, o tropel de touros bravos, e o dos mansos 
cabrestos, com a m ultidão dos vaqueiros e das outras gentes que os leva­
vam, p a ra os m eter no curro, num lugar onde no outro dia haviam de
UA palavra "tropel" figura como unidade de certa parte do exercício medieval 
ao entrar em combate. "
68
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
ser corridos, passaram p o r cima de Dom Q uixote, de Sancho, de Rocinante 
e do ruço , e deram com todos eles em terra, deixando-os a rebolar pelo 
meio do chão. Ficou moldo Sancho , espantado D om Q u ixo te, desancado 
o ruço, e Rocinante não m uito cristalino; m as, enfim , levantaram -se to­
do s, e D om Q u ix o te com m uita p ressa , caindo aqui, tropeçando acolá , 
p rin cip io u a correr atrás da m anada, bradando:
— Detende-vos e esperai, canalha m alandrina , desafia-vos um só cavalei-
r o ” (Cervantes - 1615; pp. 545 e 546.)
Cansou-se de gritar Dom Quixote sem que o tropel desse a 
menor atenção. Juntou-se ao amo, Sancho Pança, Rocinante e o ruço; 
não para buscarem vingança, mas para partirem, carregando o fardo 
da vergonha, sem se despedirem dos espectadores de tamanha desfeita 
do destino.
% __ _ _
“A p o e ir a e a o c a n s a ç o q u e D o m Q u ix o te e S a n c h o tira ra m d o
d e s c o m e d im e n t o d o s to u ro s, d e u r e m é d io u m a fo n t e cla ra e lím p id a , 
q u e e n c o n tra ra m e n t r e u m fr e s c o a rv o re d o , e à b e ira d a fo n t e s e 
s e n t a r a m a m o e c r ia d o , deixando Rocinante e o ruço livres, sem apare­
lho nem freio . A cu d iu Sancho à despensa dos seus alforjes, e deles tirou o 
que costumava chamar as vitualhas; e n x a g u o u D o m Q u ix o te a b o c a , 
la v o u a ca ra e , c o m e s s e r e fr ig é r io , r e c o b r o u a le n to o s e u d e s a n im a - 
d o e s p ir it o ; n ã o c o m ia , c o n tu d o , d e p e s a r o s o q u e esta v a , e Sancho 
não ousava p o r cortesia tocar nos m anjares que tinha diante de si e espe­
rava que seu amo fizesse a salva; mas, vendo que, levado pelas suas im a­
ginações, não se lembrava de levar o pão á boca, não abriu bico, e, atrope­
lando todo o gênero de boa criação, começou a arm azenar no estômago o 
pão e o queijo.
— C o m e , S a n c h o a m ig o — d is s e D o m Q u ix o te — , s u s te n ta a vida, 
q u e t e im p o rta m a is d o q u e a m im , e d e ix a - m e m o r r e r à s m ã o s d o s 
m e u s p e n s a m e n to s , e à fo rça d a s m in h a s d e s g r a ç a s ; e u , S a n ch o , n a s c i 
p a ra v iv er m o r r e n d o , tu p a ra m o r r e r c o m e n d o ; e para que vejas que 
te digo a verdade, considera-me impresso em histórias, famoso nas arm as, 
com edido nas m inhas ações, respeitado p o r p rín cip es, solicitado de 
donzelas; e, afinal, quando esperava palm as, triunfos e coroas, grangeadas 
e m erecidas p ela s m inhas valorosas fa ça n h a s , vi-me esta m anhã pisado
69
Klcber Duarte Bàrretto
aos pés e moido p o r animais imundos e soeres. E s t a c o n s id e r a ç ã o e m b o - 
ta -m e o s q u e ix a is , e n to rp e c e -m e o s m o la res , e in tu m e s c e -m e a s m ã o s, 
e d e to d o e m to d o m e tira a v o n ta d e d e c o m e r : d e m o d o q u e e s to u 
c o m id é ia s d e m e m a ta r à fo m e , a m o rte m a is c r u e l d e to d a s.
— Então — disse Sancho, sem deixar de mastigar apressadamente — não 
aprova Vossa M ercê aquele rifao que di% 'M o rra M a rta , m o rra fa rta 
E u , p e l o m e n o s , n ã o te n h o id é ia s d e m e m a t a r ;p e lo c o n trá rio , te n ­
c io n o fa z e r c o m o o s a p a te iro , q u e p u x a o c o u ro c o m o s d e n te s , a té o 
fa z e r c h e g a r a o n d e q u e r ; e e u , c o m e n d o p u x a r e i p e la m in h a vida, 
a té c h e g a r a o f ím q u e o c é u d e t e r m in o u : e s a ib a , s e n h o r , q u e n ã o h á 
m a io r lo u c u ra d o q u e a d e q u e r e r u m a p e s s o a d e s e s p e r a r - s e , c o m o 
V o ssa M e r c ê ; e a c r e d it e - m e : c o m a , d e ite -s e a d o r m ir s o b r e o s v e rd e s 
c o lc h õ e s d e s t a s e rv a s , e v erá c o m o s e a c h a u m p o u c o m a is a liv ia d o , 
q u a n d o d e s p e r ta r .
A ssim fe\ D om Q u ixo te, parecendo que as ratões de Sancho eram m ais 
de filósofo que de m entecapto...
A gra d ecen d o -lh e D om Q u ix o te , com eu algum a coisa, e Sancho comeu 
m uito: deitaram -se am bos a dorm ir, deixando entregues ao seu alvedrio , 
pastando a abundante erva de que estava cheio aquele prado, os seus dois 
com panheiros e am igos, Rocinante e o ruço. ” (op. cit.; pp. 546 e 547 ,
Interessante observar como Sancho lidou com a tristeza pro­
funda, ou melhor, com a melancolia que tomava conta de Dom 
Quixote. Ambos viveram a mesma desgraçada experiência, porém, as 
pisadas do tropel parecem ter moído não só o corpo de Dom Quixote, 
mas também seus ideais e a imagem de si mesmo. Ao cavaleiro, o 
próprio espírito estava confundido com a tela grandiosa que pintava 
de si. Por isso perdeu a razão de viver, sua vitalidade esvaiu-se e já não 
lhe aprazia alimentar-se. O escudeiro, cujo apetite era interminável e 
o palavrear não ficava menos atrás, pôs-se a tentar animar nosso amo. 
Seu arrazoado foi tal, que Dom Quixote não deixou de dar-lhe aten­
ção e razão, e acabou por recuperar uma certa vitalidade, alimentan­
do-se e dormindo como sugerira o filósofo Sancho Pança.
70
Ética e técnica no acompanhamento terapêutico
Parece-me que o êxito da intervenção de Sancho deveu-se ao 
fato de ter podido transformar as vivências de Dom Quixote, não 
por meio de uma interpretação — pois nosso amigo Sancho não tinha 
nenhuma pretensão de ser analista — , mas apontando que não há mai­
or disparate que o desespero, e que um pouco de comida e um bom 
sono já haveriam de causar melhoras. Sancho resgata, para Dom 
Quixote, algumas funções vitais dos seres humanos: a alimentação e o 
sono. A primeira fornece uma vivência de que a vida também tem 
coisas boas a oferecer e não só pisòes e macerações; enquanto, o sono 
ajuda a reintegrar o se lf moído e desazado, ao promover um relaxa­
mento e um distanciamento de experiências tão doloridas para o cam­
po da ilusão.
Ah! Não podemos esquecer do refrigério que devolve um sen­
so de corporificação, restabelecendo a unidade corporal. Poderiamos 
ainda enveredar pela função de holding exercida por sítio tao pitores­
co, escolhido para merecido descanso. Local apropriadíssimo para 
acolher nossos quatro amigos. Contudo, creio que o leitor poderá 
enfastiar-se e achar que estamos a dar de tropel em cena tão bucólica. 
Assim sendo, deixemo-los — Dom Quixote, Sancho Pança, Rocinante 
e o ruço — restabelecerem-se em paz, de tão desancado sucesso.
Bem, mas de que maneira está se compreendendo a função de 
continência, aqui, nestas paragens?
A continência é a capacidade — materna, de um analista ou de 
qualquer outra pessoa — de transformar, através da imaginação, as 
experiências de um sujeito. A mãe, utilizando-se de sua capacidade de 
sonhar, transforma as vivências do bebê, simbolizando-as e assim, 
dando um contorno, seja a uma pulsão ou a um sentimento que pode 
ter tomado o ser do bebê. O homem necessita intermediar suas expe­
riências — afetivas, pulsionais, existenciais e outras — , do contrário, 
estas podem ser disruptivas, pois o sujeito passa a viver o horror de 
não mais sentir uma emoção e/ou um sentimento, mas transformar- 
se neles; não mais experimentar um impulso, mas ser este impulso. 
Os símbolos, os mitos, os sonhos, as teorias, as religiões seriam for-
71
Kleber Duarte* Barrettomas que a cultura fornece para relacionar-se e nào se submeter a uma 
determinada vivência.
Essa concepção se aproxima daquilo que Bion (1962-63) cha­
mou de capacidade de rêverie da màe. Ela acolhe as vivências de seu 
bebê marcadas pela sensorialidade e as transforma em algo passível de 
ser pensado (símbolos). Uma possível metáfora para esta função seria 
a de um filtro que recebe água suja e fornece água potável (Safra 1995, 
p. 117).
Susana e Silvia (1985) apontam essa função como a primeira e 
fundamental no exercício do acompanhamento terapêutico: o at fun­
ciona como “um 4agasalho humano\ acompanhando o paciente em sua 
ansiedade, sua angústia, seus temores, sua desesperança, inclusive naque­
les momentos de maior equilíbrio. ” (p. 40)
Concordo que acompanhar nossos pacientes nesse percurso é 
realmente um aspecto fundamental, nào só do AT mas também de 
qualquer relação cuja tarefa implique no desenvolvimento de um pro­
cesso terapêutico e/ou analítico. Acrescentaria que esse acompanha­
mento só é possível se levarmos em conta a história do acompanha- 
do, de sua família e a cultura em que estão inseridos. E a partir desse 
acompanhamento e compreensão que se norteará qualquer interven­
ção junto ao sujeito, seja ela uma ação, uma atitude, um comentário, 
uma proposta, um silêncio e assim por diante. Porém, a imagem de 
"agasalho humano" não faz jus à função que estamos discutindo, pois 
veicula uma idéia de isolamento, de separação entre dois meios, ex­
cluindo a possibilidade de troca presente na concepção de continên­
cia.
Dentro da perspectiva em que estamos trabalhando, a capaci­
dade do terapeuta de acompanhar seu paciente nas suas questões exis­
tenciais é importante, pois aliada a um conhecimento do desenvolvi­
mento psíquico humano, possibilita manejar as situações e a transfe­
rência com maior precisão. Mas, se a função de continência funcio­
nasse como um “filtro”, poderiamos dizer que a de holding cumpriría 
a função do próprio chão onde se pisa, da estrutura óssea que nos
72
E tic a e técnica no acom panham ento terapêutico
sustenta. E claro que essas funçòes se complementam, porém, se nào 
é possível oferecer um bom holding ao paciente (estabelecimento da 
confiança), nosso trabalho corre o risco de tornar-se adaptativo.
Antes que esta discussão se torne um cipoal, do qual dificil­
mente conseguiriamos sair ou entrar, gostaria de ilustrar estas ques­
tões articuladas com a função de continência através de um exemplo 
clínico de AT.
Trata-se de um encontro bastante enriquecedor entre Danielle 
Breyton (1992)9 e José. Aqui transcreveremos apenas os trechos que 
melhor ilustram a função que estamos discutindo:
“A saída se inicia com uma hora de espera na porta do apartamento do 
p a cien te... O porteiro me conta que a noite anterior fo ra terrível: ba ru ­
lho de televisão, rádio e móveis arrastados. D iante das reclam ações dos 
vizinhos, resolve cortar a energia do apartam ento de José, o qual\ im edi­
atam ente, fa % um apelo, alegando medo da escuridão...
Jo sé aparece às 16 horas (hora habitual da outra at), dizendo que estava 
‘na casa dela*. Com expressão bastante assustada e olhos arregalados, fala- 
me qu e na véspera havia visto um a m u lh er m orta. A expressão ‘casa 
dela* refere-se à casa da mãe, em viagem há um m ês...
E n tra n d o no apartam ento m e surpreendo com a lim peza, acostum ada 
que estou em encontrar bitucas de cigarros, roupas espalhadas, vômitos 
pelo chão etc. Sentam o-nos um em fren te ao outro, seus olhos se mantêm 
arregalados. P ergunto se bebeu. N ega e refere-se novam ente à m ulher 
m orta: fU m a m ulher m orta na calçada. M orta de p inga . A alm a não 
existe*. E le , José, não tem alm a, só físico . E u pareço do clube do A d o lf 
H itle r , tenho inconsciente coletivo. \'Quem tem inconsciente coletivoV
n BREYTO N , Danielle c MORKTTIN, Adriana V. "Acompanhamento te­
rapêutico: um caso clínico" São Paulo: Jornal do CRP-06, N.78 julho/agos- 
to de 1992 (Seção enfoque). Agradeço às autoras ter permitido a utilização 
do texto original enviado ao jornal do CRP, pois aquele que foi publicado 
sofreu inúmeras alterações.
Klcbcr Duarte Rarrettn
questiono, ’ As pessoas que sào parede\ responde. Confesso que naquele 
momento nada entendia. Desanimada, digo: ‘Q u e c o n fu s ã o , q u a n t a 
m is tu ra : p e s s o a , co letiv o , p a r e d e . S e rá q u e n ã o fo i is s o q u e te im p e ­
d iu d e d o r m ir ? 9 Põe-se a coçar os olhos e, subitamente, me dou conta de 
que chora.
Do meu lado, se é que nesses momentos existem lados claramente defini­
dos, me emociono e me assusto. N u m a ten ta tiv a d e d a r n o m e a e s t e 
s e n t im e n to , p e r g u n t o s e o q u e ‘b a t e u 9 f o i tristez a . J o s é s e lev a n ta e , 
n u m a m is tu ra d e r is o e c h o ro , e s c la r e c e : *E q u e e s to u s e n t in d o a 
a lm a 9 e e m s e g u id a p r o p õ e u m a C o ca -C o la *n a q u e le b a r d e M o e m a 9 
(local frequentado por ele e uma antiga at, que ocupou um lugar de mui­
ta im portância nesse tratamento).
C o lo c o q u e a tris tez a p o d e t e r a v e r c o m s a u d a d e . S a u d a d e s d a at, 
d a m ã e e p e r g u n t o s e t e m n o t ic ia s d e la s . Reage, dizendo que não, 
depois me pergunta em que dia estávamos (15-01-92, quarta-feira), 'mi­
nha m ãe volta na segunda \ coloca.
E n c a n t a - m e e s s e p r o c e s s o d e r e s s u r r e iç ã o , n o q u a l d e a u s ê n c ia d e 
a lm a , p a s s a m o s a u m a a lm a q u e s e s e n t e , q u e c h o ra e r i e , p r in c i ­
p a lm e n t e , n o q u a l s e r e c u p e r a a p o s s ib il id a d e d e i r e v ir ...99 (grifo
nosso).
Eles vào para o bar mencionado e lá, assim como no trajeto de 
carro, há toda uma interação com Danielle e com os senhores fregue­
ses do bar e o dono. Mais para o final:
“Um novo refrigerante e a conta. E u vou fic a r sozinho?' Protesta. Falo 
da m inha im pressão de que está m elhor, dizendo que os seus olhos não 
estão arregalados. Imediatamente arregala os olhos e lança uma fra se qual­
quer, louca, ê claro. Pudemos rir e rimos.
O carro parado em fren te ao prédio. Jo sé imóvel, suspira: 1tá escuro, você 
não acha? ' , ‘E a chuva...te dá m edo?* pergunto. E m silêncio, observa o 
céu, o prédio, 'h ã o ' responde antes de se despedir. ”
74
#
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
Podemos observar que a intervenção da acompanhante possi­
bilitou a José um religamento com seu mundo afetivo (alma). A me­
táfora da ressurreição, utilizada por Danielle, expressa bem a revitali­
zação e integração alcançadas a partir da continência oferecida por ela 
(at).
Danielle foi capaz de estar em contato com as angústias de José 
e a partir da própria angústia (“ ...nada entendia. Desanimada...”), 
procura dar alguma organização àquilo que podia estar se passando 
com ele. Parece-me que, ao falar da confusão que observava e fazer 
uma ligação com a impossibilidade de ele dormir, pôde refletir para o 
paciente sua situação. A intervenção sintetizou as vivências de José, 
proporcionando-lhe a discriminação daquela massa de angústia que 
ele procurava comunicar à at. Vemo-lo, então, emocionar-se, pois foi 
capaz de entrar em contato com seus sentimentos.
A meu ver, a confusão e a angústia eram decorrentes da impos­
sibilidade de José encontrar contornos para os sentimentos que emer-
/
giram na sua experiência. E interessante observar que a at também se 
emocionou com o choro dele; novamente, vemos a acompanhante 
presente afetivamente na situação. Esse emocionar-se a assusta, mas 
ela não ficou submetida ao susto, à emoção; e assim, procurou dar 
nome ao sentimento que poderia estar provocando a emoção. Á per­
gunta se não seria tristeza, José dizia que estava “sentindo a alma’ em 
um misto de choro e riso. Naquele momento já era possível não só 
reconheceruma alma que sentia, mas também reconhecer que a co­
municação se dava com bom humor e acompanhada de uma propos­
ta de passeio.
Recuperada a alma e a capacidade de sentir por meio da função 
de continência da at, José foi capaz de ser continente aos seus senti­
mentos. Danielle não parou por aí, e tentou ajudá-lo a contextualizar 
este sentimento frente às suas vivências. A tristeza podia estar ligada à 
saudade (um outro sentimento), que por sua vez, poderia ser decor­
rente das férias da acompanhante, que costumava encontrá-lo às quar­
tas-feiras; e da viagem da mãe. Penso, que a pergunta da at, se José 
tinha notícias delas, auxilia-o a resgatar o vínculo com elas na medida
75
Klcber Duarte Barretto
em que circunscrevia a ausência de ambas. Em um primeiro momen­
to, parece difícil aceitar que a saudade pudesse ter a ver com a ausên­
cia delas.
A função de continência seguiu o seguinte percurso: reflexo da 
confusão, emergência de uma emoção que aponta para a presença de 
um sentimento, contextualização do sentimento frente às vivências e, 
finalmente, contextualização do sentimento frente aos vínculos signi­
ficativos. Talvez esse percurso tenha sido intuitivo por parte da acom­
panhante, mas não foi aleatório. Ele nos oferece um aspecto muito 
importante da técnica. Frente a uma vivência caótica — que revela um 
sujeito que se transformou em angústia — devemos primeiro tentar 
refletir sinteticamente o que pode estar se passando, a fim de que se 
possa estabelecer um eu observador no acompanhado; e, eventual­
mente, ele consiga alguma discriminação daquela situação angustian­
te. Se essa etapa não é alcançada — possibilidade de observação — 
nenhum outro passo na percepção de uma interioridade pode ser con­
quistado. Somente por meio de um eu observador, podemos nos re­
lacionar (entrar em contato) com uma angústia, por exemplo, sem 
nos transformarmos nela (sermos angústia). Sc isto foi alcançado, o 
trabalho pode seguir adiante, do contrário, corremos o risco de fazer 
intervenções que apenas incrementam a angústia do paciente.
Penso que todo esse processo compartilhado com um outro 
significativo, leva, naturalmente, a uma relação enriquecedora com o 
mundo da cultura. Como pudemos observar no relato — apesar de 
ter omitido toda a interação que se deu “naquele bar de Moema” — , o 
campo de interação de José se ampliou. No meu entender isso se dá 
na medida em que na relação com um outro ser humano, o acompa­
nhado pôde integrar-se (ressuscitar-se), transformando aquela vivência 
de caos. Essa experiência possibilitou que ele se identificasse com a 
dimensão humana, e não fosse somente corpo físico, e o outro, uma
No final do encontro, a iminência de uma separação volta a 
provocar angústia em José: como lidar com a solidão? A at busca 
refletir o seu (de José) estado emocional a partir da leitura que fez dos
76
Ética e técnica no acompanhamento terapêutico
aspectos nào-verbais (olhos arregalados como indicativo de pavor); e, 
como que confirmando a comunicação dela, ele brinca com o estado 
de pavor que viveu anteriormente, Há um momento de relaxamento, 
devido ao senso de humor de José e, novamente, há emergência de 
angústia: "...suspira: *tá escuro , você nào a cha? '”.K acompanhante 
contextuakza a escuridão ( “é a chuvd\ e nomeia o sentimento que pode 
estar presente ( “te dá medo?9); só, então, é possível uma despedida.
Interessante notar que depois de todo esse percurso, no final 
José recoloca a questão a qual está buscando dar conta: a solidão vivi­
da como escuridão e morte. A despedida da at faz emergir essa ques­
tão novamente, parece que José vive a separação do outro, o estar-só 
como escuridão, ausência de objetos. Agora, é possível compreender 
porque nào dormiu na noite anterior, e ficou arrastando os móveis, 
com a TV e o rádio em alto volume. Para que uma pessoa seja capaz 
de dormir, é necessário que ela suporte a escuridão do sono, o desli­
gamento dos objetos do cotidiano para o mergulho em um mundo 
sem formas. Dormir para José seria cair em uma solidão insuportá­
vel; e para lidar com a solidão que o acompanha na vigília, ele busca a 
companhia da TV , do rádio, do barulho dos móveis. Por meio do 
barulho, José cria uma presença (companhia), que o ajude a suportar 
a escuridão que vive em sua interioridade: as trevas da ausência de 
alma, a impossibilidade de estar em contato com seus sentimentos.
A a t lança alguma luz nessas questões, pois o caminho para sair 
da escuridão é poder manter um diálogo com o mundo afetivo, algo 
bastante difícil para José. Por intermédio do acompanhamento 
terapêutico, ele tem a oportunidade de viver experiências que, even­
tualmente, o auxiliem a ter essa função de continência mais disponí­
vel para si.
Talvez o leitor esteja pensando que na intervenção final, a acom­
panhante tenha ficado presa aos fenômenos físicos (escuridão-chuva), 
e nào lidou com o aspecto da subjetividade de José apresentado aci­
ma. Creio que a chuva naquele momento aponta um fenômeno físi­
co, tanto é que José olha para o céu; mas, ao mesmo tempo, aponta 
para a chuva que em forma de choro pôde resgatar José da escuridão.
77
#
E a natureza reproduzindo no final todo o percurso daquele encon­
tro: as nuvens impedem que a luz do sol chegue até nós, mas a chuva 
as consome, e, também, as alimenta, assim como alimenta a terra. A 
saudade dói, tem sua parcela de tristeza, mas ao mesmo tempo aponta 
para vínculos significativos, para o amor, para a existência de uma 
alma.
Com certeza, a funçào de continência é bastante exercida pelos 
poetas. Estes sào capazes de nomear ou encontrar imagens que veicu­
lam experiências e sentimentos que nos habitam, mas que muitas ve­
zes nào somos capazes de expressar. Sinto-me forçado a fazer uma 
afirmação perigosa que pode acarretar uma profunda injustiça em 
relação aos poetas que esse mundo gestou. Sei que a vida é uma mãe 
que, na maior parte das vezes, é generosa e paciente; e que Deus é 
misericordioso, por isso espero que os atrevimentos de minha infini­
ta ignorância sejam perdoados com o tempo. Para mim — e isso já 
reduz em muito a gravidade do meu ato — nào existe ninguém me­
lhor que Rabindranath Tagore, o poeta hindu, para veicular as 
vivências humanas através dos elementos e dos fenômenos da nature­
za. Encontrá-lo e descobri-lo foi para mim — menino do interior 
crescido no meio do mato — , um bálsamo benigno.
Certa tarde do mês de Julho, época das monções, Tagore foi 
forçado, pelo temporal que desabava, a ministrar uma aula dentro 
dos aposentos de sua rústica escola — a qual, mais tarde, viria a se 
tornar Universidade. As aulas dele aconteciam durante um passeio 
com seus alunos pelo campo ou sentados à sombra de uma árvore. 
Tagore (1979), diante do temporal, toma partido dos fenômenos da 
natureza para desenvolver sua aula. Esta parece mais uma prosa poé­
tica:
“A ssim , mesmo este céu suscita um a resposta em nossos corações desejantes 
de uma expressão como a sua [do céu] para ditçer algo igualmente grande, 
algo que inunde da m esm a m aneira toda a terra , toda a água e todo o 
firm am ento. A linguagem da im ensa N a tu reza , sussurrou nos arroios, 
suspirou nos bosques e m urm urou nas fontes e jam ais se expressa em pala­
vras ju sta s , claram ente definidas, senão em balbucias, em indicações, em
Kleber Duarte Barrett»
78
Ética e técnica no acompanhamento terapêutico
símbolos pictóricos ou musicais. Quando a Natureza fala, apaga as pala- 
vras em nossos corações e nos pede, em troca, como resposta, uma música 
sugestiva do indizível” (pp. 293 e 294, tradução minha do espanhol).
Nào vos preocupeis, meu caro leitor, pois o que conto a seguir 
talvez esclareça a citação acima. A você, meu amigo Sancho, que tem 
o coração mole, porque já nos deu mostras de se derreter como man­
teiga em inúmeras ocasiões; a você não preciso de muitos rodeios 
para confessar que tem em mim um coração irmão.
Acompanho José desde Agosto de 1989. Em nossa caminhada 
fuipercebendo que, à medida que se organizava e se integrava mais, 
ele teria que se defrontar com um mar de dor e de tristeza. Os bura­
cos que as sucessivas crises e inúmeras internações em hospitais psi­
quiátricos tradicionais haviam provocado em seu se lf e na sua vida 
não eram pequenos. José tinha uma grande sensibilidade artística: pin­
tava, fotografava, fazia esculturas em giz... Sua primeira crise ocorreu 
quando cursava o quarto ano da faculdade, ímpossibilitando-o de com­
pletar o curso. Sentia que ao ganhar mais consciência, ele teria que se 
deparar com essas questões.
Certa vez, estávamos em seu apartamento, sentados um em fren­
te ao outro. Entre nós, uma pequena coleção de livros técnicos, al­
guns dos poucos objetos que restaram da época de faculdade. Já haví­
amos folheado estes livros antes, mas aquela tarde foi diferente. En­
quanto cada um de nós olhava um exemplar, senti uma certa emoção 
“no ar”. Esse clima foi crescendo até que resolví perguntar-lhe se ele 
estava querendo chorar. Olhou-me com um certo espanto. Conti­
nuei a folhear um livro sobre diferentes projetos de igrejas. Pensava 
em sua história de vida, em suas capacidades que foram comprometi­
das, na sensibilidade artística que era algo sagrado para ele, naquela 
vida que não pôde realizar plenamente...Todos esses pensamentos avo­
lumaram tamanha quantidade d’água que nào foi possível deixar de 
dar vazão em choro. Caro leitor, confesso que de início esforcei-me 
para controlar as lágrimas, mas a correnteza veio com tanta força que 
rompeu todas as barreiras e a precipitação assemelhava-se a uma cata­
rata. Com o passar do tempo, tornou-se um temporal e só então uma
79
Klcbcr Duarte Barretto
garoazinha. Diante de tamanho fenômeno da natureza, procurei su­
portar a enxurrada sem interromper a “leitura”. Quando serenou, 
olhei para José e este, mais intrigado que espantado, nada falou. Eu, 
da minha parte, fiz um comentário singelo:
— Pois é, às verdes não d á p ra segurar, n é?!
O mais impressionante e inacreditável em tudo isso foi que 
voltando a folhear o livro, voltaram as lágrimas torrenciais. Agora 
menos fortes, mas ainda torrenciais. Toda esta chuvarada nâo levou 
menos que meia hora.
Na época, José e eu não conversamos a respeito dessas intem­
péries e até hoje não tocamos no assunto. Curioso foi o efeito em 
onda que o episódio provocou, pois na supervisão grupai contei o 
que se passou e uma das colegas, também acompanhante de José, se 
pôs a chorar. Na semana seguinte, tocamos no assunto novamente e, 
dessa vez, quem choveu foi o supervisor. O leitor talvez esteja pen­
sando que toda essa chuvarada cheira mais a um fenômeno de incon- 
tinência que de continência propriamente dita. Consegui dar algum 
sentido à experiência quando, tempos depois, vim a ler o relato de 
Margaret Little (1990) sobre sua análise com Winnicott:
“E u fa le i com D . W . sobre um a perda antiga de que me lembrava. H avia 
encontrado um a am iga, *A. *, na escola, alguém que me escolhera p a ra ser 
sua amiga. E la me tornou uma pessoa da sua casa, fazendo eu me sentir à 
vontade em seu quarto, com sua babá e os seus brinquedos. U m dia, de­
pois do feriado, ela não estava mais lá. Depois, durante muitos dias, esta­
va 'doente*; e, em seguida, estava 'morta*. E u havia sido *ind elicad a * e 
*egoísta * não escrevendo p a ra ela. *N ã o pod eria ter me im portado *, ou 
feria escrito \ E l e s e v iu c h o ra n d o p o r m im - e e u p u d e c h o r a r p o r 
c a u s a d is s o c o m o n u n c a fiz e ra a n te s e la m e n ta r a m in h a p e r d a . ” 
(p.48, grifo nosso).
Penso que no episódio relatado sobre José, ocorreu algo seme­
lhante: através do meu choro expressei a dor e a tristeza que ele não 
era capaz de viver e expressar, a não ser de forma acachapante: “estou 
morto”, “eu morri”, “estou cego”, “quebraram as minhas pernas” e
80
Lt/Ca técnica no acompanhamento terapêutico
assim por diante. Winnicott costumava afirmar que em algumas situ­
ações sonhamos o sonho que o paciente nào c capaz de sonhar. A 
própria Margaret Little (1981) vai mais longe, afirmando que, muitas 
vezes, sentimos o que o paciente tem dificuldade de sentir e de inte­
grar ao seu Se/f com relação a uma determinada experiência. Ela tam­
bém aponta a importância de se expressar esses sentimentos.
Recentemente — primavera de 1996 — José e eu fomos passear 
em um parque. Sentamos em um banco, enquanto José fumava um 
cigarro, conversamos entrecortadamente. Mais tarde, sugeriu que pe­
gássemos um ônibus para passear — percurso que já havíamos feito 
nas duas semanas anteriores — , e eu insisti que naquele dia passeásse­
mos por ali mesmo. Falei da primavera: as flores, o verde claro das 
folhas, o movimento do “povo” pelo parque. Resolvemos caminhar 
um pouco por aquele fluxo de pessoas correndo, pedalando, exerci­
tando-se; crianças brincando, patinando e jogando bola; màes com 
seus bebês; pombos voando, marrecos e patos agrupados à beira do 
lago; sabiás e bem-te-vis em coro pelas árvores... Uma verdadeira ex­
plosão de vida! Em um determinado momento, José me pediu para 
que fôssemos ao hospital-dia para ele tomar uma injeção.
— Por que você quer tomar injeção ?
— Porque ê bom.
Pela convivência com José ao longo destes anos, observei que 
apesar de sua medicação não ser feita por meio de injeções, à$ vezes, 
quando ele estava mais angustiado ou experienciando sendmentos a 
que nào conseguia dar contornos, pedia aplicações de injeção. Além 
disso, os passeios ao parque sempre tinham um certo padrão: inicial­
mente recusa e tentativa de ir embora que se transformavam em satis­
fação com toda a experiência. Resolví compartilhar com ele a manei­
ra que estava vivendo aquele momento:
— Isso que estamos vivendo aqui é uma verdadeira injeção de vida. Estar 
passeando aqui com você, batendo papo, vendo as pessoas se exercitando, 
as crianças brincando, os pássaros cantando, as flores, o verde-primavera
Klebcr Duarte Barretto
das árvores, o lago... me d eixa emocionado. Todas essas coisas ju n ta s to­
cam o cor a cão.
j
Não me lembro qual foi sua resposta, mas o pedido de uma 
injeção desapareceu. Andamos um pouco mais e nos sentamos em 
um banco com vista para o lago. Conversamos sobre assuntos varia­
dos. Entretanto, o que mais me chamou a atenção foi um comentário 
“solto” que fez no meio da conversa:
— Nossa, hoje valeu, viu!?
Percebi que nossa experiência tinha sido bastante significativa 
e o fato de compartilhar aquilo que eu estava sentindo ajudou-o a dar 
um contorno simbólico para as suas vivências, bastante diferente de 
lidar com a situação através de uma injeção. Creio que estávamos 
buscando juntos dar um contorno às nossas experiências comuns. 
No trigésimo sexto aniversário de José (1991), dei-lhe de presente um 
cartão no qual escrevi:
José
Q u e haja tempo de germ in a r 
todas as sementes que carregas em ti...
Q u e haja paciência e %elo 
com o m ais frá g il e desprezível ram o...
Q u e haja coragem de contem plar 
as m ais variadas flores 
sem arrancá-las ainda jovens dem ais...
F e liz A n iv ersá rio !
Com carinho,
Kleber
Na época seu único comentário foi:
82
— Essas folhinhas que estão coladas aqui são pra fumar?
Era um daqueles cartões que possuem flores e folhas coladas na 
frente. Os dizeres expressavam a maneira como percebia suas ques­
tões na época e por que nào reconhecer que elas também me perten­
ciam. Qual a possibilidade que ao longo da vida transformemos um 
corpo somente físico em um corpo também habitado por uma alma? 
O que necessitamos para que possamos verter a tempestade em poe­
sia, a chuva em lágrimas e a dor em verso? Como tomar as folhas e 
flores nào só para fumar, mas também como beleza presentificada? 
Talvez todas estas questões desagüem naquilo que aqui chamamos de 
continência.
Agora trataremos de uma não menos importante questào. Apro­
veitemos a coragem inspiradora de Dom Quixote e não nos prive­
mos deesclarecedora aventura.
Ética e técnica no acompanhamento terapêutico
83
Chegaram a um prado cheio de viçosa erva.
VII
Capítulo
No qual se trata da não menos importante função de
apresentação de objeto
á é hora de voltarmos aos nossos amigos, que há tempo saíram do
descanso em busca de aventuras. Optamos por exemplificar a fun­
ção de apresentação de objeto por meio de um contra-exemplo, ou 
seja, quando esta não ocorre ou quando o ambiente falha em exercê- 
la. Mas cá entre nós, muitas vezes nos aproximamos daquilo que bus­
camos pelo seu oposto, e assim, o faremos agora.
Em certa ocasião, em sítio desconhecido e noite adentro, en­
contravam-se Dom Quixote e Sancho Pança torturados por uma sede 
que os acompanhava há dias. Apesar da escuridão, Sancho pôde per­
ceber que a relva viçosa do local indicava a existência de água não 
muito distante. A busca iniciou-se às apalpadelas, pois não se era ca­
paz de avançar de outro modo. Após uns duzentos passos, vieram a 
ouvir um barulho de água que parecia cair de grande altura. A música 
da água banhou-os de felicidade. Porém, a alegria foi fugaz, pois jun­
to da melodia aquática ouviram um estrondo que vinha a compasso. 
Um retinir metálico que parecia fazer a harmonia de alguma sinfonia 
diabólica e monstruosa para espanto da dupla, em especial Sancho. 
Este se viu tomado por uma verdadeira catarata de pavor, o que cer­
tamente aconteceria com qualquer um de nós, exceto é claro com o 
inabalável Dom Quixote de la Mancha. Muitos eram os elementos 
que contribuíam para o estado de espírito cm que se encontrava nos­
so amigo escudeiro: “...a solidão, o lugar, o escuro, o cair da água, com 
o sussurro das folhas, tudo infundia terror e espanto, mormente reparan- 
do-se em que nem os go lp es cessavam, nem o vento adorm ecia, nem a 
manhã chegava, acrescentando-se a tudo isso o não saberem em que lugar 
se achavam. ” (Cervantes - 1605; p.107.)
8 7
Intel
Marcador de texto
Intel
Marcador de texto
Intel
Marcador de texto
Chegaram a um prado cheio de viçosa erva.
VII
Capítulo
No qual se trata da não menos importante função de
apresentação de objeto
J á é hora de voltarmos aos nossos amigos, que há tempo saíram do descanso em busca de aventuras. Optamos por exemplificar a fun­ção de apresentação de objeto por meio de um contra-exemplo, ou 
seja, quando esta não ocorre ou quando o ambiente falha em exercê- 
la. Mas cá entre nós, muitas vezes nos aproximamos daquilo que bus­
camos pelo seu oposto, e assim, o faremos agora.
Em certa ocasião, em sítio desconhecido e noite adentro, en­
contravam-se Dom Quixote e Sancho Pança torturados por uma sede 
que os acompanhava há dias. Apesar da escuridão, Sancho pôde per­
ceber que a relva viçosa do local indicava a existência de água não 
muito distante. A busca iniciou-se às apalpadelas, pois não se era ca­
paz de avançar de outro modo. Após uns duzentos passos, vieram a 
ouvir um barulho de água que parecia cair de grande altura. A música 
da água banhou-os de felicidade. Porém, a alegria foi fugaz, pois jun­
to da melodia aquática ouviram um estrondo que vinha a compasso. 
Um retinir metálico que parecia fazer a harmonia de alguma sinfonia 
diabólica e monstruosa para espanto da dupla, em especial Sancho. 
Este se viu tomado por uma verdadeira catarata de pavor, o que cer­
tamente aconteceria com qualquer um de nós, exceto é claro com o 
inabalável Dom Quixote de la Mancha. Muitos eram os elementos 
que contribuíam para o estado de espírito em que se encontrava nos­
so amigo escudeiro: “...a solidão, o lugar, o escuro, o cair da água, com 
o sussurro das fo lha s , tudo infundia terror e espanto, mormente reparan­
do-se em que nem os go lp es cessavam , nem o vento adormecia , nem a 
manhã chegava, acrescentando-se a tudo isso o não saberem em que lugar 
se achavam. ” (Cervantes - 1605; p.107.)
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Marcador de texto
Klcbcr Duarte Barretto
Mas aquilo que em Sancho infundia medo, em Dom Quixote 
enchia-o dc coragem e bravura, pois via nisso tudo a grande chance dc 
cobrar fama mundial tào logo destruísse o gigante responsável por 
estampido tào monstruoso. Montou Rocinantc imediatamente e pôs- 
se a fazer, como de costume, uma preleçào do ato heróico que se 
descortinava e de seu papel no resgate nào só da Andante Cavalaria, 
mas também da Idade do Ouro ou Dourada. Com tal enfrentamento, 
esperava superar os feitos de qualquer cavaleiro andante que tivesse 
pisado nesse mundo. Encomendou-se a Deus e depois à sua Senhora, 
nào deixando de fazer algumas recomendações ao escudeiro sobre as 
providências que deveríam ser tomadas caso nào saísse dessa aventura 
com vida. As palavras do amo fizeram com que Sancho desatasse a 
chorar com a maior ternura do mundo. Após a cachoeira de lágrimas, 
desatou a apresentar motivos e estratagemas para que o amo desistisse 
da empreitada. Vendo que nada amolecia o coraçào de Dom Quixote, 
tào petrificado já estava pela bravura, fez uma maranha digna de nota 
e esta foi prender “com o cabresto do seu as no ambas as mãos de Roci- 
nante, p o r modo que Dom Ouixote, quando quis pa rtir , não o p ôd e , 
porque o cavalo não podia mover senão aos saltos.” (Cervantes - 1605;
p.109.)
O êxito de Sancho deixou-o apenas um pouco mais aliviado, 
pois o golpear não descontinuou por toda a noite e com isso nào lhe 
descontinuava o medo. A noite foi passada em claro por ambos, ape­
sar da escuridão, e embalada pelos costumeiros colóquios que entre 
eles se davam. Ao raiar do dia, o escudeiro desfez o embuste sem que 
o amo percebesse. Este, ao notar que Rocinante dava mostras dc ter 
recuperado a capacidade de andar, discursou novamente os mesmos 
dizeres da noite anterior, o que provocou no escudeiro a mesma en­
xurrada de lágrimas, rogos e conselhos. Porém, sabendo que nada 
neste mundo faria Dom Quixote recuar diante de temerosa aventura, 
tratou de acompanhá-lo a alguns passos de distância, pois se grande 
risco havia em se aproximar daqueles estampidos, maior ele seria caso 
ficasse sozinho e abandonado em sítio tào distante do trato humano.
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Intel
Marcador de texto
Intel
Marcador de texto
Intel
Marcador de texto
B/ica e t é nu ca no acompanhamento terapêutico
“Cem passos mais feriam andado quando, ao transporem uma quina da 
rocha, apareceu patente a causa que se procurava, e que era a única possí­
vel para aquele horroríssimo ruído, que tanto os espantara, e que tão 
suspensos e medrosos os tivera por toda a noite. A causa única, leitor meu 
(se não levas a mal que to declare), eram seis maços de pisão que alterna­
vam os golpes com todo aquele estampido.
L o g o q u e D o m Q u ix o te viu o q u e e ra , e m u d e c e u , e f ic o u - s e d e to d o 
p a s m a d o . V o lto u -se p a ra e le , S a n c h o , e v iu -o d e c a b e ç a d e rru b a d a 
p a ra o s p e it o s , c o m m o s tra s d e e n v e rg o n h a d ís s im o . Olhou também 
Dom Quixote para Sancho, e viu que estava de bochechas entufadas, e a 
boca cheia de riso, com evidentes sinais de estar por um fri\ a arrebentar- 
lhe a gargalhada. Não pôde tanto com o bom do cavaleiro a sua melanco­
lia, que à vista da cara de Sancho se pudesse conter que também não risse. 
Sancho, vendo que o próprio amo lhe abria o exemplo, rompeu a presa de 
maneira que teve de apertar as ilhargas com as mãos ambas, para não 
rebentar de rir. Quatro vetçes serenou, e outras tantas voltou à mesma 
explosão de hilaridade com a mesma força que a princípio. Já de tanta 
galhofa se ia dando ao Diabo Dom Quixote, mormente quando lhe ou­
viu di^er de chanca: — ‘Hás de saber, Sancho amigo, que eu nasci por 
determinação do céu nesta idade de jerro para ressuscitar nela a de ouro 
ou dourada. Eu sou aquele para quem estão guardados os perigos, as gran­
des façanhas, os valorosos feitos*.
E por aqui foi enfiando todas as ratões que ao amo ouvira, quando come­
çaram aqueles golpes medonhos.
V e n d o p o is D o m Q u ix o te q u e o s e u e s c u d e ir o fa z ia m o fa de le , c o r- 
r e u - s c , e c m ta n ta m a n e ira s e a g a s to u , q u e a lç o u a c h u ç a , e lh e 
a s s e n t o u d u a s b o r d o a d a s ta is . que se, assim como as ele recebeu nas 
costas, as apanhasse pela cabeça, livrariam o amo de lhe pagar as solda­
das, salvo se fosse aos seus herdeiros. S a n c h o , c o n h e c e n d o o m a l q u e a s 
su a s g r a ç a s lh e ia m sa in d o , e r e c e a n d o q u e o e n s in o p a s s a s s e a m a is , 
c o m m u ita h u m ild a d e lh e d is s e :
— T e n h a m ã o V o ssa M e r c ê , s e n h o r m e u , q u e tu d o is to e m m im é
g r a ç a .
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um tipo de uma lança
Klcbcr Duarte Barretto
— P o is s e é g r a ç a e m ti\ e m m im é q u e n ã o o é — r e s p o n d e u D o m 
Q u ix o te ...
— B a sta já , s e n h o r m e u — r e p lic o u S a n c h o — > c o n fe s s o q u e p a s s e i 
d e r is o n h o ... ” (Cervantes - 1605; pp. 112 e 113, grifo nosso.)
Perdoe-me o leitor por ter contado esta aventura quase que por 
completo. Não quis deixar dúvidas sobre o desfecho de tào terrorífica 
noite e de tamanha desavença entre amo e criado, pois nada melhor 
do que uma experiência que tem um começo, um meio e um fim: 
uma experiência completa que, segundo nosso amigo Winnicott (1941), 
exerce uma função constitutiva da subjetividade. Essa concepção sur­
giu a partir de um experimento simples que ele realizou durante vin­
te anos, enquanto recebia màes e seus bebês para consulta pediátrica 
no Paddington Green ChÍldren’s Hospital, em Londres. Observou o 
seguinte:
Ele pedia que a màe segurasse o bebê no colo, sentada do lado 
oposto em que ele se achava; e que não interferisse naquilo que fosse 
se passar. Então, ele fincava um depressor de língua (espátula) no 
canto da mesa, o qual estava entre eles, de tal forma que o bebê pudes­
se pegar a espátula se quisesse; aí, ele vibrava a espátula.
Essa observação foi feita com crianças entre 5 e 13 meses. Ocor­
ria, segundo o autor, um padrão de interação do bebê com essa situa­
ção estabelecida. Havia um primeiro período que ele denominou pe­
ríodo de hesitação, em que a criança percebia a espátula, interessa- 
va-se por ela esboçando algum movimento em direção a eia, mas logo, 
inibia-se. A criança, muitas vezes, ficava observando Winnicott e/ou 
a màe, para ver se o movimento dela teria provocado alguma altera­
ção no ambiente. Era um período marcado pelo conflito, no qual o 
mais importante era esperar e aguardar até que o bebê pudesse fazer 
um movimento próprio em direção à espátula. Qualquer interferên­
cia dele ou da màe (um incentivo, por exemplo), provocava todo um 
incremento da angústia.
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Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
Sc a espera fosse possível, a criança, naturalmente, podia supe­
rar a angústia e pegar a espátula. Passava, então, a colocá-la na boca, e 
a brincar com ela. Safra (1995), apoiado nas idéias apresentadas por 
Winnicott (1941), denomina esse segundo momento como período 
de posse. Todavia, denominaremos essa fase de período de uso, valen­
do-nos das elaborações do próprio Safra (1995b). Se levarmos em conta 
a obra de Winnicott, e não apenas as formulações desse artigo, perce­
beremos fazer mais jus ao seu pensamento se utilizarmos a noção de 
uso e não a de posse, para nos referirmos a esse período. Na teoria 
wmnicottiana, um fator que se leva em conta para um viver criativo 
é a capacidade que um sujeito (bebê, criança ou adulto) tem de usar 
um objeto. Aí, a ênfase não recai na possibilidade de se estabelecer, 
simplesmente, uma relação de objeto; ou ainda, tomar posse dele 
(controlá-lo). Enfatiza-se o apropriar-se e fazer uso de um objeto, o 
que indicaria o potencial criativo do sujeito, na medida em que é 
capaz de tomar um objeto da realidade compartilhada e transformá- 
lo em algo próprio.
Nesse período, o bebê usa a espátula das mais variadas formas. 
A ocorrência de intensa salivaçáo indicaria a satisfação pulsional do 
bebê. Algumas vezes, a criança brincava de estar alimentando 
Winnicott ou a mãe com a espátula. Caso um dos dois levasse a espátula 
à boca, a criança voltaria ao período anterior (hesitação). Era funda­
mental que se respeitasse o jogo da criança, enquanto jogo, para não o 
romper.
O terceiro e último período seria aquele em que há uma emer­
gência da agressividade. O bebê, após brincar com a espátula por um 
determinado tempo, às vezes, acidentalmente, derrubava a espátula 
no chão. Quando esta lhe era devolvida, brincava um pouco mais e 
depois atirava-a ao chão. Então, passava a jogá-la no chão sempre que 
Winnicott ou a mãe lha devolviam. Outras vezes, a criança descia ao 
chão para brincar com a espátula e uma bacia, que também se encon­
trava no local, e depois se desinteressava. Todo esse último padrão de 
interação do bebê indicava para Winnicott que a consulta já havia 
terminado e que a criança podia voltar para casa com sua mãe. Safra
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Mas não se trata apenas de uma interação com o objeto, e sim, de uma apropriação pela qual ele é capaz de tomar o objeto da realidade compartilhada para si, transformando e dando o seu próprio sentido para ele.
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Ele vai rtilizar o objeto de diversas formas. É possível de cordo com o autor observar a satisfação pulsionar da criança através da salivação que ela apresenta. 
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um terceiro momento é caracterizado pela agressividade. Winnicott observou que depois de um tempo em que a criança brinca com o objeto, as vezes a espatula caia no chão, quando os adultos a devolviam ele brincava por nais uns instantes e depois de forma proposital jogava o objeto novamente ao chão, repetindo essa ação outa e outa vez. As vezes elas desciam para brincar com espatula no chão mesmo, até perder o interesse. E era aí que para Winnicott chegavasse ao fim do atendimento
Klcbcr Duarte Barretto
(1995b) denomina essa fase como período de separaçào, onde a crian­
ça já está pronta para ir embora. Por meio da agressividade e, depois, 
pelo desinteresse, ela indica que pode separar-se daquela situaçào. A 
separaçào, nesse momento, c buscada e nào temida. Winnicott obser­
vou ainda que, se a consulta terminava quando houve a emergência 
desse tipo de comportamento, o bebê nào chorava ao se despedir, 
diferentemente daqueles que, por algum motivo, tinham de ir embo­
ra no primeiro ou segundo período.
A possibilidade de viver uma experiência completa (experienciar 
os três períodos descritos acima) implicava, para alguns bebês, uma 
transformação de se/f. Winnicott chamou a essa transformação de li- 
çào de objeto. Ele apresenta vários casos em que tratava de um bebê 
— com asma ou inibição de apetite — através dessa situaçào estabelecida, 
na qual, durante inúmeras consultas, ele colocava a criança no pró­
prio colo e aguardava até que ela pudesse experienciar, de maneira 
satisfatória, esses três períodos. Quando o bebê era capaz de viver 
uma experiência completa, os sintomas desapareciam de uma forma 
mais duradoura.
Assim, poder se interessar por um objeto, ousar usá-lo e, en­
tão, separar-se dele, constituía em si uma hçào de objeto. Uma expe­
riência integradora e constitutiva, na medida em que existia um co­
meço, um meio e um fim; e que o ambiente respeitasse e aguardasse o 
ritmo da criança e o surgimento de um gesto espontâneo, ou seja, um 
movimento que partisse do bebê e que não fosse determinado pelo 
meio ambiente (mãe e/ou pediatra).
Estou desenvolvendo essas questões de forma relativamcnte ex­
tensa, nesse momento, por serem elas de vital importância para o 
pensamento clínico \vinnicottiano. Vale a pena ressaltar o fato de que, 
nesse experimento, Winnicott apresenta um método de intervençãoclinica que dispensa a fala e/ou a interpretação, o que desemboca nos 
campos que estamos transitando. Nessa maneira simples de conduzir 
uma consulta pediátrica já está esboçada toda a maneira de Winnicott 
compreender o processo terapêutico e/ou analítico; assim como o 
movimento dentro de uma sessão. Um processo analítico ou a pró­
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essa etapa é denominada segundo Safra, como período de separação, nesse momento a criança está pronta para regressar ao lar, após caminhar da agressividade para o desinteresse ela sinaliza que já está pronta para separa-se daquela situação, essa separação se dá por desejo da própria criança e dessa forma ela não chora ao se despedir, diferente das crianças que precisavam ir embora já nos primeiros períodos.
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Et/ca e técnica no acompanhamento terapêutico
pria sessào serão satisfatórios, dentro dessa perspectiva, se puderem 
transcorrer por esses três períodos.
No processo terapêutico, isso se daria pela hesitação do pacien­
te frente ao tratamento, até o momento em que se caminhou o sufici­
ente para se estabelecer uma confiança no vínculo e se pode usar o 
vínculo e a figura do analista (questões transferenciais), assim como a 
pessoa real do analista. Isso implica que o setting analítico necessita 
vir a ser destruído pelo paciente. Caminha-se com o paciente até o 
ponto em que a relação do par analítico pode interromper-se, o que 
marcará a possibilidade do sujeito vir a exercer sua capacidade analíti­
ca em autonomia do analista.
Na sessào, esse movimento se daria pela angústia que marca o 
início do encontro, até o momento em que a comunicação entre o 
par analista-analisando se estabelece. Ou seja, quando é possível por 
parte do analista compreender aquilo que o paciente estava buscando 
dar conta; então, é possível trabalhar a questão. Quando esta é traba­
lhada, o nível de angústia diminui, até que a situação é desinvestida, e 
o paciente sente que a sessão pode terminar, pois “nào há mais nada 
que elaborar naquele encontro”.
Safra (1995b), afirma que esse tipo de experiência — com come­
ço, meio e fim — assemelha-se ao próprio processo de vida: nascimen­
to, constituição do sujeito e morte. Então, dentro de uma sessào ou 
de um processo analítico, do ponto de vista winnicottiano, há uma 
oportunidade de se experienciar o próprio ritmo da vida.
Espero que o leitor se lembre como deixamos nosso amigo 
Sancho Pança. Creio que, a essa altura, o moído escudeiro já esteja 
um pouco menos dolorido. Pobre Sancho, nào se deu conta de que 
fazer ironia com Dom Quixote naquele momento era tirar-lhe o pouco 
que lhe restava de honradez, já bastante abatida por nào encontrar a 
aventura que sua imaginação lhe afigurou.
As coisas caminharam de tal forma que o ambiente nào apre­
sentou os gigantes, mas sim maços de pisào, frente aos quais Dom 
Quixote teve roubada a oportunidade tào propícia para mostrar o
93
Klebcr Duarte Barrctto
valor de seus braços. A melancolia provocada por tal desilusão pôde, 
em um primeiro momento, ser relativizada pelos risos de Sancho. 
Entretanto, a tolerância de Dom Quixote vai se esvaindo, transfor­
mando-se em cólera, quando o escudeiro refere-se ironicamente à pos­
tura cavaleiresca do valoroso amo frente ao frustrante desfecho da 
aventura; isso coloca em cheque o próprio ser de nosso cavaleiro. Sua 
honra, portanto, sua alma estão ameaçadas pela ironia de Sancho Pan­
ça, daí, nada mais óbvio que defendê-la como se estivesse em luta 
contra atrevidíssimo monstro.
Sancho Pança não foi capaz de perceber que ser irônico com 
Dom Quixote daquela maneira e naquele momento representava uma 
sobrecarga de desilusão. Poderiamos dizer que a ironia funcionou 
como um objeto insuportável, pois incrementou ainda mais as angús­
tias de Dom Quixote.
A função de apresentação de objeto está relacionada à capacida-
0
de da mãe se colocar exatamente ali onde foi alucinada. E toda a capa­
cidade do ambiente de sustentar o processo de ilusão e ir, gradual­
mente, fornecendo experiências que apontem para a separação eu e 
nâo-eu (desilusão); modulando esta desilusão (separação) de tal forma 
que não coloque o eu do bebê em dispersão (angústia de aniquilação).
Esses fenômenos ocorrem naturalmente se a preocupação ma­
terna primária foi estabelecida, pois a mãe se coloca de tal maneira 
que ela protege o bebê de um excesso de estímulo e procura dosar as 
experiências, de acordo com a capacidade de assimilação do bebê.
Segundo Winnicott, é pela função de apresentação de objeto, 
exercida pelo ambiente, que o bebê desenvolverá o que ele denomi­
nou capacidade de realização. A realização está relacionada com os 
recursos que o bebê vai adquirindo na percepção das dimensões de 
espaço e tempo, ou seja, a noção de processo. As falhas nessa função 
levariam o sujeito a uma dificuldade e/ou incapacidade em operar 
nessas dimensões, podendo acarretar também um sentimento de 
irrealidade, no qual o sujeito não sente que está no mundo.
94
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
Toda essa discussão torna-se importante por ocorrerem com 
certa freqüência no AT reações bastante explosivas de nossos acom­
panhados; chegando, às vezes, à agressão física — voltada para o at, 
para o meio ambiente ou contra si mesmo — assim como se passou 
com Dom Quixote e Sancho Pança. São situações de impasse que, 
muitas vezes, implicam na interrupção do trabalho com um determi­
nado acompanhante ou com o acompanhamento em geral.
Parece-me que são situações em que nós, ats, fazemos alguma 
coisa — comentário, atitude ou gesto — que ultrapassa o limite do 
que o sujeito é capaz de suportar. Algo que, em um outro momento 
ou com outra pessoa, seria considerado banal pode ser o detonador 
de uma explosão ou implosão agressiva ou, ainda, alguma vivência de 
desespero.
Penso que pouca validade há em se abordar essas situações como: 
“o(a) acompanhado(a) é agressivo(a) mesmo”; “de vez em quando acon­
tecem essas reações”; ou procurar lidar com elas por meio de proibi­
ções. O que essas situações parecem revelar é que o volume de angús-
*
tia transbordou. E importante, então, poder localizar qual (quais) foi 
(foram) a(s) “gota(s) d’água”, que tipo de angústia foi mobilizada e 
poder conversar com o sujeito sobre esses aspectos, em um momento 
de maior tranqüilidade, ou seja, quando da parte do acompanhado e 
do acompanhante exista um eu observador (discriminação dos senti­
mentos, das emoções, das pulsões e de outros aspectos). Nessas situa­
ções, é fundamental que o at possa reconhecer — se for o caso — que 
houve uma falha da sua parte, para não deixar o acompanhado sim­
plesmente no lugar do “louco”. Esse tipo de experiência — conversar 
sobre o que se passou — pode ser algo inovador, pois, geralmente, 
essas “explosões/implosòes” já ocorreram inúmeras vezes, sem que 
tenha havido a possibilidade de compreender o que o sujeito estava 
tentando dar conta com essa reação.
Contarei uma experiência que tive no acompanhamento, a qual 
ilustra aquilo que estamos discutindo.
95
Klcbcr Duarte Barrctto
Milton e eu caminhavamos pelas ruas dos jardins. Ele estava 
comendo um desses salgadinhos que vêm embalados em saquinhos e 
quando terminou continuou com a embalagem na mào. Exatamente 
no momento em que passavamos em frente a um restaurante, ele co­
locou o saquinho em cima de um dos vasos da entrada principal. Eu 
achei a situação meio absurda e, logo, comentei: “Oh, Milton! Qu’é 
isso?!”. Vínhamos em silêncio e em silêncio ele ficou, pois começou a 
correr. Surpreendi-me com a disparada, mas como já estávamos perto 
de sua casa, imaginei que pudesse encontrá-lo lá. Então, decidi conti­
nuar caminhando.
A surpresa foi ainda maior quando cheguei a sua casa e encon­
trei-o aos prantos — um choro desesperado mesmo —■, e sua mãe e 
avó materna tentando acalmá-lo. Procurei assumir a tarefa de ajudá- 
lo, conversando um pouco com ele. Deitou-se no chão, ainda choran­
do bastante, mas aos poucos foise acalmando.
Essa situação ocorreu no primeiro ano de trabalho como at; e, 
devido à inexperiência e/ou um temor de que as coisas piorassem, 
não toquei no assunto do saco de salgadinho no vaso e do meu co­
mentário.
Milton estava saindo de um período de profundo retraimento. 
Isso provocava até uma inibição da movimentação física. Uma das 
coisas que se passava era que “existia” um superego atroz da parte dele 
— e o meu não ficava muito atrás, é claro — , uma forte exigência de 
perfeição, que fui percebendo ao longo da convivência. Minha inabi­
lidade foi fazer uma intervenção, aparentemente banal, mas que devi­
do às características de Milton e ao momento que estava atravessan­
do, somente incrementou suas angústias, e não pude compreender 
seu gesto como uma tentativa de conseguir alguma autonomia frente 
às exigências (suas e sociais). Minha atitude foi extremamente mvasiva, 
pois além de não compreender seu gesto, forçava-o a adaptar-se (sub­
meter-se) às regras sociais.
Talvez pudéssemos passar adiante e visitar sítios mais amenos. 
Mas antes mesmo de passar ao próximo capítulo, gostaria de apresen­
tar uma experiência vivida com José que ilustra aqueles momentos
9 6
raros em que o mundo nos apresenta aquilo que buscamos de manei­
ras bastante inusitadas. A menos que essas histórias estejam causando 
aborrecimentos, caro leitor, rogo-vos que persevereis nestas andanças. 
Como já sabemos, um dos passeios preferidos de José se resume em 
compras nas papelarias, ou seja, materiais de escritório em geral. O 
interesse por esse tipo de material veio crescendo à medida que ele foi 
se integrando mais. Certo dia, quando passeavamos por uma grande 
papelaria, ele começou a dizer que gostaria de comprar um estojo de 
objetos relacionados com o curso que interrompera durante a pri­
meira crise. Argumentei que o estojo era caro e que precisaríamos 
checar com seus pais a possibilidade de comprá-lo. Aconteceu de nào 
encontrarmos tal estojo naquela loja, mas o fato de eu ter condiciona­
do a compra à autorização de seus pais esfriou sua motivação.
Durante a semana fíquei pensando no episódio e acabei con­
versando sobre ele e em minha análise pessoal. A preocupação era 
que percebi em mim uma inclinação para ajudá-lo na compra do ob­
jeto, mesmo que isso implicasse que fosse descontado aos poucos a 
fim de que não pesasse no orçamento familiar. Temia que estivesse 
me indiscriminando com os desejos de José. Conversando sobre a 
situação com meu analista, pude perceber o significado e a importân­
cia desse objeto na história de vida dele. Não se tratava tanto de uma 
possibilidade de resgate de sua profissão, mas sim que ele pudesse 
estar cercado em sua casa por objetos significativos. Após essa con­
versa, estava disposto a financiar a compra do estojo caso o encon­
trássemos.
No encontro seguinte, fomos a um bazar de material de segun­
da mão para doar um colchão velho. Na verdade, José queria barga­
nhar o colchão por uma máquina de xerox quebrada; proposta que 
nào foi aceita pelo funcionário. Já havíamos estado nesse bazar que 
tem de tudo um pouco e logo José e eu saímos à procura de uma 
barraca. Em determinado momento, comentei que talvez pudésse­
mos encontrar ali o estojo que ele tanto desejava. Provavelmente terí- 
amos que passar lá de vez em quando, a fim de dar uma checada para 
tentar encontrar o estojo. Enquanto conversávamos, íamos caminhan­
do pelos diferentes aposentos do local e, de repente, eis que vi algo
Ètua e técnica no acompanhamento terapêutico
97
Klcber Duarte Barretto
que me lembrava um estojo. Apontei-o para José e fomos em direção 
ao objeto e descobrimos que não era apenas um estojo, mas um jogo 
mais completo do tipo de material que ele desejava. Tudo isso por 
uma bagatela. Compramos e ele todo satisfeito, quis levá-lo para casa 
a fim de limpá-lo e organizá-lo. É claro que, por se tratar de um ma­
terial relacionado ao período de faculdade, José não somente realiza­
va um sonho, mas também revivia alguns pesadelos, os quais o grupo 
de a ts teve que ajudar a enfrentar.
A função de apresentação de objetos depende da capacidade do 
at estar identificado com o acompanhado, ao mesmo tempo em que 
utiliza o que apreende por esse processo a favor do crescimento do 
sujeito. Trata-se do que foi chamado por Winnicott de devoção. A 
questão é que o estado de identificação em relação ao outro implica 
em uma colocação secundária do próprio narcisismo, o que nem sem­
pre é fácil de manter. Falhar nessa função implica em uma interven­
ção brusca que pode colocar o sujeito em angústia intensa. O fato é 
que a própria reação do acompanhado auxilia o at a reencontrar o seu 
lugar na relação e ainda amplia a consciência de seus próprios confli­
tos (do acompanhante).
98
Capítulo
VIII
No qual se aborda a função de manipulação corporal
(handling) e o contato com as 
necessidades corporais
Segundo Winnicott, todo o contato corporal màe-bebê é de funda­mental importância para o desenvolvimento psíquico da criança. 
Ao carregá-la no colo, ao banhá-la — ou em qualquer outro momento 
—, a manipulação do corpo do bebê possibilita que esse corpo seja 
humanizado e simbolizado na relação com o outro. A mãe pode reco­
nhecer as necessidades corporais do bebê (fome e excreção, por exem­
plo) e dar a elas uma organização simbólica, assim como, utilizar do 
corpo como veículo de expressão de afetos e emoções. Todas essas 
experiências possibilitam que o bebê venha a habitar seu corpo, ou 
seja, promovem aquilo que Winnicott chamou de personalização. Esse 
processo está relacionado à possibilidade do sujeito possuir uma inte­
gração psique-soma, algo que de forma alguma é dado como inato, 
mas precisa ser conquistado no decorrer do desenvolvimento. As fa­
lhas no exercício dessa função acarretam desde uma hipotonia muscu­
lar até casos em que o sujeito não se reconhece e/ou não se localiza no 
próprio corpo.
Imagino que vós, leitor, ainda vos lembreis quando nossos ami­
gos foram pisoteados pelo tropel de touros, mais bravos que mansos. 
Pois, então, penso que Sancho Pança também ajudou Dom Quixote, 
na medida em que, oferecendo comida a ele, pôde reconectá-lo ao seu 
próprio corpo e à sua vitalidade. E claro que estar atento às necessida­
des alimentares não é das tarefas mais difíceis para Sancho, muito 
pelo contrário, isso pouco esforço lhe custa. Não entendais com isso, 
caro leitor, que estou qualificando nosso amigo Sancho de glutão, 
como o fez um certo autor, embusteiro e oportunista, que se anteci- 
pando a Cervantes, lançou uma segunda parte das aventuras de Dom
99
KJcber Duarte Barretto
Quixote. O que estou dizendo é que Sancho não é afeito aos costu­
meiros jejuns dos cavaleiros andantes.
Muitas vezes, uma regressão pode levar a uma perda de contato 
com as necessidades corporais. O corpo é vivido como algo estranho, 
dificultando a percepção das necessidades básicas.
Eis um exemplo de como o acompanhante pode intervir nessas 
situações. Estando na casa de seu acompanhado, o at percebeu que ele 
foi ficando agitado e começou a andar de um lado para outro, mos­
trando estar aflito. Depois de algum tempo, o acompanhante se lem­
brou de que, quando era pequeno, às vezes, ficava assim no momento 
em que precisava ir ao banheiro; então, perguntou a ele:
— Você não tá querendo ir ao banheiro?
— Tò sim — respondeu bastante aliviado e se dirigindo ao ba­
nheiro.
Podemos observar que o at, a partir de uma experiência pesso­
al, pôde reconhecer uma necessidade corporal do paciente, e ajudá-lo 
a integrá-la à sua vivência.
Clarice, uma garota de 18 anos, recebeu-me em seu apartamen­
to. A aparência dela não era das melhores naquela tarde de sábado. 
Na cama, uma porção de fotos espalhadas. Entregou-me umas folhas 
que havia escrito. Essas falavam de muitas coisas: da confusão que 
estava vivendo; de seu sofrimento; da relação com a ex-at; da história 
da família; da separação de seus pais; da piraçào da mãe; da ausência 
do pai; das tentativas de suicídiode um de seus irmãos; da sua sexua­
lidade e as “barras” que enfrentava com relação às proibições da mãe.
Não dormia há três noites: quarta-feira porque se sentiu muito 
contente; quinta e sexta por ter passado mal e ficar pensando em uma 
solução diante da ameaça da mae, que não a agüentava mais mandá-la 
para o interior. Estava muito confusa e angustiada com tudo isso. 
Não sabia quem era ela e quem era sua mãe. Debatia-se por não saber 
se era outra pessoa, apesar de saber que eram duas pessoas separadas. 
Conversamos por um bom tempo, sentados no chão, sobre esses confli-
WO
Btica e técnica no acompanhamento terapêutico
tos; procuramos umas fotos que havia “escondido” e depois fomos 
ver o pôr-do-sol do terraço do prédio. No finai do encontro estava 
bem mais tranquila e, depois, combinamos que eu viría no dia se­
guinte para uma reposição. Brinquei:
— Clarice, vê se dá uma dormida porque senão o corpo nao aguen­
ta, hein?!
No outro dia recebe-me com o seguinte comentário:
— Dormi pra caramba esta noite!
— Oue bom! — respondi.
A brincadeira visava chamar a atenção de Clarice para sua ne-
*
cessidade corporal mais premente: o sono. E claro que o comentário 
final vem depois de todo um percurso que pôde ser feito entre nós 
com relação às angústias que estava vivendo.
Em relação a José, nós do grupo que o acompanha, deparamo- 
nos com a necessidade de “lembrá-lo” da higiene pessoal, especial­
mente os banhos, que não parecem ser a sua especialidade. As vezes, a 
indicação do banho se dá pela impossibilidade, que o at vive, de estar 
dentro do carro com alguém que não visita o chuveiro há dias. Curi­
osamente, quando José e um acompanhante foram passar uns dias na 
praia, ele tomava banho diariamente sem precisar ser lembrado e o 
que deixou o terapeuta ainda mais pasmo era a cantoria debaixo do 
chuveiro. In felizmente, essa experiência se restringiu aos períodos de 
viagem, pois José, no dia-a-dia, continuou evitando a água.
Vejamos como Sancho Pança, habilidosamente, tenta usar as 
necessidades corporais do amo para mostrar que ele (Dom Quixote) 
não estava encantado como acreditava. Esse último, mais habilidosa­
mente ainda, pois na capacidade de argumentação não há quem o 
supere, defende-se e justifica-se através da ação dos nigromantes con­
tra sua pessoa.
Ia, pois, Dom Quixote engaiolado em cima de um lento carro 
de bois. Engaiolado e encantado por nigrom antes vestidos e 
encapuzados. Entretanto, nem a Sancho assustavam, por acreditar que,
101
Kleber Duarte Barrctto
ou melhor, por estar convencido de que dois deles eram, na verdade, 
o cura e o barbeiro, seus amigos, que por pura inveja das façanhas 
perpetradas pelo amo, levavam-no de forma tào humilhante. Nosso 
amigo Sancho criou um estratagema para mostrar ao amo seu equívo­
co, pois “claro se v ê que não vai encantado, mas sim embaído e logrado. 
E, para prova disso , lhe quero perguntar uma coisa e, se me responder 
como espero, tocará com a mão neste engano e verá que não vai encanta­
do, mas curado do jn i\p.” (Cervantes - 1605; p. 285)
Diante da colocação de Sancho, Dom Quixote tratou logo de 
abrir-lhe os olhos a respeito dos incríveis poderes dos mgromantes, 
especialmente, aqueles que o queriam prejudicar. Alertou que o in­
tuito deles era meterem Sancho num labirinto de imaginações, para 
com isso fazê-lo — Dom Quixote — vacilar no seu entendimento. As 
justificativas do amo deixaram Sancho indignado:
“■— l 'aIha-me Nosso Senhor — respondeu Sancho, dando um grande bra­
do —, pois é possível que seja Vossa Mercê tào duro de cabeça e tão falto de 
miolo que não veja que é a pura verdade o que eu digo, e que nesta sua 
prisão e desgraça entra mais a malícia do que o encantamento?” (op.cit.,
p. 286).
Após algumas discussões e rogos e juras, Sancho decidiu fazer a 
pergunta que tanto desejava, com a esperança de que a resposta faria 
com que o amo tocasse com a mão neste engano:
11— Digo eu que estou certo da bondade e verdade de meu amo, e assim 
pergunto, falando com o devido respeito, porque fa~ muito ao caso do 
nosso conto, s e d e p o is q u e V o ssa M e r c ê e s tá e n g a io la d o e e n c a n ta d o , 
c o m o d iz , já lh e d e u v o n ta d e d e fa z e r á g u a s m a io re s e m e n o r e s 
c o m o s e co stu m a d iz e r?
— N ã o e n t e n d o is to d e “fa z e r á g u a s ”, S a n c h o ; e x p lic a -te m e lh o r , s e 
q u is e r e s q u e te r e s p o n d a d ire ito .
— Será que não entende Vossa Mercê o que seja fa^er águas menores ou 
maiores? Pois na escola desmamam-se os meninos com isto. Saiba, pois, 
que quero ditçer que se lhe veio a vontade de fa^er o que não se escusa.
102
EL ti ca e técnica no acompanhamento terapêutico
— Já, já te entendo, Sancho! B muitas ve^es; e ainda agora a tenho. Tira- 
me deste perigo que já não saio limpo de todo!
— Ah — disse Sancho — apanhei-o; era isso o que eu desejava saber, tanto 
como à alma como à vida. Ora venha cá, meu senhor; pode negar o que 
por ai se costuma di^er vulgarmente quando uma pessoa está maldisposta: 
‘Não sei o que tem fulano que não come, nem bebe, nem dorme, nem 
responde com acerto ao que lhe perguntam, que não parece senão que está 
encantado*? Donde se conclui que os que não comem, nem bebem, nem 
dormem, nem fatiem as obras naturais que eu digo, estão encantados, 
mas que o não está quem tem a vontade que Vrossa Mercê tem agora, 
quem bebe quando lhe dão de beber, e come quando tem de comer, e 
respondem a tudo o que lhe perguntam.
— Difes a verdade, Sancho — respondeu Dom Ouixote —, mas eu já te 
disse que há muitos gêneros de encantamentos, e que pode ser que se mu­
dassem com o tempo de uns para outros, e que se use agora fazerem os 
encantados tudo o que eu faço, apesar de não o fazerem antes. De manei­
ra que contra o uso dos tempos não há que argüir, nem que tirar consequên­
cias. Sei e tenho para mim que estou encantado, e isto me basta para a 
segurança da minha consciência, que ficaria sobressaltada se eu pensasse 
que o não estava, e me deixasse ir nesta jaula, preguiçoso e cobarde, de- 
fraudando o amparo que pode ri a dar a muitos necessitados, que devem 
ter a estas horas extrema urgência do meu auxílio e valimento. ” (op.cit.; 
pp. 286 e 287, grifo nosso.)
Mais uma vez Sancho Pança vai em socorro de seu amo. Ape­
sar de que sua intenção fosse outra — mostrar ao amo que não havia 
encantamento algum — , pelo menos, reconhecidas as necessidades de 
Dom Quixote de “fazer águas maiores e menores”, começaram a pla­
nejar um meio de dar vazão ao que estava represado. Como poderia 
estar tão valoroso e destemido cavaleiro, engaiolado em cima de um 
carro de bois, se não fosse por obra de encantamento? Sancho estava 
muito bem intencionado: mostrar ao amo o engano em que corria, 
por achar que tudo aquilo fosse indústria de seus inimigos nigromantes. 
Para resolver a situação, usa de todo seu poder de persuasão, e sua 
argumentação atende a uma lógica de fazer inveja a qualquer retórico.
103
Kleber Duarte Barrctto
Entretanto, fazer com que Dom Quixote tivesse consciência de que 
nào ia encantado, significava destruir todo o apoio à existência do 
amo, o que implicaria jogá-lo em um buraco existencial insuportável.
A intervenção retórica do escudeiro era uma armadilha que 
visava ao convencimento de que havia um erro. Esse tipo de inter­
venção nào dá conta da angústia, mas incrementa-a consideravelmen­
te, a nào ser que o sujeito tenha a habilidade de raciocínio de nosso 
cavaleiro, para escapar do embuste. Haja visto o que se passou entre 
André e seus irmãos (pp. 45 e 46).
Tenho certeza de que Sancho evitaria esse caminho, se tivesse 
consciência de suas possíveis implicações. A intenção do escudeiro 
era das melhores, como mencionamos, pois além de proporcionar o 
alívio tão necessitado pelo amo, ainda procurou incentivá-lo para que 
continuassem a procurar aventuras. Esse incentivo, cumpre uma fun­
ção de holding, pois sustenta aquilo que davasentido à vida daquele 
que um dia foi fidalgo e que por obra dos inimigos lá ia engaiolado e 
puxado por um carro de bois.
Somente para satisfazer a curiosidade do leitor, devo dizer-vos 
que tudo correu bem no que concerne às águas, mas o lançar-se em 
novas aventuras nào ocorreu tão rapidamente como desejavam escu­
deiro e cavaleiro.
O exercício da função de handling depende da maneira como o 
at habita o seu corpo. Winnicott mencionava a importância da pre­
sença psicossomática do analista para que pudesse auxiliar seu anali­
sando nessa questão. Trata-se da leitura do corpo do outro a partir do 
próprio corpo. Cá estamos nós outra vez mergulhados na questão da 
identificação útil e necessária. O acompanhante, na medida em que se 
movimenta pelos diversos espaços vitais do acompanhado, tem uma 
possibilidade ímpar de intervir no processo de personalização do su­
jeito. Este apoiando-se no que observa dos movimentos do acompa­
nhante no espaço pode, ainda por meio de imitações e introjeções, 
recuperar a própria carne.
104
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
Aproveitando o ensejo, gostaria que nos encaminhássemos a 
uma outra função que Sancho Pança tentou exercer com Dom Quixote 
no exemplo acima.
105
Assim c, como Vossa Mercê diz, senhor cônego acudiu o cura
Capítulo
IX
Do valor da desilusão, ou ainda, da capacidade de dis­
criminação: realidade subjetiva e realidade
compartilhada
Há pouco, Sancho procurava ajudar Dom Quixote a discriminar a realidade compartilhada daquilo que ele atribuía ao encanta­
mento de nigromantes. Estes últimos, de tal forma, perseguiam nosso 
valoroso cavaleiro, que o impediam de exercer o bom julgamento, 
nas situações mais simples. Vejamos, como o amo nos coloca a par 
desta trama diabólica contra sua pessoa cavaleiresca:
"— Por Deus, meus senhores — disse Dom Quixote — , são tantas e tão 
estranhas as coisas que neste castelo, das duas ve^es que aqui tenho estado, 
me hão sucedido, que me não atrevo a di^er afirmativamente coisa algu­
ma do que se perguntar acerca do que nele se contêm, porque imagino 
que tudo que aqui se trata é por via de encantamento. Da primeira ve% 
muito me derreou um mouro encantado, e Sancho não se deu muito bem 
com os outros, seus sequasçes, e esta noite estive pendurado por um braço 
cerca de duas horas, sem saber como vim a cair em semelhante desgraça.
De forma que pôr-me eu agora em coisa tão confusa a dar o meu parecer 
seria cair em juPço temerário. Pelo que toca a diferem que isto é bacia e 
não elmo, já respondí; mas, enquanto a declarar se isso é albarda ou jae^ 
não me atrevo a dar sentença definitiva, e exclusivamente o deixo ao 
bom parecer de Vossas Mercês; talveẑ , por não terem sido armados cava­
leiros como eu, não hajam que ver com Vossas Mercês os encantamentos 
deste lugar, e tenham livres os entendimentos, e possam julgar as coisas 
deste castelo como elas são, real e verdadeiramente, e não como a mim 
me pareçam.” (Cervantes - 1605; p. 269.)
Em outros momentos, ele se confunde devido ao descabimento 
das experiências às quais tào ilustre cavaleiro é forçado. Quando o 
enjaularam para levá-lo de volta ao seu vilarejo natal, viu-se diante de
109
Klcbcr Duarte Barretto
um dilema entre aquilo que lera nos livros a respeito de encantamen­
tos, e o que estava vivenciando naquele momento.
“Quando Dom Quixote se viu daquela maneira engaiolado, e em cima 
do carro, disse:
— Muitas e mui graves histórias tenho eu lido de cavaleiros andantes; 
mas nunca li, nem vi, nem ouvi, que aos cavaleiros encantados os levem 
desta maneira, e com a demora que prometem estes preguiçosos e tardios 
animais; porque sempre os costumam levar pelos ares com estranha ligei­
reza, encerrados nalguma parda e densa nuvem, ou nalgum carro de 
fogo, ou sobre algum hipogrifo ou outro animal semelhante; m a s q u e 
m e lev em a m im num carro d e bois, viva Deus, qu e m e p õ e em 
con fu são . Talvez a cavalaria e o s en can tam en tos d o s n o sso s tem pos 
devam d e s e g u ir ou tro cam inho do qu e segu iram antigam ente; e 
também pode ser que, como eu sou cavaleiro único no mundo, e o pri­
meiro que ressuscitei o já olvidado exercício da cavalaria aventurosa, 
também novamente se hajam inventado outros gêneros de encantamen­
to e outros modos de levar os encantados.. Q ue t e p a r e c e , Sancho, 
filho?
— Não sei o que me parece — respondeu Sancho —, por não ser tão lido 
como Vossa Mercê nas escrituras andantes; mas, com tudo isso, ousaria 
afirmar e ju rar que estas visões, que por aqui andam, não são de todo 
católicas.
— Católicas! pai do céu! — tornou Dom Quixote — como hão de ser 
católicas se são todos demônios, que tomaram corpos fantásticos para vi­
rem fazer isto e pôr-me neste estado? E, se quiseres ver esta verdade, toca- 
lhes e apalpa-os, e verás que os seus corpos são ar, e que não têm mais que 
as aparências.
— Por Deus, senhor — redargüiu Sancho — , já lhes toquei; e este diabo, 
que aqui anda tão solicito, é roliço de carne e tem outra propriedade 
muito diferente da que eu ouvi dizer que têm os demônios, porque, se­
gundo se conta, todos tresandam a enxofre e outros maus cheiros, mas
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
este a meia légua se conhece que recende a âmbar. ” (op. cit, p. 277; grifo 
nosso.)
Sancho está sempre tentando mostrar a Dom Quixote que a 
realidade é outra que não aquela dos encantamentos, mas como po­
der crer que tão valoroso cavaleiro possa ser transportado, como lou­
co, dentro de uma jaula? Agora, temos elementos para compreender 
a confusão em que se achava Dom Quixote, ao ver-se engaiolado. No 
final do capítulo anterior, vimos como a tentativa de Sancho Pança 
de mostrar a “realidade” ao amo não fora bem sucedida. Dom Quixote, 
no diálogo acima, aponta qual sentido estava dando àquela tào inacei­
tável experiência, apesar dos esforços de Sancho de provar o contrá­
rio daquilo que o amo acreditava estar acontecendo.
Já discutimos, anteriormente, o papel da ilusão na constituição 
da subjetividade humana e sua importância na constituição da reali­
dade. Para Winnicott, o estabelecimento do contato com a realidade 
faz parte de um processo maturacional.
Inicialmente, o sujeito necessita ser satisfeito em sua ilusão. Isto 
é fundamental na medida em que — tendo a ilusão de estar criando a 
realidade, o mundo que o rodeia — ele buscará a realidade por amor, 
porque nela pode encontrar os objetos necessitados.10
Segundo Winnicott, só faz sentido falar em desilusão se o bebê 
(ou o paciente) pôde ter satisfeita sua onipotência na relação com 
outro ser humano. Caso isto não ocorra, o sujeito não poderá ter 
uma vinculaçao criativa com o mundo, com a cultura; ele terá como 
opção o isolamento (casos de autismo e esquizofrenia) ou uma sub­
missão à realidade (casos de neuroses, falsos selves e aquilo que se tem 
chamado de personalidades normóticas).
m
E uma maneira bastante distinta dc conceber o contato com a realidade da­
quele proposto por Frcud ou Klein. Segundo estes, buscamos a realidade a 
partir da frustração da tentativa dc satisfazer alucmatoriamente nossos dese­
jos. lemos aí o princípio de realidade como algo que é imposto ao sujeito e 
ao qual ele se submete.
111
Kleber Duarte Barrctto
No processo de desilusão, será importante a possibilidade do 
sujeito suportar as separações e/ou frustrações. Além desses elemen- 
tos, a agressividade e a sobrevivência do objeto terão um papel funda­
mental, segundo a concepção winnicottiana. O sujeito precisa ser ca­
paz de colocar sua agressividade ou destrutividade no vínculo com 
outra pessoa e este sobreviver, ou seja, o vínculo sobreviver. Não 
apenas sobrevivência física, é claro; mas também psíquica, podendo 
acolher a agressividade sem retaliá-la ou paralisar-se. É só através des­
sa experiência que o objeto pode ser percebido como algo externo ao 
sujeito, como algo que está fora do controle de sua onipotência. Aí 
então, se estabelece, com maior clareza,a noção de externo e interno 
para o indivíduo.
Essa capacidade de discriminação externo/interno (realidade 
compartilhada e realidade subjetiva) é algo passível de ser desenvolvi­
do, na medida em que um outro possa exercê-la conosco.
Vejamos como isso pode se dar no campo do AT.
Milton estava no apartamento de sua mãe escutando música no 
quarto. Cheguei, ficamos ouvindo e cantando Chico Buarque por 
algum tempo. Ele disse que não sabia o que fazer. Falei que poderia­
mos dar uma saída, passear um pouco. Ele respondeu que não estava 
a fim e que preferia ficar ouvindo música. Em certo momento, viu 
seu irmão aprontar-se para sair. Isso aumentou ainda mais a sua an­
gústia, pois além de ter ficado um pouco mais chateado, o que pude 
observar por sua expressão facial, começou a fazer pequenos movi­
mentos de balanceio com a mão, sinal característico da presença de 
um conflito, geralmente, uma dúvida angustiante — vale lembrar que 
a convivência com Milton ocorria há três anos e foi possível, ao lon­
go desse tempo, apreender esta linguagem nào-verbal. Sentou-se na 
cama ao meu lado em silêncio. Então perguntei o que estava se pas­
sando com ele:
"— Fico confuso com as duas casas — responde.
— A sua, onde seu pai mora e esta da sua mãe?
*
—EL
1 1 2
Ética e técnica no acompanhamento terapêutico
— Milton, será que não é mais um conflito dentro de você?
— Não... o problema é o Valdique.
— Quem é o Valdique?
— O namorado da minha mãe.
— O que tem ele?
— Ele me incomoda.
— Como?
— Ah! Ele é diferente do meu pai.
— I 'ocê tem comparado os dois?
*
— E
— Mas, Milton, na verdade não existe ninguém que seja igual a outra 
pessoa.
— Isso é.
— Tal ve ̂ você ainda imagine que seu pai e sua mãe pudessem voltar a 
estar juntos.
*
—E
— Você sente em relação à Vanderléia, mulher de seu pai, a mesma coisa 
que você sente em relação ao Valdique?
■— Não.
— Então, talve ̂ você ache que o Valdique tire de você uma atenção que 
sua mãe poderia te dar.
— E isso.
— Mas, Milton, eu acho que o problema não é o i 'áldique, por ele ser 
namorado da sua mãe. Eu acho que a vida mesmo vai restringindo o 
tipo de atenção que você está querendo de sua mãe, mesmo que ela não 
tivesse namorado, ela tem uma série de outras exigências. E por isso que
113
klcber Duarte Barrett
eu falei que era um conflito mais dentro de você e em relação à vida. Um 
lado que quer se desenvolver, ja^er coisas e outro que quer mordomia, 
ficar acomodado. B um conflito seu em relação à vida.
— Ah! Era assim desde o com eco.
j
— Que começo?
— Quando eu ainda estava estudando, eu ficava pensando: Ah! dá um 
tempo, *cê pode dormir agora, estuda depois, deixa pra depois. Eu ficava 
pensando essas coisas.
— Então, Milton, é muito mais uma divisão dentro de você: faper as 
coisas, poder funcionar ou ficar morgando, entregue ao prazer itnedia-
Após esse diálogo, foi possível perceber uma visível alteração 
em seu estado de humor. Poder-se-ia dizer que o acompanhamento 
propiciou uma saída daquele estado angustiado em que ele se encon­
trava. Uma saída daquela situação conflitante em que estava, inicial- 
mente, nas duas casas, no namorado da mãe, e que pôde ir gradual­
mente se dessensorializando e se localizando como um conflito 
intrapsíquico. Se, por um lado, um conflito muito mais amplo do 
que inicialmente imaginado, por outro, um conflito passível de ser 
pensado e elaborado. Promoveu-se um alívio de angústia, pois pôde 
perceber que não estava preso e submetido a todas essas pessoas e 
situações. Ou seja, podendo localizar a questão como um conflito 
intrapsíquico tornou-a passível de elaboração, pois já independia das 
outras pessoas.
Houve um ganho de interioridade e uma percepção mais glo­
bal de si. Isso fez com que ele mesmo propusesse fazermos um pas­
seio. Fomos ao pátio do prédio e lá permanecemos por um bom tem­
po cantando e assistindo á brincadeira da garotada.
No exemplo acima, houve todo um percurso no diálogo até 
que Milton pudesse se dar conta do conflito psíquico. Inicialmente, 
tratava-se de algo concretizado e, gradualmentc, a conversa ajudou-o 
a discriminar um pouco mais a realidade compartilhada. Assim como
Et; ca e técnica no acompanhamento terapêutico
Sancho Pança, o at no início estava afoito para lhe mostrar o “erro”, 
ou seja, onde a seu ver estaria localizada aquela problemática toda. 
Houve, por parte do acompanhante, um rompimento do tempo do 
paciente, que uma vez respeitado, pôde compreender melhor o que 
podería estar lhe ocorrendo.
Penso, que essa é uma funçào que pode c deve ser exercida pelo 
at. A questão que se coloca é o respeito ao tempo do paciente e a 
capacidade do acompanhante abordar a situação em uma linguagem 
coloquial (do dia-a-dia) e nào teórica. Trata-se da possibilidade de se 
utilizar de uma desilusão, a fim de que esta venha a enriquecer o cam­
po de experiências do acompanhado. Quando isso se dá de uma ma­
neira brusca, o que observamos é uma reaçào imediata do paciente. 
Creio que nào seria adequado tratar essas situações apenas de uma 
perspectiva de resistência ao processo terapêutico ou como defesa fren­
te ao contato com o mundo psíquico. Se é possível respeitar o tempo 
do paciente, ele busca e coopera com essa funçào discriminatória. 
Essas questões estào intimamente relacionadas com a função de apre­
sentação de objeto (vide Capítulo VII).
Outro aspecto importante a ser ressaltado é que a discrimina­
ção entre realidade subjetiva e compartilhada ocorrida com Milton 
foi continente às suas angústias. Pudemos observar que, quando isso 
ocorre no encontro do at com seu acompanhado, este espontanea­
mente se movimenta em direção ao mundo cultural. A saída ou um 
passeio deixa de ser algo imposto pelo enquadre (acompanhante, equi­
pe de tratamento e/ou sua família), e passa a ser fruto de um gesto 
próprio, que parte de dentro dele e nào do mundo externo. lanto 
nos relatos que apresentamos dos encontros entre Renata e Lúcia (Ca­
pítulo III); entre Damclle e José (Capítulo VI); e tanto no que acima
apresentamos, é possível observar o seguinte fenômeno: um movi­
mento que parte da mterioridade do paciente, na medida em que as 
angústias cjue o paralisavam, puderam ser, minimamente, elaboradas.
É importante ressaltar que o at, ao colocar-se em funçào do 
sujeito nos diversos encontros que ocorrem, dá a possibilidade de 
que o acompanhado o crie segundo a própria imaginação. O acompa­
115
Klcber Duarte Rarretto
nhante é o sonho do sujeito no mundo, ou seja, o profissional deixa- 
se ser objeto subjetivo do acompanhado constituindo o estado de 
ilusão. Ao longo do tempo, quando a confiança está estabelecida, é 
possível apresentar algo da realidade psiquica/externa de maneira que 
seja suportável e, cntào, passível de ser recuperada pelo acompanha­
do. Foi o que ocorreu na situaçào relatada com Milton: sustentou-se 
seu movimento em busca da realidade compartilhada. A angústia com­
partilhada com o outro torna-se suportável e humanizada. Ela se arti­
cula no espaço e no tempo, saindo do campo das experiências infini­
tas.
Na esperança de que esses assuntos nào estejam muito obscu­
ros e sem sentido, convido o leitor a passarmos adiante.Trataremos 
de questões não menos importantes e delicadas do que aquelas que 
acabamos de discutir.
f 16
Capítulo
X
Onde se discute a função de interdição
Caro leitor, imagino que ainda tenha fresco na memória o episó­dio dos pisòes gigantescos, no qual nosso amigo Sancho Pança 
levou as bordoadas quase fatais do amo. Vejamos como prosseguiu 
tao dolorido colóquio à medida que os nervos foram serenando:
“— Basta já , senhor meu — replicou Sancho — , confesso que passei de 
risonho; mas diga-me Vossa Mercê, agora que filemos as pa~es, assim Deus 
o tire para o futuro de todas as aventuras tão são e salvo como desta o 
livrou: não fo i coisa de rir, e não é para se contar, o grande medo que 
tivemos ? pelo menos o que eu tive, que de Vossa Mercê já eu sei que o não 
conhece, nem sabe o que venha a sertemor nem espanto.
— Não nego — respondeu Dom Quixote — que o sucesso não fosse mere­
cedor de riso; mas digno de contar-se é que não é, porque nem todas as 
pessoas são tão discretas, que saibam pôr as coisas em seu lugar.
— Vossa Mercê pelo menos — respondeu Sancho — soube pôr no seu lugar 
a chuça, apontando-me à cabeça, e dando-me nas costas, graças a Deus e 
ao cuidado que eu pus em revirar-me a jeito. Mas vá lá, que tudo afinal 
há de ser pelo melhor, que sempre ouvi dijer: ‘Quem bem ama bem casti­
g a ' e mais, que os senhores principais, em dizendo palavra má a um 
criado, logo em desconto lhe dão para umas calças; o que eu não sei bem 
é o que lhe costumam dar depois de lhe terem dado bordoadas, se não ê 
que depois das bordoadas os cavaleiros andantes dão ilhas ou reinos em 
terra firme.
— Tal podería correr o dado — disse Dom Quixote— , que isso que dijes 
chegasse a ser verdade; e perdoa o passado, pois és discreto, e sabes que os 
primeiros movimentos não estão na mão do homem. Fica porém daqui 
para diante advertido duma coisa, para que te abstenhas e coíbas
Klcbcr Duarte Barrctto
no falar dem asiado comigo: que em todos quantos livros de cavalarias 
tenho lido, e que são inumeráveis, nunca achei escudeiro que pairasse 
tanto com seu senhor como tu com o teu; e em verdade que eu o tenho por 
grande falta da tua e da minha parte; da tua porque nisso mostras respei­
tar-me pouco; e da minha, porque me não deixo respeitar como devera.
(...) De tudo que te digo hás de inferir, Sancho, que é necessário fazer- 
se diferença de amo a moço, de senhor a criado, e de cavaleiro a escu­
deiro; portanto de hoje avante devemo-nos tratar mais respeitosa­
mente, sem nunca nos confundirmos um com o outro... "(Cervantes 
- 1605; pp. 113 e 114, grifo nosso.)
Infelizmente, a interdição para os gracejos de Sancho tiveram 
de vir na forma de umas boas chuçadas e só mais tarde Dom Quixote 
fez um recontrato da relação entre amo e escudeiro, ou melhor,
A
recolocou as pautas dessa relação. E claro que tudo isso foi feito, como 
vimos, buscando uma melhor relação entre os dois, pois esta esteve 
por um triz graças ao riso deslocado de Sancho.
Já caminhamos o suficiente para abordarmos essa função que 
em hipótese alguma é menos importante que as demais. Entretanto, 
apresentamo-la somente agora por acreditar que a interdição de uma 
pulsão pré-genital só cumprirá seu papel de promover o desenvolvi­
mento de um sujeito quando esta pulsão tiver sido vivida na relação 
com um outro significativo. Da mesma forma que a desilusão só faz 
sentido se, anteriormente, houve a ilusão; a interdição será enri- 
quecedora apenas se tiver existido uma satisfação anterior. Valéria 
esclarecermos essas funções, sob pena de acreditarem que estamos li­
dando com funções sinônimas. Poderiamos dizer que a função de 
interdição auxilia o processo de desilusão, mas este último é mais 
amplo.
Segundo Safra (1995):
“Para que qualquer interdição da satisfação de uma pulsão possa ser 
estruturante ao psiquismo do indivíduo, é fundamental que antes elas 
tenham encontrado expressão e satisfação. A. pulsão precisa ter encontra­
do satisfação na relação com alguém a quem a criança ame; só então, essa 
pessoa poderá ajudar a criança a simbolizar a pulsão e a utilizá-la em
118
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
favor de seu desenvolvimento. Se não possuirmos essas condições, tere­
mos não uma interdição que leva ao desenvolvimentoy mas sim uma 
privação que levará a criança à busca de um objeto que compreenda a 
sua necessidade...
A necessidade psíquica, que não pôde ser satisfeita por não encontrar um 
objeto disponível para isso, fica confundida na mente do indivíduo com 
uma necessidade corporaf ou com uma forma de erotismo.” (pp. 128 e
129).
Penso que o valor da citação está em recolocar a questão da 
interdição frente à história do sujeito. Vale apontar que dentro do 
campo do AT, pelo menos aqui em São Paulo, predomina uma visão 
que privilegia basicamente a iunção de interdição, pois se compreen­
de a psicose a partir da fusão do sujeito e de sua mãe. Assim sendo, 
uma das principais preocupações, dentro dessa perspectiva, é a inter­
venção (interdição, discriminação) nessa fusão, nessa relação dual. Na 
visão que estamos desenvolvendo, winnícottiana, a interdição é uma 
entre inúmeras outras funções. O processo de simbolizaçào não é 
compreendido como fruto da castração do desejo ou da interdição da 
destrutividade, mas sim do potencial alucinatório do ser humano. 
Esse potencial, como vimos anteriormente, poderá se desenvolver 
através da capacidade imaginativa, desembocando naquilo que 
Winnicott chamou de espaço potencial. Discutiremos um pouco mais 
amplamente essa questão no Capítulo XVI.
A função de interdição tem sido bastante trabalhada na litera­
tura psicanalítica também como função paterna, pois “está relaciona­
da com o terceiro objeto que interfere na relação mãe-bebê. Está conectada 
com a presença física ou simbólica do p a i” (op. cit., p. 124). Teríamos 
basicamente três modalidades dessa função: interdição da pulsão oral, 
interdição das pulsões anais e interdição cdípica.
Talvez fosse interessante se pudéssemos ver como isso pode se 
dar no trabalho de AT. O fato de possuir um carro, poder dirigi-lo e 
ficar dando voltas intermináveis pela cidade representava para Flávia 
uma grande fonte de satisfação. O carro muitas vezes era vivido como 
parte do próprio corpo, um lugar onde ela se achava potente. Em
119
Intel
Marcador de texto
Intel
Marcador de texto
Klebcr Duarte Harretto
conversas chegava a cogitar a possibilidade de trabalhar como taxista 
já que gostava muito de dirigir e tinha habilidades para isso. Entre­
tanto, quando estava muito angustiada, o que era o mais frequente, 
punha-se não mais a dirigir, mas sim, a pilotar, o que a colocava, e os 
outros também, em situação de grande risco. O perigo era tão sério 
que houve períodos nos quais alguns limites e proibições tiveram que 
ser colocados por parte da equipe terapêutica. Tivemos fases em que 
ela esteve completamente proibida de dirigir, fases em que a angústia 
era intensa e/ou depois de ter se envolvido em acidentes. Pequenos, 
na sua maioria, e em outras ocasiões não tão pequenos assim. Em 
outros momentos, podíamos passear com seu carro, porém quem se 
encarregava da direção era o at, o que às vezes despertava muita inveja 
e ciúmes em Flávia. Inveja do acompanhante por estar dirigindo e 
ciúmes dele por estar dirigindo seu carro. Em outros períodos ela 
tinha a permissão de dirigir somente quando acompanhada, sendo 
que ao at quedava a tarefa de avaliar as condições de dirigibilidade 
dela. Para isso usávamos como critério o “estado de espírito”, em 
outras palavras, o nível de angúsda dela e o do nosso também. Este 
último vinha a ser que, quando não nos sentíssemos seguros em estar 
no carro com ela dirigindo, não permitiriamos que ela dirigisse e, 
caso já o estivesse fazendo, pediriamos que nos passasse o comando 
do carro. Essas diretrizes funcionavam bem, geravam alguns confli­
tos — reclamações e acusações — , mas tudo dentro do manobrável e 
do contornável.
Certo dia, durante uma fase em que reinava o último tipo de 
combinação, ou seja, o acompanhante avaliava se ela tinha condições 
ou não de dirigir, pudemos compartilhar um encontro mui interes­
sante. Foi durante esse reinado do lusco-fusco, no qual já não se sabe 
dizer se é dia ou se é noite e na verdade são as duas coisas ao mesmo 
tempo. Pois é, foi em um desses dia-noite desse reinado em que Flávia 
e eu estávamos para sair a passear. O que vos fala, na dúvida, disse que 
sim, “sim, você começa dirigindo”. Como podem imaginar, esse era 
o começo de uma grande aventura. A certa altura, ou melhor, a certa 
distância do passeio, comecei a me sentir desconfortável com a 
“dirigibilidade” de Flávia, o que queria dizer que ela estava aceleran-
1 2 0
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
do um pouco demais para o meu gosto. Pautadona combinação da 
equipe terapêutica, resolví comunicar-lhe que nào estava me sentindo 
seguro e que, entào, gostaria de assumir o volante. Porém, a resposta 
de Flávia nào foi ao encontro de nosso malfadado contrato. Disse que 
não me entregaria a direção porque achava que estava dirigindo bem. 
Até aí, uma simples divergência de opiniões, algo que é mais do que 
comum entre os humanos. O fato foi que o prosseguimento da con­
versa deixou ambos um pouco alterados, o que, em termos de trânsi­
to, é deveras complicado e comum na comarca paulistana. Insistia 
que ela encostasse o carro, pois nào me sentia seguro e dizia que ela 
estava correndo demais. Flávia rebatia que nào estava correndo e por 
isso continuaria dirigindo. E assim andamos mais um tanto: eu com 
o coração na mão e os dois com os nervos à flor da pele. Senti que não 
adiantava argumentar e falar mais duro, porque nào chegaríamos a 
lugar nenhum, ou melhor, continuaríamos rodando em uma veloci­
dade “desconfortável”. Diante do impasse instalado ocorreu-me uma 
idéia mais radical que foi a seguinte.
Eu sei que não deveria ter mudado de parágrafo porque o tema 
continua o mesmo, mas o parágrafo anterior já estava me oprimindo 
de tão interminável que estava. E assim foi que de um golpe só, na 
esquina das avenidas Brasil com Rebouças, no momento em que o 
farol estava vermelho e ela teve de parar o carro, rápido como um 
gafanhoto tirei a chave do contato e consegui que o motor morresse 
definitivamente. Estava decidido que somente sairia dali dirigindo o 
carro, ou eia teria que empurrá-lo. Como se afirma em Física que a 
toda ação corresponde uma reação em igual valor no sentido contrá­
rio — e confesso que por essa eu não esperava — , Flávia, simplesmen­
te, se negou a sair do banco do motorista. Lá estávamos nós enrosca- 
dos novamente. O pior de tudo isso é que o farol não esperou que o 
conflito se resolvesse e foi logo se esverdeando, o que provocou um 
enorme furor dos paulistanos que se encontravam atrás de nós. Re­
volta esta muito comum nas paragens semaforais dessa metrópole. A 
discussão se acalorou ainda mais tendo como fundo musical o buzinaço 
dos atrasadinhos e apressadinhos. De discussão passamos a um emba­
te corpo-a-corpo quando comecei a usar a força física para demovê-la
121
Kleber Duarte Barrctto
do assento principal. Nào vos preocupeis, prezado leitor, porque usei 
a força com muita delicadeza. Mas Flávia que de fraca nào tem nada, 
resistiu firmemente a essa nova investida. Para completar o quadro, 
somou-se ao buzinaço, os vendedores ambulantes que vinham ofere­
cer frutas e ferramentas e coisas afins. Ela parece ter tomado o apare­
cimento dos vendedores como uma boa oportunidade de tentar re­
solver a situaçào em seu favor, pois foi logo dizendo para eles falarem 
comigo para que eu devolvesse a chave. Vendo o circo armado, um 
deles deve ter sido iluminado pelo velho ditado “em briga de marido e 
mulher não se mete a colher” porque diante daquela situação, assim 
respondeu aos apelos de Flávia:
— Não, não! Em briga de namorado a gente não se mete não, dona. 
Resolvam a í ocêis mesmo.
Nesse empurra-empurra com trilha sonora e coadjuvantes fica­
mos um bom tempo. A saída última foi abandonar o barco e ir bus­
car a calmaria da ilha localizada entre as vias, ali onde os ambulantes 
montam acampamento. Tentava apaziguar os nervos e estava decidi­
do a aguardar até que ela resolvesse mudar de banco. Houve mais 
umas duas tentativas frustradas dela de convencer os vendedores a 
falarem comigo. Finalmente, cedeu ao meu distanciamento e mudou- 
se para o banco ao lado e lá fui eu de chave em punho a fim de dar 
prosseguimento à jornada que, àquela altura do campeonato, seria 
direto para sua casa. O diálogo que se passou ainda em trânsito nào é 
menos digno de nota. Tomei o assento principal e dei marcha àquilo 
que deveria ser uma “direção segura”, capacidade que desaparecera 
naquele turbilhão de ódio. Flávia nào tardou em perceber que a dire­
ção nào passara a melhores mãos e logo apontou o logro:
— Você tá dirigindo super mal! Cê ja lou que queria dirigir porque 
eu não estava dirigindo bem, mas você tá p ior que eu! Q uer que eu diri-
ja ?
A primeira parte de sua comunicação nào se tratava de uma 
indagação ou suposição, mas sim de uma constatação à qual tive que 
humildemente aceitar. Porém, mesmo ciente de que o volante estava 
meio à deriva, retruquei:
1 2 2
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
— E claro, depois de tudo isso fiquei nervoso! Mas pode deixar que 
agora eu dirijo até sua casa.
E foi assim que a disputa pelo volante chegou ao fim. Para 
coroar o retorno, logo após a resolução dessa disputa, ela comenta 
com ares de uma alegre surpresa:
— Cê viu que os vendedores acharam que a gente era namorado?!
No momento ainda estava tomado pelo odio e indignou-me 
ainda mais o fato de ela fazer pinçar esta pérola do meio de todo 
aquele pampeiro. Aproveito o ensejo para vos advertir-vos — caro 
leitor, amigo a t e futuros pretendentes a esta atividade — , que o cru­
zamento da Brasil com a Rebouças já está famoso na equipe a que 
pertenço, pois esse foi mais um entre tantos outros episódios, não 
menos pitorescos e angustiantes, vividos nessas esquinas por nossas 
duplas de aventuras. Quando algum de nós começa a contar uma situ­
ação em que o acompanhado desceu do carro no meio do trânsito e 
abandonou o acompanhante em apuros em pleno engarrafamento ou 
coisas do gênero, logo afirmamos:
— Ah! Foi a li na Brasil com a Rebouças, né?i
Talvez o leitor esteja mal impressionado com o emprego da 
força na tentativa de resolver o problema. E, talvez tudo isso pudesse 
ter sido evitado se de início não a deixasse dirigir... E , sabe-se lá... 
Entretanto, posso lhe garantir que Flávia não ficou traumatizada com 
a experiência, pois na semana seguinte, quando se encontrou com sua 
outra at comentou a respeito de um escândalo que fizera durante um 
jantar com seus pais em um restaurante:
— E eu f i ̂ todo aquele escândalo no meio do restaurante e meu pai 
não fe% nada, ficaram quietos. Ele é bastante diferente do K leber que 
outro dia ficou super bravo comigo p o r causa do carro.
O comentário pareceu indicar que a briga que tivemos deixou 
uma marca positiva nela. Alguém, no caso uma figura masculina, que 
era capaz de colocar um limite aos seus impulsos controladores.
123
Alguns meses depois desse episódio, Flávia e eu vivemos uma 
outra experiência nào menos edificante. Era um período em que esta­
va sob um acompanhamento intensivo, cerca de uns dez atsy que se 
revezavam de tal forma que só nào estávamos com ela durante o sono 
noturno. O acompanhamento se iniciava pela manhã com alguém 
acordando-a e terminava à noite quando ela dormia. O motivo dessa 
intensidade era evitar que Flávia fosse internada, nào porque ela esti­
vesse tão mal assim, mas porque seus pais nào estavam sendo capazes 
de lidar com ela. Estavam esgotados e em grande parte promoviam 
um maior enlouquecimento de Flávia pela maneira como interagiam 
com as situações. Nessa época, a combinação em relaçào ao carro era 
a já mencionada anteriormente, de que ela podia dirigi-lo somente na 
presença de um acompanhante. A chave do carro era passada de at 
para at e quando havia um intervalo em que não ocorria esse encon­
tro, a chave era deixada com um dos pais. Flávia nào estava autoriza­
da a ficar com as chaves, pois temíamos que pudesse “aprontar” e 
colocar-se em situações de risco. Saímos a passeio em um sábado à 
tarde, e ela sugeriu que fôssemos ao Jockey Club de São Paulo. Era 
um programa que pensávamos fazer há muito tempo e finalmente 
iríamos realizá-lo. Diferentemente de Flávia, eu nunca havia estado 
lá, então eia foi me mostrando as coisas e explicou-me como funcio­
navam as apostas. Olhamos os cavalos e fomos ao guichê fazer nossas 
apostas. Cada um fez a sua e ambos apostaram em um duplo, ou seja, 
quais seriam os cavalos que chegariam em primeiro e segundo não 
importando a ordem.O valor da aposta era irrisório, pois os bolsos 
não permitiam esbanjamento. De volta à arquibancada, sentamo-nos 
em nossos lugares e esperamos a largada do páreo. Torcíamos discre­
tamente, porque a distância não permitia que distinguíssemos os ca­
valos. A expectativa e a torcida aumentaram na reta final, quando os 
cavalos em que Flávia havia apostado assumiram a liderança e cruza­
ram a linha de chegada. Comemoramos a vitória e parabenizei-a pelo 
feito. Nào preciso dizer-lhes que o meu palpite ficou longe de ser o 
resultado final. Logo partimos para um dos guichês a fim de coletar o 
prêmio, o qual se nào era uma fortuna também nào era pouca coisa 
em vista do investimento inicial. A bolada seria ainda maior se ela
Klcbcr Duarte Barrett
124
Ética e técnica no acompanhamento terapêutico
tivesse feito a opção dupla, mas dizendo qual seria o primeiro e o 
segundo respectivamente, pois seu palpite foi exatamente o resultado 
daquele páreo. Fizemos mais algumas apostas, entretanto, a fortuna 
não soprou como no início. Ela, prudentemente, pensava no que com­
praria com o dinheiro ganho, pois nào tinha intenção de gastá-lo em 
corridas de cavalo. Decidiu que compraria uma camisa no shopping e 
lá fomos nós. Escolheu uma camisa de seu gosto e que coubesse no 
montante ganho no Jockey. Voltamos contentes para sua casa. Aque­
le havia sido um passeio bastante divertido. Ficamos conversando 
por um tempo, esperando que o próximo at chegasse, ou pelo menos 
um de seus pais. Minha preocupação era entregar a chave do carro 
conforme o combinado. Possuía um compromisso e não podia esten­
der o horário mais do que já havia estendido. Flávia percebeu minha 
preocupação e disse:
— Ah! Pode ir embora se você quiser. Por que você nao esconde a 
chave em algum lugar e depois liga avisando onde está?!
Achei a idéia interessante, pois resolvería bem a situação. Co­
mecei a procurar um lugar para esconder o chaveiro, enquanto ela 
aguardava na sala. Aos poucos nào pude evitar a sensação de ridículo 
que ia me invadindo por sentir que estava tratando Flávia como uma 
criança irresponsável. É claro que as proibições em relação ao carro 
faziam sentido e ela mesmo dera motivos para que se estabelecesse 
essas condições. Mas tudo isso contrastava, em muito, com a experi­
ência que tivemos juntos naquela tarde. Percebia que ela estava tran- 
qüila e que o passeio tinha sido significativo, o que me dava a sensa­
ção de que eia não estava desesperada para sair de casa. Resolvi fazer 
uma aposta em Flávia. Voltei para sala e disse:
— Flávia, eu acho que você pode se responsabilizar p ela chave. 
Não tem sentido escondê-la de você. Vou deixá-la aqui nesta gaveta e 
você avisa a quem chegar onde ela está.
Assim foi feito e então nos despedimos. Senti a apreensão e 
angústia de quem faz uma aposta alta, pois a decisão ia contra aquilo 
que fora estabelecido com a equipe terapêutica. Não havia apostado 
no escuro, mas quem garantiría que Flávia nào fosse aprontar nada?
1 2 5
Klcbcr Duarte Barretto
Tudo estava nas mãos dela, e se alguma coisa ocorresse de errado 
grande parte da responsabilidade recairía sobre mim. Graças a Deus e 
à Flávia tudo transcorreu muito bem.
Essa última experiência nào poderia ser classificada como uma 
interdição. Decidi rclatá-la a fim de mostrar um outro contraponto 
importante no desenvolvimento humano: tão importantes quanto os 
limites são os momentos em que se permite que um sujeito se apro­
prie de suas ações. A experiência de scr depositada confiança em al­
guém por um outro significativo é bastante edificante. Senti-me como 
um pai que deposita confiança em um filho e com isso se abre para 
um mar de incertezas ciente de que somente enfrentando desafios é 
que um sujeito se desenvolve.
A função de interdição retira o sujeito de um estado confusional 
cm que a consciência de si é perdida pelo escoamento do ser em um 
aspecto parcial da personalidade do sujeito. A pulsão pré-genital fica 
confundida com o sujeito. O indivíduo é o ódio, o erotismo, o amor 
e assim por diante. Tudo é vivido no reino do absoluto. Claro que 
para o at exercer essa função, será fundamental não se perder no ódio 
ou em qualquer outro sentimento que seja evocado na situação de 
trabalho. Mas se a perdição alcança o campo de trabalho, não restará 
outra opção senão transformar as experiências ao longo do tempo.
126
Intel
Marcador de texto
IIII1
Nestas e noutras práticas passaram grande parte da noite.
Capítulo
XI
Da não menos valiosa função de interlocução
dos desejos e angústias
Quando estavam Dom Quixote, Sancho Pança e Rocinante nas suas andanças pela serra Morena -—• e o ruço? o ruço, caro leitor, 
para desgraça e desespero de nosso amigo Sancho, foi-lhe roubado 
enquanto dormia — , decidiu o amo fazer uma penitência, bem à moda 
de alguns dos mais ilustres cavaleiros andantes, a fim de demonstrar 
seu amor à sua Senhora Dulcinéia dei Toboso. Sancho foi incumbido 
da tarefa de levar uma carta de amor à sua dama, e relatar as sandices e 
sacrifícios que o amo fazia em nome dela. O escudeiro, entretanto, 
tentou persuadir Dom Quixote, a não se submeter a tamanhos desca- 
labros.
“— A mim me parece — disse Sancho — que os cavaleiros que isto fizeram 
seriam primeiro provocados, e alguma causa feriam para cometerem es­
ses destemperos e penitências; porém Vossa Mercê que ra^ão tem para en­
louquecer? que dama o desprezou? ou que sinais achou para suspeitar que 
a Senhora Dulcinéia dei Toboso fizesse algumas tolices com mouro ou 
com cristão?
— Aí bate o ponto — respondeu Dom Quixote —, aí é que está o fino do 
meu caso; ensandecer um cavaleiro com causa não é para admirar nem 
agradecer: o merecimento está em destemperar-se sem motivo, e dar a 
entender à minha dama que se em seco faço tanto, em molhado o que não 
faria? Quanto mais, que ra^ão não me (alta com larga ausência que te­
nho feito da sempre senhora minha Dulcinéia dei Toboso! Bem ouviste 
di^er àquele pastor de marras, o Ambrosio: Quem está ausente, não há 
mal que nào tenha e que não tema'. Portanto, Sancho amigo, não gastes 
tempo em me aconselhar que deixe tão rara, tão Jeli ̂ e tão nunca vista 
imitação. Vouco sou, e louco hei de ser até que me tornes com a resposta 
de uma carta que por ti quero enviar à minha Senhora Dulcinéia; e se ela
129
Kleber Duarte Barrctto
vier tal como Iho merece a minha lealdade, acabar-se-âo a minha sandice 
e a minha penitência; e se fo r ao contrário, confirmar-me-ei louco deve­
ras, e assim não sentirei nada. Portanto, de qualquer maneira que ela 
responda, sairei do trabalhoso passo em que me houveres deixado, goman­
do ajuizado do bem que me trouxeres, ou, se me trouxeres mal, deixando 
por louco de o sentir.” (Cervantes - 1605; p. 141.)
Percebendo Sancho, que o amo não desistiría de tão destram­
belhada empresa, quis, então, apressar-se ao máximo no encontro de 
sua Senhora, para evitar, como era de sua opinião, aqueles desnecessá­
rios sofrimentos.
“— Como quiseres Sancho — disse Dom Quixote —, não me parece mal a 
tua lembrança; daqui a três dias partirás, pois quero que neste meio tem­
po vejas o que por ela faço e digo, para Iho repetires como testemunha.
— Que mais tenho eu que ver do que já vi? — disse Sancho.
— Sim; bem inteirado estás — disse Dom Quixote, — Agora me falta 
rasgar o fa to, espalhar por a i as armas e dar cabriolas e cabeçadas por 
estas penhas, com outras coisas deste ja e ̂ que te hão de admirar.
— Pelo amor de Deus — disse Sancho — , olhe Vossa Mercê como dá essas 
cabeçadas, que em tal penha poderia acertar, e em tal parte, que logo à 
primeira se acabasse toda esta máquina de penitência; seria eu de parecer 
que, visto Vossa Mercê entender serem as cabeçadas necessárias para o 
caso, e nao se poder fa^er sem elas esta obra, se contentasse, por ser tudo 
isto fingido, e coisa de remediIho e comédia, se contentasse, digo como dar 
as cabeçadas na água, ou em alguma outra coisa fofa, por exemplo em 
algodão; o mais deixe-o por minha conta,que eu direi à minha senhora 
que Vossa Mercê as dava na quina de um penhasco mais agudo que um 
diamante.
— Agradeço-te a boa intenção, amigo Sancho — respondeu Dom Quixote 
— , mas quero que saibas que tudo isto que eu faço não são comédias, mas
130
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
realidades mui reais, porque o mais fora contravir às ordens da cavala­
ria, que nos proibem toda a casta de mentira, sob pena de relapsos; o fa%er 
uma coisa por outra o mesmo é que mentir; portanto as minhas cabeça­
das hão de ser verdadeiras, firmes, e valiosas'1, sem nada de sofistico nem 
de fantástico; e necessário será que me deixes alguns fios para me curar, já 
que a desgraça quis que nos faltasse o bálsamo, que não foi pequena per­
da.” (Op. cit.; p. 143.)
Nenhum argumento do escudeiro foi suficiente para mudar o 
curso dos impulsos penitentes de Dom Quixote, de submeter-se às 
mais duras experiências como prova de amor à sua Dulcinéia.
Apesar de não ter obtido êxito na sua empreitada, penso que 
Sancho aponta para uma valiosa função a ser exercida pelo at: ser 
interlocutor dos desejos e angústias dos nossos acompanhados. Esta 
não é tarefa simples e sem riscos.
O leitor pode estar pensando que estou sugerindo que o acom­
panhante deva ficar interpretando seu parceiro de aventuras, entre­
tanto, não se trata disso. Se observarmos nosso cotidiano, notaremos 
que, na maior parte do tempo, estamos buscando dar conta de algu­
ma questão psíquica relacionada aos desejos ou às necessidades que 
são sinalizadas por uma preocupação, uma angústia ou uma dúvida. 
Seja, sozinho, ou com a ajuda de outra pessoa estamos sempre pen­
sando a respeito dessas questões, na tentativa de dar um contorno a 
elas. O que estou falando não se restringe à dimensão profissional 
dessas experiências (terapia ou análise), mas de algo do nosso cotidia­
no. Como mencionam os anteriorm ente, temos necessidade de 
intermediarmos e articularmos nossas experiências.
Neste sentido, a interlocução dos desejos e angústias do acom­
panhado não se dá pela interpretação, mas sim, por uma conversa 
(bate-papo), igual àquela entre colegas, amigos e assim por diante.
trFórmulas empregadas nas escrituras públicas. ”
131
Kleber Duarte Barretto
A mterlocuçào tal como descrevo nem sempre é possível de ser
realizada; ela dependerá do momento e dos tipos de questões trazidas
%
por um determinado sujeito. A medida que o vínculo se fortalece e se 
estreita, esse tipo de intervenção nào só é mais possível, como tam­
bém é almejada pelo próprio acompanhado. Houve um tempo em 
que acreditei que essa seria a principal funçào no AT, contudo estava 
me restringindo a um determinado período do meu trabalho com 
Milton (vide fínal do Capítulo IX).
A meu ver essa interlocuçào se aproxima daquilo que Susana 
Mauer e Silvia Resnízky (1985) denominaram como funçào de repre­
sentar o terapeuta:
“O acompanhamento se inclui entre as atividades terapêuticas do pacien­
te. Com isso se produz uma ampliação da açao do terapeuta, o que equi­
vale a di~er que essa não se restringe ao \aqui e agora' da sessão.
Algumas ve^es, o acompanhante terapêutico terá que ajudar o paciente a 
metaboli^ar interpretações efetuadas pelo terapeuta e, inclusive, deverá 
refazê-las. Sua presença cria um espaço a mais para a elaboração dos con­
teúdos da psicoterapia." (p. 42)
Penso que a funçào do at não seja representar o terapeuta fora 
da sessào, mas sim exercer junto ao paciente uma funçào que, por sua 
vez, é exercida pelo terapeuta. A concepção de que o acompanhante 
deveria representar o terapeuta cria uma divisão artificial dos campos 
de intervenção. Ao agirmos dessa forma — restringindo-nos a repre­
sentar o terapeuta/analista — poderiamos facilmente ser artificiais na 
relação com nossos pacientes, o que seria terrível para eles — e para 
nós, também. Na perspectiva winnicottiana, é necessário que esteja­
mos com nossos pacientes como pessoas reais; e penso que isso impli­
ca até na necessidade de se ter uma postura crítica frente aos outros 
espaços terapêuticos. Isso significa que, se o terapeuta faz uma inter­
pretação ou está conduzindo o caso de uma maneira com a qual nào 
se está de acordo, há que se poder discutir essas questões, e não só 
“assinar embaixo” daquilo que é feito nos outros espaços de trata­
mento.
132
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
O leitor se lembra daquele dia em que encontrei Clarice bas­
tante angustiada e sem dormir há três noites (Capítulo VIII)? Ela esta­
va angustiada e confusa em relaçào a quem era sua màe e quem era ela, 
fato que se intensificou ainda mais na noite anterior. Havia feito um 
programa com seu paquera e pensavam em transar, mas ela acabou 
voltando mais cedo para casa. Não se sentia segura em relaçào ao 
envolvimento do rapaz. Porém, no dia seguinte, quando a encontrei, 
debatia-se com uma dúvida atroz: teria sua decisào sido influenciada 
pelas proibições de sua màe? Diante desses conflitos comentei:
— Pelo que você me contou , o resultado f o i o mesmo: você não 
transou. Mas pra sua mãe a questão é você não transar e pronto. Mas 
ontem você não transou porque não se sentiu segura quanto ao 
envolvimento dele. O que é bastante diferente: você é que não quis transar.
Meu comentário favoreceu uma discriminação entre ela e sua 
màe e, ainda, seu próprio desejo frente ao rapaz naquela noite. Clarice 
mostrou-se mais tranqüila depois da conversa.
E interessante assinalar que a função de interlocução recoloca a 
relaçào acompanhado-at dentro da cultura, na história e nas tradições 
acumuladas pelo homem. A existência humana é permeada de enig­
mas que são simbolizados e articulados no campo cultural e transmi­
tidos de geração em geração, de boca a boca. Quando o acompanhan­
te exerce essa funçào, coloca a serviço do sujeito o que conseguiu 
formular sobre a experiência de viver com o auxílio do conhecimen­
to acumulado pelo homem. Aproveitemos esta discussão para discu­
tirmos uma outra função.
133
Capítulo
Da intrincada e sutil função de discriminação
de campos semânticos
Afim de não tornar as coisas muito complexas, meu amigo San- cho, pedirei a você e Dom Quixote que ajudem a ilustrar essa 
função, porque, depois de um ou dois bons exemplos, não há concei­
to ou idéia que permaneça obscura.
iCFicaram sós o jumento e Rocinante, Sancho e Dom Quixote; o jumento, 
cabisbaixo e pensativo, sacudindo de quando em quando as orelhas, por 
cuidar que ainda não teria acabado o temporal das seixadas, que ainda 
lhe puniam aos ouvidos; Rocinante, estendido junto do amo, pois tam­
bém o derrubara outra pedrada; Sancho, desenroupado, e temeroso da 
Santa irmandade; e Dom Quixote, raladíssimo, por se ver com seme­
lhante pago daqueles mesmos a quem tamanho benefício tinha feito.
Vendo-se Dom Quixote tão mal, disse para o escudeiro:
— Sempre, Sancho, ouvi di^er que fa^er bem a vilões é deitar água no 
mar. Se eu tivesse estado pelo que me disseste, evitava-se o presente desgos­
to; mas o que está feito feito está; já agora paciência; ficar-me-á de emen­
da para o juturo.
— Tanto se há de Vossa Mercê emendar com esta como é verdade ser eu 
turco; mas, \omo di~ que, se tivesse estado pelo que lhe eu preguei, se 
houvera forrado a este contratempo, creia-me agora, e evitará outro mai­
or, porque lhe digo que para a Santa Irmandade escusadas são as cavala­
rias. Quantos cavaleiros andantes há valem para ela tanto como dois 
maravedis; e saiba que já até a modo que sinto ^unir-me às orelhas as 
setas dos suplícios em que lá metem a gente.
1 3 5
Klebcr Duarte Barrett
— És covarde de íua natureza, Sancho meu — disse Dom Quixote — , 
mas, para que nâo me chames de teimoso, nem digas que nunca {aço o 
que me aconselhas, desta ve% quero compra%er-te, apartando-me da fúria 
que tanto receias; mas com uma condição: que jamais enquanto eu vivo 
for, nem depois da minha morte, confessarás, a quem quer que seja, que 
me retirei e fu gi deste perigo por medo, pois só o fi~ para condescendercontigo; que, se outra coisa disseres, serás um mentiroso, e desde agora 
para então, e desde então para agora, te desminto, e digo que mentes e 
mentirás todas as vecçes que o proferires ou o pensares; e não me repliques 
mais, que só em cuidar que me esquivo a algum perigo, especialmente 
deste que parece que leva um é-não-é de sombra de medonho, estou já 
quase para nâo arredar pé, e para ficar sozinho à espera não só da Santa 
Irmandade que di^es e receias, mas de todos os irmãos das doeçe tribos de 
Israel, e de todos os sete Macabeus, e de Castor e Pôlux, e, ainda por cima, 
de todos os irmãos e irmandades que no mundo haja.
— Senhor meu — respondeu Sancho —, retirar-se não é fugir; nem no 
esperar vai prova de sisudeza quando a coisa é m ais perigosa que 
bem figurada. Próprio dos sábios é o pouparem-se do boje para o 
amanha; e saiba Vossa Mercê que um ignorante e rústico pode mesmo 
assim acertar uma ve ̂por outra com o que chamam regras de bem go­
vernar. Portanto não lhe pese de haver tomado o meu conselho; monte 
no Kocinante, se pode, ou eu o ajudarei, e siga-me, que me di~ uma vo5; cá 
dentro que mais úteis nos podem ser nesta ocasião os pés que as mãos. ”
(Cervantes - 1605; pp. 127 e 128 — grifo nosso)
Podemos notar que, à proposta de Sancho Pança de abandona­
rem aquele sítio para evitar serem pegos pela Santa Irmandade, Dom 
Quixote, recebeu-a como sugestão de uma fuga medrosa. Medo, como 
já sabemos, é uma emoção desconhecida a um cavaleiro andante. As­
sim sendo, compreender o abandono do local pela perspectiva teme­
rosa, ameaçava a identidade de nosso amo. Nada mais natural que 
retirar-se, unicamente, em obedecimento a Sancho Pança, que por 
sua vez, dá mostras de grande sabedoria ao lidar com a situação.
Talvez, leitor, estejais pensando que a discriminação de cam­
pos semânticos seja um mero jogo de palavras, ou ainda, que retrata 
meros eufemismos. Quando utilizamos uma palavra ou uma catego-
1)6
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
ria para nos referirmos a uma determinada experiência, fazemos um 
recorte desta de acordo com os conteúdos simbólicos que acompa­
nham um determinado vocábulo (dimensão conotativa e denotativa). 
Assim, dependendo do recorte do interlocutor, a experiência pode 
ficar reduzida a uma significação que impede a possibilidade de 
vivenciá-la e organizá-la de outra maneira. E aí que se torna impor­
tante a capacidade de apreender essas significações/implicações, para 
poder ampliar o campo da experiência, no sentido de não saturá-lo 
por uma categoria.
Vejamos, agora, o que Dom Quixote tem a nos dizer a respeito 
da beleza, em conversa com Sancho Pança, que estava estupefato ante 
a paixão desenfreada em relação ao amo, por parte de uma serva da 
duquesa que fizera Sancho governador da ilha Baratária. O escudeiro 
não se conformava com tal queda sentimental por parte de moça jo­
vem e bonita, tampouco compreendia a impassividade do amo diante 
de tão descaradas declarações de amor.
"— Notória crueldade! — exclamou Sancho — desagradecimento inaudi­
to! Eu de mim sei di^er que a mais insignificante das suas razoes me 
renderia.O senhores! que coração de mármore, que alma de bronze, que 
entranhas de argamassa! Mas não posso imaginar o que foi que essa donzela 
viu em Vossa Mercê que assim a rendeu e avassalou! Que brio, que gala, 
que donaire, que rosto, que coisa destas, ou que conjunto delas a seduziu? 
Que eu, verdade, verdade, muitas ve^es paro a mirar Vossa Mercê desde 
a ponta dos pés até ao último cabelo da cabeça, e vejo mais coisas para 
espantar do que para enamorar; e, tendo eu ouvido dizer também que 
a formosura é a primeira e principal prenda que enamora, não 
tendo Vossa Mercê nenhuma, não sei de que foi que se enamorou a 
coitada.
— Adverte, Sancho — respondeu Dom Quixote —> que há duas for- 
m osuras: uma da alma, outra do corpo; a da alma campeia e mos­
tra-se no entendimento, na honestidade, no bom proceder, na libe­
ralidade, na boa criação, e todas estas partes cabem e podem estar 
num homem feio; e, quando se põe a mira nesta formosura e não na 
do corpo, o amor irrompe então com ímpeto e vantagem. Bem vejo,
117
Klcber Duarte Barretto
S a ficho, que não sou formoso, mas também conheço que não sou disfor­
me; e basta a um homem de bem não ser monstro, para ser querido, 
contanto que tenha os dotes de alma que te disse já ." (Cervantes- 1615; 
pp. 542 e 543 — grifo nosso.)
Interessante observar que a concepção de beleza de Sancho 
Pança se restringia à dimensão física (aparência), o que colocou Dom 
Quixote na categoria de feio e, conseqüentemente, indigno de enamo- 
ramento. Dada a sagacidade do amo, muito apropriada aos cavaleiros 
andantes, ele não se deixa aprisionar na categoria sanchiana, mas 
recoloca a beleza em outras dimensões, proporcionando assim, a sua 
apreensão da beleza de uma maneira mais abrangente e complexa.
Algo semelhante a essa experiência se passou em meus encon­
tros com Flávia. Ela idealizava profundamente as mulheres bonitas. 
Por um longo período, conversar sobre a beleza feminina era impos­
sível, sem que isso lhe alterasse o humor ou a fizesse se sentir esvazi­
ada. Ela se achava a pessoa que mais sofria nesse mundo; e as cicatri­
zes, decorrentes de um acidente, privaram-na da beleza, segundo ela. 
Certo dia, ao olhar a fotografia de uma modelo da capa de uma revis­
ta, disse:
— A h! Elas que vivem uma vida boa, sem problemas, tudo mara­
vilhoso; e, eu aqui, só sofrendo!
Procurei, inicialmente, relativizar a idéia de que as mulheres 
bonitas ou modelos não sofriam ou não tinham problemas. Ela se 
surpreendeu ao me ouvir falando aquilo, pois não imaginava que o 
sofrimento fizesse parte da vida de todos nós. Percebendo que houve 
um certo alívio, tentei expor como via a questão da beleza, a qual, 
freqüentemente, em nossa cultura, é equiparada e restrita ao aspecto
f
físico. E claro, que os atributos físicos de beleza também se transfor­
mam de acordo com a cultura ou com a época e de pessoa para pes­
soa, por exemplo; mas não mencionei esses aspectos na conversa. Abor­
dei as diferentes expressões de beleza, tentando veicular aquelas que, 
de alguma forma, via presentes em Flávia. Conversei, por exemplo, 
sobre sua sensibilidade em perceber o belo (ela possuía toda uma apre-
138
Ética e técnica no acompanhamento terapêutico
ensão estética em termos de decoração), e que isso já era em si um tipo 
de beleza.
Vivi certas experiências com Flávia que apontavam para a bele­
za, transcendendo as próprias características físicas, e conectadas ao 
tipo de humor ou sentimento que predominava em uma determinada 
situação.
Já havia percebido, ao longo da minha vida, o seguinte fenôme­
no: muitas vezes, encontramos ou conhecemos uma pessoa bonita 
fisicamente, mas após certa convivência essa beleza murcha. Por ou­
tro lado, conheci pessoas cuja aparência não chamava a atenção, ou 
então, pelo contrário, destacavam-se pela falta de beleza física. Com o 
passar do tempo, porém, começavam a ter todo um brilho especial.
As experiências que estou querendo relatar, em relação à Flá­
via, parecem ser de uma ordem diferente da que apresentei acima. 
Certamente, a convivência foi se intensificando, mas pude notar que, 
em determinados momentos ou encontros, quando predominava um 
sentimento de alegria ou de bem-estar, o rosto seu se transformava, 
parecia estar mais iluminado e a expressão era de beleza.
A experiência humana representa grande complexidade e di­
versidade. Freqüentemente, utilizam-se categorias amplas para refe­
rir-se a uma multiplicidade de fenômenos, o que não só restringe o 
campo de entendimento e de pensamento, como leva a confusões e 
mal entendidos. Nas perturbações psíquicas, observamos que um in­
divíduo utiliza-se de uma ou duas categorias para abordar as suas ex­
periências o que implica, na maior parte das vezes, em distorções e 
pensamentos repetitivos. O acompanhante tem nesse campo a opor­
tunidade de intervir para auxiliar o sujeito a ampliara sua consciência 
a respeito de si e do mundo. Evidentemente, isso só ocorrerá se o at 
puder discriminar, de maneira cada vez mais ampla, as sutilezas da 
experiência de estar vivo.
Talvez pudéssemos refletir mais sobre estas questões que, de 
alguma maneira, estão relacionadas à importância da função que mi­
raremos a seguir.
139
Espertou, enfim.
Capítulo
X I I I
No qual se reflete sobre a função especular e a 
emergência da experiência estética
Por que nào mantermos aquilo que já se tornou uma tradição nes­tes capítulos — com exceção de um ou dois, talvez —■, e, principi­
armos nossa caminhada a partir de conversa filosofal entre amo e es­
cudeiro? Se todos estão de acordo, então nào percamos nosso precio­
so tempo:
p
“E verdade — respondeu Dom Quixote; — nem seria acertado que fossem 
finos os atavios da comédia, mas sim fingidos, como é a própria comédia, 
que eu quero, Sancho, que tu estimes, e que por conseguinte estimes igual- 
mente os que as representam e os que as compõem, porque todos são ins­
trumentos de grande bem para a república, pondo-nos diante a cada pas­
so um espelho, onde se vê em ao vivo as ações da vida humana, e nenhu­
ma comparação há que tão bem nos represente o que somos e o que havemos 
de ser, como a comédia e os comediantes. Senão, di^e-me: não viste repre­
sentar alguma peça onde entrem reis, imperadores e pontífices, cavalei­
ros, damas e outras personagens? Um faii de rufião, outro, de embusteiro, 
este, de mercador, aquele, de soldado, outro, de simples discreto, de na­
morado simples, e acabada a comédia, e despindo-se os seus trajos, ficam 
todos os representantes iguais?
— Tenho visto, sim — respondeu Sancho.
— Pois o mesmo — disse Dom Quixote — acontece no trato deste mundo, 
onde uns fa^em de imperadores, outros de pontífices, e finalmente todos 
os papéis que podem aparecer numa comédia; mas, em chegando ao fim, 
que é quando se acaba a vida, a todos lhes tira a morte as roupas que os 
diferençam, e ficam iguais na sepultura.
143
Klcber Duarte Barretto
— Otima comparação! — disse Sancbo — apesar de não ser tão nova que 
eu não a ouvisse j á muitas e diversas ve~es, como a do jogo de xadre no 
qual, enquanto dura, cada peça desempenha o seu p a p el especial e, quan­
do acaba, todas se m isturam , se juntam e se baralham e se metem num 
saco, que é o mesmo que dar com a vida no sepulcro.
— Cada dia, Sancho — disse Dom Q ui xote —, te vais fazendo me­
nos simplório e mais discreto.” (Cervantes - 1615; p. 355 — grifo 
nosso.)
Dom Quixote e Sancho encontraram, na tradição cultural, mo­
delos que espelhavam nossa vida cotidiana. A comédia para um e o 
jogo de xadrez para outro são utilizados como espelhos da vida. O 
reconhecimento do amo das transformações do escudeiro reflete, igual­
mente, as mudanças no se lf do outro. Essa adtude de Dom Quixote 
espelha bem a função que abordaremos neste capítulo.
Mas, vejamos o que outros autores têm refletido a respeito des­
te assunto. Safra (1995) apresenta a função especular estudada, especi­
almente, por Lacan (1949), Winnicott (1967) e Kohut (1971) — e dis­
cutida também por Dom Quixote e Sancho Pança como acabamos de 
ver — como contendo Uduas dimensões a partir da função materna de 
espelho: o estabelecimento de uma imagem do próprio eu que perm itirá à 
criança integrar-se numa imagem que a represente; e a valorização 
nardsica dessa imagem pelo ou tro” (p. 120)
Segundo a perspectiva winnicottiana, uestamos falando aqui da 
formação do eu a pa rtir de um processo de identificação primária com a 
mãe ou seu substituto. Winnicott sugere que a mãe reflete em seu rosto 
aquilo que sente e vê em relação ao seu bebê e este pode encontrar-se no 
olhar materno. ” (op. cit; idem.)
Ressalta-se nesta visão a possibilidade de um reconhecimento, 
primeiro por parte da mãe, das características do bebê, suas emoções 
e sentimentos; e, então, a oportunidade do bebê se reconhecer na 
expressão facial materna.
Estimado leitor, deveis estar pensando que o exemplo inicial, 
se é que reflete a função especular como definida acima, o faz de ma-
144
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
neira bastante distorcida. Tudo vai caminhando de tal forma a refle­
tir, unicamente, as associações de um pensamento estrábico do autor. 
Peço desculpas, e, mais uma vez paciência, pois se Sancho já vai dan­
do mostras do pensar discreto, tenho eu esperanças de acompanhá-lo 
nestas conquistas.
Isso que se está chamando de funçào especular, e que se inicia 
na relação màe-bebê, pode ir sofrendo transformações e ganhar o cam­
po cultural. Um exemplo é o reconhecimento do ser do sujeito; o 
outro, o reconhecimento do ser (processo) da vida. Meu Deus, do 
jeito que as coisas se encaminham, nunca alcançarei meu amigo Sancho 
na sua discrição, pois à medida em que coloco no papel minhas idéias, 
vejo-o cada vez mais distante.
Poder reconhecer-se e encontrar-se no rosto materno é para o 
bebê, não só um momento integrador de sua imagem, mas constitui- 
se no que Safra (1996 e 1999) denomina experiência estética. Esta seria 
dada pelo encontro com o outro ou com algum objeto da cultura, 
que acaba por revelar um aspecto de si mesmo, do próprio self (vide 
Milner, 1989). O reconhecimento e o encontro do ser, não se dá, 
somente, através da imagem, mas pode ser pelo som, pela fala, pelo 
gesto ou pelo olfato. Segundo o autor, acima citado, cada um de nós 
privilegia um órgão sensorial; e, é aí, que ancoramos nosso self, é aí 
que habitamos preferencialmente.
Tive a oportunidade de acompanhar João, um rapaz de 22 anos, 
que vivia em um estado autístico. Era comum a ecolalia, aquela repe­
tição de frases e de palavras. Para ele esta se transformou em um jogo. 
Ele sempre emitia sons, os quais o analista tinha de repetir. Após 
alguns anos de trabalho, o analista se deu conta de que o paciente 
repetia as palavras ou frases, alterando o perfil melódico, e, quando o 
analista foi capaz de repetir exatamente a melodia proposta pelo paci­
ente, este entrou em júbilo. Ele (paciente) viveu uma experiência esté­
tica na qual pôde ser compreendido por um outro, houve uma comu­
nicação verdadeira, ao ter sido encontrado na dimensão onde seu ser 
se ancora: a musicalidade. A pardr dessa experiência, observou-se uma 
saída gradual do estado autístico.
145
Klebcr Duarte Barrctt
Tendo conhecimento dessas características, meu encontro com 
Joào foi bastante facilitado. Sempre que nos encontravamos, durante 
um certo tempo no início, brincavamos de “ecolalia”. Quando conse­
guia repetir com perfeição — pois nem sempre era capaz de acompanhá- 
lo em sua habilidade vocal para pronunciar frases, muitas vezes, 
intrincadíssimas — , ele tinha uma vivência de intensa alegria, que se 
expressava pelo riso e gargalhadas, pelos pulos e pelas corridas que 
dava.
Voltemos aos nossos amigos que viveram experiências não me­
nos dignas de serem aqui relatadas. Cavalgavam ambos por uma cam­
pina rasa quando avistaram um grupo de lavradores que aproveita­
vam um descanso para repor as energias. Junto a eles havia alguns 
objetos volumosos, cobertos por toalhas brancas. Como é de se ima­
ginar, tal visão despertou a curiosidade de nosso amo, o qual após 
cumprimentar cortesmente o grupo, quis logo saber do que se tratava 
aquilo que as toalhas cobriam. Ciente de que ali iam imagens de san­
tos talhadas em relevo, Dom Quixote disse aos lavradores que folga­
ria de as ver se isto não os incomodasse. As toalhas foram sendo tira­
das uma a uma na medida em que nosso andante cavaleiro, fazia um 
breve comentário sobre cada santo: seus feitos, suas proezas e martí­
rios sofridos. E assim foi que versou sobre Dom São Jorge, matador 
de serpentes e dragões e ainda, defensor das donzelas; São Martinho, o 
caritativo; Dom São Diogo Mata-Mouros, padroeiro das Espanhas e, 
por último, São Paulo, trabalhador infatigável na vinha do Senhor. 
Afirmava Dom Quixote tratarem-se dos mais importantes cavaleiros 
andantes dos esquadrões de Cristoe dos melhores que teve a milícia divi­
na. Tomou por bom agouro o que viu,
fo rqu e estes santos e cavaleiros professaram o que eu professo, que é o 
exercício das armas; e a diferença que há entre mim e eles é que eles foram 
santos e pelejaram ao divino, e eu sou pecador e pelejo ao humano. Eles 
conquistaram o céu à força de braços, porque para alcançar o céu é preci­
so esforço, e eu, até agora, não sei o que conquisto com a força dos meus 
trabalhos; mas, se a minha Dulcinéia dei Toboso saísse dos que padece, 
melhorando a minha ventura, e fecundando-me o ju iyo , podia ser que 
dirigisse os meus passos por melhor caminho do que o que levo.
146
Ética e técnica no acompanhamento terapêutico
Deus o ouça, e o pecado seja surdo! — acudiu Sancho.
Admiraram-se os homens tanto da figura como do arra^oado de Dom 
Quixote, sem entender metade do que ele di^ia. Acabaram de comer, 
carregaram com as imagens e, despedindo-se de Dom Quixote, seguiram 
a sua viagem.
F icou Sancho d e n ovo com o s e não co n h e c e s s e o amo, admirado do 
que e l e sabia, p a recen d o - lh e qu e não havia história n o mundo, n em 
su c e s s o algum , qu e e le não tiv esse cifrado na unha ou cravado na 
m em ória ; e d isse-lh e:
— Na verdade, sen h o r n o sso amo, que, s e is to qu e h o je n o s su ced eu 
s e p o d e cham ar aventura, fo i das m ais suaves e d o c e s qu e n o s têm 
a con te c id o em todo o d ecu rso da nossa p ereg r in a çã o : dela sa ím os 
s em pauladas n em sob ressa lto algum , n em levam os as m ãos às e s ­
padas, n em ba tem os com os n o sso s co rp o s no chão, n em ficam os 
es fom eados; b end ito seja Deus, que sem elhan te co isa m e deixou ver 
com o s m eu s p róp rio s olhos.
— Dizes bem , Sancho — acudiu Dom Quixote... o ter en con trado 
esta s im a gen s fo i para m im fe lic íss im o a con tecim en to . ” (Cervantes
- 1615; p. 541 e 542; gnfo nosso.)
Creio que Sancho foi muito perspicaz e sensível ao chamar o 
ocorrido de aventura. Nosso amigo está se refinando cada vez mais. 
Nào só se mostra mais discreto no pensar, mas também a rudeza de 
campônio vai cedendo lugar à pessoa sensível. A experiência estética 
foi traduzida por ele, como suave e doce. A situação parece tê-lo ab­
sorvido de tal forma que não deixou de ser percebida como mais uma 
aventura do par. Não podemos nos olvidar de que o fato de Dom 
Quixote contar um pouco da história de cada imagem ajudou a 
transformá-las na presença do próprio santo. Os conhecimentos do 
amo também causam no escudeiro uma profunda admiração.
Esse momento de consagração tocou a alma do amo, e, princi­
palmente, a do escudeiro. Poder relacionar a experiência, vivida na-
147
Kleber Duarte Barrctto
quele momento, com aquelas do passado, nas quais o resultado lhes 
foi bastante prejudicial, conferia-lhe uma aura ainda mais especial. E 
através dos contrastes que podemos experienciar as riquezas da vida, 
nào é Sancho?
Penso que no AT essa diversidade de experiências está igual­
mente presente. Muitas vezes, vivemos com nossos pacientes momen­
tos de profunda beleza. Infelizmente, na escassa literatura sobre acom­
panhamento terapêutico, encontramos quase nenhuma referência a 
experiências desse tipo. Talvez ainda leve algum tempo até que possa­
mos integrá-las em nossas conceituações; pois há uma predominância 
das situações aterradoras e catastróficas que também fazem parte da 
nossa lida diária.
Tentando escapar à minha própria crítica levantada acima, re­
latarei algumas situações que pude testemunhar. A forma como André 
interagia com o que se passava ao seu redor chamou-me a atenção 
logo de início. Em nosso primeiro encontro, quando passeávamos 
pelo quintal de sua casa, ele parou diante do varal e maravilhado co­
mentou:
— Olha a gotinha da chuva no varal, ela brilha, parece que tem lu~
Em outra oportunidade, no mesmo quintal, sentados em om 
banco na época do outono, algumas folhas foram trazidas pelo vento. 
Uma delas enroscou-se em sua camisa e depois de pegá-la, todo sorri­
dente, dizia que havia sido um presente de Deus. Experiência nào 
menos tocante foi quando brincamos de fazer bolhinhas de sabão, 
um de seus hobbies, na varanda de sua casa. Ele vibrava com as formas 
e as cores do arco-íris flutuando no ar.
Como já percebestes, caro leitor, essas experiências também 
me tocaram pela beleza. Todos esses aspectos desaguaram em um pas­
seio que fizemos à feira dominical na Praça da República. Ao sairmos 
do metrô, ele se deparou com um vendedor de passarinhos de fazer 
bolhas de sabão. Parou para admirar aquelas nuvens de bolha que o 
vendedor fazia. Falou que achava aquilo muito bonito e que estava
148
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
até com vontade de chorar. Esse foi o começo de um passeio do qual 
André gostou muitíssimo. Vibrava com tudo: as pessoas, as bancas, 
os objetos expostos. Mas, à medida em que caminhavamos, chamava 
a atenção o fundo musical. Tratava-se de um grupo andino tocando 
músicas instrumentais. Aquilo que era pano de fundo passou à figura 
no momento em que decidiu se aproximar do conjunto e somar-se ao 
público que ah se concentrava. Ouvimos várias músicas que o deixa­
ram bastante emocionado. Dizia, com os olhos marejados, que aqui­
lo era muito bonito e que iria chorar quando voltasse para casa. Do 
meu lado, assim como Danielle com José, se é que nesses momentos 
existem lados claramente definidos, respondo com olhos nào menos 
marejados que as músicas eram bonitas mesmo. As músicas tomavam 
conta do ambiente e como ondas banhavam a todos os presentes, 
unindo-nos em um fluxo de beleza. Ao final André comprou a trilha 
sonora:
— V ou ouvir essas músicas à noite para dormir em pa^l
Há, igualmente, que se poder distinguir esse tipo de experiên­
cias que estou mencionando, das situações erotizadas ou dos momen­
tos de intensa idealização narcísica. Penso que a qualidade de absor­
ção dessas experiências são bastante distintas. Na experiência estética 
nào somente o corpo é mobilizado, mas também a alma, como diria 
nosso amigo José. Creio que se tratou de uma experiência estética 
aquilo que José e eu vivemos durante o passeio no parque (Capítulo 
V I, p. 82), quando ele comentou:
— Nossa, hoje valeu, viu?!
O maior problema reside no fato da psicanálise como um todo 
— com exceção da teoria winnicottiana creio eu — utilizar-se de um 
referencial a priori para explicar toda e qualquer experiência humana. 
O desejo para uns e a destrutividade para outros serão os elementos 
básicos a partir dos quais se compreenderão as expressões do homem. 
Isso impede que fenômenos que apresentam o ser fiquem reduzidos a 
meros fantasmas ou mesmo deixem de ser percebidos. Voltemos nos­
sa atenção a outra função nào menos contagiante.
f 49
Capítulo
XIV
Daquela não menos apaziguadora função de aliviar
as ansiedades persecutórias
Prezado leitor, podereis achar este capítulo desnecessário, pois nele se mostrará que para aliviar as ansiedades persecutórias, bastaria o 
exercício de algumas funções já tratadas em nossas aventuras (holding 
e continência, por exemplo); ou de outras que hão de vir pelo cami­
nho. Entretanto, sugiro que não abandoneis a leitura neste momento, 
pois, apesar de estarmos nos encaminhando em direção a temeridades 
angustiosas, não sairemos destas andanças sem uma boa dose de riso. 
Se este último for tão intenso que leve o leitor ao choro, não haveis de 
se preocupar, pois o choro é emoção que expressa inúmeros e contra­
ditórios sentimentos.
Iniciemos por uma situação em que o holding dá conta das an­
siedades persecutórias. Iam nossos amigos pelas trilhas da serra More­
na, ali onde tomaram lugar as penitências do amo, quando ele “viu 
que p or cima de um pequeno teso, que diante dos olhos se lhe oferecia, ia 
saltando um homem de penha em penha, e de mata em mata, com estra­
nha ligeireza” (Cervantes - 1605; p. 131). Parecia ir nu, pois o pouco 
de pano que trazia sobreo corpo estava em frangalhos, o que mais o 
colocava à mostra do que o encobria. Quis o amo ir ao seu encalço 
imediatamente, mas as forças de Rocinante não o permitiram. Man­
dou, então, que Sancho “atalhasse p o r uma parte da montanha, en­
quanto ele iria pela outra, pois poderia ser que assim topassem com aque­
le homem, que tão apressado se lhes tinha furtado à vista.
— Isso é que eu não posso fa%er — respondeu Sancho —, porque em me 
apartando de Vossa Mercê entra logo comigo o medo, com toda a 
casta de sobressaltos e visões; e fique-lhe isto daqui em diante de 
lembrança, para nunca me apartar de s i nem uma polegada.
151
Kleber Duarte Barrctto
— Assim será — disse o da Triste Figura; — muito estimo que te quei­
ras valer do meu ânimo, que nunca te há de faltar, ainda que a ti te 
falte a alma do corpo. Vem atrás de mim a pouco e pouco, ou como 
puderes, e faze dos olhos lanternas; rodearemos toda esta pequena 
serra, e porventura toparemos com o indivíduo que avistamos... ” (op. 
cit.; grifo nosso.)
A “simples” presença de Dom Quixote foi suficiente para apa­
ziguar nosso amigo Sancho Pança. O holding oferecido pela presença 
do cavaleiro protege o escudeiro de ser invadido e tomado pelo pa­
vor. Qualquer separação do amo implicaria abrir os portões para o 
inferno. Mas como o Diabo está sempre à espreita de um descuido, 
vejamos agora como tào formidável intervenção de Dom Quixote foi 
colocada em risco por uma asnice do escudeiro. Em suas andanças, 
pernoitaram em uma hospedaria, na qual um dos hóspedes era um 
jovem que encontraram no caminho e que trazia consigo todos os 
aparelhos de batalha como lança, alabarda e coisas do gênero. Não 
tardou para que o amo perguntasse ao varão o motivo daquela apare­
lhagem, ao que ele explicou com muito gosto. Tratava-se de uma 
possível batalha que se travaria no seguinte dia entre dois povos vizi­
nhos. Mas o que teria levado dois vilarejos a situação tào belicosa?
Contou o aldeão que, no seu vilarejo, um alcaide perdera um 
de seus burros por descuido de uma serva. Cansou de procurá-lo sem 
êxito, mas, para sua alegria, um compadre alcaide se prontificou a 
ajudá-lo nas diligências. Lá se foram para os montes e matas, atrás do 
jumento e depois de tanto procurar, ocorreu àquele, cujos préstimos 
oferecera, uma brilhante idéia:
“... 'Olhai, compadre, lembrei-me agora duma traça, com a qual sem dú­
vida alguma poderemos descobrir o maldito animal\ ainda que esteja 
metido nas entranhas da terra; e é que eu sei %urrar admiravelmente, e se 
vós também sabeis alguma coisa, está tudo concluído' . 'Alguma coisa, 
direis vós, compadreV, tornou o dono do burro; ''por Deus, que nisso 
ninguém me avantaja, nem os próprios jumentos ' Agora o veremos' , 
redargüiu o segundo regedor; 'ide vós por um lado e eu por outro, de 
modo que rodeemos todo o monte, e de espaço a espaço *urrareis vós e 
£urrarei eu, e, se o jumento por cá estiver, decerto nos ouve e nos respon­
152
Btt ca t técnica no acompanhamento terapêutico
de. ' Separaram-se os dois, conforme o combinado, e sucedeu que ûrra­
ram quase ao mesmo tempo, e enganado cada um pelo t ûrro do outro, 
correram julgando que aparecera o jumento, e, ao encontrarem-se, disse o 
dono: ‘E possível, compadre, que não fosse o meu burro que ortieou? 1 
1Fui eu* , respondeu o outro. * Agora d igotornou o dono, (que em t ûrrar 
sois um as no perfeito, porque nunca ouvi na minha vida coisa mais pró­
pria.' *Esses louvores e encarecimentos' , respondeu o inventor da traça, 
melhor vos cabem a vós do que a mim, compadre; que, pelo Deus que me 
criou, podeis dar dois £urros de partido ao maior e mais perito %urrador 
deste mundo; porque o som que tendes é alto, o sustenido da vo% a tempo 
e compasso, os s^urros muito encadeados, e, enfim, dou-me por vencido, 
entrego-vos a palma, e a bandeira desta rara habilidade... ” (Cervantes -
1615; pp. 412 e 413)
Assim foi que na arte de um superar e confundir o outro com 
o jumento perdido, consumiram um bom tempo até que encontra­
ram o animal já morto pelas presas dos lobos. Sucesso que não os 
espantou, pois como não haveria ele de responder prontamente aos 
chamados de ambos se não pelo fato de estar morto. Voltaram tristes 
por achá-lo morto, mas contentes por terem achado um dom desco­
nhecido e dado com o morto: o dom de zurrar. Contaram aos 
conterrâneos as peripécias da diligência e não poupavam elogios aos 
zurros do amigo. Cada qual procurando engrandecer ao máximo as 
habilidades do outro. Foi assim que a história ganhou os campos até 
atingir os ouvidos atentos das povoações vizinhas que, para fazer tra­
ça com os habitantes dessa aldeia, passaram a zurrar, principalmente 
os endiabrados jovens, cada vez que se deparavam com alguém da­
quele sítio.
“— Tanto foi rendendo o ûrro, que os da minha aldeia são conhecidos e 
diferenciados como os negros dos brancos; e a tanto chegou a desgraça 
desta trombaria, que muitas ve~es, com a mão armada e esquadrão fo r ­
mado, saíram os caçoados contra os caço antes, a darem batalha... ” (Op. 
cit.)
Creio que não seja necessário esclarecer que esta história foi 
contada pelo aldeão zurrado, a fim de satisfazer a curiosidade sem 
contornos do valoroso Dom Quixote, o que lhe despertou maior
153
Kleber Duarte Barrctto
interesse em saber como acabaria tamanha confusão. Trata-se de uma
história que, apesar de bastante longa, merece ser relatada da forma
mais completa possível para que o leitor não quede sem saber o desfe-
%
cho de tão pitorescos quanto desgraçados acontecimentos. Aquele 
que já a conhece, garanto que não será tempo perdido o relembrá-la.
Depois de deixarem a hospedaria, Dom Quixote e Sancho Pan­
ça vagaram por uns três dias pelas margens do rio Ebro. Foi no tercei­
ro dia que os ventos da aventura que estamos relatando começaram a 
soprar. Ouviram os dois um grande estrondo de instrumentos de 
guerra e pensaram tratar-se de algum exército que por ali passava. 
Subiram um pequeno monte de onde puderam avistar um grupo de 
uns duzentos homens armados. Aproximaram-se um pouco mais e 
puderam divisar algumas flâmulas que indicavam serem aquela gente 
do povo do yurro. O amo quis aproximar-se ainda mais, para o desgos­
to do escudeiro, que não via com bons olhos misturar-se com pessoal 
tão belicoso. Chegando ao pé de um estandarte, que ostentava a figu­
ra de um asno, Dom Quixote alçou a viseira, vendo-se rodeado pelos 
principais homens daquele exército, que guardavam silêncio graças 
ao costumeiro pasmo no qual mergulhavam aqueles que o divisavam 
pela primeira v e e, aproveitando-se que nada diziam, endereçou-lhes 
com muito respeito e propriedade um verdadeiro sermão. Este versa­
va sobre as leis do duelo e os cinco motivos capitais que levariam um 
homem de bem a pegar em armas e arriscar sua vida: a defesa da fé 
católica, da pátria, da vida, da sua honra, da sua família e da sua fazen­
da e, quintamente, em serviço de seu rei. Fora desses motivos, a vin­
gança resultaria em um gesto errôneo e despropositado. Argumen­
tou ainda sobre a impossibilidade de um particular afrontar um povo 
inteiro. Por essas e outras razões mais cristãs, conclamava os chacote- 
ados a que desistissem da luta, pois eram obrigados a tal, como acaba­
ra de expor, tanto pelas leis divinas quanto humanas.
154
Ética e técnica no acompanhamento terapêutico
“— Diabos me levem se este meu amo não é to l o g o , e se não o é, parece- 
o como um ovo com outro — resmungou Sancho.
Parou um pedaço para respirar Dom Quixote e, notando que ainda lhe 
prestavam atenção, quis continuar com sua prática como continuaria, se 
não metesse no meio a agudez de Sancho, que, vendo que seu amo se 
detinha, tomou a mão por ele, dizendo:
— Meu amo, Dom Quixote de la Mancha, ... é um fidalgo de muita esper­
teza, que sabe latim e romance como um bacharel; e em tudo quanto 
aconselha e trata procede como bom soldado, e traz de cor e salteadas 
todas as leis e ordenanças do que chamam duelo a unha; e assim, não têm 
mais que fazersenão deixarem-se levar pelo que ele disser e a culpa me 
cabe se o errarem; tanto m ais que ele diz muito bem, que é asneira 
agoniar-se qualquer só por ouvir um zurro, que eu me lembro que 
Zurrava, quando era pequeno, sempre que me parecia, sem que ninguém 
me fosse à mão, e com tanta graça e propriedade que, em eu z}*rrando, 
Zurravam todos os burros da povoação; e eu nem por isso deixava de ser 
filho de meus pais, que eram honradíssimos; e, apesar de ser invejado por 
causa dessa prenda por mais de quatro, não se me dava disso; e, para que 
se veja que falo verdade, esperem e escutem, que esta ciência é como a de 
nadar: em se aprendendo, nunca mais se esquece.
E, apertando o nariz com a mão, começou a zurrar com tamanho 
estrondo, que retumbaram todos os vales dos arredores; mas um dos 
que estavam ali ao pé, julgando que ele os chasqueava, levantou 
um varapau que unha na mão e arrumou-lhe tamanha bordoada, 
que, sem ser poderoso por outra causa, deu com Sancho Pança em 
terra. Dom Quixote, que viu Sancho tão malparado, arre meteu ao que 
lhe batera com a lança sobre a mão, mas foram tantos os que se meteram 
no meio, que nao fo i possível vingá-lo; antes, vendo que chovia sobre ele 
uma nuvem de pedras, e que o ameaçavam mil bestas retesadas, e não 
menor quantidade de arcabuzes, voltou as rédeas a Kocinante e a todo o 
galope saiu do meio deles, encomendando-se de todo o coração a Deus,
“Teólogo • t
155
Kleber Duarte Barrctto
para que o livrasse de tamanho perigo, temendo a cada passo que lhe 
entrasse uma bala pelas costas e lhe saísse pelo peito, e a cada momento 
tomava a respiração para ver se lhe faltava; mas os do esquadrão conten­
taram-se com vê-lo fugir sem lhe atirarem. A Sancho, apenas tornou a si, 
puseram-no em cima do jumento, e deixaram-no ir atrás de seu amo, não 
que ele tivesse tino para o guiar, mas o ruço seguiu, como de costume, as 
pisadas de Rocinante, sem o qual não se achava à vontade. Quando Dom 
Quixote se julgou a boa distância, voltou a cabeça e viu Sancho, e espe­
rou-o, depois de observar que ninguém o seguia.
(...) Chegou o pobre escudeiro, enfim, já recuperado do desmaio e, ao 
chegar, deixou-se cair do ruço aos pés de Rocinante, ansioso, moído e 
desancado. Apeou-se Dom Quixote para lhe procurar as feridas; mas, como 
o encontrasse são dos pés à cabeça, com bastante cólera lhe disse:
— Em má hora lem bra ste d e zurrar, Sancho; e quem te d isse qu e era 
bom falar d e corda em casa d e en forcad o? Para m úsica d e zurros, 
qu e com pa sso s e havia d e encontrar, q u e não fo s s e d e varapaus? E
dá graças a Deus, Sancho, que se te benzeram com um cacete, ao menos 
nao te perseguiram com um alfange.
— Não estou para responder — tornou Sancho —, porque me parece que 
falo com as costas; montemos a cavalo e afastemo-nos deste sítio, que eu 
deixarei para sempre de fçurrar, mas não de diiçer que os cavaleiros an- 
dantes fogem e deixam seus escudeiros moídos como pimenta em poder 
dos seus inimigos.
— AJão fo g e quem s e retira — respondeu Dom Quixote — , porque hás 
de saber, Sancho, que a valentia que não se baseia na prudência chama-se 
temeridade, e as façanhas do temerário mais se atribuem à boa fortuna 
que ao seu ânimo; e assim, confesso que me retirei, mas que não fugi; e 
nisto imitei muitos valentes, que se guardaram para tempos melhores; e 
estão disto cheias as histórias, que por te nao aproveitarem, nem me di­
vertirem a mim, te não refiro agora.” (Cervantes - 1615; pp.425 e 426, 
grifo nosso)
Se uma pessoa que se sente ameaçada torna-se perigosa para si 
mesma e para os que a rodeiam, o que nao será de todo um povoado
156
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
perseguido por serem aparentados mais aos asnos que aos humanos?! 
Como pudemos ver, Sancho Pança apresentou o objeto perse-cutório 
no momento em que a intervenção de Dom Quixote ainda não havia 
cicatrizado de todo o orgulho ferido do povo zurrado. Mas os bons 
ventos a tudo e a todos tranqüilizou, posto que no dia seguinte o 
esquadrão voltou em paz ao vilarejo.
Não deixemos passar em branco episódio tão importante e do­
loroso quanto este. Penso que o cavaleiro andante fez uso de toda sua 
capacidade de retórica para mudar “os impulsos beligerantes” do es­
quadrão. Se observarmos mais cuidadosamente, notaremos que os 
argumentos de Dom Quixote exercem uma função de continência 
em um primeiro momento e, em seguida, de discriminação.
Ele procurou acolher o sentimento de humilhação do povo 
zurrado, demonstrando sua preocupação com a situação deles. Entre­
tanto, logo começou a argumentar no sentido de mostrar-lhes o des­
propósito de buscarem vingança. Para esse fim, contextualizou histo­
ricamente aquele tipo de atitude e formulou alguns princípios, que 
poderíam nortear um sujeito nos assuntos de guerra.
E importante que atentemos ao percurso do cavaleiro na abor­
dagem do conflito. Inicialmente, desencorajou-os da luta e só então 
apontou as situações em que se pode e deve lutar. Não proibiu ou 
reprovou, simplesmente, as intenções dos belicosos aldeões, mas 
recontextualizou-as através da função de discriminação.
E o que dizer de Sancho? Graças a Deus, ele escapou vivo desta 
enrascada. Ele parecia intuir que as coisas poderíam desandar: “e as­
sim , não têm mais que fa%er senão deixarem-se levar pelo que ele disser e 
a culpa me cabe se o errarem”. O escudeiro colocou, de maneira muito 
crua, aquilo que o amo, muito cuidadosamente, estava abordando. 
Angústia é matéria delicadíssima e perigosa; e, em determinadas situ­
ações, o nosso amigo Sancho escolhe sempre o caminho mais espi­
nhoso. Mais uma vez, nosso amigo Sancho Pança não atentou ao rit­
mo do outro e apresentou o objeto persecutório (zurro) em um mo­
mento totalmente inoportuno, como disse nosso amo.
157
Klcber Duarte Barretto
Outro aspecto interessante é a maneira pela qual Dom Quixote 
se defende das acusações de Sancho Pança, de não tê-lo socorrido, 
abandonando-o aos inimigos. O cavaleiro se utiliza das mesmas cate­
gorias semânticas fornecidas pelo escudeiro, quando se retiraram das 
garras da Santa Irmandade: “Não foge quem se retira'\
As ansiedades persecutórias necessitam ser aliviadas, a fim de 
que o sujeito possa estabelecer uma troca enriquecedora consigo mes­
mo e com a vida. Se essas ansiedades se intensificam, elas paralisam o 
mundo psíquico do indivíduo e, consequentemente, empobrecem e 
achatam sua vida. Renata Caiaffa (vide Capítulo III) dá-nos um bom 
exemplo de como é possível lidar com as ansiedades persecutórias de 
maneira lúdica, através da capacidade imaginativa. Por outro lado, 
Danielle Breyton, através da função de continência, transforma o ter­
ror de José em uma experiência compartilhada e passível de brinca­
deira na despedida.
Plávia, durante um período do tratamento, começou a apre­
sentar alucinações auditivas: vozes que a ameaçavam ou a despreza­
vam. Foi uma fase bastante difícil, pois havia um risco constante de 
suicídio. Saíamos pouco de sua casa, sendo que a maior parte do tem­
po ficavamos na sala conversando, assistindo à televisão e a coisas do 
gênero. Procurava ajudá-la a discriminar as vozes, relacionando-as às 
principais angústias que ela parecia estar vivendo. Após algumas se­
manas, as vozes desapareceram por completo e, gradualmente, Flávia 
foi se integrando mais. Começou, então, a se queixar de que estava 
sofrendo mais do que antes e, conseqüentemente havia piorado, se­
gundo sua opinião. Disse-lhe que provavelmente ela estava sentindo 
mais angústia agora porque tinha conseguido uma maior consciência 
de si. Embora sofresse mais por perceber as angústias, acreditava que 
ela Unha melhorado, pois já não ouvia vozes, por exemplo. Por meio 
dessas conversas e de outras com os demais terapeutas dela, pôde su­
portar mais esse momento sem se atacar excessivamente.
O fato é que, ao lidar com ansiedades persecutórias, é necessá­
rio habilidade para arranjar as funções necessitadas no momento e 
intervir de formaa transformar a angústia do sujeito, como vimos
158
Ética e técnica no acompanhamento terapêutico
Dom Quixofe fazer com o esquadrão. Trata-se de uma verdadeira 
composição, fazendo uma analogia com a música, que o a t precisa 
realizar nesses momentos. Mas ai daquele que ao invés da sonoridade 
sinfônica emite o zurro...
Penso que nossas notas já nos permitem identificar os conteú­
dos do próximo capítulo.
159
[ 1 * 1 9
1 I I ' . ' •
Pediu-lhe a duquesa que contasse esse encantamento.
Capítulo
XV
Que trata da função do acompanhante como
modelo de identificação
Deveis estardes lembrados quando o amo, aproveitando os sítios ermos da serra Morena, resolveu fazer suas penitências como 
mostra de amor à sua Senhora (vide Capítulo XI). Dom Quixote va­
lorizava o modelo cavaleiresco e acreditava que a melhor maneira de 
se aprimorar na arte da Andante Cavalaria era através da imitação das 
façanhas perpetradas pelos maiores expoentes da mesma. Foi assim 
que se achando em paragens distantes do trato humano resolveu se 
entregar à penitência digna do famoso, do mais perfeito e único: Amadis 
de Gaula.
Diante do espanto de Sancho, Dom Quixote argumentou:
“■— E é assim, sem dúvida nenhuma; e quando não, que me respondam: 
se quando qualquer pintor quer sair famoso em sua arte, não procura 
imitar os originais dos melhores pintores de que há notícia? Esta mesma 
regra se observa em todos os mais ofícios ou exercícios de monta com que 
se adornam as repúblicas... Amadis fo i o norte, o luzeiro, e o sol dos va­
lentes e namorados cavaleiros, a quem devemos imitar, todos os que de­
baixo da bandeira do amor e da cavalaria militamos. Sendo pois isto 
assim, como é> acho eu, Sancho amigo, que o cavaleiro andante que me­
lhor o imitar mais perto estará de alcançar a perfeição da cavalaria... 
Pretendo imitar a Amadis desempenhando-me aqui do papel de desespe­
rado, de sandeu e de furioso... ” (Cervantes - 1605; p. 140).
Como dissemos acima, na visão de Dom Quixote a melhor 
maneira para se desenvolver é orientar-se, ou melhor, imitar um bom 
modelo. Não importa a área em que estejais, se quiserdes vos dar 
bem, tendes de seguir os passos daqueles que seriam vossos maiores 
expoentes. Imitá-los para assim transcendê-los e superá-los. Nosso amo
163
Klcbcr Duarte Barretto
já havia feito isso, desde o início, quando decidiu ordenar-se cavaleiro 
e lançar-se ao mundo em busca de aventuras. Outro exemplo, é quan­
do elege Dulcinéia dei Toboso, senhora de seu coraçào. Assim o faz, 
imitando os melhores cavaleiros, para que pudesse sofrer de amores e 
poder encomendar-se à amada em momentos de perigo. Entretanto, 
nessa empreitada Dom Quixote espera com a imitação do desespero 
alcançar fama sem precedentes e superar os modelos que o inspira­
ram.
Se o leitor não se recorda, nosso incomparável cavaleiro se 
penitenciou a seco, ou seja, sem que Dulcinéia desse motivos reais ou 
aparentes para tamanho flagelamento. Na perspectiva quixoteana de­
vemos imitar, seguir os passos e não arredar pé do nosso modelo. 
Um bom modelo é a matriz de um bom desenvolvimento.
Em psicanálise, denominamos modelo de identificação aquilo 
que nosso amigo chamou de norte, luzeiro e sol. Denominações dife­
rentes para uma vivência que sem dúvida alguma está presente, de 
uma forma ou de outra, na vida de todos nós. Quem é que, pelo 
menos em algum momento de sua história, não se guiou por alguém 
ou por algo? (Pois o modelo não necessariamente pertence ao gênero 
humano.) Quem é que não sofreu influências ou buscou-as deli- 
beradamente?
Estamos adentrando em terreno constituído de diferentes ní­
veis. A identificação com um objeto pode se dar desde um nível de 
extrema simplicidade até um alto grau de sofisticação. Podemos fazer 
determinada coisa de maneira semelhante a alguém ou até tomar a 
história de vida de uma pessoa e estabelecer princípios para a própria 
vida, buscando um estilo semelhante.
Não precisamos ir muito longe, pois já percebestes, prezado 
leitor, que lhe relato e escrevo-lhe tendo como modelo o habilíssimo 
Cervantes e nossos companheiros de aventuras: Sancho Pança e Dom 
Quixote. E claro que os tomo como modelo, tento imitá-los, seguir o 
estilo, mas reconheço que o resultado de meu esforço fica a léguas de 
distância do meu luzeiro. É, Sancho, minha vida é assim mesmo, guio- 
me pelo melhor na esperança de alcançar o menos ruim. Nisto tudo,
1 6 4
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
sigo os ensinamentos do dito: “Diga-me com quem andas e te direi 
quem és”. Por esta razão, tomei-os não só como norte, mas tenho 
insistido para que me acompanhem, não me abandonem, pois este 
aventurar-me é carregado de medo. Talvez seja este pavor, Sancho, 
que nos torna tão próximos. Ah, sem dúvida, também sou admira­
dor da coragem e dos conhecimentos de nosso amo.
Como disse anteriormente, seria importante discriminar os di­
ferentes níveis na adoção de um modelo. Existe o nível da imitação 
pura e simples, onde copiamos o comportamento de alguém sem que 
haja nenhuma transformação, nenhuma marca pessoal. Vejamos um 
exemplo a partir da relação com Milton. A fase inicial do trabalho foi 
bastante difícil para ambos. Mencionei que ele vivia uma regressão 
profunda, com dificuldades no andar e no falar. Gradualmente, foi 
resgatando seus recursos. Algo que acontecia com frequência, especi­
almente quando entravamos em um elevador, é que ele adotava a 
mesma postura corporal que eu. Era como se olhasse para um espe­
lho ou como se ele estivesse brincando de ser minha sombra. Confes­
so que ficava incomodado e muitas vezes procurava mudar de posi­
ção. Acreditava que o importante seria ele ficar em uma posição pró­
pria e não copiar a minha, então procurava me movimentar para difi­
cultar a imitação. Certa vez, queria ficar no meu lugar no elevador. 
Não o deixei e disse que se virasse com o dele. Ele dizia:
— Me dá um lugar, vá. Você conseguiu arrumar o seu.
— Você tem que batalhar o seu sozinho. Chega de receber as coisas 
de bandeja.
As coisas ficaram por isso mesmo. Nesta época acreditávamos 
— equipe e eu — que ele precisava de função paterna a fim de que 
pudesse sair da relação fusional com sua mãe e com os outros. Hoje 
penso que teria sido importante deixá-lo ocupar meu lugar, não que 
isso o ajudasse a encontrar um lugar, mas que talvez pudesse acalmá- 
lo e possibilitar uma experiência em que ele se desiludisse por conta 
própria e não a partir de uma intervenção dura de minha parte.
Meu incômodo se transformou quando, certa vez, visitando 
minha terra natal, resolvi rever as fotos da família no período de mi­
165
Klcber Duarte Barretto
nha infância. De repente, uma foto me chamou a atenção. Estava em 
um grupo de crianças tendo aula de nataçào com meu pai. O curioso 
foi ver-me copiando exatamente o gesto de meu pai enquanto ele con­
versava com o grupo. Imediatamente, veio à minha mente as situa­
ções que estava vivendo com Milton e dei-me conta de quanto meu 
pai foi uma pessoa importante para mim. Um comentário que ouvia 
com frequência era que eu tinha o mesmo andar que ele. Na época 
não era capaz de compreender como isto era possível e tentava, inge­
nuamente, descobri-lo observando o marchar alheio.
Depois dessa experiência, a irritação com Milton desapareceu. 
Pude reconhecer o valor da imitação de um modelo. Esse comporta­
mento imitativo foi naturalmente desaparecendo e só voltava a ocor­
rer em momentos de muita angústia. Penso que, no caso de Milton, a 
imitação tinha uma significação peculiar. Reproduzir a postura do 
outro era a busca de poder habitar seu corpo adulto, a tentativa de 
organizá-lo e uma forma de se relacionar com o acompanhante.
Poder avaliar a função da imitação para um determinado paci­
ente parece ser algo valioso, pois poderiamos compreender se esse 
comportamento está a serviço de seu desenvolvimento ou se cumpre 
a função de impedi-lo. O aspecto negativo seria representado por aqui­
lo que Winnicott denominou falso self. O comportamentofalso self 
pode ser uma imitação, uma cópia de algo alheio sem que haja uma 
vinculaçào com o verdadeiro ser do sujeito, permanecendo-se na 
artificialidade.
Um outro nível da função de modelo de identificação está rela­
cionado à seguinte idéia de Winnicott (1971): UA originalidade nasce 
da tradição"\ Temos aí a concepção de que o novo só surge a partir de 
elementos já presentes em uma determinada cultura. Ou seja, cria­
mos na medida em que nos apropriamos da nossa tradição cultural. 
A visão winnicottiana dos fenômenos como idealização, admiração e 
influência ressalta esses acontecimentos não como algo simplesmente 
alienante, mas sim como uma busca do sujeito por um objeto que o 
auxilie a desenvolver suas potencialidades13. Nesse sentido, a própria
13 Vide SAFRA (1995), cspecialmcntc o Capítulo 3.
166
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
transferência nào é vista apenas como mera repetição do passado, mas 
também como incessante busca de um novo objeto que possa auxiliar 
no desenvolvimento do se lf
A importância da função de modelo de identificação presente 
na prática do AT já foi apontada por Susana Mauer e Silvia Resmzky
(1985):
“O acompanhante terapêutico, ao trabalhar em um nívei dramático- 
vivencial, não-interpretativo, mostra ao paciente, in situ, modos dife­
rentes de atuar e reagir frente às vicissitudes da vida cotidiana. Isto resul­
ta altamente terapêutico. Primeiramente, porque rompe com os modelos 
estereotipados de vinculação que o levaram à enfermidade. Em segundo 
lugar, porque ajuda o paciente a aprender, a esperar e a postergar. E, 
finalmente, porque lhe oferece a possibilidade de adquirir, por identifica­
ção, mecanismos de defesa mais adaptáveis. ” (p. 40)
Podemos observar que o assento da função recai exclusivamen­
te na negatividade do paciente: a estereotipia, o imediatismo e a 
inadequação dos mecanismos de defesa. Certamente a ampliação dos 
repertórios de vinculação e dos mecanismos de defesa, assim como a 
noção de processo são fatores desenvolvidos pela identificação. En­
tretanto, podemos encontrar em um outro trabalho sobre A T14 uma 
definição dessa mesma função, enfatizando os aspectos presentes no 
ser do acompanhado. A identificação se dá pelo exame das potencia­
lidades do paciente, ele tem um conhecimento a respeito daquilo de 
que ele necessita para se desenvolver. Essa maneira de compreender a 
função de modelo de identificação, além de ressaltar uma positividade 
(mesmo que seja na ausência do aspecto admirado), aponta para um 
movimento que parte do sujeito, que reconhece em um determinado 
objeto uma função que necessita desenvolver em si mesmo. Espero
14 BA RRirrrO , K. d .; CRNAMO, A. C. V. e PRATKS c SILVA, A. L. (1991) 
- “O Setting c as Funções no AT: o Caso Júlia” in A Rua como Espaço Clinico: 
Acompanhamento Terapêutico, São Paulo: Físcuta, 1991.
167
Klcber Duarte Barretto
que já tenha ficado clara a perspectiva winnicottiana da função de 
modelo de identificação.
Certa vez, a acompanhante de Flávia foi convidada por seus 
pais para o jantar, mas agradeceu ao convite e disse que não queria. 
Mais tarde, a acompanhada comentou admirada a atitude da at.
— Nossa! Você não aceitou o convite. Eu nunca imaginei que eu 
também poderia ditçer não aos meus pais quando eles me chamassem para 
uma refeição. M uitas vevçes não estou com vontade de com er, ou não 
quero a companhia deles> mas me sinto obrigada a sentar na mesa com 
eles. Agora que você disse não eu me dei conta que também posso fatçer o 
m esm o.
Vemos pelo exemplo como uma atitude despretensiosa da acom­
panhante através da função de modelo de identificação abre todo um 
campo de experiência para Flávia. Ela começa a vislumbrar horizon­
tes inimagináveis: a discriminação em relação aos pais, a relativizaçào 
da autoridade deles e, acima de tudo, a possibilidade de levar em con­
sideração os próprios desejos e vontades.
Como puderam perceber pelo que relatamos no Capítulo VIII, 
a preguiça e alguns outros fatores mantêm José longe do chuveiro a 
maior parte do tempo. O fato de morar sozinho faz com que, caro 
leitor, não seja difícil imaginardes que o apartamento também não se 
destaca pelo que há de asseado e organizado.
A partir de certo momento, decidi que faria parte dos meus 
encontros com José dar uma arrumada em seu apartamento. Percebia 
que, apesar das relutâncias e oposições de sua parte em faxinar, após a 
limpeza ele demonstrava bastante satisfação. Outro fator que me le­
vava a estabelecer esse novo item no enquadre era saber que José pas­
sava a maior parte do tempo no apartamento e sentia que se alguém o 
ajudasse a manter uma limpeza, tornaria o ambiente mais agradável
para ele e o auxiliaria, quem sabe, a vir aprender a se cuidar um “pou-
\
co melhor”. As vezes, José comentava que gostaria de ser internado 
no Hotel Macksoud Plaza, o que indicava o desejo de um certo refi­
namento da parte dele e isto contrastava em muito com o estado de
168
seu apartamento. Predominava na equipe de AT, assim como no gru­
po que o acompanhava, uma posição de que se deveria respeitar o seu
0
jeito de ser, a sua singularidade. E claro que minha decisão de susten­
tar uma faxina mínima veio depois de um longo percurso com José. 
A opinião materna não diferia muito:
— Eu sei que tio dia em que o Kleber encontra meu filho, o aparta­
mento f i ca limpinho e mais arrumado, mas não sei se isto é coisa de 
acompanhante. Eu acho que o tempo do acompanhamento deve ser usa­
do pra passear.
Este comentário da mãe de José a uma de suas acompanhantes 
indica a concepção que predomina em termos do AT. Na imaginação 
dela, passávamos o tempo todo faxinando, o que não era verdade. 
Mantive-me firme na trilha escolhida, e a confirmação de estar fazen­
do algo significativo, apesar de parecer banal, veio em um encontro 
com José, no qual, para variar, propus a ele que limpássemos o apar­
tamento antes de sair:
— Nao, não! — respondeu ele prontamente — Deixa que eu arru­
mo mais tarde. Deixa que eu arrumo do meu je ito . Kespeita a minha 
individualidade, p ô l
Já conhecendo suas maranhas comentei em tom jocoso e brin­
calhão:
— Ah! Eu te conheço meu irmão! Sei como é o seu je ito : deixa pra 
depois e acaba não limpando nada!
O malandrino deu aquele sorriso de quem é pego no ''flagra'1. 
E então, topou dar uma arrumada sem maiores reclamações. O inte­
ressante foi que, no final do encontro, na hora da despedida, após o 
meu tchau e o costumeiro aperto de mãos, ao invés dele dizer tchau, 
começou a cantar:
— Quem parte leva a saudade de alguém que f i c a chorando de
dor...
Juntei-me ao coro por uns instantes e depois parti. Quedeis 
sossegado, leitor, pois dessa vez, apesar de ter ficado emocionado com
Ética e t é entea no acompanhamento terapêutico
169
Kleber Duarte Harrctto
o happy end não saí chovendo nem garoando. Mas parti sim, com o 
coração tocado e a alma enevoada com tamanha ternura.
Certa feita meu analista comentou que para um sujeito vir a se 
cuidar de si próprio é necessário que antes ele possa ser cuidado por 
alguém. O que nos faz pensar que, se alguém desenvolve o senso de 
responsabilidade, é porque um dia esse alguém esteve sob a responsa­
bilidade de um outro. A possibilidade de nos identificarmos com este 
modelo pode nos ajudar a estabelecer a função de cuidado pessoal ou 
qualquer outra do gênero.
Logo após nosso primeiro encontro, notei que João passou a 
tomar o at como modelo de identificação. Esperou-me calçando um 
mocassim, algo raríssimo, segundo a mãe, pois seu habitual era estar 
sempre de chinelos. Observei que começou a usar tênis ou mocassim 
em nossos encontros. Porém, o elemento mais significativo mobili­
zado depois do primeiro encontro foi o fato de ele se lembrar de 
passeios que realizou quando era bem pequeno. Lembrou-se de um 
amigo da família que o levava para passear e que costumavam fre- 
qüentar uma determinada lanchonete. Os pais o levaram a uma lan­
chonete, mas João disse que aquelanão era a lanchonete aonde ele 
costumava ir. Havia necessidade de se encontrar esta lanchonete espe­
cífica, o que os pais conseguiram ao longo da semana. Assim, em 
nosso segundo encontro fomos a esse lugar, passeio que se repetiu 
inúmeras vezes. Ele sempre pedia os mesmos alimentos, os quais eram 
praticamente devorados. Entretanto, o que ocorria de mais interes­
sante é que inúmeras vezes, enquanto ele engolia os alimentos e ob­
servava o ambiente, eu notava que algumas lágrimas corriam pelo seu 
rosto. Penso que as lágrimas eram fruto da dor provocada pela maior 
consciência do tempo e de si mesmo. De acordo com esse relato, po­
deriamos dizer também que um modelo de identificação, às vezes, 
funciona como um elemento que resgata algum aspecto da própria 
história do sujeito.
Mas será que o at ou qualquer que seja o terapeuta, participa da 
relação apenas como uma figura na história do sujeito acompanhado? 
Talvez nossos próximos passos tragam alguma luz a esta questão.
170
CapítuloXVI
Onde se adentra no campo da transicionalídade e se 
discute a participação da pessoa do terapeuta
no trabalho clínico
Nào vos preocupeis, caro leitor, se o termo transicionalídade nào vos for familiar, pois procuraremos defini-lo gradualmente. Sem 
dúvida contaremos, inicialmente, com a ajuda de Sancho Pança e Dom 
Quixote além de alguns conterrâneos seus e ainda outros desconheci­
dos. Agora que já sabe que me é difícil caminhar sozinho, posso exi­
mir-me de maiores justificativas.
Havíamos deixado nosso amo entregue à penitência nunca dan­
tes imaginada, em sítio tào ermo, que a Sancho muito assustava. Dom 
Quixote lhe dera a incumbência de levar uma carta à sua Senhora e 
descrever a ela as penúrias e sandices que o amo fazia em seu nome. 
Tarefa esta que o escudeiro queria desempenhar o mais rapidamente 
possível. Não por ser sua natureza medrosa como poderiam pensar 
alguns, mas pela preocupação de que o amo pudesse sair mal dessa 
empreitada ou, pior ainda, sequer sair com vida. Assim, nosso amigo 
Sancho Pança partiu montando Rocinante.
“Deus fecha uma porta, mas abre uma janela” poderiam ser as 
palavras do escudeiro para sintetizar o que lhe sucedeu. Estando pró­
ximo ao castelo-hospedaria deu-se conta de que a carta que deveria 
entregar à Dulcinéia, ficara em poder de Dom Quixote, o que coloca­
va todo empenho em risco. A fortuna soprou para seu lado quando 
encontrou o cura e o barbeiro de seu povoado; e, compartilhando 
seus apuros e preocupações com os conterrâneos, chegaram a uma 
engenhosa solução para o caso.
“...acudiu ao cura um pensamento muito conforme ao gosto de Dom 
Quixote e ao que eles queriam. D isse ao barbeiro que a sua idéia 
era que ele se vestiría em trajo de donzela andante, e o barbeiro o 
melhor que pudesse em hábito de seu escudeiro; e assim iriam aon­
de Dom Quixote estava, fingindo ser ela uma donzela afligida e
171
Kleber Duarte Barretto
necessitada, e lhe pediría um dom que ele não lhe podería recusar, 
como valoroso andante cavaleiro que era; e que o dom que tencio­
nava pedir-lhe era que viesse com ela onde o levasse, a reparar-lhe 
um agravo, que um descortês cavaleiro lhe havia feito; e igualmen­
te lhe suplicasse que lhe não mandasse tirar a máscara, nem lhe 
perguntasse nada dos seus particulares, antes de a ter vingado da­
quele mau cavaleiro; que tivesse por sem dúvida que Dom Quixote 
estaria por tudo quanto nestes termos a donzela lhe pedisse, e deste 
modo o tirariam dali, e o levariam ao seu lugar, e lá se vería que 
remédio se podería dar à sua estranha loucura.
...Ao seguinte dia chegaram aonde Sancho havia deixado postos os sinais 
das giestas; apenas as reconheceu, disse aos companheiros ser por ali a entra­
day e que bem se podiam já vestir, supondo ser isso necessário para a 
liberdade do amo, porque eles lhe haviam já dito que o irem assim, e 
vestírem-se daquele modo, era importantíssimo para livrarem a Dom 
Quixote da má vida a que se tínha posto ..."(Cervantes — 1605; pp.
1 5 2 e 1 5 3 ; g r ifo n o s s o )
Eis que os bons ventos sopraram um desfecho ainda melhor, 
pois que o barbeiro e o cura, enquanto esperavam por Sancho Pança, 
encontraram uma moça e um rapaz que graças a diferentes e seme­
lhantes desventuras amorosas lá se foram refugiar. Perdoem-me por 
resumir estes acontecimentos com minhas próprias e pobres palavras
que podem facilmente distorcê-los ou tornar esta passagem inin-
%
teiigível. Aqueles que desejarem uma visão mais fidedigna recomen­
do a leitura cervantina. Pois bem, e assim prosseguiu a curiosa 
maranha.
O cura e o barbeiro contaram aos dois jovens qual era o propó­
sito de estarem em terras tão ermas. A jovem, após ouvir atentamente 
ao engenhoso plano para desencovarem Dom Quixote dali, ofereceu- 
se de imediato para desempenhar o papel, para o qual já possuía ves­
tidos mui apropriados e, também, por tratar-se de pessoa bastante 
lida em romances de cavalaria. Logo tirou da trouxa: saia e mantilha 
de ricas e vistosas fazendas. Até colar e jóias trazia consigo. Com 
todo esse ornamento, a jovem revelou-se uma esplendorosa donzela 
que a todos encantou. Mas pasmado mesmo ficou nosso amigo Sancho
172
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
Pança quando voltou para chamar seus conterrâneos e se deparou 
com tamanha formosura, cuja perfeição superava todas as belezas que 
até então tinha deitado os olhos nesta vida.
Indagou ao cura quem se tratava ser aquela senhora e o que 
buscava por aqueles sítios. Este respondeu tratar-se da herdeira direta 
do grande reino de Micomicão. Estava à procura de ninguém menos 
que seu amo, o valoroso Dom Quixote, cuja fama ganhara o mundo 
chegando à Guiné, terra de onde viera para pedir-lhe socorro e liber­
tar seu reino de um malvado gigante.
“— Ditosa busca e ditoso achado! — exclamou Sancho”. Logo 
viu seu amo tendo já derrotado tal gigante e, assim, tomando-se im­
perador. Mas qual seria o nome daquela formosa donzela?
"— Chama-se — respondeu o cura — a Princesa Micomicona, porque, 
chamando-se o seu reino Micomicão, claro está que ela se deve chamar 
assim.
— Está visto — respondeu Sancho; — de muitos sei eu que têm tomado o
apelido e alcunha do lugar onde nasceram; por exemplo: Pedro de Alcalá,
#
João de Ubeda e Diogo de Valiadolid; também se deve usar lá em Guiné 
as rainhas tomarem o nome dos seus reinos.
— Por força — disse o cura —, e quando ao casar-se o vosso amo, eu farei 
tudo que puder.
Do que Sancho ficou tão contente, como o cura pasmado da simpleza 
dele, e de ver como tinha embutido nos cascos não menores 
despautérios que o patrão, pois nenhuma dúvida punha em que 
viria a ser imperador.** (C e rv a n tes - 1 6 0 5 ; p . 1 7 2 ; g rifo n o sso .)
Estando tudo pronto, partiram: Sancho, o barbeiro vesüdo de 
escudeiro e a donzela. Esta representou tão bem o papel com gestos, 
falas, prostrações e rogos que Dom Quixote ordenou a Sancho Pança 
que aparelhasse Rocinante imediatamente, a fim de se encaminharem 
a Guiné.
173
Klcber Duarte Barretto
Gostaria de ressaltar a maranha que se criou para tirar o peni­
tente cavaleiro de incomparável retiro. Cura e barbeiro perceberam 
que a melhor maneira de obter sucesso seria através das tramas 
cavaleirescas muito conforme ao gosto de Dom Ouixote e náo pelo em­
prego da força.
Nada melhor que o apelo de uma donzela desesperada e neces­
sitada do auxílio do destemido cavaleiro para um desagravo. A fór­
mula funcionou maravilhosamente bem com Dom Quixote e o que 
dizer de nosso Sancho que, apesar de saber do embuste de seus
conterrâneos, ao deparar-se com uma donzela tao bela, naquele fim
*
de mundo, acreditou tratar-se da herdeira do reino de Micomicào. E 
claro que aquilo que cegou Sancho nào foi o mesmo que tirou o 
discernimento do amo. A esse, sua profissão de fé cavaleiresca o im­
pediría de recusar ajuda a uma donzela necessitada e quanto mais a 
uma princesa; ao outro, parece ter sido o desejo de ver o amo casado 
e coroado soberano do Reino de Micomicào, o que significariaum 
alto posto na corte como reconhecimento de sua fidelidade escudeiresca 
e, é claro, como cumprimento da promessa de torná-lo governador.
Dessa forma, o destino quis que de lá saíssem todos sàos e sal­
vos. O amo cumprindo com o mais elevado propósito da Andante 
Cavalaria e o escudeiro na expectativa de se ver, mais tempo menos 
tempo, catapultado da condição de simples lavrador para membro da 
corte micomicona.
Devo informar-vos de que o desfecho desta aventura toda, caso 
nào o saibais, termina com o regresso de cavaleiro e escudeiro para o 
povoado manchego. Sendo que o trajeto final, como já o sabeis, pre­
zado leitor, nosso valoroso Dom Quixote percorreu dentro de uma 
gaiola carregada por vagaroso carro de bois.
Bem, mas o que todo esse episódio tem a ver com a transi- 
cionalidade? Poderia dizer que muita coisa, senão tudo. Em primeiro 
lugar, o estratagema criado pelo cura e o barbeiro, dentro da perspec­
tiva winnicottiana, se enquadra naquilo que se denomina intervenção 
transicional. Intervenção através da qual se consegue alguma mudan­
ça, mas que se utiliza do repertório oferecido pelo próprio paciente,
174
levando em conta seu universo simbólico. Respeita-se seu sonho, seu 
jogo e busca-se intervir a partir destes elementos. Isto é importante 
pois, nessa perspectiva, nào existe nada mais traumático e invasivo do 
que o rompimento do sonho (jogo), o que em última análise, implica 
na ruptura da capacidade simbólica do sujeito, caso esta ainda nào 
esteja suficientemente estabelecida. A capacidade simbólica tem suas 
origens no potencial alucinatório que apresentamos ao nascer como 
discutimos em outros capítulos. Segundo Winnicott, o bebê humano 
nasce com um potencial alucinatório e a partir das tensões instintuais 
e necessidades, ele será capaz de conceber uma idéia — nào mental, 
pois isso só será possível mais tarde com o amadurecimento neuroló­
gico e emocional — do que podería satisfazê-lo. Estabelece-se o perío­
do de ilusào, discutido no Capítulo III. Vemos entáo que, para 
Winnicott, a alucinação é expressão de uma potencialidade humana, 
às vezes única saída para se preservar a capacidade criativa frente a um 
ambiente invasor e/ou a experiências disruptivas. Entretanto, ele apon­
ta para dois usos distintos da capacidade imaginativa: o devaneio e a 
imaginação. O primeiro caracteriza-se pelo uso da capacidade imagi­
nativa que afasta o sujeito da realidade compartilhada, impedindo-o 
de transformá-la. A imaginação, por outro lado, seria o uso da capaci­
dade imaginativa na transformação do mundo em que vivemos, tor- 
nando-o pessoal e próprio.
Sei, meu caro Sancho, que a noção de transicionalidade está tão 
obscura quanto aquela noite na qual Vossa Mercê e Dom Quixote 
passaram em vigília, antes da frustrante e dolorosa aventura dos pisões. 
O escuro era total, pois os frondosos castanheiros sequer permitiam 
que as luzes das estrelas penetrassem o abrigo. E , então, apavorado, 
vistes constelações raríssimas. Pois bem, espero que tenhais paciência 
porque agora sinto-me obrigado a retomar algumas questões a respei­
to do desenvolvimento psíquico segundo a visão do nosso amigo 
W innicott.
O ambiente suficientemente bom é capaz de fornecer ao bebê 
uma adaptação ativa às suas necessidades, principalmente, nas primei­
ras semanas após o nascimento. O encontro dessa adaptação ambiental 
e o potencial alucinatório do bebê propiciarão a satisfação de sua
Ética e técnica no acompanhamento terapêutico
175
Klcber Duarte Barretto
onipotência (ilusão). Assim, ele vai dispondo de um repertório ima­
ginativo que lhe permitirá dar conta da experiência de separação. Em 
outras palavras, o processo de desilusão passa a fazer sentido para o 
bebê e a noção eu e não-eu principia a se estabelecer. Esse espaço que 
surge na separação do corpo da mãe e do bebê dá início ao que 
Winnicott denominou: espaço potencial11 * * * *. E um vazio entre corpos 
e torna-se potencial na medida em que pode ser preenchido pela ima­
ginação do bebê. LJm espaço paradoxal, pois ao mesmo tempo que 
separa, une.
O repertório imaginativo desenvolvido pelo exercício das fun­
ções ambientais — discutidas em vários capítulos deste trabalho — e 
pela própria capacidade imaginativa da mãe promovem uma integração 
do self do bebê. Neste momento, o bebê já é capaz de preencher este 
vazio gerado pela separação. Se tudo correu bem, o bebê provavel­
mente “adotará” um objeto que o auxiliará a lidar com a angústia 
mobilizada pela ausência materna. A primeira possessão não-eu do 
bebê (ponta da fralda, cobertor, um ursinho e outros), à qual ele ba­
tiza com algum nome — quando já é capaz de emitir sons articulados 
— e que o auxiliará a lidar com os momentos de angústia, eis o que 
Winnicott chamou de objeto transicional. Segundo ele, é fundamen­
tal que se respeite a característica paradoxal do objeto, evitando per­
guntar ao bebê se aquilo é uma criação dele ou se ele o achou na 
realidade compartilhada, sob o risco de romper o jogo (sonho). Esse 
paradoxo deve ser respeitado. Trata-se de um objeto que não é nem 
interno, nem externo; nem objetivo, nem subjetivo. Estamos ingres­
sando em uma terceira área da experiência humana: a transicionaiidade, 
os fenômenos transicionais16. Uma área distinta das duas que geral­
mente transitamos: realidade subjetiva e realidade compartilhada. Se­
na o campo da ilusão ao qual os seres humanos recorrem como des-
15
lú
Vale a pena não confundirmos este conceito com o de espaço transicional. O
último se trata de um espaço concreto t]ue funciona como objeto transicio­
nal, por exemplo, uma porta, uma janela, um carro e assim por diante.
Winnicot se utiliza unicamente do termo fenômenos transicionais, sendo
cjue o termo transicionaiidade seria uma outra denominação em português
para sc referir a esta terceira área da experiência.
1 76
canso e relaxamento do esforço exigido pela discriminação interno/ 
externo (subjetividade/objetividade). Campo privilegiado do brin­
car, do sonhar, da arte, da religião, da filosofia... De uma maneira 
geral, a transicionalidade pode ser considerada como campo da expe­
riência cultural.
Segundo Safra (1995b), a transicionalidade é o campo de engen- 
dramento de símbolos, que dão organização às experiências de um 
determinado indivíduo ou povo. Estes símbolos apresentam o self do 
sujeito e expressam a concepção de homem e de mundo daquela cul­
tura.
Mas quais seriam as implicações clínicas dessas idéias? Penso 
ser importante, como mencionamos no Capítulo III, a valorização da 
ilusão como constitutiva tanto da subjetividade quanto da realidade 
cultural, como meio de comunicação e como elemento fundamental 
na formação de símbolos. Dentro desta perspectiva, a dimensão sim­
bólica não se restringe à dimensão discursiva (linguagem) mas com­
preende os gestos, os objetos ou as imagens17. Assim sendo, as decor­
rências dessas concepções permitem que se façam intervenções no co­
tidiano de um sujeito a fim de que se possa colocar em marcha um 
processo de simbolização, na medida em que o cotidiano pode ser 
compreendido como trama de símbolos, produtos potenciais da 
interface entre a subjetividade e a cultura. Essas intervenções têm não 
só um potencial terapêutico — como alívio das angústias, por exem­
plo — , mas também, um potencial analítico, pois eventualmente po­
dem produzir uma transformação na subjetividade do sujeito. Con­
fesso que a ocorrência deste último efeito (analítico) é mais rara, por 
exigir uma profunda compreensão do funcionamento psíquico e uma 
capacidade de se transitar com desenvoltura no campo da transicio- 
nahdade18. O que observo no AT, de uma maneira geral, — tanto na
Ética e técnica no acompanhamento terapêutico
17 Vide SAFRA (1995c).
I« „
SAFRA (1995b e 1996b), cm seus relatos clínicos apresenta várias situações 
cm que interveio através da colocação de um objeto para o paciente (criança 
ou adulto) e que foi possível observar toda uma transformação na subjetivi­
dade, graças ao valorsimbólico do objeto, decorrente da história de vida do 
paciente
177
Kleber Duarte Barretto
minha própria experiência quanto na experiência de colegas de equi­
pe e dos relatos aos quais tive acesso por meio de publicações — é a 
presença da dimensão terapêutica da intervenção. Ou seja, transfor­
mações no humor, diminuição da angústia e mudanças graduais no 
psiquismo dos pacientes.
Um bom exemplo disto é a forma de intervenção utilizada por 
Renata junto à sua paciente, que se preocupava em estar sempre “no 
tom” (vide Capítulo IV). Através de uma intervenção lúdica (transi- 
cional), estabeleceu-se um jogo em que a onipotência e as ansiedades 
persecutórias daí decorrentes são trabalhadas de uma forma bem 
humorada.
Certa vez, Milton e eu estávamos sentados na mesa de um bar- 
zinho. Diante de nós, uma porção de batatas fritas e nossos refrige­
rantes. Comíamos em silêncio, não havia nada para conversar, pare­
cia que estávamos ali mais para preencher o tempo até que chegasse o 
momento de nos despedirmos. Sentia-me entediado e incomodado 
com aquela falta de sentido. De repente, quando Milton estava espe­
tando uma batatinha, peguei o meu palito e roubei a batatinha que 
ele ia pegar. Ele achou engraçado e, então, iniciou-se uma brincadeira 
de disputar — e se possível roubar — as batatinhas do outro. Essa 
intervenção possibilitou uma situação lúdica em que o humor de 
ambos — acompanhado e at — se transformou, tornando o momento 
mais descontraído. Enfim como diria Quincas Borba: uAo vencedor, 
as batatas/”
Na clínica winnicottiana, valoriza-se a pessoa real do analista. 
Este não é somente uma figura de transferência, cuja neutralidade 
favorecerá o estabelecimento da relação transferenciai. Dentro dessa 
perspectiva, é possível sermos abstinentes frente ao próprio desejo e 
ao do paciente sem que isso signifique neutralidade. Estamos sempre 
nos posicionando e nos dando a conhecer ao paciente por aquilo que 
ressaltamos do material apresentado: pela maneira como nos com­
portamos e nos vestimos; pelos objetos que dispomos em nosso con­
sultório e assim por diante. Até mesmo quando resolvemos não dizer 
nada e ficar em silêncio também estamos nos mostrando ao paciente.
1 7 8
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
O curioso é que Winnicott valoriza a pessoa real do analista, princi­
palmente nos casos onde existe um comprometimento do desenvol­
vimento emocional primitivo. Essas pessoas mais do que ninguém, 
precisam (necessitam) de sentimentos reais. Há uma necessidade de 
um contato humano verdadeiro.
Quando se utiliza da transicionalidade como campo de inter­
venção o que se tem em mente é que duas ou mais pessoas possam se 
encontrar como pessoas reais, cuja tarefa é colocar em marcha um 
processo de simbolizaçâo. Qualquer vivência que emerja seja do paci­
ente, seja do analista, seja do ambiente em que se encontram coloca 
para o par uma necessidade de simbolizaçâo. Essa tarefa poderá exigir 
o exercício de uma ou mais — até todas — funções ambientais que 
discutimos ao longo deste trabalho19. Temos, então, um enquadre 
que se estabelece fundamentalmente pela tarefa acima mencionada e 
pelo fato do analista ou acompanhante serem sempre os mesmos, o 
que implica na autenticidade da pessoa que está realizando o trabalho 
clínico. Essas seriam as principais invanantes. Esse tipo de enquadre 
requer do at a capacidade de se manter funcionando, ou seja, sua capa­
cidade de discriminar, pensar e jogar (brincar) em qualquer situação.
As principais funções discutidas foram: holding,, continência, apresentação 
de objeto, manipulação corporal (handling), desilusão, intcrlocuçâo dos dese­
jos e angústias, discriminação de campos semânticos, especular, aliviar as an­
siedades persccutòrias c modelo dc identificação.
179
M
á
Pediu um dia licença aos duques para se ir embora.
Capítulo
XV II
Em que se observam as transformações ocorridas em 
Sancho Pança a partir da convivência com Dom 
Quixote e vice-versa; e outras cositas mas
Estareis pensando que falaremos obviedades nas páginas seguintes?5e houve entre Sancho Pança e Dom Quixote convivência tào 
longa quanto intensa, é óbvio pensar em mútuas influências. Entre­
tanto, gostaríamos de ressaltar os aspectos que passaram a habitar o 
ser do companheiro de aventuras.
No Capítulo X III, no qual discutimos a funçáo especular, nos­
sos amigos aventureiros nos ajudaram a refletir sobre a questào atra­
vés de uma conversa em que empregavam analogias e metáforas para 
falar da vida. Isso mesmo, prezado leitor, foi naquela conversa em 
que Dom Quixote comentou as transformações que observou em 
Sancho Pança, o qual, à medida em que o tempo passava, ia-se fazendo 
menos simplório e mais discreto. Pois bem, vejamos agora como pros­
seguiu colóquio de tamanha franqueza:
“— Pudera; alguma coisa se me há de pegar da discrição de Vossa 
Mercê— respondeu Sancho — > que as terras de s i estéreis e secas, em 
se estrumando, vêm a dar bons frutos; quero dizer que a con vcrsa- 
çao de Vossa Mercê tem sido como um estrume deitado na terra 
estéril do meu seco engenho, e a cultura, o tempo em que o tenho
tais que
não desdigam nem deslizem da boa lavoura que Vossa Mercê fez no 
meu acanhado entendimento.
servido e tratado; e com isto espero dar frutos de benção,
Riu-se Dom Quixote e achou-lhe ra~ao, porque Sancho de quando em 
quando falava de modo que lhe fasfa pasmo, ainda que todas as veges, ou 
a maior parte das ve^es em que Sancho queria falar à corte, acabava por 
se despenhar do monte de sua simple^a no abismo da sua ignorância; e
183
Klcbcr Duarte Barretto
em que ele se mostrava mais elegante e memória do era em trazer rijdes, 
viessem ou não viessem a propósito, como se terá visto e notado no decur­
so desta história.” {'C e rv a n te s - 1 6 1 5 ; p. 3 5 6 ; g r ifo n o sso )
N e s s a s c o n v e r s a s p e r m a n e c e r a m a té q u e o s o n o o s le v o u p a ra o
#
p a s s e io c o s t u m e i r o p o r r e in o s ig u a lm e n t e e n c a n t a d o s . E c la r o q u e a 
p e r e g r in a ç ã o n o t u r n a n ã o fa z ia c o m q u e S a n c h o s e e s q u e c e s s e d e c u m ­
p r ir s u a s ta r e fa s e s c u d c i r e s c a s : d a r p a s t o l iv r e a o r u ç o e a R o c in a n t e . 
O q u e s e p a s s a v a e n t r e a s c a v a la r iç a s n e s s e s m o m e n t o s é d ig n o d e 
n o t a :
"... A amizade do burro c de Rocinante foi tão íntima e singular,que 
é fama, por tradição de pais e filhos, que o autor desta verdadeira 
história lhe consagrou capítulos especiais; mas que, para guardar a 
decência e o decoro que a tão heróica narrativa se deve, os não 
chegou a inserir, ainda que às vezes se descuida do seu propósito e 
conta que, assim que os dois animais se juntavam, Rocinante pu­
nha o pescoço por cima do pescoço do burro, de forma que lhe fica­
va do outro lado m ais de meia vara, e olhando ambos atentamente 
para o chão, costumavam estar daquele modo três dias, pelo menos 
todo o tempo que os deixavam e a fome os não compelia a procurar 
alimento. ” (O p . c it .; g r ifo n o s s o .)
E aproveitando o sono de ambos quero acrescentar aqui uma 
conversa entre amo e escudeiro, que a meu ver, vem a ser mais água 
para nosso moinho.
“— Nào entendo lá isso — replicou Sancho; — o que entendo é que quan­
do estou a dormir, nem tenho temor nem esperança, nem pena nem gló­
ria; e bem haja quem inventou o sono, capa que encobre todos os pensa­
mentos humanos, manjar que tira a fome, água que afugenta a sede, fogo 
que alenta o frio, frio que mitiga o ardor, e finalmente moeda geral com 
que tudo se compra, balança e peso que iguala o pastor ao rei e o simples 
ao discreto. Só uma coisa má tem o sono, segundo tenho ouvido dieçer: é 
parecer-se com a morte, porque, de um adormecido a um morto, pouca 
diferença vai.
— Nunca tc ouvi falar tão elegantemente como agora, Sancho — 
disse Dom Q ui xote; — por onde venhoa conhecer a verdade do
184
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
rifão que tu algumas vezes costumas citar: ‘Dize-me com quem an­
das, dir-te-ei as manhas que tens \
— Então, senhor meu amo — redarguiu Sancho — > quem é que en­
fia rifoes agora? Sou eu ou Vossa Mercê, a quem eles caem da boca 
aos pares, ainda melhor que a mim? Entre os seus e os meus há só 
uma diferença: os de Vossa Mercê virão a tempo, c os meus a desoras; 
mas, afinal de contas, sempre são rifõcs. " ( C e n an tes - 1 6 1 5 ; p. 5 8 2 ; 
g r ifo n o s s o .)
Nesses diálogos podemos perceber, mais claramente, as influ­
ências mútuas de nossos amigos de aventura. Sancho mais discreto, 
capaz de colher os frutos da convivência com o amo. Reconhecendo 
a importância do tempo em que passaram juntos como um fator 
cultivante que lhe propiciou frutos de benção. Foi no encontro com 
Dom Quixote que o seco engenho do escudeiro se pôs a funcionar 
melhor. Uma vez abençoado tornou-se capaz de abençoar. Interes­
sante a analogia utilizada pelo nosso amigo Sancho para descrever seu 
processo de aprendizagem na relaçào com Dom Quixote. Aquele or­
ganizou a relaçào com o amo a partir de sua experiência como lavra­
dor. Vemos aí um veio poético do escudeiro, ele se apropriou de sua 
experiência agrícola c a utilizou como analogia para a relaçào humana.
Sancho, amigo, permita-me utilizar dessas analogias, pois elas 
caem como uma luva para aquilo que discutíamos, no Capítulo XV, 
sobre a influência. Na relaçào com o outro nos fecundamos e nos 
adubamos até que em um ambiente mais favorável (ambiente 
facihtador), as sementes que existem em nós germinem e floresçam.211
E o que dizer das transformações ocorridas no amo? Como 
reza o ditado: água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Eis que 
Dom Quixote passou a se expressar por meio de rifòes como Sancho
“O Carteiro e o Poeta”, obra impressa c filmografaâa, também seria um 
bom exemplo das cjuestòes atjui discutidas
185
Klcbcr Duarte Barretto
lhe assinala. E claro que existem diferenças, pnncipalmente, no tem­
po e quantidade em que os rífões são usados por ambos.
Vemos que ao longo da caminhada transformações ocorreram. 
Agora estamos diante de um Dom Quixote panceado e de um Sancho 
Pança quixotado. A convivência e seus percalços fizeram com que 
certas características de cada um fecundassem o ser do outro.
Parece-me que as cavalgaduras expressam uma outra dimensão 
da relação: a amizade. E certo que a relação entre ruço e Rocinante foi 
mais tranquila e serena que a de amo e escudeiro. Na primeira, a 
confiança e a entrega não passaram pelas mesmas vicissitudes e intem­
péries da ultima. Amizade: algo que entre os humanos nunca é tão 
simples. Vejamos como Sancho Pança se posiciona frente à sua rela­
ção com Dom Quixote, e os desatinos deste diante das argumenta­
ções de uma duquesa:
“— Agora que estamos sós, e que aqui ninguém nos pode ouvir, quereria 
eu que o senhor governador [Sancho] me resolvesse certas dúvidas que 
tenho, e que nasceram da leitura da história do grande Dom Quixote, 
que anda impressa; e uma dessas dúvidas é a seguinte: se o bom Sancho 
nunca viu Dulcinéia, quero diger, a Senhora Dulcinéia del Toboso, nem 
lhe levou a carta do Senhor Dom Quixote, porque o livro de lembranças 
ficou-lhe na serra Morena, como se atreveu a fingir a resposta e a inven­
tar que a encontrara joeirando trigo, sendo tudo burla e mentira, e tanto 
em prejui\o da boa fama da incomparável Dulcinéia, o que decerto não 
di% bem com a qualidade e a fidelidade dos bons escudeiros?
Ouvindo estas palavras, Sancho, sem responder coisa alguma, levantou- 
se, e nos bicos dos pés, corpo curvado, e dedo nos lábios, percorreu a sala 
toda, erguendo os resposteiros. Feito isto, voltou a sentar-se e disse:
— Agora, senhora minha, que já vi que não está ninguém a escutar-nos, 
sem temor nem sobressalto responderei ao que se me perguntou: e a p ri­
meira coisa que eu digo é que tenho o meu Senhor Dom Quixote por 
uni rematado louco, ainda que algumas vezes diz coisas que, no 
meu entender e de todos os que o escutam, são tão discretas e tão
1 8 6
Eíica e t é cn i ca no acompanhamento terapêutico
bem encaminhadas, que o próprio Satanás não as poderia disçer melho­
res; mas, com tudo isso, verdadeiramente e sem escrúpulo, cá pra mim é 
caso assentado ser ele um mentecapto; e, como tenho isto encasquetado 
na cachimonia, atrevo-me a fa^er-lhe acreditar coisas sem pé nem cabeça, 
como foi isso da resposta da carta, e outra patranha, há seis ou oito dias, 
que ainda não está na história, e que vem a ser o caso do encantamento 
da minha Senhora Dona Dulcinéia, uma peta refinada que eu lhe impingi.
Pediu-lhe a duquesa que lhe contasse esse encantamento, e Sancho referiu- 
o tal qual\ com o que muito se divertiram os ouvintes. E, prosseguindo 
na sua prática, disse à duquesa:
— Do que o bom Sancho me contou, nasceu-me na alma um escrúpulo e 
chega aos meus ouvidos um certo sussurro que me di Ĵ *Pois se Dom 
Quixote de la Mancha é louco e mentecapto, e Sancho Pança, seu 
escudeiro, o conhece, e apesar disso o serve e o segue e anda atido às 
suas promessas, é sem dúvida ainda mais louco e mais tonto do que 
seu amo; e, se isto assim é, como não há dúvida, não se elevaria a bem, 
senhora duquesa, que a esse Sancho Pança dês o governo de uma ilha, 
porque, quem se não sabe governar a si, como há de saber governar os 
outros?y
— Por Deus, senhora — disse Sancho — , esse escrúpulo é bem cheio de 
rasção; mas diga-me Vossa Mercê que fale alto e claro, que bem conheço 
que di ̂ a verdade, e que, se eu fosse discreto, há já dias que teria deixado 
meu amo; mas foi esta a minha má sorte; não posso, tenho de o seguir; 
somos do mesmo lugar, comi-lhe o pão, quero-lhe bem; é agradecido, 
deu-me uns burricos, e, sobretudo, sou fiel, e já agora é impossível 
que nos separe outro sucesso que não seja o que deitar umas pás de 
terra para cima de qualquer de nós; e, se vossa altanaria não quiser 
que se me dê o prometido governo, paciência! também Deus Nosso Se­
nhor não mo deu quando nasci, e pode ser que o não ter redunde em 
proveito da minha consciência, que eu apesar de ser tolo, percebo perfeita- 
mente o sentido daquele rifão que di* que por seu mal nasceram asas à 
formiga, e pode ser até que mais asinha vá para o céu Sancho escudeiro, 
do que Sancho governador; em toda a parte se come pão, e de noite todos 
os gatos são pardos; desgraçado é quem às duas horas da tarde ainda não
187
Klcbcr Duarte Barretto
quebrou o je ju m ; e não há estômago que não seja um palm o m aior que 
outro; e a barriga, como di\ o outro, de palha e feno se enche; e as ave si nh as 
do campo têm a D eus p o r seu provedor e d esp en seiro ...” (C ervantes - 
1615; pp. 446 e 447; grifo nosso.)
Interessante a maneira como Sancho organiza sua relação com 
o amo. A profundidade do vínculo já não é ameaçada pelos seus dese­
jos de grandiosidade c prestígio, ou seja, tornar-se governador de uma 
ilha. Parece que ao longo da caminhada, o vínculo entre amo e escu­
deiro se fortaleceu, a ponto de ser colocado como prioritário. A con­
vivência, a estima, a gratidão e a fidelidade os uniu de tal modo, que 
só a morte os separará. Esta amizade não se abala pelos desejos gran­
diosos e pelo risco de Sancho ser encarado pelos outros como mais 
mentecapto ainda que seu amo, uma vez que tem consciência de que 
este último não funciona bem da cachim ônia na maior parte do tem­
po.
A origem da palavra acompanhar vem do latim, cum\ comer; e 
pants: pão. Ou seja, comer do mesmo pão. Assim, acompanhar im­
plica comermos do mesmo pão, compartilharmos experiências com 
nossos acompanhados, o que ao longo do tempo, pode levar à consti­
tuição de um vínculo bastante intenso. Penso que, se este vínculo 
evolui à semelhança de Sancho Pança e Dom Quixote, observaremos 
que ele se torna algo muito valioso. Os elementos de loucura, estra­
nheza e dificuldades que possam estar presentes, de modo mais inten­
so, em umdos membros desta dupla — e que, provavelmente, foram 
motivos para se designar um acompanhamento terapêutico — , esses 
elementos deixam de ser o vértice a partir do qual o outro é visto e 
compreendido. Esses aspectos tampouco precisam ser negados, mas o 
que se passa é que a percepção e o vínculo com o outro se ampliam e 
a tônica da relação tange a amizade.
Certo dia, quando acompanhava Milton, tive uma vivência que 
me surpreendeu e me assustou. Percebi que o estava acompanhando 
corno um amigo. Chamávamo-nos de brother. Nessa época o portei­
ro passou a me anunciar pelo interfone da seguinte forma: “O amigo 
de M ilton ch ego u '. Creio que a regularidade dos nossos encontros às
188
Eti ca e técnica no acompanhamento terapêutico
sextas-feiras à noite, e a proximidade decorrente de alguns anos de 
convivência com ele, imprimia à relaçào um caráter de amizade. Pen­
sei, entào, que se a relaçào entre acompanhante e acompanhado evo­
lui satisfatoriamente, ela caminha em direçào à amizade. Na época 
registrei essas impressões cm meu caderno-diário do AT:
í(Fiquei meio preocupado, pois comecei a pensar que a evolução do 
AT me coloca numa posição de Amigo Qualificado... Senti-me meio cul­
pado. Parece que fa lar de Amigo Qualificado é coisa ultrapassada, mas 
tenho a nítida impressão de que estou ocupando este lugar. Isto fica mui­
to fo r te com o Milton. Com José o futuro dirá..A
Como puderam notar, a vivência de que a evolução do AT 
desaguava no amigo qualificado angustiou-me. Como lidar com toda 
a tradição dentro desse campo de ter abandonado a denominação amigo 
qualificado por acompanhante terapêutico. Essa mudança das deno­
minações está muito bem justificada e fundamentada tanto por Susana 
e Silvia (1985; pp. 39 e 40), quanto por Carrozzo (1991; p. 32) e 
Fulgêncio Jr (1991; pp. 232 e 233). A meu ver, a mudança represen­
tou maior clareza e delimitação da atividade de AT. Evitou-se com 
ela maiores confusões entre acompanhante e acompanhado. Meu caro 
leitor, não estou aqui querendo criar novas confusões através dessa 
discussão. Meu objetivo não é uma nova mudança de nomenclaturas. 
Creio ser importante refletir sobre essas questões, especialmente nes­
se momento de nosso percurso. Não existe nada mais artificial, con­
sequentemente falso, do que denominar uma relaçào que se inicia, 
entre dois desconhecidos, como amizade, a não ser que se conceba a 
amizade como algo em potencial. Por outro lado, imagino que se 
tenha denominado de amigo qualificado os primórdios dessa ativida­
de pela proximidade existente entre o par terapeuta-paciente nesse 
tipo de trabalho. Um vínculo que guarda muitas similaridades com a 
amizade: fazer passeios, encontros em casa, ficar batendo papo, en­
fim, compartilhar das atividades cotidianas de um sujeito.
O que estou assinalando é a potencialidade de uma dimensão 
de amizade no vínculo entre o par at e acompanhado. Mas isso não 
inviabilizaria o trabalho? Não seria uma perda da tarefa do AT? Na
189
Klcber Duarte Barretto
perspectiva da transicionalidade (vide capítulo anterior), não havería 
problema algum, desde que essa proximidade surgisse dentro do pro­
cesso terapêutico, nào para satisfazer aos desejos do at ou do paciente, 
mas sim, às necessidades deste último. Penso que, para o trabalho 
terapêutico ocorrer, é necessário que se mantenha a capacidade de 
discriminação. Discordo de Susana e Sílvia (1985) quando ressaltam a 
questão da assimetria entre acompanhante e acompanhado como con­
dição de um trabalho terapêutico:
“Quando se empregava a expressão ‘amigo qualificado \ acentuava-se, 
como é evidente, o componente amistoso do vínculo; no entanto, ao subs- 
tituir-se aquela pela atual denominação, acentuou-se o que de 
terapêutico tinha este tipo de função assistencial Essa nova nomencla­
tura tem, por sua veeç, a vantagem de delimitar melhor a tarefa e fortale­
cer o sentido interacional do vinculo. A condição de ‘am igos'im ­
plica, partindo do ponto de vista do vínculo, simetria de seus participan­
tes, e, do ponto de vista espaço-temporal, uma presença não-delimita- 
da de antemão e liberada aos desejos dos participantes. No entanto, 
o limite do trabalho do acompanhante terapêutico é, segundo o pon­
to de vista vincular, assimétrico. O A .T. [at] não é um amigo, ainda 
que possa estabelecer laços afetivos muito fortes com o paciente. ” (Op. 
cit., grifo nosso.)
Antes de discutir o trecho acima, penso que seria valioso 
contextualizar o trabalho das autoras. Elas foram as primeiras a se 
lançarem com mais afinco à tarefa de teonzação do AT, tanto é que o 
livro delas foi o primeiro do gênero. Penso que, entre aqueles que se 
dedicam à tarefa do AT tanto acompanhantes quanto supervisores, 
existe uma preocupação em se fundamentar essa atividade como um 
trabalho sério. Talvez, essa seja uma das razões pelas quais as autoras 
acima citadas empenharam-se em diferenciar o trabalho em AT de 
um vínculo de amizade. Entretanto, acredito que seja importante dis­
cutirmos algumas idéias apresentadas no trecho acima transcrito. Os 
anos se passaram e muita água j á rolou no moinho do acompanhamen­
to terapêutico.
1 9 0
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
O que chama atenção na argumentação das autoras é a maneira 
como elas apresentam as vantagens e desvantagens de se utilizar uma 
ou outra denominação para essa atividade, o que revela uma concep­
ção de amizade bastante curiosa. O termo amigo, em sua concepção, 
enfatiza uma dimensão amistosa (sem conflitos?). Em minha experi­
ência pessoal, amizade é algo bastante distinto de uma relação amisto­
sa. Esta última aponta para uma necessidade de vigilância na interação 
com o outro, uma interação em que a possibilidade de encontrar o 
outro é bastante comprometida, pois evitam-se os conflitos, e, pnnci- 
palmente, eventuais confrontos quando se marca uma posição. Daí 
decorre a idéia seguinte de que a denominação at fortalece “o sentido 
interacional do vinculo” E claro que, se a noção de amigo está restrita 
ao componente amistoso do vínculo, a margem de interação está pro­
fundamente limitada. Resta-nos questionar se o termo amigo aplica- 
se a uma relação com essa marca. Penso que não, pelo menos em 
minha experiência. E será que a condição de 'amigos' implica..., uma 
presença não-dehmitada de antemão e liberada aos desejos dos pa rtici­
pantes? Acho a concepção de amizade como simples satisfação dos 
desejos e ausência de frustração, bastante pobre e desvitalizada. Por 
último, creio que existe uma confusão entre simetria e indiferenciação/ 
indiscriminação que precisa ser esclarecida. A idéia de simetria apon­
ta para sujeitos que se encontram em um mesmo plano, o que de 
forma alguma significa que não haja diferenças e discriminação entre 
esses sujeitos. Se o at/analista/terapeuta está preocupado em manter 
uma assimetria, isto o impossibilita de entrar — e trabalhar — na 
dimensão da transicionalidade, e ainda imprime na relação terapeuta- 
paciente um caráter de submissào/subjugamento.
E para esse risco que aponta Baremblitt (1991, pp. 79/82) ao
sugerir que se resgate essa denominação de “amigo” como forma de se 
evitar um lugar (papel) excessivamente institucionalizado, ou seja, de 
dominação segundo seu ponto de vista. Concordo com esta preocu­
pação: de se estar junto ao nosso acompanhado como pessoa real e 
não pelo apego a uma identidade profissional (papel profissional). 
Essa me parece ser uma questão fundamental; não apenas para o acom­
panhamento terapêutico, mas para o campo clínico em geral. Por um
191
Klcbcr Duarte Barretto
lado, ao nos dispormos a estar juntos dos nossos acompanhados e/ou 
analisandos como “amigos”, como pessoas reais, existe o risco de nos 
indiscriminarmos, caso nào haja uma boa capacidade de análise. Por 
outro lado, a preocupação em exercer o papel de terapeuta pode re­
sultar em um apoio demasiado naquilo em que se acredita ser a atitu­
de de um bom terapeuta/analista (dimensão instituída dessa tarefa). 
Isso setorna um campo aberto para a artificialidade, cuja rigidez e 
estereotipia resultam bastante prejudiciais, nào só para o paciente, 
como também para o acompanhante/terapeuta/analista.
Winnicott (1961) afirma que para um sujeito e/ou determina­
das dimensões do self em que houve uma falha no cuidado inicial da 
vida, é necessário que o tratamento ofereça ao paciente a oportunida­
de de ter experiências que pertençam à infância, em uma fase marcada 
pela dependência absoluta do meio ambiente. As condições para esses 
tipos de experiências podem ser encontradas nào somente na 
psicoterapia, mas também na amizade, no cuidado de enfermagem 
durante uma doença física, nas experiências culturais, incluindo as 
religiosas. Interessante observar o resgate da dimensão terapêutica de 
experiências do cotidiano, especialmente, da amizade. Mais adiante, 
no mesmo artigo, ele afirma: “Psicoterapza do tipo a que estou me refe­
rindo pode pa recer amizade, mas não é amizade porque o terapeuta é 
pago e apenas vê o pa cien te p o r um período lim itado pela consulta , e, 
além do mais, somente p o r um curso limitado de tem po”.(p. 109)
Penso que Winnicott faz uma aproximação bastante importan­
te entre o trabalho terapêutico e a amizade, porém se preocupa em 
demonstrar, através dos elementos do enquadre (espaço e tempo), 
que parece mas não é ou é igualzinho só que diferente. Se acompanhar­
mos o desenvolvimento de seu pensamento ao final de sua obra, en­
contraremos os fundamentos — transicionalidade e espaço potencial 
— para afirmarmos que se trata sim de uma amizade. Mas o que carac­
terizaria a amizade nesse tipo de trabalho?
No campo da experiência cultural, marcado pelos fenômenos 
transicionais, a dimensão do espaço e do tempo estão suspensas e mer­
gulhamos em uma dimensão em que o ser de cada um toca e transfor­
192
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
ma o ser do outro. Se essa experiência foi possível de ser vivida por 
duas pessoas, acredito ser difícil nào denominá-la amizade. Essa expe­
riência nào é exclusividade dos humanos. E, como canta Milton Nas­
cimento:
“Amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do p eito mesmo 
que o tempo e a distância digam não. ” (Canção da América)
Ou seja, a existência ou a permanência da amizade não está 
sujeita ao tempo e ao espaço. Mas se o encontro acontece não precisa­
mos nos esforçar ou nos preocupar em guardar no coração, pois é lá 
sua morada desde o momento em que nasceu.
Penso que no AT existe uma singularidade na amizade ou no 
sentimento de solidariedade que é dado pela tarefa que define o en­
contro. Não tanto pelos elementos sensoriais do enquadre como de­
finiu Winnicott, mas pela possibilidade de instrumentalizá-la (amiza­
de) a fim de auxiliar o desenvolvimento psíquico do sujeito acompa­
nhado.
De que maneira esse acompanhante-amigo poderia intervir com 
o objetivo de colocar o self do outro em devir? Como seria esse traba- 
lho-amizade?
193
Capítulo
X V III
Da fundamentação do AT como um campo do experi-
enciar e cuja técnica privilegiada de 
intervenção é o manejo
Avós que ainda nos acompanhais neste percurso, adianto que já estamos nos encaminhando para um término. Nào diria que este 
capítulo é uma conclusão, pois esta seria uma tarefa que transcende a 
capacidade de quem vos escreve. Tentarei, isto sim, fazer uma articu­
lação entre as diversas funções ambientais, que apresentamos anterior­
mente, e a atividade do AT.
Talvez, para uns, as funções ambientais tenham ficado meio 
dispersas ao longo do trabalho, e a relação delas com o AT pouco 
clara. Para outros, ainda resta a pergunta: mas, afinal, qual seria a 
especificidade do procedimento clínico abordado nesse trabalho?
Temo não ser capaz de satisfazer àqueles que esperam uma res­
posta categórica a essas questões. Nem sei se “especificidade” seria o 
termo adequado para se referir ao que tenho a dizer. Dentro da pers­
pectiva em que desenvolvemos nosso percurso, o oferecimento (utili­
zação) do AT para um determinado sujeito se apóia na compreensão 
de que este sujeito se desenvolverá caso encontre condições favorá­
veis em seu meio ambiente. Existe uma necessidade de que se exerçam 
junto ao sujeito determinadas funções ambientais que possam colo­
car em marcha seu desenvolvimento psíquico.
Acreditamos que as crises, sintomas e/ou paralisações no de­
senvolvimento apontem para dimensões da existência humana ainda 
pouco ou nada simbolizadas. Em cada um de nós existem dimensões 
mais simbolizadas que outras e até mesmo áreas do se lf em que, na 
nossa história de vida, não foram passíveis de simbolizaçao. Diria que 
o at busca suprir uma ou várias falhas ambientais. Nào estou com esta
195
Kleber Duarte Barretto
afirmação querendo culpar os pais pelas dificuldades do sujeito, estou 
procurando chamar a atenção para o fato de que todos possuímos 
áreas onde faltou uma experiência com outro ser humano que pudes­
se simbolizar uma determinada questão existencial. Tampouco estou 
afirmando que todas as falhas possam ser remediadas, pois em certas 
dimensões as seqüelas podem ser irreparáveis.
No AT procuramos fornecer ao sujeito experiências que pos­
sam suprir determinada(s) fenda(s) no se lf Essas fendas podem ser 
decorrentes de inúmeros fatores: doenças físicas; falhas maternas na 
adaptação às necessidades do bebê; falhas paternas; limitações no re­
pertório simbólico de uma determinada família e/ou da cultura em 
que ela está inserida para lidar com certas questões existenciais; possí­
veis incompreensòes no encontro com outros seres humanos signifi­
cativos ou não.
Poderiamos resumir os fatores acima expostos como desen­
contros com as necessidades de um sujeito que, inevitavelmente, ocor­
rem ao longo da vida de cada um. É claro que a não satisfação de ne­
cessidades básicas em uma idade muito precoce gera comprometimen­
tos de self mais profundos. O at se utilizará do potencial terapêutico 
presente no cotidiano da vida do sujeito, a fim de promover seu de­
senvolvimento. Assim, poderá em um determinado período ou com 
um determinado paciente, exercer funções que tenham a ver com a 
maternagem e a paternagem e, em outros momentos, com a amizade.
O manejo inianagemeni), como a maior parte dos termos utili­
zados por Winnicott, caracteriza-se por estar muito próximo de uma 
linguagem cotidiana. Assim como outros tantos conceitos winni- 
cottianos, o manejo nao recebeu por parte desse autor uma preocupa­
ção de que fosse sistematizado, ou seja, não existe em sua obra ne­
nhum artigo que procure defini-lo com maior precisão ou mais am­
plamente. O que encontramos são menções, exemplos clínicos do 
que ele entendia por manejo. No entanto, é possível apreender atra­
vés de seus textos, que o manejo se refere a uma intervenção no setting 
(enquadre) e/ou no cotidiano do sujeito, levando em conta suas ne­
cessidades, sua história e a cultura na qual está inserido, a fim de pro-
196
0
mover seu desenvolvimento psíquico. E por meio dessa técnica que 
se exercerão as diversas funções ambientais que são fundamentais na 
constituição do selj de um sujeito, como procuramos apresentar em
0
vários capítulos da nossa romaria. E nesse sentido que o manejo con­
siste na técnica privilegiada do AT. Caro leitor, deixe-me esclarecer 
de uma vez por todas que grande distância vai entre aquilo que nessas 
andanças se discutiu sob a insígnia de manipulação corporal, agora 
manejo, e aquilo que comumente queremos expressar quando utili­
zamos o vocábulo manipulação. Este último pertence a um campo 
semântico bastante distinto daquele aqui empregado, pois se um aponta 
para o controle e o exercício perverso dessa função, o outro indica a 
organização e a administração de um determinado tipo de cuidado 
para que um sujeito se desenvolva. Ou seja, um visa à captura e à 
submissão, enquanto o outro ao desenvolvimento e à liberdade. Es­
pero que tenha ficado claro a distinção semântica, pois apesar de se­
rem termos que têm a mesma raiz manual, referem-sea mãos radical­
mente opostas ou pelo menos, a mãos que acenam com propósitos e 
funções mui distintas.
Winnicott (1954) afirma que para aqueles sujeitos que ainda 
não se estabeleceram enquanto unidade, que ainda não alcançaram 
uma integração de selfy o manejo é a técnica mais indicada. Trata-se de 
situações em que a transferência é marcada pela indiferenciação, em 
que a dimensão de externalidade (não-eu) está por ser estabelecida. O 
manejo também é necessário em casos nos quais o sujeito está em vias 
de alcançar o status de unidade. Nessas situações, a questão do amor e 
do ódio desempenha um papel preponderante na relação transferenciai, 
e a sobrevivência do meio ambiente (analista ou pais, por exemplo) é 
fundamental. Seria o estádio da preocupação (concern) — ou, segundo 
Klein, posição depressiva — no qual predomina uma transferência 
dual, tipo mãe-bebê.
O manejo torna-se, a partir desta compreensão, a técnica mais 
adequada para se lidar tanto com situações regressivas quanto com 
sujeitos que apresentam uma paralisação no desenvolvimento psíqui­
co. Ou seja, o manejo é fundamental quando nos deparamos com um 
sujeito que depende do meio ambiente para funções básicas. No iní­
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
197
Klebcr Duarte Barretto
cio da vida e em situações regressivas, lidamos com uma dependência 
absoluta do sujeito em relaçào ao meio ambiente: mãe, pai, família, 
babá, instituição, analista, setting, entre outros.
De acordo com Khan (1978): “No trabalho de Winnicott, encon­
tramos três tipos básicos de manejo indicados:
1) A qualidade do setting analítico: onde o paciente está tranquilo e livre 
de invasão.
2 ) Providências tom adas pelo analista p a ra d a r ao paciente o que ele re­
q u er, seja ausência de intrusão p ela interpretação, e j ou um a presença 
corporal sensível na pessoa do analista, e / ou p erm itir que o paciente se 
movimente pela sala e seja apenas o que ele é ou faça o que tem necessida­
de de ja v çr.
3 ) O m anejo só pode ser proporcionado pelo am biente social e fa m ilia r; 
aqui, a escala abrange desde a hospitalização até o cuidado pela fam ília e 
am igos.
O que é importante observar nessa questão do manejo é que ele nem favo­
rece os caprichos e desejos do paciente, nem evita satisfazer a dem anda de 
auxílio, pelo restabelecimento da confiança. O m a n e jo é , n a v e r d a d e , 
o p r o v im e n t o d a q u e la a d a p ta ç ã o a m b ie n ta l, n a s itu a ç ã o c lín ic a 
o u fo ra d e la , q u e fa lto u a o p a c ie n t e n o s e u p r o c e s s o d e d e s e n v o lv i­
m e n t o e sem o q u a l tudo o que ele pode fa z e r é ex istir p ela exploração 
reativa de mecanismos de defesa, assim como pelo seu potencial do id. Só 
quando o manejo fo r eficaz Para 0 paciente é que o trabalho interpretativo 
pode ter valor clínico. O manejo e o trabalho interpretativo m uitas vezes 
cam inham lado a lado, apoiando-se m utuam ente, um facilitando a ação 
do outro na experiência de vida total do paciente, (p. 28 , grifo nosso.)
O processo analítico compreendido dessa maneira levou Safra 
(1995 b) a afirmar que, dentro de uma perspectiva winnicottiana, te- 
ríamos que repensar aquilo que compreendemos como uma análise 
satisfatória. Esta não estaria somente focalizada nas boas interpreta­
ções, mas sim na possibilidade de se fazer manejos.
198
Eíica e técnica no acompanhamento terapêutico
Como pudemos ver ao longo dessas andanças, o AT incidiría, 
predominantemente, no terceiro tipo de manejo mencionado por 
Khan. E no cotidiano do sujeito, tanto na dimensão da sua vida social 
quanto familiar, que o acompanhante intervém. Assim, dentro da 
perspectiva winnicottiana, não existiría uma distância tao grande en­
tre um trabalho clínico em consultório e o trabalho de AT.
Não seria despropositado pensar que o germe daquilo que 
estamos denominando manejo, já estaria presente no fato de Freud 
marcar um dia para o término da análise do “homem dos Lobos” ou 
no que Ferenczi desenvolveu como “técnica ativa”. Este último ob­
servou que o trauma infantil poderia ser decorrente tanto de uma 
estimulação excessiva quanto insuficiente. Dessa forma, não só a téc­
nica clássica com sua passividade objetiva, mas também a técnica ativa 
poderíam reproduzir traumas infantis ou não.
Essas questões apontam para a necessidade de se adaptar o setting 
de acordo com as características e a história de cada sujeito. Um tipo 
de setting padrão pode funcionar muito bem para um determinado 
paciente, enquanto que, para outro, torna-se uma reprodução de situ­
ações traumáticas.
Em um artigo escrito em 1955, cujo título em inglês é “A case 
managed at home'\ e que foi traduzido para o português como “Um 
caso tratado em casa”, Winnicott relata o manejo envolvido no trata­
mento de uma menina de 6 anos. Kathleen teve uma crise psicótica 
intensa e foi encaminhada pelo serviço social aos cuidados de D.W.W. 
Este notou que a fase aguda da doença já havia passado e que a família 
estava lidando bem com a situação. O pedido do serviço social era 
para que ele encontrasse um lar infantil para ela. Entretanto, diante 
do fato de que a casa dela tinha se transformado em um “hospital 
psiquiátrico” para se adaptar às suas necessidades e de que sua mae 
podia oferecer-lhe os cuidados adequados, Winnicott resolveu pro­
por à mãe que a menina fosse tratada em casa. Em outras palavras, ele 
optou por fazer o manejo clínico dentro da própria casa e contando 
com os recursos terapêuticos da família. Segundo seu ponto de vista, 
Kathleen precisava daquele tipo de ambiente, o qual nenhum lar in­
199
Klcber Duarte Barretto
fantil podería oferecer. A recuperação levou cerca de um ano, no 
qual D.W.W. recebeu mãe e filha semanalmente para uma consulta 
de 10 a 20 minutos. Por meio dessas consultas ele observava como ela 
estava e orientava a mãe nos cuidados a serem oferecidos. Ele atribuiu 
o êxito do tratamento em grande parte ao trabalho da família, especi­
almente ao da mãe, mas teríamos que ressaltar que as estratégias de 
manejo em muito contribuíram para tal desfecho. Além, é claro, da 
cooperação e participação da própria Kathleen.
Gostaria de remeter o leitor a uma obra tão interessantíssima 
quanto bela e polêmica, cujo conteúdo versa integralmente sobre 
manejo clínico. Essa obra vem a ser Quando a Primavera Chegar: des­
pertares em psicanálise clínica, do príncipe paquistanês Masud Khan 
(1988). Apesar de já tê-la citado anteriormente sinto necessidade de 
fazer público meu apreço por essa pérola clínica, que revela ainda 
mais seu brilho quando Gilberto Safra se põe a desvendar, em alguns 
de seus cursos, os sentidos das intervenções do autor. Em todos os 
casos apresentados no lívro, Khan revela estratégias arrojadas de ma­
nejo e grande sensibilidade clínica e humana. Muitos discordarão do 
que acabo de dizer, pois a eles mais parecerá tratar-se de arrogância e 
despotismo misturados a uma boa dose de loucura. IPW/...que se pode 
fazer, não é?! Há situações em que ele viaja para encontrar o paciente; 
ajuda a administrar as finanças de outros; às vezes, empresta até di­
nheiro quando necessário e em outras deixa de cobrar seus honorári­
os; sustenta uma gravidez que está para ser interrompida por uma 
paciente em coma e depois se oferece como padrinho da criança; con­
vida um paciente e sua família para um jantar em sua casa; escreve 
notas para jornais quando uma família necessita, e também para os 
empregadores de um de seus pacientes; discute de maneira ofensiva 
com outros, e assim por diante. Enfim, ele pinta e borda do jeito que 
o diabo e os anjos gostam. Impossível fazer justiça ao conteúdo que 
esse livro encerra, através das confusas e mal acabadas idéias produzi­
das pelo fraco engenho deste que vos escreve. Portanto, fica aqui re­
gistrado uma dica para quem quiser se aprofundar no assunto. Fica 
também registrado minha gratidão e dívida para com o amigo Masud, 
por não ter apresentadoseu trabalho, como o faz por merecer, de
200
Eli ca e técnica no acompanhamento terapêutico
maneira mais digna e aprofundada nessas andanças. Ao lê-lo, assim 
como a alguns trabalhos de Winnicott, tenho a impressão de estar 
diante do relato de um at muito experiente, criativo e corajoso. Não 
há como negar as fortes semelhanças entre o que denominamos, neste 
sul da América, como acompanhamento terapêutico e aquilo que o 
Grupo Independente da Escola Inglesa de Psicanálise compreende por 
manejo clínico.
Havia uma moça cuja família solicitou o trabalho de AT por 
meio de seu psiquiatra. O pedido era que a at ajudasse Rosa a sair de 
casa, especiaimente de seu quarto. Estava há alguns meses nessa situa­
ção e uma das coisas que mais incomodava à família, principalmente 
à mãe, era o fato de ser impossível fazer com que ela abrisse pelo 
menos a janela do dormitório. A escuridão reinava no cômodo desde 
então. A acompanhante foi se aproximando e conseguiu estabelecer 
um bom contato, mas apesar das pressões maternas não obteve êxito 
na abertura das cerradíssimas ventanas. Tentava, mas não havia meio. 
Passaram, então, a fazer alguns passeios nos dias de encontro e a con­
vivência favoreceu uma maior intimidade e confiança na relação. Com 
isso, os banhos, que eram raros, passaram a ocorrer sempre antes dos 
encontros e, posteriormente, com a ajuda da at procuraram uma aca­
demia de ginástica, o que garantiu chuveiradas diárias. Um fator que 
impressionava a acompanhante era a solidão em que Rosa estava mer­
gulhada, queixava-se de que não vivia, mas sim vegetava. Durante um 
passeio, a at decidiu dar de presente a ela um vasinho de violeta quan­
do passavam em frente a uma banca de flores. Rosa ficou muito agra­
decida e emocionada, pois nunca havia recebido flores em sua vida, 
para surpresa da acompanhante. Ao chegar em sua casa Rosa ficou em 
dúvida em relação ao local em que deveria colocar a violeta. Depois 
de alguma hesitação sugeriu à a t que deixasse o vaso na sala, assim 
todos poderiam ver. A acompanhante insistiu que o presente tinha 
sido para ela e achava, então, que a violeta deveria ficar em seu quar­
to, o que Rosa acatou com certa satisfação. A relação de cuidado e 
afeto para com a violeta foi intensa, era como se ela estivesse cuidan­
do de si mesma, seus aspectos vegetativos que agora se abriam em 
flor. A violeta seria um símbolo de self para Rosa, segundo Safra (1996).
201
Kleber Duarte Barretto
Não é difícil imaginar que essa história teve como desfecho a abertura 
da janela do quarto, pois era lá que a violeta passava grande parte do 
dia recebendo sol e trazendo de volta com isso a luz para aquele dor­
mitório antes entrevado. Infelizmente, o trabalho de acompanhamento 
teve um destino não muito raro nesse campo: a interrupção do pro­
cesso pela família, pois o crescente desabrochar de Rosa colocava em 
xeque o lugar da loucura naquele funcionamento familiar.
Certo dia estava descendo a Rua do Paraíso a pé. Lá, a calçada é 
repleta de degraus devido à inclinação da rua. Ao longe avistei duas 
pessoas sentadas em um desses degraus, o que me fez pensar, imedia­
tamente, que se tratava de um acompanhante e seu acompanhado, 
pois o local e o horário eram pouco “apropriados” para uma simples 
conversa. Baseava-me, para tal suposição, nas inúmeras vezes que sen­
tei, ao lado de um (a) acompanhado(a), em guias ou chão de uma cal­
çada qualquer. Quando me aproximei, não resisti à curiosidade e pro­
curei observar os protagonistas daquela cena. Qual não foi minha 
surpresa quando notei que aquela dupla, meio alheia à movimenta­
ção local, parecia mais tratar-se de um encontro entre pai e filho. Era 
um garoto em sua puberdade e um homem adulto. Imaginei que esti­
vessem tentando dar conta de algum conflito. A bem da verdade, 
pouco importa se minha imaginação se aproximou daquilo que en­
volvia aquelas duas pessoas. O mais importante, e por isso estou con­
tando esse episódio, foi a repercussão que essa cena teve em mim. Era 
evidente que não se tratava de um at e seu acompanhado, tampouco 
de um amigo qualificado. Isso me fez pensar no quanto exercemos 
uma função que está enraizada no cotidiano, na vida das pessoas. O 
AT é uma ajuda especializada em funções que pertencem à vida mes­
mo. Tentamos potencializar aquilo que está, ou deveria estar, presen­
te na vida de cada um.
Caro leitor, gostaria de comunicar-vos algo que talvez já tenhais 
percebido. E o comunicado vem a ser o seguinte: dou por encerrado 
meus compromissos com esse percurso. Acredito, ou melhor, espero 
ter cumprido com aquilo que foi prometido, ao longo das nossas 
andanças, no que se refere à fundamentação do AT como procedi-
202
*
Etica e técnica no acompanhamento terapêutico
mento clinico dentro de uma perspectiva winnicottiana. Mas a fim de 
que toda essa caminhada nào termine assim tão a seco, gostaria de 
voltar, pela última vez, eu prometo, à companhia dos nossos amigos 
Dom Quixote e Sancho Pança. Espero que ainda traga fresco na me­
mória as tentativas dos seus amigos conterrâneos — em especial o 
cura e o barbeiro — para trazer o amo de volta à terra natal e que 
resultou em um retorno engaiolado. Pois bem, outra vez, cavaleiro e 
escudeiro deram vazão às aventuras e, outra vez, seus amigos criaram 
uma peta para trazê-los de volta. A peta se resumiu em que um bacha­
rel, amigo de todos, trajado a la cavaleiro andante, desafiasse o 
inigualável Dom Quixote, sob a condição de que, caso este fosse der­
rotado, haveria de regressar a terras natalinas e lá permanecer por um 
determinado período de tempo afastado da arte cavaleiresca. E assim 
foi que, derrubado do alto de Rocinante, o amo deu com terra nào só 
o próprio corpo, mas também as andanças e as armas. Como podem 
imaginar, tal derrota e sobretudo tal castigo jogou nosso cavaleiro em 
profunda melancolia e exigiu de nosso amigo Sancho um esforço 
hercúleo no exercício de todas as funções, nessas andanças discutidas, 
e ainda outras mais que mal podíamos imaginar, as quais quedaram 
fora da nossa peregrinação. Devo dizer-vos que Sancho muito habil­
mente recuperou um pouco do dernbado ânimo do amo. E foi assim 
que no cam inho de volta, “ chegaram ao mesmo sítio em que foram 
atropelados p elos touros. R.econheceu-o Dom Quixote e disse a Sancho:
0
— E este prado em que topamos as bhçarras pastoras e galhardos pastores, 
que aqui queriam imitar e renovar a pastoril slrcádia, pensamento novo 
e discreto, a cuja imitação, se isto te agrada, quereria eu, Sancho, que nos 
convertéssemos em pastores, pelo menos durante o tempo em que eu tiver 
de estar recolhido. Comprarei algumas ovelhas e tudo o mais que é neces­
sário para o exercício pastoril; e, chamando-me eu pastor Q u i x o t i e tu o 
pastor Pancino, andaremos por montes, selvas e prados, cantando ali, 
recitando endechas acolá, bebendo os límpidos cristais, ou das fontes, ou 
dos regatos, ou dos rios caudalosos. Dar-nos-ão, com mão abundantíssima, 
o seu dulctssimo fruto as altas carvalheiras, assento os troncos dos 
duríssimos sobreiros, os salgueiros sombras, aroma as rosas, alfombra 
matizada de mil cores os extensos prados, o ar puro e claro, bafejo, lu\ as
203
Klcbcr Duarte Barretto
estrelas e a lua, rompendo a escuridade da noite, suave prazer o canto, 
alegria o choro, versos Apoio, * 0 Amor conceitos, poderemos
eternizar a nossa fam a, «00 presentes, mas também nos
porvindouros séculos.
— Por Deus! — drxf* Sancho — quadra-me esse gênero de vida, /a#/0 
que nunca se lembraram disso, nem 0 bacharel Sansão Carrasco, nem 0 
barbeiro Mestre Nicolau, e talve£ a queiram seguir e fa^er-se pastores 
conosco; e pra~a a Deus que 0 cura não tenha vontade de entrar no aprisco, 
já que tanto gosta de se divertir.
— Disseste muito bem — respondeu Dom Quixote - e 0 Bacharel Sansão 
Carrasco, se entrar no grêmio pastoril, poderá chamar-se 0 pastor 
Sansonino, ou 0 pastor Carrascão; 0 barbeiro Nicolau chamar-se-á 
Nicoloso, como 0 antigo Boscão se chamou Nemoroso;ao cura é que não 
sei que nome lhe havemos de pôr, a não ser que derive de 'cura': por 
exemplo, 0 pastor Curiambro. As pastoras, nossas enamoradas, é fá cil 
escolher os nomes; e, como 0 da minha dama tanto quadra a uma prince­
sa como a uma %agala, não preciso de me cansar a procurar outro que 
melhor lhe caiba: tu, Sancho, lá porás à tua 0 que quiseres. ” (Cervantes - 
1615; pp. 579 e 580.)
Assim continuaram caminhando e palreando até o cair da noi­
te: batizando e rebatizando amigos e senhoras; escolhendo e compon­
do os instrumentos musicais que melhor adornavam ao exercício pas­
toril; relacionando as principais atividades com as quais se ocupariam 
e outras cositas mas. Escolha bem acertada esta de querer reviver a 
Arcádia no lugar das armas. E confesso que tanto me apraz a idéia de 
ressuscitar essa academia romana a fim de dar cultivo às poesias e 
coisas mais bucólicas e nao menos pitorescas, que já me dou por bati­
zado Kleberino, tamanho meu desejo de juntar-me ao grêmio.
Tudo isso, querido leitor, vem só para reforçar e reafirmar al­
gumas das posições aqui discutidas. Qual seja: a de que o ser humano 
constitui-se do sonho que se desdobra em ideais, em projetos, em 
arte, em trabalho, em teorias, em religiões, em mitos e tudo o mais 
que aqui não se incluiu. O sonho é o pão nosso de cada dia, o coelhinho
204
da Páscoa e o papai Noel do nosso amigo Andresino... Nos apoiamos 
no ponto do sonho, em conjuminância com o amigo Josiano, pois é ali 
que se recupera a alma; é ali que colorimos o mundo; é ali que se dá 
um sentido para a própria vida. E a partir de tudo isso que se coloca 
em jogo na relação humana, que descobrimos e redescobrimos a ra- 
zào de viver. E a partir de tudo isso que nos despedimos e nos lança­
mos no exercício pastoril na voz de Miltonino Nascimentoso cantan­
do o hino do nosso grêmio:
trTudo que move é sagrado 
E remove as montanhas com todo 
cuidado, meu amor 
Enquanto a chama arder
Todo dia te ver passar 
Tudo viver ao teu lado..d* 21
Ética e técnica no acompanhamento terapêutico
Vale!22
:i A m or de índio (Beto Gucdes/Ronald Bastos).
Saudação de despedida cm terras de Espanha.
205
Capítulo
X I X
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AUTOR: KLEBER D. BARRETO
ÉTICA E TÉCNICA KO ACCM 
TITULO: PARHAMENTO TEIÍAPÊUTICO
DATA ASSINATURA DO LEITOR
C M e_ ^ g /o
n r r ^ r r .
♦ >oejFnvof UNIVERSIDADE
f*UUSTA
Port. Rec. n ?550-D .O .U . 09/11/88
te, é facilitado pelo grande achado 
do texto: o de se apoiar nas andan­
ças de D . Quixote e nas suas singu­
lares relações com o escudeiro San- 
cho Pança. Nada mais oportuno 
para servir de espelho às andanças 
pela vasta cidade desta dupla for­
mada pelo acompanhante terapêu­
tico e seu acompanhado, dupla na 
qual, exatamente como na imagi­
nada por Cervantes, ficam muitas 
vezes indistintos os limites entre lou­
cura e sabedoria, entre ingenuida­
de e malícia.
O recurso ao grande romance 
renascentista traz ao texto de Kle- 
ber Barretto um elemento decisivo: 
o humor, a ironia. Sim , porque o 
sofrimento psíquico não pode ser 
enfrentado com o estupor nem ape­
nas com a compaixão lacrimejante; 
é necessária esta extraordinária li­
berdade interior que só um refina­
do senso de humor garante e ex­
pressa. A q u i também, uma deter­
minada tonalidade afetiva, uma ati­
tude básica diante do humano e de 
suas mazelas — enfim, uma postu­
ra ética — é a condição para a es­
colha e elaboração de procedimen­
tos técnicos realmente eficazes.
Teoricamente bem concebido, 
impregnado de experiências clínicas 
profundamente verdadeiras e mo- 
bilizantes, literariamente bem estru­
turado e, muitas vezes, engraçadís- 
sim o, mas sempre banhado numa 
ironia generosa e libertadora, assim 
é o livro que o prezado leitor tem 
nas mãos. O que mais desejar?
Luis Qáudio Figueiredo 
(PUC - USP)

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