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Ninguém nasce homossexual, torna-se​1​: 
Simone de Beauvoir e sua contribuição nos estudos sobre sexualidade 
Nobody's born a homosexual, becomes: Simone de Beauvoir and her contribution in 
studies on sexuality 
 
Lucas Joaquim da Motta​2​. 
 
Resumo: Tomando como ponta de partida o capítulo "A lésbica" de ​O ​Segundo sexo 
(1949), nossa intenção é apresentar a perspectiva ontológica de Simone de Beauvoir 
sobre a homossexualidade. Os avanços nos estudos sobre gênero e da bipolarização 
entre as várias faces da sexualidade são de grande complexidade, portanto, iremos 
apenas analisar o fundamento do torna-se beauvoiriano, cujo verbo sugere uma 
atividade consciente, a saber: assumir uma condição que, em princípio, não possui 
nenhum equacionamento que a determina. Criticando o método que a Psicanálise se 
utilizou para examinar o sujeito mulher, sobretudo os complexos de Édipo e de Electra, 
a autora defende um novo olhar acerca da relação entre seres do mesmo sexo, 
independentemente de todos os contornos anatômicos e fisiológicos do corpo sexuado. 
Sendo assim, o que nos interessa são os papéis das situações vividas através de um 
elemento constitutivo do ser, ou seja, o corpo ambíguo. Em outras palavras, a 
perspectiva da filósofa equivale na projeção do corpo próprio no universo ontológico 
ou, se preferir, no plano fenomenal, para que a transcendência concreta seja buscada, 
não se reduzindo a realidade imanente – recusando como determinante qualquer dado 
fisiológico, psicológico ou social da vida afetiva do indivíduo. Desse modo, tornar-se 
homossexual será assumir uma escolha feita em situação, privilegiando aquilo que 
prezamos moralmente em relação ao nosso comportamento afeitivo e amoroso para com 
outrem. Isto é, tal como a maioria das condutas humanas, segundo nossa autora, "ela [a 
homossexualidade] acarretará comédias, desequilíbrio, fracasso, mentira ou, ao 
contrário, será fonte de experiências fecundas, segundo seja vivida na má-fé, na 
preguiça, na inautenticidade ou na lucidez, na generosidade e na liberdade". Eis um dos 
pontos primordiais deste artigo: estabelecer uma relação entre a homossexualidade e o 
projeto filosófico-feminista de Simone de Beauvoir, expresso no ​Segundo sexo​. 
Palavras-chave:​ Beauvoir; Homossexualidade; Ontologia; Psicanálise; Sexualidade. 
 
Abstract: Taking as our starting point the chapter "The Lesbian" of ​The ​Second Sex 
(1949), our intention is to present Simone de Beauvoir's ontological perspective on 
1 Em hipótese alguma, ao empregarmos a expressão "torna-se", estamos considerando que tal verbo é 
sinônimo de optar ou preferir; muito pelo contrário, estamos estabelecendo uma analogia ambígua: por 
um lado, devido a tese mais importante do ​Segundo sexo​, a saber, "ninguém nasce mulher, ​torna-se 
mulher" (BEAUVOIR, 2009, p. 361, grifo meu); por outro lado, após a maior parte de nossos estudos 
sobre Simone de Beauvoir cabe subentender que o conceito geral de tornar-se é: a síntese de estruturas 
ontológicas que, de alguma maneira, constituem toda a subjetividade humana, mas que, através de um 
movimento centrífugo, se manifestam na realidade moral​. Essa ideia – talvez a mais importante nesse 
momento – será analisada minuciosamente no discorrer deste artigo. O que sugerimos, portanto, é uma 
leitura total do texto em questão, em vista que uma leitura superficial pode gerar equívocos significativos 
acerca da filosofia de Simone de Beauvoir e do nosso respectivo posicionamento. 
2 Graduando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: 
lucasjoaquimdamotta2000@gmail.com​. 
 
mailto:lucasjoaquimdamotta2000@gmail.com
Ninguém nasce homossexual, torna-se 
homosexuality. The advances in studies on gender and bipolarization among the various 
faces of sexuality are of great complexity, so we will only analyze the foundation of the 
beauvoir becoming, whose verb suggests a conscious activity, namely: to assume a 
condition that, in principle, has no equation that determines it. Criticizing the method 
that Psychoanalysis has used to examine the female subject, especially the complexes of 
Oedipus and Electra, the author defends a new look at the relationship between beings 
of the same sex, regardless of all the anatomical and physiological contours of the sexed 
body. Thus, what interests us are the roles of the situations lived through a constitutive 
element of being, that is, the ambiguous body. In other words, the philosopher's 
perspective is equivalent to the projection of one's own body in the ontological universe 
or, if one prefers, on the phenomenal plane, so that concrete transcendence is sought, 
not reducing the immanent reality – separating any physiological, psychological or 
social data from the individual. In this way, to become homosexual will be to assume a 
choice made in a situation, privileging that which we value morally in relation to our 
affective and loving behavoir towards other. That is, like most human behaviors, 
according to our author, "it [the homosexuality] will lead to comedy, imbalance, failure, 
lying or, on the contrary, it will be a source of fruitful experiences, according to whether 
lived in bad faith, laziness, inauthenticity or lucidity, generosity and freedom". Here is 
one of the main points of this article: to establish a relationship between homosexuality 
and Simone de Beauvoir's philosophical-feminist project, expressed in the ​Second Sex​. 
Keywords:​ Beauvoir; Homosexuality; Ontology; Psychoanalysis; Sexuality. 
 
* * * 
 
A Eliana Aparecida Candido da Motta. 
 
1. Introdução 
O ponto de partida desta investigação é a quarta sessão da Primeira parte, 
Formação​, do ​Segundo sexo​, sob o título "A lésbica". Nessa sessão, Simone de 
Beauvoir nos mostra, nas primeiras linhas, que não existe nenhum esboço descritivo que 
distingue mulheres heterossexuais das mulheres homossexuais, pelo menos no que diz 
respeito a sua formação fisiológica. Em determinados casos, as formalidades corporais, 
isto é, os dados anatômicos que constituem todo um corpo, demonstram certa tendência 
comportamental, seja particularmente nas relações hétero ou homoafetivas; mas, isso é 
tão singular quanto as próprias subdivisões ontológicas do ser. Talvez, toda essa 
afirmação fica clara quando a autora discorre sobre como a constituição simétrica do 
corpo de cada mulher não reflete em sua sexualidade: "Nenhum 'destino anatômico' 
determina sua sexualidade. Há seguramente casos em que os dados fisiológicos criam 
 
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situações singulares" (BEAUVOIR, 2009, p. 521). Mas, de modo algum, isso sugere 
que a questão acerca da sexualidade é resolvida; muito pelo contrário, é justamente 
nesse momento que ela começa a ser analisada. 
Ainda que as particularidades femininas – por exemplo, atividade, maternidade, 
passividade e ovulação – sejam reais, se manifestando no próprio corpo, a vocação 
homoafetiva varia através dos graus queexistem entre assumir tal posição ou, ainda, 
recusá-la. A anatomia do corpo e a sua respectiva simetria, ainda que condição 
fundamental da experiência erótica, não é um fator capaz de determinar por excelência 
quaisquer que sejam os modos de agir-no-mundo – aspecto elementar da situação​3 na 
qual o corpo está inserido. Aqui, o embate direto entre natureza e sistema sexual do 
corpo é barrado, uma vez que a sujeição do sexo a realidade vivida é, de certo modo, 
um equívoco. Equívoco no sentido de que os órgãos genitais – constituintes do sistema 
reprodutor – não configuram os dados subjetivos das formas sexuais do corpo 
anatômico: a orientação sexual definida pelo genótipo de qualquer indivíduo​4 e as suas 
mudanças hormonais não são as mesmas coisas. A experiência sexual, seja hétero ou 
homoafetiva, é analisada por meio de aspectos da ontologia​5 em Simone de Beauvoir, 
uma vez que o ser elementar de uma existência é preenchido de evidência, ou seja, com 
3 Este termo sintetiza a relação entre projeto e o nosso respectivo interesse de agir no mundo. Sobre ele, 
para não nos prolongarmos em algo que já descrevemos em outro texto, recomendamos a leitura do artigo 
A relação entre ambiguidade, liberdade e condição humana em Simone de Beauvoir ​(MOTTA, 2018, pp. 
41-45), publicado nesta mesma revista. Nele, os conceitos beauvoirianos de ambiguidade e situação são 
abordados satisfatoriamente e, por efeito, correspondem aos mesmos termos deste artigo. O artigo se 
encontradas referências deste trabalho. 
4 ​Grosso modo​, sobre a noção de indivíduo em Simone de Beauvoir: "ser um sujeito soberano e único no 
meio de um universo de objetos, eis que ele o compartilha com todos os seus semelhantes; a seu turno 
objeto para os outros, ele nada mais é, na coletividade de que depende, que um ​indivíduo​" (BEAUVOIR, 
2005, p. 13-14, grifo meu). 
5 ​Grosso modo​, ao comparar a ontologia existencialista com o materialismo dialético, Simone de 
Beauvoir escreveu que: "Sabe-se que é esse o ponto essencial sobre o qual a ontologia existencialista se 
opõe ao materialismo dialético; pensamos que o sentido da situação não se impõe à consciência de um 
sujeito passivo, que ele só surge pelo desvelamento operado por um sujeito livre em seu projeto" 
(BEAUVOIR, 2005, p. 23, grifo meu). Desse modo, a ontologia existencialista defende que todo o 
sentido presente em certa situação não impõe a consciência elementar uma passividade subjetiva: pelo 
contrário, o sentido apenas é gerado pela atividade de um sujeito operante e livre, cujo projeto o lança 
rumo a um futuro incerto. É neste ponto justamente que tal ontologia se opõe à corrente marxista, uma 
vez que este último prega que o sentido da ação, seja aquela exercida pelo burguês ou pelo proletário, seja 
totalmente objetiva. Assim, o materialismo dialético defende que as vontades humanas não surgem como 
efeitos de uma liberdade; entretanto, isto não significa que Marx a negue. A oposição entre ambas 
correntes consiste no movimento da liberdade e seus modos de tornar-se ou não fonte de ações. 
 
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razões concretas, cuja transcendência é contínua e temporal. Desse modo, a situação na 
qual o ser deve transcender constitui sua projeção no mundo; logo, em princípio, a razão 
de ser é neutra e, portanto, possui uma nadificação em seu núcleo. Sendo assim, os 
componentes subjetivos que compõem todo o mundo ontológico, através da liberdade, 
estão num movimento de constante ​tornar-se algo​. Como veremos, ​tornar-se – verbo 
no indicativo do presente – é uma atitude tão original quanto a própria atividade 
consciente do ser, na qual a decisão de ​tornar-se algo é escolhida por meio da própria 
liberdade intencional. 
 
2. O pressuposto ambíguo da sexualidade: As maneiras fecundas de tornar-se algo 
Não iremos evocar os métodos da Psicologia ou da Sociologia para compreender 
a natureza das categorias das orientações sexuais, uma vez que, segundo Beauvoir, essas 
questões contribuem para explicá-las, mas não são determinantes. Nessas condições, 
uma mulher cisgênera lésbica, nos pré-juízos contemporâneos, é definida por 
intermédio da dicotomia entre atividade e passividade; erroneamente descrita como uma 
figura usando "um chapéu de feltro, de cabelos curtos e gravata: sua virilidade seria 
uma anomalia traduzindo um desequilíbrio hormonal" (​ibidem​, p. 531). Essas 
descrições anatômicas são tão abstratas que acabam se tornando um equívoco partir 
desse pressuposto para bem entender a relação entre corpo e afetividade. Logo, a nossa 
intenção é demonstrar esse equívoco. Uma vez dado que entre o homem e a mulher 
existe uma quantidade de fundamentos sexuais (por exemplo, a bissexualidade, 
transexualidade, não-binariedade, enfim), podemos analisar a sexualidade no seu 
aspecto básico, nos quais os papéis concretos da corporeidade e da ambiguidade são 
fundamentais (ver MOTTA, 2018, pp. 48-51). Segundo nossa filósofa, "o próprio 
homem não deseja exclusivamente a mulher; o fato de que o organismo do homossexual 
macho pode ser perfeitamente viril implica que a virilidade de uma mulher não a impele 
necessariamente para a homossexualidade" (​ibidem​, p. 522). Assim, a virilidade pode 
ser da condição masculina ou feminina, e essa conjuntura sexual não é possível de 
determinar o modo como a sexualidade irá se manifestar no corpo sexuado. Isto é, a 
condição viril não é causal em relação a afetividade erótica do corpo. Se pensarmos 
 
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através das mulheres viris ou, em outras palavras, aquelas que são influenciadas pelos 
hormônios masculinos, podemos chegar a um ponto comum: "a anatomia e hormônios 
definem apenas uma ​situação e não colocam o objeto para o qual ela [a mulher] 
transcenderá" (​ibidem​, p. 162, grifo nosso). Isso sugere que todos os estereótipos sociais 
dos seres humanos implicam uma reflexão mais complexa, que não seja apenas 
conceituada pela fisiologia dos corpos; ainda que toda história vivida pelo corpo em 
questão seja analisada, a elaboração de uma atitude positiva​6 em relação a sua 
sexualidade exige um ser em face da sua existência. A mercê da ontologia, os 
pressupostos ​ser heterossexual e ​ser homossexual possuem uma diretividade libidinal; 
mas, conforme nos revela os estudos psicanalíticos em direção ao homoerotismo, a fase 
genital da mulher causa certo frustramento dela em relação ao homens: esse ponto é 
ardilosamente criticado pela nossa autora. Sobre a perspectiva psicanalítica – no que diz 
respeito ao sujeito mulher –, Beauvoir escreveu que: 
Freud não se preocupou muito com o destino da mulher; é claro 
que calcou a descrição do destinofeminino sobre o masculino, 
restrigindo-se a modificar alguns traços. Antes de Freud, o 
sexólogo Marañon declara: "Enquanto energia diferenciada, a 
libido é, pode-se dizer, uma força de sentido viril. Diremos o 
mesmo do orgasmo." Na sua opinião, as mulheres que 
alcançam o orgasmo são mulheres "viriloides"; o impulso 
sexual tem uma "única direção", e a mulher encontra-se ainda 
no meio do caminho. Freud não vai tão longe; admite que a 
sexualidade da mulher é tão evoluída quanto a do homem; mas 
não a estuda, por assim dizer, em si mesma. Escreve: "A libido 
é de maneira constante e regular de essência masculina, surja 
ela no homem ou na mulher". Recusa-se a pôr a libido feminina 
em sua originalidade: ele a vê, por conseguinte, 
necessariamente como um desvio complexo da libido humana 
em geral. (​ibidem​, p. 72). 
6 Positiva no sentido de permitir um desvelamento da sexualidade por parte do nosso próprio corpo. 
 
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Nos estágios eróticos do desenvolvimento da libido​7​, seu progresso em geral 
ocorre de maneira simétrica em ambos os sexos, masculino e feminino. Ainda que a 
evolução libidinal seja, para Freud, iguais entre si, os dois sistemas eróticos femininos – 
clitoridiano e genital – se desenvolvem em momentos distintos da vida do indivíduo. Se 
Freud é um dos primeiros estudiosos que compreendeu satisfatoriamente a dualidade 
entre sexo e gênero, temos que considerar que sua teoria também analisa a pré-história 
de tal indivíduo. Por conseguinte, ainda de acordo com a teoria freudiana, o 
distanciamento da materialidade do indivíduo dele mesmo resulta na homossexualidade 
ou na bissexualidade. Se não há a predominância dos modelos ideais puros – aqueles 
analisados pelo método cartesiano, ou seja, a realidade subjetiva e a realidade objetiva 
7 A libido é um ponto fundamental da psicanálise freudiana, devida sua atuação em relação a vida 
psíquica do indivíduo, sobretudo aos seus primeiros anos desde seu nascimento. Desse modo, seria 
preciso um único texto para abordarmos, a rigor, tal conceito. Baseando-nos na introdução que Darcy 
Uchoa (1978) fez acerca dos estudos freudianos, vemos que: "O próprio Freud situa o nascimento da 
psicanálise no momento em que substituiu a hipnose e o método catártico pelo método da associação livre 
[...] Segundo o criador da psicanálise, as funções de controle ficam adormecidas no estado hipnótico, e as 
lembranças neuróticas podem voltar à consciência; isso porém não ocorre na associação livre, quando 
surge nítida resistência, alegando o paciente falta de memória. Essa amnésia é interpretada por Freud 
como uma defesa do ​eu​, uma resistência que tem por fim impedir o reaparecimento na consciência de 
certas recordações, particularmente as referentes a impulsos considerados negativos pela sociedade, tais 
como a crueldade e o egoísmo, mas, sobretudo, os de natureza sexual. Para interpretar o presente de seus 
pacientes, Freud teve que se aprofundar cada vez mais em seu passado. Os fatos assim descobertos 
levaram-no a admitir a existência de atividade sexual nos primeiros anos de infância. Inicialmente, Freud 
deixou-se levar pelos relatos de seus pacientes e sobrestimou o papel da sedução, como fonte das 
manifestações sexuais infantis e germe de produção de sintomas neuróticos. Posteriormente, descobriu a 
importância da fantasia e reformulou sua primeira impressão, concluindo que a sexualidade infantil 
apresenta um quadro distinto da sexualidade do adulto, inclusive com alguns traços que o próprio adulto 
qualificaria como perversões. Surgiu assim a noção de 'libido com o amplo significado de impulso no 
sentido da obtenção de prazer sensível, não se limitando à união pelo ato sexual ou ao prazer localizado 
nos órgãos genitais" (UCHOA, 1978, VIII-XI, grifo do autor). Ao surgir a noção de libido com o fonte de 
energia sensível e experienciável, no entanto, não puramente em termos eróticos e sexuais, Freud defende 
uma evolução das fases libidinais. São elas: a fase oral (do nascimento ao primeiro de vida da criança), 
anal (do primeiro ao terceiro ano de vida da criança), fálica (do terceiro ao quinto ano de vida da criança), 
latente (do quinto ano até a puberdade) e genital (da puberdade até a vida adulta). No decorrer da 
organização libidinal, ocorre também a passagem do indivíduo enquanto criança para o indivíduo adulto. 
Nessas condições: "Especialmente importante no curso desenvolvimento da libido é a constelação de 
fatores que ligam a criança a seus pais, formando o que Freud denominou 'complexo de Édipo'. No 
menino, o complexo de Édipo se caracteriza pela síntese de suas tendências sexuais, tendo como objeto a 
mãe e com a consequente rivalidade e hostilidade em relação ao pai. Com as necessárias adaptações, 
segundo Freud, ocorre o mesmo com a menina. Esta, no entanto, se desligaria da mãe (com a qual 
também está inicialmente ligada), responsabilizando-se pela falta de pênis, que ela inveja. O complexo de 
Édipo, segundo Freud, é, normalmente, superado na fase de latência, com a formação do superego e com 
os substitutivos socialmente aceitáveis, oferecidos pela cultura" (UCHOA, 1978. p. X). Adotemos essa 
introdução acerca da libido em Freud. 
 
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–, o que Freud demonstra é um conceito particular de seu método, a saber, a ideia de 
fluxo contínuo. Desse modo, ao ocorrer alguma falha no complexo de Édipo ou de 
Electra, ocorre também certa tendência do indivíduo manifestar um comportamento 
distinto da heterossexualidade. De certa maneira, essa afirmação é falsa em Simone de 
Beauvoir, na medida em que é preciso reformulá-la por meio do conceito de ​situação​. 
Mas, porque essa necessidade de retornar a psicanálise freudiana? O fato é que Simone 
de Beauvoir está vivenciando um período ulterior aos estudos psicanalíticos; essa 
influência é determinante na contemporaneidade, sobretudo na primeira metade do 
século XX. Beauvoir concorda parcialmente com Freud, pelo menos no que diz respeito 
à existência de fugas inautênticas ofertadas a mulher para que ela reivindique a sua 
própria liberdade. O ponto fundamental que distingue a homossexualidade de qualquer 
opção abstrata advém de uma conjuntura ambígua: trata-se de uma postura 
anti-metafísica, que não categoriza universalmente gênero e sexo. A psicanálise abrange 
um modelo global através do fenômeno psíquico de cada indivíduo mas, ainda assim, os 
psicanalistas que Beauvoir crítica​8 estudam a homossexualidade como certo 
"​inacabamento​" (​ibidem​, p. 523, grifo meu) diante de sua fase autoerótica. Eis o grande 
equívoco do método psicanalítico. Essa expressão, que sugere uma condição inacabadado ​eros do indivíduo, é cara aqui, uma vez que ela sugere uma face masculina mediante 
um domínio ativo. A recusa desse tal domínio resulta na procura de uma figura 
objetificada, mesmo que as razões de sê-lo não possuam nenhum fundamento acabado. 
No terceiro capítulo de ​Esboço de Psicanálise​9 (1938), "O Desenvolvimento da 
Função Sexual", Freud discorre sobre as descobertas mais importantes acerca da 
formação da vida psicossexual do indivíduo. Um dos fatos que nos interessa é a 
formação inicial da nossa própria sexualidade, em vista que "a vida sexual não começa 
8 Dentre eles, Simone de Beauvoir destaca: Sigmund Freud (1856-1939), fundador da Psicanálise; 
Jacques Lacan (1901-1981), psiquiatra e psicanalista francês; Herbert Lawrence (1885-1930), sexólogo e 
ensaísta britânico; Gregorio Marañon (1887-1960), sexólogo e escritor que validou alguns conceitos 
psicanalíticos sem se filiar a esta corrente; Alfred Adler (1870-1937), psicólogo, pedagogo e psicanalista 
austríaco; Charles Baudouin (1893-1963), escritor e psicanalista francês; e, por fim, Alice Balint 
(1898-1939), antropóloga e psicanalista húngara. 
9 Nossa intenção não é descrever cada fase sexual da psicanálise freudiana; portanto, iremos apenas nos 
deter em alguns conceitos fundamentais para sistematizar a crítica de Simone de Beauvoir ao método 
analítico proposto pelo médico alemão, sobretudo o que diz respeito à fase fálica. 
 
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apenas na puberdade, mas inicia-se, com manifestações claras, logo após o nascimento" 
(FREUD, 1978, p. 204). No entanto, Freud ressalta que a nossa vida sexual pode ser 
analisada através de duas fases (por isso que ele a define de ​difásica​), a saber: uma fase 
desconhecida, exceto ao homem, e outra que possui uma "relação importante com a 
hominização" (​ibidem​, p 205). As vias de acesso das funções libidinais ocorrem por 
intermédio de uma formação sexual que se inicia na fase oral (fase que ocorre desde o 
nascimento até o primeiro ano de vida da criança) desde a fase genital (que engloba a 
chegada da liberdade até a vida adulta do mesmo indivíduo). Mas, para pensarmos a 
questão dos corpos masculino e feminino, a ​fase fálica (do terceiro ao quinto ano da 
vida da criança) nos traz informações importantes acerca da atuação erótica de tais 
corpos. De acordo com a psicanálise freudiana (​ibidem​, p. 205), a terceira fase – fálica – 
é uma precursora da causa final de toda vida sexual, sendo que esta última se assemelha 
àquela primeira. Nessa fase, os órgãos genitais não desempenham nenhum papel 
determinante, embora contribuam para sua atividade: a masculinidade que dá abertura 
para o complexo de Édipo ou de Electra. Todavia, o ponto mais intenso desse processo 
– marcado pela atividade preparatória dos genitais rumo ao seu desenvolvimento – se 
encontra justamente na zona erógena do indivíduo. Se a criança for do sexo feminino, a 
sua energia sexual é desenvolvida pelo amor direcionado a sua mãe, gerando 
sentimentos de inveja em relação ao seu pai. A ausência do órgão genital masculino é 
reconhecida pela menina, causando um complexo mais intenso em relação a sua 
sexualidade. 
Como já havíamos dito, de acordo com a psicanálise freudiana, qualquer desvio 
das inibições sexuais resultam no comportamento homossexual. Em termos do próprio 
autor: 
Este processo [da fase fálica] nem sempre é realizado de modo 
perfeito. As inibições em seu desenvolvimento manifestam-se 
como os muitos tipos de distúrbios da vida sexual. [...] Uma 
dessas inibições do desenvolvimento é, por exemplo, a 
homossexualidade, quando ela é manifesta. A análise mostra 
que em todos os casos um vínculo objetal de caráter 
homossexual esteve presente e, na maioria dos casos, persistiu 
em um estado ​latente​. A situação complica-se porque, via de 
regra, os processos necessários a um desfecho normal não se 
 
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acham completamente presentes ou ausentes, mas parcialmente 
presentes, de maneira que o resultado final fica dependente 
dessas relações ​quantitativas​. Nessas circunstâncias, a 
organização genital é, na verdade, obtida, mas faltam-lhe 
aquelas porções da libido que não avançaram com o resto e 
permaneceram fixadas em objetos e metas pré-genitais. Este 
enfraquecimento revela-se numa tendência, se há ausência de 
satisfação genital ou se existem dificuldades no mundo externo 
real de a libido retornar a suas catexias pré-genitais anteriores 
(​regressão​). (​ibidem​, p. 207, grifos do autor). 
 
O descompasso desse sistema, de acordo com o feminismo de Beauvoir, 
consiste no modo de tornar inautêntico qualquer comportamento homossexual. As 
distinções dos homossexuais entre si são reguladas, conforme defendida pela 
psicanálise, pelas "relações ante o objeto escolhido e ante o objeto recusado" 
(BEAUVOIR, 2009, p. 525) que, consecutivamente, "explicam-se uma pela outra" 
(​ibidem​, p. 525). Assim, esta distinção, para a nossa filósofa, é ​arbitrária​. Com efeito, 
os valores para os quais a transcendência é projetada advém de uma escolha inacabada – 
de acordo com a fase fálica descrita por Freud. Ora, mas isso significa que Beauvoir 
rejeita o método psicanalítico? Em hipótese alguma. O que a autora busca é criar um 
diálogo direto entre a psicanálise e o seu próprio feminismo-existencialista, superando a 
dualidade gênero e sexo; ou, em novos termos, superando o que Freud entende por 
homossexualidade. Não é de maneira abstrata que Beauvoir – ao discorrer sobre o papel 
do Outro –, no capítulo "O ponto de vista psicanalítico", do ​Segundo sexo​, pontua que 
"o imenso progresso que a psicanálise realizou na psicofisiologia foi considerar que 
nenhum fator intervém na vida psíquica sem ter revestido um sentido humano (​ibidem​, 
p. 70). No entanto: 
O psicanalista descreve-nos a criança e a moça solicitadas a 
identificar-se com o pai ou a mãe hesitantes entre as 
tendências "viriloides" e "femininas"; ao passo que nós 
concebemos a mulher hesitando entre o papel de ​objeto​, de 
Outro que lhe é proposto, e a reivindicação de sua liberdade. 
Assim, concordaremos a respeito de certo número de fatos, em 
particular quando consideramos os caminhos de fuga 
inautêntica que se oferecem à mulher, mas não lhe 
emprestaremos, em absoluto, a mesma significação que o 
freudiano ou o adleriano. (​ibidem​, p. 85, grifos da autora​). 
 
 
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Em relação ao modo de agirmos em situação, pensemos através da análise de 
Simone de Beauvoir: em que medida a homossexualidade é ​ambígua​10​?Se "[...] 
nenhum fator é determinante" (​ibidem​, p. 537), logo "trata-se sempre de uma escolha 
efetuada em meio a um conjunto complexo e assentando numa livre decisão; nenhum 
destino sexual governa a vida do indivíduo: seu erotismo traduz, ao contrário, sua 
atitude global para com a existência" (​ibidem​, p. 537). A hierarquia categorial da 
sexualidade é contraditória, na medida em que ela sugere uma divisão entre a história do 
corpo e a subjetividade da vida; aliás, o objeto – fonte de estímulos sexuais – nada mais 
substitui do que uma apreensão erótica. Seja qual for a sexualidade de um homem ou de 
uma mulher, toda passagem simétrica do desejo para a atração pode ser revisada através 
das escolhas feitas ​em situação​: as razões de ​ser algo implica necessariamente na 
história do corpo vivido – não aquele corpo objetificado. Mediante uma nova escolha 
que os fundamentos da existência são fixados; mas o conceito de escolha em Beauvoir 
não remete, metaforicamente, a dois caminhos quaisquer no qual optamos entre um ou 
outro; portanto, ainda de acordo com a perspetiva da autora, escolha não é sinônimo de 
opção, mas de capacidade de assumir determinada postura existencial. Ela traduz apenas 
uma condição subjetiva por meio da ação real, cuja direção é concreta. Uma vez dado 
que: "na realidade, a sexualidade feminina tem uma estrutura original e a ideia de 
hierarquizar as libidos masculina e feminina é absurda; a escolha do objeto sexual não 
depende absolutamente da quantidade de energia de que a mulher disporia" (​ibidem​, p. 
523), percebemos que os estudos psicanalíticos, no que diz respeito ao comportamento 
homossexual, o analisa como sendo uma "atitude inautêntica" (​ibidem​, p. 523). O 
erotismo feminino, segundo Freud (ver BEAUVOIR, 2009, p. 523), apenas alcança sua 
maturidade pela passagem do estágio clitoridiano para o estágio genital, cuja tensão 
advém da transferência do amor primordial que a menina sentia pela mãe e que, ao 
10 Ambígua no sentido de que tal comportamento traz em si uma subjetividade ativa e, por conseguinte, 
recusa qualquer valor que determine ​a priori sua condição. Conforme veremos, esta característica 
ambígua irá colocar o ​torna-se beauvoiriano no plano ontológico, negando qualquer determinismo 
fisiológico em relação a sexualidade. Assim, ​tornar-se algo possui um conceito simétrico a atitude de 
assumir a liberdade, seja afirmando-a ou recusando-a. De todo modo, a perspectiva da filósofa consiste 
justamente no pressuposto de que qualquer atividade de natureza amorosa e consentida merece ser vivida 
e revisada rigorosamente. 
 
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mesmo tempo, depositara na figura paterna: eis um dos pontos principais que Beauvoir 
critica na Psicanálise. Seja pela maturidade erótica ou pela fixação infantil, a 
homossexualidade é compreendida de maneira equivocada (pelo menos para os 
psicanalistas, segundo a filósofa). Toda a história subjetiva do corpo contribui para a 
sua própria constituição, e com a sexualidade não é diferente. Aliás, "a história do 
indivíduo não é um progresso fatal: a cada momento o passado é retomado mediante 
uma nova escolha e a 'normalidade' da escolha não lhe confere nenhum valor 
privilegiado: é pela sua autenticidade que cumpre julgá-lo" (​ibidem​, p. 523). 
Escolher é agir e, portanto, assumir qualquer atitude humana através da 
liberdade. Essa atitude pressupõe uma relação mútua entre a situação e a condição 
aparente do sujeito – independente de seu sexo ​naturalizante​11​. Mas há um misto entre 
gênero e sexualidade que presume o grande equívoco sobre a homossexualidade; com 
efeito, é baseado nessa relação que tal equívoco se origina. Para analisarmos esse 
sistema de complexidade, Beauvoir apresenta a definição básica e equivocada de ser 
lésbica segundo o meio social e, por conseguinte, expõe o fundamento que deve ser 
reformulado. Em novos termos, é preciso recusar qualquer ideia dada como natural, em 
vista que ​a própria ​natureza está em constante naturalização​. Eis aqui uma crítica 
importante: o mito da feminilidade ou, se preferir, do eterno feminino, é estruturado por 
intermédio desse equívoco. 
Definir a lésbica "viril" pela sua vontade de "imitar o homem" 
é votá-la à inautenticidade. Já disse a que ponto os psicanalistas 
criam equívocos aceitando as categorias masculina-feminina 
tais como a sociedade atual as define. Com efeito, o homem 
representa hoje o positivo e o neutro, isto é, o masculino e o ser 
humano, ao passo que a mulher é unicamente o negativo, a 
fêmea. Cada vez que ela se conduz como ser humano, 
declara-se que ela se identifica com o macho. Suas atividades 
esportivas são interpretadas como um "protesto viril"; 
recusam-se a levar em considerações os valores para os quais 
ela transcende, o que conduz evidentemente a considerar que 
ela faz a escolha inautêntica de uma atitude subjetiva. O grande 
mal-entendido em que repousa esse sistema de interpretação 
está em que se admite que é ​natural para o ser humano 
feminino fazer de si uma mulher ​feminina​. (​ibidem​, p. 525, 
grifos da autora). 
11 Isto é, que se encontra em um estado contínuo de naturalização. 
 
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No entender de Beauvoir, qualquer associação entre a sexualidade e a condição 
humana que torna-se natural, reduz o sujeito vivo a uma essência imutável: a mulher 
através da masculinidade e o homem através da neutralidade. Se a homossexualidade do 
homem é uma forma de assumir as relações afetivas, em relação a mulher tal desejo, 
segundo os psicanalistas que a autora critica, consiste na sua vontade de imitar àquele 
primeiro. Assim, a mulher é lésbica para protestar sua recusa pelo homem; ou, em 
outras palavras, pela sua frustração sexual causada pela falta do órgão genitor 
masculino, uma vez que o homem é dado como sendo dominador e, ao mesmo tempo, 
elemento geral que constitui a função erótica. Ainda assim, todas as escolhas preservam 
em si uma tonalidade viril, ou seja, qualquer comportamento humano é de natureza 
masculina: em Beauvoir, defender esse sistema é uma postura ​inautêntica e, portanto, 
ilegível​. E não obstante a isso, mas qualquer condição transcendental da mulher é 
limitada pelo e para o homem. A reivindicação que engloba a homossexualidade é mais 
de direito do que de fato, isto é, as significações eróticas extraídas da relação 
homoafetiva atuam na maneira do ser que se torna algo. ​Tornar-se algo é viver em nome 
da recusa ou da afirmação da situação: é um verbo ambíguo​. 
 
2.1. A homossexualidade como "atitude escolhida ​em situação​" 
Sem nenhuma dúvida, o excerto do capítulo "A lésbica" de maior importânciaaqui é: 
Na realidade, a homossexualidade não é nem uma perversão 
deliberada nem uma maldição fatal. É uma atitude ​escolhida 
em situação​, isto é, a um tempo motivada e livremente adotada. 
Nenhum dos fatores que o sujeito assume com essa escolha – 
dados fisiológicos, história psicológica, circunstâncias sociais – 
é determinante, embora todas contribuam para explicá-la [...] 
Como todas as condutas humanas, ela acarretará comédias, 
desequilíbrio, fracasso, mentira ou, ao contrário, será fonte de 
experiências fecundas, segundo seja vivida na má-fé, na 
preguiça, na inautenticidade ou na lucidez, na generosidade e 
na liberdade. (​ibidem​, p. 544, grifos da autora). 
 
 
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Este excerto promove um diálogo direto com o modo no qual apreendemos o 
mundo, em vista que os seres buscam transcender as suas situações, fundando novas 
significações. Se qualquer situação exige uma escolha, portanto, tornar-se é um 
movimento simétrico a ser-no-mundo; logo, a ontologia privilegia qualquer plano real, 
cuja condição humana​12 se torna autêntica ou opressiva: ​tornar-se mulher implica em 
receber valores exteriores dados como uma predestinação (ora equivocada, outrora 
passível de reestruturação moral); ​tornar-se homem implica em afirmar sua respectiva 
atividade em situação, ainda que sua ação não tenha nenhum fundamento concreto; 
tornar-se humano implica em assumir qualquer condição através da liberdade engajada, 
fundando um contorno existencial pela ausência total de ser​13​; ​tornar-se para-si é tomar 
consciência da sua existência – que não é uma coisa e nem um objeto; ​tornar-se 
consciente implica na retomada da consciência elementar, cuja particularidade constitui 
o todo da vida. Tornar-se, portanto, é um verbo capaz de criticar ou apenas afirmar uma 
situação, seja ela fundamentada ou não; no caso da homossexualidade, trata-se de uma 
12 Importante destacar que a condição humana, na perspectiva de Simone de Beauvoir, é paradoxal. Nas 
palavras da própria autora: "Os homens de hoje parecem sentir mais vivamente do que nunca o paradoxo 
de sua condição. Eles se reconhecem pelo fim supremo ao qual toda ação deve subordinar-se: mas as 
exigências da ação os obrigam a se tratarem uns aos outros como instrumentos ou obstáculos: meios; 
quanto mais cresce seu domínio sobre o mundo, mais eles se encontram esmagados por forças 
incontroláveis: senhores da bola atômica, ela no entanto não é criada senão para destruí-los; cada um 
deles tem nos lábios o gosto incomparável de sua própria vida, e no entanto cada um se sente mais 
insignificante que um inseto no seio da imensa coletividade cujos limites se confundem com os da Terra; 
talvez em nenhuma outra época eles tenham manifestado com mais brilho sua grandeza, talvez em 
nenhuma outra época essa grandeza tenha sido tão atrozmente ultrajada. Apesar de tantas mentiras 
teimosos, a cada instante, em toda ocasião, a verdade vem à luz: a verdade da luz e da vida e da morte, de 
minha solidão e de minha ligação com o mundo, de minha liberdade e de minha servidão, da 
insignificância e da soberana importância de cada homem e todos os homens [...]. Uma vez que não 
logramos escapar à verdade, tentemos, pois, olhá-la de frente. Tentemos assumir nossa fundamental 
ambiguidade. É do conhecimento das condições autênticas de nossa vida que é preciso tirar agora de 
viver e razões para agir" (BEAUVOIR, 2005, p. 13-14). Com base nisso, a condição humana não revela 
um princípio categorial ​a priori da vida concreta. Na verdade, é mais o oposto disso. É se reconhecendo 
no mundo que o ser se afirma como tal; sua condição consiste na tentativa de "assumir nossa fundamental 
ambiguidade" (​ibidem​, p. 15). O leitor interessado no conceito de ambiguidade em Simone de Beauvoir 
pode recorrer ao nosso trabalho intitulado ​A relação entre ambiguidade, liberdade e condição humana em 
Simone de Beauvoir​ (MOTTA, 2019, pp. 40-55). O link se encontra nas referências deste texto. 
13 Cf: "Existir é ​fazer-se falta de ser, é ​lançar-se no mundo: podemos considerar como sub-homens 
aqueles que se aplicam a reter esse movimento original; eles têm olhos e ouvidos, mas s e fazem desde a 
infância cegos e surdos, sem amor, sem desejo" (BEAUVOIR, 2005, pp. 40-41, grifos da autora). Desse 
modo, o ser existente não ​é​, busca sê-lo na medida em que se projeta no mundo por meio da liberdade 
(ver MOTTA, 2018, pp. 46-48). 
 
 
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definição ​afirmativa​. Vejamos esta interpretação por meio de dois ângulos 
complementares e filosóficos. De um lado, o aspecto positivo de tornar-se homossexual, 
cuja atividade é exercida pelo ​corpo em situação​, que advém de um movimento 
existencial. Como toda presença concreta – projetada em outrem –, a imanência do 
corpo é determinada pelos dados anatômicos, em vista que o reconhecimento carnal 
delimita os movimentos no mundo objetivo; a transcendência, por sua vez, atua sob o 
corpo de outra maneira, englobando a carência do ser ​em situação​, carência esta que 
sugere um processo de superação: a vida é um ciclo, e a homossexualidade é, entre 
outras coisas, uma das tantas engrenagens que constitui a situação particular. Por outro 
lado, o corpo é um "domínio ​sobre o mundo, não uma coisa ​do mundo" (​ibidem​, p. 528, 
grifos meu). Eis o ​corpo ambíguo​. 
Se as resistências análogas dos corpos estão reivindicando sua essência 
(feminilidade e virilidade), é por que a equidade entre os sexos está em constante 
conflito. As mulheres denominadas como "viriloides" não pressupõe nem um 
comportamento homoafetivo e tampouco heteroafetivo, bem como os homens mais 
"efeminados" não sugerem uma tal relação. Mas este discurso abstrato ainda está 
distante de ser resolvido. Seja um comportamento social "másculo" ou, ainda, 
"efeminado", a prioridade que deve ser sustentada consiste na possibilidade de viver 
livremente. Esta expressão – ainda bem formulada – não é uma atitude gratuita e nem 
isolada; muito pelo contrário, é uma atitude ​em situação​, cuja transcendência é um 
movimento constante. Mas vamos abordar esta questão através da primeira fase dos 
estudos filosóficos de Simone de Beauvoir. A autora discorreu que: "​agir por uma meta 
é sempre escolher, definir​. Se a forma singular de seu esforço aparece ao homem 
[enquanto ser humano] como indiferente, ao perder toda figura, sua transcendência se 
desvanece, ele nada mais pode querer uma vez que o universal é sem falta [...]" 
(BEAUVOIR, 2005, p. 165, grifos meu). A ação traz analiticamente uma ação 
espontânea, em vista que o limite da projeção ontológica é ilimitada: é um paradoxo. A 
realidade é fonte de escolhasfundadas por nós e, portanto, a própria escolha revela 
nosso respectivo modo de existir. De todo modo, a sexualidade não se resume aos 
meros papéis de gênero, por conseguinte, o que existe entre um e outro é uma 
 
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correlação pertinente. Gênero e orientação sexual – quando confundidas entre si – 
resultam em equívocos, tal como a afirmação abstrata de que em uma relação 
homoafetiva há um estereótipo masculino (preenchido de atividade) e outro feminino 
(preenchido de passividade). 
Qualquer essencialismo reduz a mulher a uma condição espontânea, da qual sua 
escolha se confunde com a escolha da virilidade (BEAUVOIR, 2009, p. 526). Desse 
modo, a feminilidade faz com que as circunstâncias cotidianas se tornem uma opressão: 
o ato de oprimir também é uma atitude em situação. A homossexualidade se dá de modo 
distinto, uma vez que o homossexual é o ser-Outro; seja pela presença imanente ou pela 
projeção transcendente​14​, o Outro está fixado independentemente de qualquer 
reivindicação ou empenhamento; mas isto sugere uma nova escolha, a saber: os limites 
do universo não são os mesmos da liberdade, logo, a sexualidade deve ser uma atitude a 
ser realizada em nome da objetificação do corpo. Pelo contrário, se a inversão da 
autenticidade advém de uma ação (​práxis​) opressora, a feminilidade se apresenta ao 
mundo que, por sua vez, é uma abertura que confunde o plano imanente à condição 
humana com o plano transcendente a essa mesma condição. De um lado, as 
significações oferecidas pelo meio social – nas quais, por exemplo, a fisionomia e a 
estética do corpo – passam os dados transcendentes (pelo menos no que diz respeito à 
tentativa de transcender a si mesmo no mundo) ao plano da imanência. Isto é, reduzem 
o corpo a um objeto. Por outro lado, ao descrever a perspectiva ética do ​Segundo sexo​, a 
saber, a moral existencialista, Beauvoir escreveu: 
Todo indivíduo que se preocupa em justificar sua existência, 
sente-a como uma necessidade indefinida de se transcender. 
Ora, o que de maneira singular a situação da mulher é que, 
sendo como todo ser humano, uma liberdade autônoma, 
descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe 
impõem a condição do Outro. Pretende-se ​torná-la objeto, 
votá-la a ​imanência​, porquanto sua transcendência será 
perpetuamente transcendida por outra consciência essencial e 
soberana. O drama da mulher é esse ​conflito entre a 
reivindicação fundamental de todo sujeito que se põe sempre 
14 Cf: "[...] na realidade, todo existente é, ao mesmo tempo, imanência e transcendência; quando 
não lhe propõem um objetivo, quando o impedem de atingir algum, quando o frustram em sua vitória, sua 
transcendência cai no passado, isto é, cai na imanência. (BEAUVOIR, 2009, p. 345). Nessas 
condições, é uma ambiguidade – em sentido beauvoiriano do termo (ver MOTTA, 2020, p. 222). 
 
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como o essencial e as exigências de uma situação que a 
constitui como inessencial. (​ibidem​, p. 30-31, grifos meus). 
 
Nessas condições, a autonomia da mulher advém da autonomia da sua liberdade 
perante sua respectiva situação. Descobrir e escolher entre ser e tornar-se algo faz parte 
de um único meio filosófico, mesmo que isso parta de uma crítica ao Outro – enquanto 
oposta ao Sujeito. No que diz respeito a homossexualidade, a ambiguidade desta 
condição consiste na possibilidade de haver um conflito entre a reivindicação sexual e o 
engajamento (assim como ocorre também na heterossexualidade); mas os conflitos 
daquele primeiro, acerca de assumir uma escolha realizada em situação, são mais 
intensas e complexas; isso também ocorre na possibilidade de agir em situação através 
da própria autonomia da liberdade. Os modos do corpo sexuado se manifestar no mundo 
pressupõem em si uma capacidade de auto-reconhecimento, em vista que entre tornar-se 
mulher e tornar-se homossexual há uma distinção de grau. Isto é, ambos – ainda que 
sendo o Outro – são assumidos por intermédio de situações distintas, embora possa 
haver a presença dos dois numa única situação. A opressão e os pré-juízos sustentam o 
equívoco que as relações homoafetivas recebem em seu cotidiano. 
Talvez, neste contexto, se encaixe uma análise que Merleau-Ponty fez acerca do 
corpo sexuado. Segundo o filósofo francês (ver MERLEAU-PONTY, 2011, p. 236), 
toda a explicação sobre a natureza da sexualidade não pode ser reduzida a qualquer 
outra coisa senão nela mesma; ou seja, toda vida pessoal e particular do ser é 
demonstrada e vivida por intermédio de uma necessidade contingente. As vias naturais 
da sexualidade são preenchidas pelo drama da situação. Se "o paradoxo da condição 
humana é que todo fim pode ser superado" (BEAUVOIR, 2005, p. 165), logo "o projeto 
define o fim como fim; para superar um fim, é preciso primeiramente tê-lo projetado 
como o que não é para ser superado" (​ibidem​, p. 165). Desse modo, pensando o que 
Merleau-Ponty escreveu e, por conseguinte, o papel do projeto em Beauvoir, a finitude 
do ser é constituída, entre outras coisas, pelo drama sexual. Nesse contexto, o drama é 
um engajamento moral de natureza criadora, cuja ação também é realizada ​em situação​. 
Como dito antes, ser é fazer-se falta de ser (​ibidem​, p. 40); portanto ​tornar-se 
homossexual ​(ou qualquer outra orientação sexual) é um movimento autêntico, assumido 
 
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em situação​. Com razão, tal movimento se estende não pela sua propagação ao infinito 
desconhecido –, mas pelo seu escape rumo a um futuro incerto e indefinido (​ibidem​, p. 
160). Eis a justificativa do escape sexual em direção a outrem: as relações homoafetivas 
demonstram evidentemente como o engajamento é ambíguo, a saber: transcendente, por 
se projetar em outrem e, ao mesmo tempo, imanente, por ser uma correlação efetiva e 
recíproca com os valores que nos são dados de maneira espontânea. 
De certa maneira, o conceito lógico desta explicação fora explicado num 
trabalho anterior a esse: é o que denominamos de ​ontologia do torna-se (ver MOTTA, 
2020, p. 127). Quaisquer que sejam as situações vividas – ainda que fundamentalmente 
preenchidas de valores concretos – não são passíveis de serem determinantes em relação 
ao ser que se faz livre, e é justamente aqui que a ontologia se sobressai. As coisas, 
sejam simples ou complexas, estão em constante movimento atuante; e é nisto que a 
atitude de tornar-se algo se designa no plano concreto. A interpretação que deve serenfatizada, neste momento, é a seguinte: uma vez dado que o torna-se é um movimento 
ontológico que transcende a própria subjetividade humana, logo o agente intermediário 
entre ser e tornar-se algo ou alguém consiste num corpo ambíguo; ou, em novos termos, 
um ​corpo em situação​. 
Da mesma forma, a sexualidade que está diante de um voltar-se a si mesmo 
diante de outrem, é de ordem indeterminada. A constituição do corpo sexuado projeta 
uma atitude em que o ser está em uma metamorfose mútua. A homossexualidade apenas 
se transforma num fato a partir do momento que a transcendência é fixada; isto é, o 
desenvolvimento sexual e o reconhecimento do corpo é, para si, um princípio de 
qualquer manifestação atrativa e amorosa rumo ao outro. Na realidade, a existência é 
ramificada através de dados concretos (biológicos, psicológicos, fisiológicos, etc.); por 
conseguinte, o campo sexual é fenomenal, na medida em que tal campo estabelece a si 
próprio uma condição autêntica, cujas categorias da diversidade sexual são concretas. É 
verdade que "nossos atos são separados e só existimos para outrem na medida em que 
estamos presentes em nossos atos e, portanto, em nossa separação" (BEAUVOIR, 2005, 
p 190); mas é também verdade que "a liberdade é a única realidade que não posso 
transcender" (​ibidem​, p. 191). Nessas condições, a sexualidade – seja um todo acabado 
 
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ou uma constante em movimento – é uma idealização da transcendência ontológica, 
realizada através da liberdade; no entanto, sem transcender a este último movimento – 
sendo ele o mais importante de todos. Por efeito, a liberdade, uma vez engajada, busca 
sua projeção em outrem: eis a natureza mor das relações humanas, inclusive as 
amorosas. As relações afetivas regem um paradigma particular, cuja afetividade irá 
tornar-se um laço significativo para com os envolvidos. É um laço ontológico e 
engajado. Se o ser torna-se humano, portanto, tornar-se homossexual é um sistema 
complexo e consecutivo a tal movinento, bem como qualquer outro de ordem sexual. 
 
3.1. O corpo em situação e o domínio sob o mundo 
As relações imediatas do corpo, no qual o movimento moral é necessário, 
deduzem uma gênese de ordem ontológica. Um corpo em situação não ocupa apenas 
posições intencionais, mas sua reciprocidade para com os outros corpos é que constitui 
um movimento de geração. A sexualidade é sentida e, com efeito, vivida: os aspectos 
mais reais da nossa corporeidade sintetizam uma resistência em direção a outrem – bem 
como nosso respectivo desenvolvimento de natureza ​histórica​15​. Os valores corporais – 
entre eles, a homossexualidade – superam o tradicionalismo do corpo anatômico, 
apresentando um modo de ser-no-mundo e, concomitantemente, ser-em-situação. A 
homossexualidade pode ser um dos elementos essenciais da constituição ontológica do 
corpo, em vista que o vivido é particularmente percebido pelo ser. Mas, de todo modo, o 
ser não pode se refugiar da ambiguidade de sua resistência concreta: a necessidade e a 
contingência são próprias da sua condição – de ordem fenomenal​16​. A formação da 
corporeidade é desvelada na mais alta busca do ser pela sua liberdade; aliás, o próprio 
15 Em termos merleau-pontyanos: "Tudo é contingência no homem, no sentido em esta maneira humana 
de existir não está garantida a toda criança humana por alguma essência que ela teria recebido em seu 
nascimento, e em que ela deve constantemente refazer-se nela através dos acasos do corpo objetivo. O 
homem é uma ideia histórica e não uma espécie natural. Em outros termos, não há nada na existência 
humana nenhuma posse incondicionada e, todavia, nenhum atributo fortuito. A existência humana nos 
obrigará a rever nossa noção usual da necessidade e da contingência, porque ela é a mudança da 
contingência em necessidade pelo ato de retomada. Tudo aquilo que somos, nós o somos sobre a base de 
uma situação de fato que fazemos nossa, e que transformamos sem cessar por uma espécie de ​regulagem 
que nunca é uma liberdade incondicionada" (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 236, grifo do autor). 
16 Se entendermos fenomenal como um conceito que sugere que quaisquer que sejam os valores prévios 
do campo vivo, eles se manifestam eideticamente a consciência que, de maneira consecutiva, os reduz 
(​epoché​) a ela por intermédio de um movimento inteiramente intencional. 
 
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corpo-no-mundo é simétrico ao corpo-em-situação: ambos formam uma correlação. 
Nessas condições, as diretrizes que constituem a concretização do entorno anatômico, 
além de sua formação interna, é realizada por intermédio das vivências humanas – e 
alguma delas dizem respeito à atração sexual. Se a atração não consiste em se fixar em 
outrem, mas buscar seu ser por meio do outro, as relações amorosas – aquelas 
desprovidas de qualquer ideia de poder e domínio opressivo – são as mais autênticas e 
puras. Puras no sentido de que o estereótipo sexual é desmistificado na mesma 
proporção que a atitude opressiva. Claramente que nas mais diversas relações 
homoafetivas também pode haver uma dicotomia entre opressor e oprimido, portanto, é 
necessário uma atividade predicativa capaz de idealizar qualquer relação como sendo a 
humanística possível. O vínculo afetivo entre seres homossexuais, na sua pureza 
subjetiva, deve ser humanizador; ou seja, estabelecer um laço concreto e engajado entre 
si. Todo esse entrelaçamento exige um corpo, cuja ambiguidade de sua condição o 
permite assumir sua atração rumo a outrem; ou, ainda, ele poderá escolher viver na 
má-fé de sua liberdade. Seja isto ou aquilo, a homoafetividade, entre outras coisas, é 
estimulada pelos traços da vida corporal, do qual a consciência – seja ela primária, 
secundária ou, ainda, intermediária entre uma e outra – é capaz de receber tais estímulos 
ou, ainda, ignorá-los. Em suma, o papel do corpo é complexo; logo, o reconhecimento 
da liberdade permite o reencontro entre o essencial e o movimento assumido livremente 
(ver BEAUVOIR, 2009, p. 518-519). 
Assim, o valor corpóreo não é de natureza anatômica – ainda que esta o predique 
–, mas sua capacidade consiste no seu reconhecimento em meio a sua liberdade e, logo, 
nas relações afetivas. A reciprocidade entre os estímulos subjetivos é autêntica, na 
medida em que a vivência engajada carrega em si uma normalidade erótica – podendo 
ela, em meio a tantas possibilidades, ser homossexual. Ainda assim, a concepção de 
tornar-se homossexual não se opõe aos conceitos psicanalíticos; tal concepção supera 
qualquer justificativa metafísica acerca da sexualidade, partindo de um preceito 
existencial, a saber: o campo no qualo corpo em si se constitui é de ordem primária, ou 
seja, é uma ​iluminação da corporeidade que é desvelada pela liberdade. Desse modo, a 
retomada do corpo é a própria engrenagem que o forma ontologicamente. E é 
 
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Ninguém nasce homossexual, torna-se 
justamente neste movimento que o tornar-se homossexual é preenchido concreta e 
moralmente, bem como ​escolhido em situação​. 
 
4. Considerações finais 
Se a estrutura ontológica da homossexualidade advém do ser implicado no 
torna-se beauvoiriano, logo podemos compreender que um atua sob o outro, 
respectivamente. A causalidade deste movimento autêntico é, por um lado, de ordem 
metafísica; portanto, de alta complexidade cognitiva. Por outro lado, ele sugere um 
movimento eficaz e capaz de trazer a posição erótica e afetiva à tona. Resta-nos concluir 
que este mesmo verbo em questão, a saber, tornar-se, exige uma atitude em situação, 
cuja escolha consiste em assumi-la livremente. Nessas condições, ainda que os aspectos 
sociológicos, fisiológicos e psicológicos contribuam para explicar a homossexualidade 
em si, a espessura existencial se sobressai sob tal condição. A análise ontológica que 
pretendíamos expressar até aqui é resultante de uma síntese existencial do próprio 
tornar-se algo em relação para com a homossexualidade: toda essa exposição é uma 
analítica da situação escolhida, uma vez que os estímulos eróticos são livremente 
adotados. Ainda que o Outro engloba inúmeras facetas ontológicas, sua originalidade 
não é abolida, muito pelo contrário, qualquer afirmação é explanada por meio da 
fixação do ser Outro. Se o ser é para si uma existência, a homossexualidade também é 
um dos seus sustentos concretos. Desse modo, tornar-se algo provém da transcendência 
do ser rumo a uma meta definida e, por conseguinte, como condição resultante desta 
primeira atitude, a particularidade assume um papel fundamental: no caso da mulher 
trata-se de uma construção masculina assumida e sem reciprocidade. Para o 
homossexual, é uma atitude totalmente assumida ​em situação que permite, entre outras 
coisas, sua transcendência. 
Talvez, os dados psicanalíticos se demonstrem dispostos no polo da causalidade 
desta condição, ou seja, abordam a causa do comportamento homoafetivo (ou, se 
preferir, seus estímulos subjetivos). Em contrapartida, Simone de Beauvoir parte para 
uma nova compreensão, a saber, como ser lésbica possui uma relação aderente a causa 
feminina e a ​práxis humana, bem como aos papéis de gênero. O processo ontológico 
 
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Ninguém nasce homossexual, torna-se 
não pressupõe um destino insolúvel, mas reveste a condição humana sem reduzir a ação 
singular a uma essência imutável; tornar-se homossexual consiste em um dos modos 
fecundos de ser-no-mundo, cuja escolha é afetiva e feita em situação, envolvendo uma 
ambiguidade entre transcendência e imanência. No entanto, é preciso não reduzir o ser a 
uma categoria ​a priori da sexualidade, fazendo, por efeito, com que sua escolha seja 
sinônima de ação e envolvimento moral. Assim, ​ninguém nasce homossexual, torna-se​; 
e mais, estendendo essa máxima, ​ninguém nasce heterossexual, torna-se​. 
 
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