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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA WANDERSON ALEX MOREIRA DE LANA Boé e concreto CONTRA- FLECHA: O CERRADO E A FLORESTA NA CONSTRUÇÃO DE UMA DRAMATURGIA MES- TIÇA Cuiabá-MT 2021 2 WANDERSON ALEX MOREIRA DE LANA Boé e concreto CONTRA- FLECHA: O CERRADO E A FLORESTA NA CONSTRUÇÃO DE UMA DRAMATURGIA MESTIÇA Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Univer- sidade Federal de Mato Grosso como requisito par- cial para obtenção do título de Doutor em Estudos de Cultura Contemporânea, na Área de Concentra- ção Estudos Interdisciplinares de Cultura, linha de pesquisa: Poéticas Contemporâneas. Orientador: Prof. Dr. Mário Cezar Silva Leite Cuiabá-MT 2021 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA FOLHA DE APROVAÇÃO TÍTULO: BOÉ e concreto CONTRA- FLECHA: O CERRADO E A FLORESTA NA CONSTRUÇÃO DE UMA DRAMATURGIA MESTIÇA Doutorando – Wanderson Alex Moreira da Lana Tese defendida e aprovada em 26/02/2021. COMPOSIÇÃO DA BANCA EXAMINADORA Doutor Mário Cezar Silva Leite (Presidente da Banca / Orientador) UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO Doutora Teresinha Rodrigues Prada Soares (Examinadora Interna) UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO Doutora Maria Thereza de Oliveira Azevedo (Examinadora Interna) UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO SEI/UFMT - 3151388 - DOUTORADO - Folha de Aprovação https://sei.ufmt.br/sei/controlador.php?acao=documento_imprimir... 1 of 2 17/06/2021 14:26 Doutor Ronaldo Henrique Santana (Examinador Externo) UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ Doutor Vicente Concilio (Examinador Externo) UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA Doutor José Carlos Leite (Examinador Suplente) UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO CUIABÁ, 26/02/2021. Documento assinado eletronicamente por TERESINHA RODRIGUES PRADA SOARES, Docente da Universidade Federal de Mato Grosso, em 21/03/2021, às 15:42, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015. Documento assinado eletronicamente por Maria Thereza de Oliveira Azevedo, Usuário Externo, em 21/03/2021, às 15:53, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015. Documento assinado eletronicamente por Vicente Concilio, Usuário Externo, em 21/03/2021, às 20:41, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015. Documento assinado eletronicamente por RONALDO HENRIQUE SANTANA, Usuário Externo, em 22/03/2021, às 21:28, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015. Documento assinado eletronicamente por MARIO CEZAR SILVA LEITE, Docente da Universidade Federal de Mato Grosso, em 23/03/2021, às 11:41, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015. A auten�cidade deste documento pode ser conferida no site h�p://sei.ufmt.br /sei/controlador_externo.php?acao=documento_conferir&id_orgao_acesso_externo=0, informando o código verificador 3151388 e o código CRC F5A8C62F. Referência: Processo nº 23108.099863/2020-85 SEI nº 3151388 SEI/UFMT - 3151388 - DOUTORADO - Folha de Aprovação https://sei.ufmt.br/sei/controlador.php?acao=documento_imprimir... 2 of 2 17/06/2021 14:26 AGRADECIMENTOS Ao meu generoso orientador Mário Cézar Silva Leite, experiente conhecedor das coisas, grande escritor e mestre. Caminhou comigo sob provocações e incentivos deixando o caminho mais fácil, denso e prazeroso. Ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Fe- deral de Mato Grosso e à CAPES pelo apoio institucional e aos membros da banca de qualifi- cação desta pesquisa. Ao Grupo Teatro Experimental de Alta Floresta - TEAF por permitir que caminhasse pela me- mória e registros desse importantíssimo grupo para a história do teatro brasileiro. Aos fazedores de Teatro de Primavera do Leste que mostram todos os dias que é forte, articu- lado, potente e incrível o teatro realizado no interior de Mato Grosso; E ao querido Teatro Faces que há 16 anos acreditaram que era possível, mudando a história de muitas pessoas, inspirando lutas e conquistas, mudando a minha vida para sempre. 6 RESUMO A pesquisa analisa a dramaturgia do processo cênico Boé (2014) do Grupo Teatro Faces de Primavera do Leste e de concreto CONTRA-FLECHA (2017) do Grupo Teatro Experimental de Alta Floresta interessando-se em como o cerrado e a floresta amazônica impactam, não so- mente, na estética dos trabalhos, mas também, evidencia uma política de organização em grupo e o interesse em discutir aspectos ligados aos desencadeamentos da colonização em Mato Grosso a partir do século XX. O Teatro Faces é o primeiro grupo de Primavera do Leste (su- deste/cerrado) a se organizar como instituição cultural no município, o mesmo acontece com o Teatro Experimental de Alta Floresta em Alta Floresta (norte/Amazônia mato-grossense), ainda na década de 1.980. Os grupos possuem 15 anos e 32 anos de fundação, respectivamente, e suas produções são profundamente engendradas pela localização geográfica. Cerrado e Floresta im- pactam numa maneira muito particular a metodologia de suas montagens cênicas e suas manei- ras de existir e movimentar as artes da cena no interior do estado. Através de Boé, processo cênico que abandona a centralidade do texto e abraça a performatividade e o conceito de dra- maturgia expandida, e concreto CONTRA-FLECHA, que se utiliza da memória como fio con- dutor para pensar o território, é possível perceber as relações que os dois grupos mantêm com aspectos da colonização e a luta contra as raízes da colonialidade (MIGNOLO, 2010, 2017; QUIJANO 2005, 2010). Atravessados pelos conceitos de lugar e não lugar (AUGÉ, 1994) – bem como os conceitos de espaço, território, territorialidade, a ideia de tempo-espaço (HAES- BART, 2002; SANTOS, 2014) e conceitos de mistura e seus desencadeamentos (GLISSANT, 2005; GRUZINSKI, 2001; PINHEIRO, 2020) – os processos cênicos do Teatro Faces de Pri- mavera do Leste e do Teatro Experimental de Alta Floresta caracterizam uma dramaturgia des- territorializadora e territorializadora, política, decolonial e por assim ser, uma Dramaturgia Mestiça. Palavras-chave: Teatro Faces. Teatro Experimental. Dramaturgia Mestiça. Decolonialidade, Teatro Brasileiro. ABSTRACT This research analyzes the dramaturgy of the stage plays Boé (2014) by Primavera do Leste’s Teatro Faces and “concreto CONTRA- FLECHA” (2017) by Alta Floresta’s Teatro Experi- mental, taking into account how the cerrado (Brazilian Savanna) and the Amazon Rainforest not only impact the works’ aesthetics of these groups, but also put in evidence a group organi- zation policy and influence the interest in debating aspects related to the colonization process in the (Brazilian) state of Mato Grosso starting in the 20th Century.Teatro Faces is the first theater group in the city of Primavera do Leste (southeast/cerrado) to be organized as a local cultural institution. This is also true for Alta Floresta’s Teatro Experimental (north/Mato Grosso Amazon Rainforest) founded in the 1980s. Respectively, the groups count with 15 and 32 years since their foundation and their productions are profoundly rooted in their geographical loca- tion. Cerrado and the Amazon Rainforest impact in a very particular way the methodology of the theater groups’scenic montages, the ways in which they exist and move the scenic arts in Mato Grosso’s inland areas. Through Boé, a stage play that abandons the centrality of the text and embraces performativity and the concept of expanded dramaturgy, and “concreto CON- TRA-FLECHA”, which uses memory as a conducting wire to think about territory, it is possible to perceive the relationships that both groups keep with colonization aspects and the fight against these colonial roots (MIGNOLO, 2010, 2017; QUIJANO 2005, 2010). Intertwined by the concepts of place and non-place (Marc Augé, 1994) – as well as the concepts of space, territory, territoriality, and the idea of space-time (HAESBART, 2002; SANTOS, 2014), and the concepts of mixture and its consequences (GLISSANT, 2005; GRUZINSKI, 2001; PIN- HEIRO, 2020) – stage plays of Primavera do Leste’s Teatro Faces and Alta Floresta’s Teatro Experimental characterize a deterritorialized and territorialized dramaturgy, political, decolo- nial, therefore, a Mestizo Dramaturgy. Keywords: Teatro Faces. Teatro Experimental.Mestizo Dramaturgy. Decoloniality. Brazilian Theater 8 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1- Foto aérea de Primavera do Leste-MT ..................................................................... 22 Figura 2 – Mapas de Primavera do Leste ................................................................................. 23 Figura 3 -Alta Floresta em destaque no Mapa de Mato Grosso. .............................................. 31 Figura 4 - Figura 5: Cidade de Alta Floresta Arquivo .............................................................. 31 Figura 5- Árvore Gigante em Alta Floresta – Sumaúma Ceiba Pentandra. ............................. 32 Figura 6 - Todos os vermelhos em cena ................................................................................... 48 Figura 7 - Homem e Mulher juntos. Alta Floresta. .................................................................. 49 Figura 8- A caça ao Homem. Alta Floresta .............................................................................. 50 Figura 9 - Homem preso em meio ao arame. Alta Floresta. ..................................................... 51 Figura 10 - Regando o corpo nos braços da Mulher. Campo Novo dos Parecis. ..................... 53 Figura 11 -Vermelha e Onça. Alta Floresta. ............................................................................. 53 Figura 12 -Vermelho e a Onça de Brinquedo. Alta Floresta .................................................... 54 Figura 13 - Vermelho escrevendo carta sobre a morte do Homem .......................................... 55 Figura 14 -: Homem e Mulher se despedem. Campo Novo dos Parecis .................................. 56 Figura 15 - Ronaldo e Angélica na construção– Concreto CONTRA-FLECHA. ..................... 61 Figura 16 - Josué sonhando com a vida, Concreto Contra-Flecha .......................................... 62 Figura 17 Três trabalhadores, concreto CONTRA FLECHA -.................................................. 63 Figura 18 - Trabalhador no Andaime, concreto CONTRA-FLECHA ....................................... 63 Figura 19 - Mulher segurando o corpo do Homem .................................................................. 87 Figura 20 - Teatro Faces e Teatro O Bando, Teatro Faces e residentes Portugueses ............... 90 Figura 21-Teatro Faces e Teatro O Bando conversando .......................................................... 91 Figura 22 - Três homens com a tábua....................................................................................... 96 Figura 23 - Paulo Isaac recebendo nomes ................................................................................ 98 Figura 24 -Mulher e Homem se conhecendo............................................................................ 99 Figura 25 -Primeiros Ensaios no Círculo de Terra aos fundos do Centro Cultural ................ 101 Figura 26 - Arena do Centro de Artes – Ceart da UDESC – SC ............................................ 104 Figura 27 -Rascunho da disposição da cena ........................................................................... 107 Figura 28 -Homem preso por asas de ferro com arames ........................................................ 110 Figura 29 -Perseguição. .......................................................................................................... 112 Figura 30 -Homem morto no círculo de Terra cercado de grandes de arame ........................ 114 Figura 31 - Mulher chora a morte do Homem deitada no círculo de terra ............................. 117 file:///C:/Users/iness/Downloads/tese%20_Wanderson_Lana(versão_bilblioteca)%20002.docx%23_Toc85397276 file:///C:/Users/iness/Downloads/tese%20_Wanderson_Lana(versão_bilblioteca)%20002.docx%23_Toc85397278 file:///C:/Users/iness/Downloads/tese%20_Wanderson_Lana(versão_bilblioteca)%20002.docx%23_Toc85397299 file:///C:/Users/iness/Downloads/tese%20_Wanderson_Lana(versão_bilblioteca)%20002.docx%23_Toc85397301 Figura 32 -Renan Nunes sozinho em cena tocando a música final ........................................ 121 Figura 33 - Primeiro teste de maquiagem ............................................................................... 125 Figura 34 - Maquiagem utilizada atualmente ......................................................................... 126 Figura 35 - Mulher ilumina o corpo do Homem morto, preso nos arames ............................ 129 Figura 36 - Projeção da onça-pintada ..................................................................................... 130 Figura 37 - Apresentação para os alunos do ensino fundamental em Poxoréu-MT ............... 140 Figura 38 - Jantar Flores com o Teatro Faces. ....................................................................... 146 Figura 39 – Fotografia de um ensaio ...................................................................................... 157 Figura 40 - André de Castro com um violão e uma furadeira na mão ................................... 159 Figura 41 - Rider Técnico de Som do espetáculo concreto CONTRA-FLECHA ................... 160 Figura 42- Linha da Memória ................................................................................................. 161 Figura 43 -Caderno de decupagem das personagens de concreto CONTRA-FLECHA ......... 162 Figura 44 -Gean, Ronaldo e Angélica carregando tijolos para cena ...................................... 163 Figura 45-Ronaldo e Angélica no Cenário de Andaimes ....................................................... 165 Figura 46 - Angélica com o Figurino treinando no cenário ................................................... 166 10 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 10 2. CONTEXTOS DE CRIAÇÃO DE “BOÉ RED/APPROPIATION” ECONCRETO CONTRA-FLECHA 22 2.1 PRIMAVERA DO LESTE: CIDADE NO CERRADO MATO-GROSSENSE 22 2.2 ALTA FLORESTA: CIDADE NA AMAZÔNIA MATO-GROSSENSE 28 2.3 GRUPO FACES, PROJETO DE TEATRO E BOÉ/RED APPROPRIATION 34 2.3.1 Teatro Faces: Formação de Plateia – Novas Gerações – Trabalhos e Premiações 36 2.3.2 Festival Velha Joana 44 2.3.3 Teatro Faces e Boé/Red Appropriation 46 2.4 TEATRO EXPERIMENTAL E O CONCRETO CONTRA-FLECHA 56 3. TERRITÓRIO, TERRITORIALIDADES E O LUGAR: A DRAMATURGIA MESTIÇA E O EXISTIR NO INTERIOR DE MATO GROSSO 64 3.1 CONCEITOS DE TERRITÓRIO E LUGAR 64 3.2 BOÉ/RED APPROPRIATION E CONCRETO CONTRA-FLECHA E OS CONCEITOS DE TERRITÓRIO E LUGAR 70 3.3 O ENTRE LUGAR E OS ESPAÇOS PÚBLICOS PRIVADOS 73 3. 4 A DRAMATURGIA MESTIÇA COMO DESENCADEAMENTO DECOLONIAL 75 4. CERRADO E AS ESTÉTICAS DE MONTAGEM DO PROCESSO CÊNICO BOÉ/RED APPROPRIATION DO TEATRO FACES 87 4.1 RELAÇÕES COM O TEATRO O BANDO 89 4.2 OS ACORDOS DO PROCESSO COLETIVO E A PRIMEIRA EQUIPE 92 4.3 A DRAMATURGIA DE BOÉ/RED APPROPIATION 95 4.3.1 Dramaturgia:A ausência do círculo 96 4.3.2 Dramaturgia: o círculo na construção do entre lugar 104 4.4 A POÉTICA DA MÚSICA, DO SOM E DO SILÊNCIO 108 4.5 MAQUIAGEM COMO POSSIBILIDADE DE EXISTÊNCIA 122 4.6 LUZ E PROJEÇÃO – A DRAMATURGIA DA LUZ 126 4.7 A DIREÇÃO COLETIVA – CONFLITOS E SUBJETIVIDADES 132 4.8 O SURGIMENTO DE RED/APPROPIATION E AS DEMAIS CURVAS 137 5. A FLORESTA E AS ESTÉTICAS DE MONTAGEM DO PROCESSO CÊNICO CONCRETA CONTRA-FLECHA DO TEAF – TEATRO EXPERIMENTAL DE ALTA FLORESTA 141 5.1 DEPOIS DAS FLORES: OS DESENCADEAMENTOS DA MONTAGEM DE CONCRETO CONTRA-FLECHA 143 5.2 OS CAMINHOS DA DRAMATURGIA EM DIÁLOGO COM A DIREÇÃO 148 5.3 A MÚSICA ANTES DO CONCRETO 156 5.4 OS ATUANTES E A DIREÇÃO NA CONSTRUÇÃO COLABORATIVA DA ENCENAÇÃO, LUZ, CENÁRIO E FIGURINO: O DESENHO FINAL DE CONCRETO CONTRA-FLECHA 161 5.6 O ADEUS AO MESTRE DA FLORESTA DA AMAZÔNIA MATO-GROSSENSE E A NECESSIDADE DE CONTINUAR 168 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 171 7. REFERÊNCIAS 177 ANEXO 182 10 1. INTRODUÇÃO A princípio, a ideia era pensar o território para entender as criações dramatúrgicas de dois grupos de teatro de Mato Grosso: o Teatro Faces e o Teatro Experimental de Alta Floresta através dos trabalhos Boé/Red Appropiation e concreto CONTRA-FLECHA respectivamente. Esta se apresentou pela forte presença agrícola e de exploração do território do Cerrado – em contraste com o grande número de comunidades indígenas, em especial os Boe-Bororo e os Xavante – e pelo processo de desmatamento da Floresta Amazônica para edificação da cidade de Alta Floresta e para a exploração do ouro, diamante e, posteriormente para a agropecuária. Primavera do Leste – cidade onde está sediado o Grupo Teatro Faces – e Alta Floresta – cidade onde está sediado o Grupo Teatro Experimental (TEAF) – representam municípios que tiveram, nos processos de fundação, políticas ostensivas de perseguição indígena, desma- tamento e, ainda, modelos oligárquicos estruturais que, muitas vezes, dificultam o debate diante de discussões de território, sejam eles físicos ou do campo do sensível. Otávio Velho e Rogério Haesbaert (2001) fazem menção ao processo de globalização e suas múltiplas consequências pelo espaço terrestre, e alertam-nos sobre a possibilidade de um território conter várias territo- rialidades. Para eles, essas mudanças implicam na necessidade de se pensar as relações globais, e na ideia de tempo-espaço e território de maneira diferente, mais dilatada, generosa e sem deixar de lado as subjetividades. Mesmo diante de uma crise em que o velho deixou de existir e o novo ainda não surgiu (HAESBAERT, 2001), é necessário pensar como essa nova maneira de sentirmos o mundo – por hora dilatado, por vezes comprimido – contribui para entendermos as novas territorialidades e o retorno agressivo pela retomada do fortalecimento da ideia de Estado-nação. Além disso, soma-se o acirramento da perseguição que a arte passou a sofrer a partir do ano de 2017, de- sencadeada pela exposição Queer Museum 1e a performance Macaquinhos (2014)2, retomando a velha discussão sobre o que seria ou não a arte. 1 Queer museum: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira é uma mostra de artes visuais, com curadoria de Gaudêncio Fidelis, que reunia 270 trabalhos de 85 artistas que abordavam a temática LGBT, questões de gênero e de diversidade sexual. Com obras que percorrem o período histórico de meados do século XX até os dias de hoje. Entre os artistas expostos estavam: Cândido Portinari, Lygia Clark Yuri Firmesa, Adriana Varejão e Hudinilson Jr. Após forte movimentação e ameaças de cancelamento de contas e destruição do espaço onde era realizada a ação, principalmente pelas redes sociais, a exposição foi cancelada em setembro de 2017 sob acusações de apologia à pedofilia, zoofilia e, também, de agressão aos valores cristãos. 2 Macaquinhos é uma performance realizada por nove atores, completamente nus, que vão explorar os ânus uns dos outros com o objetivo, segundo o grupo, de ampliar os conhecimentos do público sobre novos conceitos de arte, pensar os corpos dissidente e a questões dos países emergentes, representados https://brasil.elpais.com/tag/lgtb/a/ 11 Em um cenário geral, no qual qualquer discussão de território incute situações emergen- tes como reforma agrária, demarcação de terras indígenas e menores áreas de Áreas de Proteção Permanente (APPs), as artes conseguem discutir esses assuntos. Se no mundo, as eleições de Donald Trump no Estados Unidos, a saída do Reino Unido da União Europeia, o resultado das eleições de 2018 no Brasil nos incute a sensação de retomada da ideia de Estado-nação, de uniformização, de construção de um território que elimine as múltiplas identidades, no estado de Mato Grosso consigo senti-la muito presente. Isso se dá principalmente pela relação com a terra, seja na exploração de recursos minerais, no processo de captura de indígenas para trabalho escravo ou pelo atual momento em que a agropecuária se organiza como potência econômica nacional (MADUREIRA SIQUEIRA, 2009). O movimento cívico obrigatório, de bandeiras nas casas e nos comércios, de distribuição de cartilhas para toda população com os principais hinos do país foram algumas das retomadas do fortalecimento do Estado-nação que se manifestam em Primavera do Leste. Temo estarmos caminhando a passos largos para o “Brasil, ame-o ou deixe-o”, slogan da ditadura militar no período regido por Emílio Garrastazu Médici (FICO, 2004) que, de acordo com Carlos Fico tratava-se da maneira que a polícia política encontrava de se afirmar pela força contra o pensamento contrário3. Boé ou Red Appropriation do Teatro Faces de Primavera do Leste é um processo cênico de criação coletiva que se utiliza do performativo como fio condutor para os desencadeamentos da cena. Este se apresenta como uma obra que foi o reflexo da vontade de todo o elenco de atores/performers envolvidos no processo cênico. Por se tratar de um trabalho onde a constru- ção da história não parte da figura central de um texto, mas sim, da percepção de todos os atores e atrizes envolvidos que se utilizaram de dinâmicas de ação cênica, centrando-se numa drama- turgia em seu conceito expandido (dramaturgia da luz, dramaturgia do corpo, dramaturgia da música) sem abrir mão de suas subjetividades – resultado de suas vivências. Apesar desta tese não apresentar um estudo sobre o teatro performativo, é importante destacar o que é. Para isso, trago passagem do artigo de Josette Féral (2009) apenas para pontuar suas características, de acordo com a autora. pelo anus. A performance foi apresentada no palco do Sesc Patativa do Assaré, no Cariri, em Pernambuco no ano de 2015 e uma gravação de um trecho do trabalho rodou pelas redes sociais causando imensa crítica por grande parte da população brasileira e se tornando o centro das discussões sobre as fronteiras da produção artística e do financiamento público. 3 E para não pensarmos que esse tempo passou o canal de televisão brasileiro SBT retomou slogans do período da Ditadura Militar em 06 de novembro de 2018 que, após críticas, retirou do ar. Segue link das propagandas nacionalistas, entre elas: “Brasil ame-o ou deixe-o”: https://www.youtube.com/watch?v=2_C8et4j0Ks 12 [...] se há uma arte que se beneficiou das aquisições da performance, é certamente o teatro, dado que ele adotou alguns dos elementos fundadores que abalaram o gênero(transformação do ator em performer, descrição dos acontecimentos da ação cênica em detrimento da representação ou de um jogo de ilusão, espetáculo centrado na imagem e na ação e não mais sobre o texto, apelo à uma receptividade do espectador de natureza essencialmente especular ou aos modos das percepções próprias da tecnologia...). Todos esses elementos, que inscrevem uma performatividade cênica, hoje tornada frequente na maior parte das cenas teatraisdo ocidente (Estados Unidos, Países-Baixos, Bélgica, Alemanha, Itália, Reino Unido em particular), constituem as características daquilo a que gostaria de chamar de “teatro performativo” (FÉRAL, 2009, p. 02). Boé/Red Appropriation não se utiliza de texto escrito e sua potência está na dramaturgia do corpo e das imagens construídas em cena. Dois atores podem, então, responder de diferentes formas do que se trata o processo cênico, porque assim como a plateia que assiste, o que é apresentado pelo Teatro Faces é visto de maneira diversa pelos atores/performers, de acordo com suas vivências. Porém, é clara a relação com a morte como fio condutor do processo cênico e disparador das escritas desses mesmos atores/performers: Acredito que Boé fala sobre o encontro de culturas, de maneiras de existir no mundo, que para mim se resume ao encontro de corpos, não somente do corpo humano biológico, mas do corpo como uma extensão da cidade, do corpo como uma maneira de pensar a floresta, o cerrado, enfim, Boé é um convite para discutir territórios, que se encontram e também se repelem, mas que coexistem de alguma maneira no caos da contemporaneidade. O processo cênico Boé é um convite para adentrarmos no território poético da cena teatral sem sairmos da nossa poética de existência. (SONTAK, 2020, p. 1, não publi- cado)4 Em minha concepção Boé/Red Appropriation parte de ritual de morte de uma comunidade específica (Boe-Bororo) e de como esse jeito diferente do nosso de ritualizar a morte nos afeta e como passamos a pensar as nossas ritualizações a partir do contato. Trata também da causa indígena e de como se dá a sua dizimação e as das florestas e rios, em favor de proprietários de terras e empresas diante dos nossos olhos e dos nossos silêncios. O processo propõe também uma reflexão a respeito da apropriação cultural e de como nossas ações em comunidade precisam ser repensadas. Nunca é tarde demais para entender que ações consideradas aceitáveis socialmente podem, na verdade, estar revestidas de preconceitos e violências estruturais. Boé/Red Appropriation fala também da dor da perda e como a morte é vista de 4 André Francisco Sontak de Morais [Kiko Sontak]. Questionário Processo Cênico Boé (RedAppropriation) 1. [Entrevista cedida a] LANA, Wanderson [pelo e-mail]. p.1-5. Brasil, 15, maio 2020 (não publicado). 13 diferentes maneiras por todos nós do elenco que construímos o trabalho. (SAMOLÃO, 2019, p. 1, não publicado) 5 Escolhi esse projeto do Teatro Faces como disparador para esta pesquisa por evidenciar como o Grupo se organiza e pensa sua dramaturgia através das problemáticas do território do Cerrado e, também, por se tratar de um processo coletivo de criação, processo em que não há a figura central de um diretor e sim, uma divisão e/ou negociação das decisões do que permanece ou não no processo cênico. Foi o primeiro trabalho com o Teatro Faces em que a direção artís- tica não coube a mim, modificando, também, minha forma de pensar essa criação artística e a própria organização de um grupo do qual idealizei e sou fundador, mas, principalmente, enten- der como esses atores e atrizes pensam a diversidade da cultura local e se entendem como pro- tagonistas de suas comunidades nessa continuada relação de contato, a partir de suas relações com a morte. O Espetáculo concreto CONTRA-FLECHA6 do Teatro Experimental de Alta Floresta (TEAF) apresenta a história de colonos que formaram a cidade, daqueles que trabalharam para que oligarquia se efetivasse e se mantivesse e/ou se fizesse rica e próspera à custa de pessoas que só queriam um pedaço de terra para morar. O trabalho surgiu de um entrecruzamento dos relatos dos próprios moradores da cidade colhidos pelos atores, da história de formação de Alta Floresta e das memórias dos três atores do grupo. Abaixo, segue sinopse do espetáculo narrada em entrevista feita com ator Ronaldo Adriano7 e o ator Gean Nunes8 a partir da seguinte inda- gação: “Em sua concepção do que trata concreto CONTRA-FLECHA?” Trata-se da trajetória de pessoas que são atraídas para trabalhar em um projeto de grande empreendimento. São confrontadas com os interesses e manipulações de quem tem o poder econômico que, ao custo de garantir seu empreendimento, colocam as camadas de baixo da sociedade para disputar entre si. Como resultado, ganha apenas a camada de cima que, em momento algum foi afetada. É a história de ocupação da Amazônia mato-grossense, na qual somos parte integrante. CONTRA-FLECHA é o nome dado a estruturas em madeira, utilizadas na construção civil para sustentar a lage ou o concreto armado até se solidificar. É sobre estas forças frágeis que algo mais forte do que elas se sustentam. Depois passa a pautar a sociedade como um todo. As 5 SAMOLÃO, Rafaela. Questionário Espetáculo concreto CONTRA-FLECHA 4. [Entrevista cedida a] LANA, Wanderson [pelo e-mail]. p.1-4. Brasil, 27, jul. 2019 (não publicado). 6 De acordo com o ator Ronaldo Adriano, o título possui a palavra concreto em minúsculo porque na ideia da montagem do espetáculo, o CONTRA-FLECHA seriam os trabalhadores esquecidos, mas que na metáfora da construção civil, foram os que deram sustentação ao surgimento da cidade. Comento sobre a sistematização do espetáculo concreto CONTRA-FLECHA no capítulo 04 desta tese; 7 Nome Artístico de Ronaldo Adriano Freitas Lima do Teatro Experimental de Alta Floresta (TEAF); 8 Nome Artístico de Gean Nunes de Araújo do Teatro Experimental de Alta Floresta (TEAF); 14 estacas são inevitavelmente descartadas, mas sem elas tudo desabaria. (ADRIANO, 2019, p.2, não publicado)9 Trata-se de sonhos, frustrações, domínios e degradações do humano. Aborda as questões sensíveis do humano, memórias pessoais e relatos que contribuíram para concretizar sonhos e frustrações no processo de abertura e ocupação da Amazônia mato-grossense. (NUNES, 2019, p.1, não publicado 10 Após trabalharem dramaturgias clássicas mundiais como Dom Quixote (Miguel de Cer- vantes, 1605) e Santa Joana dos Matadouros (Bertolt Brecht, 1931), o TEAF se viu em crise – nas palavras de Ronaldo Adriano – levando os atores a perceberem que havia muito a ser dito sobre onde estavam e como o Floresta Amazônica influenciava suas vidas, suas percepções e sonhos. Retomaram, então, o projeto de pesquisa sobre os processos migratórios e formação do município criando, novamente, uma dinâmica de identificação entre o grupo e a arte que pro- duziam. Caminho desde o princípio falando de território, mas o que seria de fato? O território onde moram os atores? Território geográfico de Alta Floresta e Primavera do Leste? O território construído através de concreto CONTRA-FLECHA e Boé/Red Appropriation? Ou a soma des- sas diversas territorialidades? Acreditei que a resposta fosse se apresentar de maneira turva à princípio, porém, enten- der a nova organização social e cultural que acontece com a globalização e seus desencadea- mentos de tempo-espaço, seja expandindo-o, seja suprimindo-o, foi primordial para esse estudo que pretendeu entender como a soma das mais diversas territorialidades contribuiu para a dra- maturgia (em seu conceito expandido) dos dois processos trazidos para pesquisa. Para Jean Gottmann (2012), o território se concentra como uma construção física e po- lítica, demarcada pela influência humana. Entende-se que o Território está em constante movi- mento e que sua organização ou reorganização é sempre política. Território é uma porção do espaço geográfico que coincide com a extensão espacial da jurisdição de um governo. Ele é o recipiente físico e o suporte do corpo político organizado sob uma estrutura de governo. Descreve a arena espacial do sistema político desenvolvido em um Estado nacional ou uma parte deste que é dotada de certa autonomia. Ele também serve para descrever as posições no espaço dasvárias unidades participantes de qualquer sistema de relações internacionais. Podemos, portanto, considerar o território como 9 ADRIANO, Ronaldo. Questionário Espetáculo concreto CONTRA-FLECHA 1. [Entrevista cedida a] LANA, Wanderson [pelo e-mail]. p.1-9. Brasil, 24, nov. 2019 (não publicado). 10 Gean Nunes de Araújo [NUNES, Gean]. Questionário Espetáculo concreto CONTRA-FLECHA 2. [Entrevista cedida a] LANA, Wanderson [pelo e-mail]. p.1-4. Brasil, 25, nov. 2020 (não publicado). 15 uma conexão ideal entre espaço e política. Uma vez que a distribuição territorial das várias formas de poder político se transformou profundamente ao longo da história, o território também serve como uma expressão dos relacionamentos entre tempo e política (GOTTMANN, 2012, p. 523). A partir desse conceito de território como espaço físico, passo a pensar no conceito simbólico de território e mais, pensar o território político e geográfico, também e principal- mente, construído de sentidos através das subjetividades. Quem decidiu que a área demarcada hoje para a comunidade indígena Boe-bororo foi a própria comunidade indígena? Se não, essa construção aconteceu a partir de como eles veem seu próprio território físico em contraste com seu território legítimo? A montanha sagrada que agora é de um fazendeiro e está cercada de arames ainda faz parte do seu território? Por isso, caminho com a definição de territorialização e reterritorialização trazida por Haesbaert em que afirma ao falar do tempo presente: Toda desterritorialização implica, obrigatoriamente, uma reterritorialização, pois é inerente ao ser humano, aos grupos culturais, a recomposição da sociedade em bases territoriais [...] mais do que o desaparecimento dos territórios, o que estamos presenciando é consolidação de novas formas de organização territorial. (HAESBAERT, 2002, p.31) Dessa forma é bem mais prudente pensar que as comunidades se organizam dentro de um território geográfico, porém as fronteiras são construídas levando em consideração também suas subjetividades: religiosidade, cultura, alimentação, modos de criação... para assim pensar- mos na existência de um lugar, e digo lugar como a identificação com o ser, da identificação da comunidade com o seu território. O Lugar, respaldo-me em Milton Santos (2014) para afirmar isso, é o espaço em que a comunidade se entende geograficamente e simbolicamente como pertencente e agente mante- dor e modificador desse espaço. O lugar emerge como a possibilidade de ritualizar semelhanças e conflitos e, principalmente, onde a arte se faz possível. No lugar “[...] cooperação e conflito são a base da vida em comum [...] mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, por meio da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da esponta- neidade e criatividade”. (SANTOS, 2014, p. 322) Milton Santos (2014) não está falando so- mente de espaço geográfico, porque, apenas ele, não é capaz de se constituir como um lugar. Esse se organiza com as mais diversas subjetividades das pessoas que ali estão e é dependente das relações afetivas e de pertencimento inerentes a essas pessoas. Pensando território, caminho para o lugar, e no lugar é onde as pessoas conseguem se aninhar, encolher. É espaço protegido para que possam ser e fortalecerem suas potencialidades. Gaston Bachelard em A Poética do espaço diz “encolher-se pertence à fenomenologia do verbo 16 habitar. Só habita com intensidade aquele que soube encolher” (2005, p.15). Ou seja, o nosso lugar está marcado por uma proteção palpável e também subjetiva que nos permite descanso e segurança, como um ninho em que o passarinho se sente protegido e pousa. Por isso, é perigoso pensarmos território como uma construção apenas geográfica e entendermos a importância das subjetividades e suas territorialidades na busca do lugar. E que esse lugar em concreto CON- TRA-FLECHA e em Boé são resultados de tantas misturas estéticas e de tanta interferência causada pelos desencadeamentos da colonização que as fronteiras se tornam porosas e, por ve- zes indeterminadas, caminhando para um entre lugar (SANTIAGO, 2000), apresentando-se como uma Dramaturgia Mestiça. E uma dramaturgia mestiça é aquela cujaa simples existências já acarreta discussões ligadas ao território e aos resquícios da colonização. Uma Dramaturgia Mestiça é sempre decolonial, como mostrei mais à frente11. Percebendo-me como um corpo presente na construção de Boé/Red Appropriation e das relações de afeto que o Grupo Faces mantém com o TEAF, entendi que era necessário evitar a ideia de afastamento das obras para tentar entendê-las e mergulharei pela Cartografia como método de pesquisa e através da obra de Suely Rolnik, CARTOGRAFIA ou de como pensar como um corpo vibrátil (1989), assumir como pertencente a pesquisa que é viva e pulsa e se modifica enquanto navegamos por ela. Pensar como se deu a construção dos dois processos enquanto esses processos continuam em cartaz e se modificando em cada retorno a sala de ensaio e/ou criação por meio da Cartografia é a melhor maneira de compreender como a dra- maturgia dos dois trabalhos se constituem em sentido para atores de subjetividades e territoria- lidades diferentes. No método cartográfico não há um procedimento definido, o próprio pesquisador pode encontrar a fórmula de organizar seu trabalho, seus procedimentos. “A diretriz cartográfica se faz por pistas que orientam o percurso da pesquisa sempre considerando os efeitos do processo do pesquisar sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados” (KASTRUP, 2014, 11 Para pontuar o Termo Decolonial e não confundirmos com descolonial segue Trechos do artigo Notas Desobedientes: Decolonialidade e a Contribuição Para A Crítica Feminista à Ciência de Vivian Matias dos Santos (2018)Como se diferencia "descolonial" e "decolonial"? Primeiramente, é relevante pontuar que as diferenciações postas por estes termos articulam-se como teóricas e políticas. O decolonial encontra substância no compromisso de adensar a compreensão de que o processo de colonização ultrapassa os âmbitos econômico e político, penetrando profundamente a existência dos povos colonizados mesmo após “o colonialismo” propriamente dito ter se esgotado em seus territórios. O decolonial seria a contraposição à “colonialidade”, enquanto o descolonial seria uma contraposição ao “colonialismo”, já que o termo descolonização é utilizado para se referir ao processo histórico de ascensão dos Estados-nação após terem fim as administrações coloniais, como o fazem Castro Gómez e Grosfoguel (2007) e Walsh (2009). O que estes autores afirmam é que mesmo com a descolonização, permanece a colonialidade. 17 p.17). A autora apresenta então oito pistas que servem como referências para se pensar o mé- todo, mas sem hierarquizá-las e sem decretar a totalidade do método, mas um conjunto de linhas em conexão. Cada uma dessas pistas foi construída através da aplicação do método cartográfico feita por pesquisadores distintos: 01. Indissociabilidade entre o conhecimento e a transformação, tanto da reali- dade quanto do pesquisador; 02. gestos da atenção cartográfica: o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento atento; 03. (Não representar objetos, mas sim) de acompanhar processos; 04. Três movimentos-funções: de referência, de explicitação e de produção e transformação da realidade; 05. (Observar que) ao lado dos contornos estáveis do que denominamos formas, objetos ou sujeitos, coexiste o plano coletivo das forças que os produzem, além de defi- nirem a cartografia como prática de construção desse plano; 6. A recusa do objetivismo positivista não deve conduzir à afirmação da participação de in- teresses, crenças e juízos do pesquisador, concluindo que objetivismo e sub- jetivismo são duas faces da mesma moeda; 7. A importância da imersãodo cartógrafo no território e seus signos; 8. A ideia de que a alteração metodoló- gica proposta pela cartografia exige uma mudança das práticas de narrar. (KASTRUP, 2014, p.12-14) Para Suely Rolnik (1989) há uma diferenciação de muita importância na raiz geográfica da palavra com o método de pesquisa apresentado. Para os geógrafos, afirma Suely Rolnik, a cartografia - diferentemente do mapa, representação de um todo estático - é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem. E vai além quando afirma que as paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros mundos que se criam para expressar afetos con- temporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos. Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, e que devore as que lhe parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. Antes de tudo, afirma Rolnik, “O cartógrafo é um antropófago”. (ROLNIK, 1989). Atento às possibilidades e perigos, navego na metodologia cartográfica de suas maneiras distintas. Com Boé/Red Appropiation do Teatro Faces de primavera do Leste, utilizo-me de entrevistas do elenco de forma escrita estruturada e falada através de relatos livres, conversas particulares, registros fotográficos, o autorrelato e as minhas próprias memórias como partici- pante do processo cênico. Com o concreto CONTRA-FLECHA do Teatro Experimental de Alta 18 Floresta utilizo-me registros fotográficos, e registros de vídeo, análise do texto, entrevistas es- critas estruturadas e semiestruturadas, conversas por plataformas online através de relatos livros e a minha experiência de expectador e produtor do espetáculo em Primavera do Leste. Além da Cartografia, utilizei-me da performance na pesquisa, apresentada por Jean-Luc Moriceau e Isabela Paes (2004). Os autores falam da impossibilidade do distanciamento, visto que ao participar, acompanhar e entrevistar, o olhar já foi afetado e tudo que for produzido a seguir será o resultado do palpável e do sensível. E “o sensível não é a sensibilidade ou o sen- timentalismo individual, ela é essa forma partilhada de ordenar e moldar a experiência estética” ((MORICEU e PAES, 2004, p. 111). Assim, a minha experiência como ator/performer do pro- cesso, em contraste e interação com as demais experiências, pretende construir detalhes só pos- síveis na experiência de ver nascer, contribuir e continuar fortalecendo o trabalho. Se no teatro performativo a construção da personagem perde espaço para o nosso corpo presença, na pes- quisa enquanto performance apresentada por Moriceau e Paes o relato do pesquisador afetado pelo objeto de pesquisa é primordial para entendermos detalhes que o afastamento (não credi- tado pelos autores, já que é inimaginável, por exemplo, participar de um ritual tradicional de passagem de uma comunidade que desconhecemos pela primeira vez e não ser, de algum modo, afetado) não consegue prover e que para a arte, principalmente, são tão caros e necessários. Como dissemos, a comunicação científica neutraliza esse tecido sensível, agindo como se ele não existisse, como se ele fosse o “ruído” da comunicação. Podemos dizer que a comunicação científica gostaria de ser transmitida de cérebro a cérebro, se limitar às significações ou ao sensato, e é por isso que ela privilegia as representações. O sentido veiculado é preferencialmente in- telectualizado, descontextualizado, “Asseptizado”. [...] A experiência estética, o sensível, pode assim ser objeto de estudo, mas não o meio de comunicação ou veículo de uma parte indissociável do sentido. (MORICEAU e PAES, 2004, p. 113) Assim, o estudo compreendeu 03 (três) Etapas – Contextualizações de lugar em discus- são com contexto de grupo e, também, as características da Floresta Amazônica Mato-Gros- sense e do Cerrado; 2 – Apresentação das territorialidades trazidas pelos processos cênicos do Teatro Faces e do TEAF; 3 – Coleta de informações através de entrevistas sobre o processo de montagem de Boé/Red Appropriation e concreto CONTRA-FLECHA. A partir dessas etapas dividi a tese em 06 (seis) partes: quatro capítulos propriamente ditos, além da introdução, das considerais finais e da dramaturgia de Lúcio Pessôa nos anexos. Após esta introdução, no segundo capítulo apresentei as cidades em que os grupos são sediados, características econômicas e sociais, população e como a comunidade interage com a 19 arte. Apresentei, em seguida, as histórias de fundação e fortalecimento do Teatro Faces e do TEAF em suas cidades, como se estruturaram e como mantém viva a prática de teatro de grupo, característica muito forte nas cidades de Mato Grosso. Além disso, com o Teatro Faces, foi feito um trajeto por seus textos e montagens evidenciando a reticente pesquisa sobre o território a morte. Já com o TEAF apresentei os textos e as montagens que evidenciam uma relação com a cidade e as memórias dos atores do grupo no processo migratório da região da Amazônia mato-grossense. No terceiro capítulo, a partir dos dois processos cênicos, refleti sobre os conceitos de território, territorialidade, lugar, entre lugar e não lugar na perspectiva de entender como a arte constrói territórios subjetivos e afetivos que, durante as apresentações, se tornam lugares geo- gráficos que ritualizam a partilha do sensível (RANICIÈRE, 2011) na construção de uma dra- maturgia mestiça. Como suporte para essa discussão trouxe Milton Santos e a Natureza do Espaço (2014), Gaston Bachelard com A Poética do Espaço (2005) Gilles Deleuze através de Espinosa e a Filosofia prática (2002), Rogério Haebeart com Desterritorialização na Obra de Deleuze e Guatarri (2002) e Marc Augé e seu texto Não lugares – Introdução a uma antropo- logia da supermodernidade (1994). Caminhei, então, para o urgente debate sobre os processos de colonialidade promovido pela Europa Ibérica, a princípio, e que mantém raízes sociais, po- líticas, culturais e incute na arte uma hierarquia de qualidade que nos afasta de nossas potencias criativas tentando impor um jeito de ser e de se fazer arte, que tem como forte interesse a ma- nutenção da colonização. Walter Mignolo e a Desobediencia Epistémica: A retórica de la mo- dernidad, Lógica de la colonialidad, y Gramática de la descoloniadad (2010) e Aníbal Quijano com Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina (2005) deram suporte a essa discussão. Amparo-me, também, aos conceitos de Crioulização de Édouard Glissant (2005), da Mestiçagem de Serge Gruzinski e da Mestiçagem Cultural de Amálio Pinheiro (2020). No Terceiro capítulo apresento as poéticas de montagem do processo cênico Boé/Red Appropriation, descrevendo aspectos da direção coletiva, da dramaturgia expandida da luz, da maquiagem, da música, dos desenhos dos corpos e do que chamo de território de apresentação. Evidenciando a escolha pela não utilização de um texto escrito e, por conseguinte, de um texto falado em cena, mostrando as problemáticas de uma mudança de organização hierárquica no grupo e de como entender a importância de se estar e sentir-se territorializado foi primordial para continuidade e fortalecimento do processo cênico. Além de evidenciar a Mestiçagem Cul- tural presente no processo. Para demonstrar o que seria uma mestiçagem cultural: 20 [...] na mestiçagem cultural, o acento não se coloca mais em totalizações unitárias, mas nos encadeamentos (sintaxe) do bordado ou mosaico. Ainda trilhando esse pensamento, as noções de descontinuidade, inacabamento e não ortogonalidade estão na base da constituição mentale empírica, situação de escritura ao aberto [...] procedimentos de composição retirados das estruturas do ambiente urbano (saltos bruscos de um assunto para o outro, solavancos de direção, profusão de falas e vozes, etc.) (PINHEIRO, 2009, 23-24). No quinto capítulo passei para a análise das entrevistas feitas com os atores e direção do espetáculo concreto CONTRA-FLECHA abordando os mesmos aspectos de território, e lugar na possibilidade de compreender como o espetáculo conseguiu através do entrecruzamento das memórias trazidas pelo elenco, juntamente com a história de fundação de Alta Floresta e com os relatos de outras pessoas da cidade apresentar o desenho de uma Alta Floresta construída por trabalhadores inspirados por sonhos de uma vida melhor e de uma terra boa para morarem em contraste com a presença de garimpeiros e pecuaristas em uma outra relação com o território. Apresentei, ainda, as poéticas de criação da música, cenário, luz e demais dramaturgias nesse processo cênico performativo. A partir desse caminho percorrido que chamei de capítulos, pretendi mostrar a força da relação do cerrado e da floresta na construção da dramaturgia do Teatro Faces e do Teatro Experimental e como o fato de estarem ou pertencerem a esses biomas afeta desde o texto a ser apresentado, seja pela fala ou pelo corpo, imagem e demais dramaturgias dos processos cênicos, incutido a percepção dos processos de colonialidade e se posicionando contra essas raízes co- loniais tão caras a toda América Latina. Como me corrigiu o ator Ronaldo Adriano do TEAF quando perguntando sobre como era ser sediado na região da Amazônia Mato-Grossense: O Teatro Experimental de Alta Floresta não é sediado na Amazônia mato- grossense, ele é da Amazônia mato-grossense. Sua trajetória se dá como a de milhares de pessoas e organizações, nasce dentro de um discurso e lógica da colonialidade e de dentro desta matriz acaba por adotar – em certos momentos de sua trajetória – o discurso do colonizador. Mas, graças as inquietudes próprias do teatro, também soube enxergar por frestas que mostram uma outra lógica. Logo cedo passou a se colocar no lugar de discutir e questionar as narrativas oficiais em suas obras, sejam artísticas ou políticas. (ADRIANO, 2020, p.9, não publicado). Por ser fundador do Grupo Teatro Faces e participar de todos os processos de montagem, inclusive em Boé/Red Appropriation em que me faço presente desde as primeiras discussões, fica perceptível um olhar mais profundo aos detalhes que em relação ao concreto CONTRA- FLECHA do TEAF com o qual não mantenho a mesma relação. Nas reflexões sobre o Faces consigo me esgueirar sozinho, muitas vezes, através de minhas próprias memórias, anotações e 21 registros, já no caso do TEAF é necessário, quase sempre, mais atenção e cautela para que eu não me perca na riqueza de informações levantadas e produzidas pelo grupo. Isso pode trazer a falsa impressão de maior dedicação com o Cerrado do que com a Floresta. Destino o mesmo respeito, o mesmo tempo e a mesma dedicação à análise dos dois trabalhos que contribuem como objeto dessa tese para demonstrar as características de uma Dramaturgia Mestiça. Mais do que falar sobre território e dramaturgia, como pesquisador performer, sinto-me impactado pela quase total invisibilidade que os grupos sediados longe dos grandes centros são sujeitados – seja relacionado aos outros estados, seja relacionado ao estado de Mato Grosso. O Teatro Faces e o TEAF são grupos vanguardistas na criação de espaços de discussão do teatro nacional, como espaço de trânsitos artísticos, são grupos realizadores de festivais, mantedores de Ponto de Cultura, criadores de escolas de teatro e projetos de formação de plateia. Precurso- res na implantação e formação dos primeiros profissionais das Artes Cênicas em um curso em Mato Grosso na cidade de Primavera do Leste12 e, inspiradores como na construção de seu próprio teatro, na cidade de Alta Floresta. O teatro que se desenvolve nessas cidades movimenta a população e fortalece os discursos decoloniais e explicita como a não percepção de nosso caráter mestiço, principalmente nas artes, acarreta a formação de pequenas metrópoles que as- sumem a potência da criação e transforma as demais cidades e regiões somente em receptoras universais. Por isso, vejo como fundamental a pesquisa sobre Boé/Red Appropriation e con- creto CONTRA-FLECHA para mostrar como pulsa de maneira potente a Dramaturgia Mestiça no Cerrado e na floresta amazônica de Mato Grosso. 12 Curso semipresencial de Licenciatura em Teatro ofertado pela UnB (Universidade de Brasília) através da UAB (Universidade Aberta do Brasil) de Primavera do Leste, com vestibular no ano de 2010, início das aulas em 2011 e os primeiros formandos no final de 2014 e no início de 2015. O curso agora é ofertado na UAB de Barra do Bugres. 22 2. CONTEXTOS DE CRIAÇÃO DE “BOÉ RED/APPROPIATION” ECONCRETO CONTRA-FLECHA 2.1 Primavera do Leste: cidade no Cerrado Mato-Grossense Em minha dissertação O menino e o céu: o trágico no teatro para infância e juventude apresentada em 2014 (programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea ECCO/UFMT), sob a orientação da Professora Maria Thereza de Oliveira Azevedo sobre a tragédia no espetáculo “O menino e o céu” montado pelo Teatro Faces contextualizei Primavera do Leste. Ao revisitá-la, percebo muitas mudanças, principalmente no crescimento. Importante salientar que em 2014 eu completava 29 anos de idade e 14 anos vivendo nesse município, menos da metade de minha existência; hoje, com 19 anos vivendo aqui, me vejo e me percebo mais ligado à cidade e percebo como a arte a redesenha a todo o momento com muita potência e dinâmica ocupando espaços, descentralizando-se e garantindo o acesso desde às comunidades centrais, até às comunidades periféricas e rurais. Figura 1- Foto aérea de Primavera do Leste-MT Fonte: Arquivo Prefeitura Municipal de Primavera do Leste, 2020. Primavera do Leste está localizada ao Sul de Mato Grosso e ao Leste da capital Cuiabá, tem uma população de 52.066 (cinquenta e dois mil e sessenta e seis) (IBGE, Censo de 2010), agora, segundo uma projeção em 2018 do próprio IBGE, estamos em torno de 61.038 (sessenta e um mil e trinta e oito) habitantes, sendo a grande maioria da população residente em área urbana. Com dados divulgados pelo Ministério da Economia e amplamente massificado em 23 jornais impressos e online, consolidou-se como a terceira cidade com o maior volume de ex- portação e a 48a em importância na balança comercial brasileira. Além de terceira em Mato Grosso, o município assumiu a 48a posição em relevância na Balança Comercial entre as mais de 5.500 cidades de todo país. A soja continua sendo o grande carro chefe da produção local, representando 47% do volume exportado [...] vem o milho com 37% e o restante se completa com diversos produtos e subprodutos. (NOTÍCIAS DE MATO GROSSO, s/p , 2019) A agricultura constrói o modo de vida da população que tem sua origem como distrito de uma cidade diamantífera chamada Poxoréu, cidade em que nasci e vivi até os quase 14 anos de idade. Sua emancipação e crescimento se deu de maneira ordeira (seguindo um plano diretor) e rápida, desde o princípio, Primavera do Leste se organizou politicamente de maneira atuante, principalmente dada a experiência de migrantes vindos das cidades que formam os três estados do sul do Brasil: Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O escoamento da safra acontece facilmente por causa de sua privilegiada localização: No entroncamento da MT 130 que liga Mato Grosso a Mato Grosso do Sul, com a BR 070 que liga o Estado de Mato Grosso ao Estado de Goiás, além de ser o caminho para a capital Cuiabá. Fonte: Arquivo da Prefeitura Municipal de Primavera do Leste, 2020 Figura 2 – Mapas de Primaverado Leste 24 Cito o texto encontrado no site da Prefeitura Municipal de Primavera do Leste em ja- neiro de 2021, como história oficial da emancipação política-administrativa do município: Primavera do Leste era chamada de Bela Vista das Placas, Rodovia 070, Km 150, Entroncamento Paranatinga. A Fundação e implantação do projeto Cidade de Primavera ocorreu no dia 26 de setembro de 1979, projetada pela Construtora e Imobiliária Consentino. Com um vertiginoso crescimento populacional, no ano de 1981, face ao seu franco desenvolvimento, Primavera do Leste é elevada a categoria de distrito, pertencente ao município de Poxoréo, começando assim, a dar os primeiros passos em busca de sua independência política. A partir daí, vislumbrando um futuro promissor, uniram-se forças representantes e lideranças do distrito até que, em 24 de agosto de 1984, foi criada a Comissão Pró-Emancipação do distrito, composta por vinte e seis abnegados pioneiros que escolheram por unanimidade, Darnes Egydio Cerutti para presidi-la. Como primeira sugestão, a comissão acatou o nome de Primavera D`Oeste, para o novo município pleiteado, nome este rejeitado pela Comissão de emancipação da Assembléia Legislativa Estadual, pois o mesmo estava incorreto geograficamente em relação a localização no estado. Em vista disto, no dia 27 de junho de 1985 , por maioria simples, definiu-se que o novo município deveria se chamar Primavera do Leste, sendo de imediato rejeitadas as demais sugestões como Nova Primavera e ou Alto Primavera. Cumpridas todas as demais formalidades legais, burocráticas e políticas que a questão exigia e para felicidade da Comissão de desbravadores e pioneiros, o sonho tornou-se realidade. No plebiscito realizado no dia 21 de abril de 1986, de 1.142 inscritos, compareceram 741 eleitores, sendo que 704 participantes votaram a favor da criação do município de Primavera do Leste.Em 13 de maio de 1986, o governador do Estado de Mato Grosso, Julio Campos, assinou a Lei estadual n°. 5.014, que outorgava ao distrito, a categoria de Município de Primavera do Leste. Com uma área de 5.664 Km², a cidade enfrentou alguns problemas na sua fundação mas, assim mesmo, dava-se início a vida político-administrativa do Município, com a eleição do primeiro Prefeito, por sinal, um dos pioneiros na Região, Sr. Darnes Egydio Cerutti, que teve como Vice prefeito o médico Dr. Milton João Braff, vencedores do pleito de 15 de novembro de 1986. Nossa jovem cidade, desde sua criação, tem tido um crescimento acelerado, com apenas 2 anos de emancipação político-administrativa tornou-se Comarca, através da Lei Estadual n°. 5.436 de 03 de maio de 1989, só vindo a ser instalada no dia 10 de maio de 1992. Deixou de ser Distrito de Poxoréu e passou a ser cidade no dia 13 de maio de 1986, através da Lei nº 5.014, tendo um crescimento surpreendente, tanto econômico quanto populacional. (PREFEITURA MUNICIPAL DE PRIMAVERA DO LESTE, s/p , 2021). Falar de Poxoréu e sobre o seu passado como um grande território que depois dividiu- se em Primavera do Leste faz-se importante por conta da forte presença indígena, principal- mente dos Boe-Bororo, da qual parte o processo Boé/Red Appropiation. Fomos criados para 25 termos medo dos indígenas, para enxergá-los sempre com um olhar de desconfiança e reprova- ção. “O índio vai te pegar” eram frases comuns em minha infância evocada todas as vezes que queriam nos colocar medo para não caminharmos sozinhos pelo bairro. Jurandir Xavier em seu livro Poxoréu e o Garça (1996) fala sobre a dizimação dos Boe-Bororo que dominavam toda a região. Dizimação ocorrida através da bala, do álcool e das doenças. Com o declínio dos garimpos de diamantes e com a ascensão da agricultura, Poxoréu, com solo completamente diferente de seu antigo distrito, experenciou uma verdadeira diáspora de seus habitantes. E mesmo distantes apenas 30 quilômetros, as diferenças culturais são enor- mes: Poxoréu, colonizada por baianos e maranhenses, Primavera do Leste por paranaenses, catarinenses e rio-grandenses-do-sul e mesmo com uma outra relação com a terra e o lugar, ainda cultivavam a mesma visão sobre os indígenas, dessa vez de forma mais verticalizada, como inimigos do progresso. O que as duas cidades também mantêm em comum é a forte ex- ploração do solo: Poxoréu atrás das grupiaras e monchões e seus diamantes, Primavera do Leste e a monocultura da soja, milho e algodão. Sobre as belezas naturais escrevi em 2014 o que continua representando o município: A cidade não possui grandes números de espaços de belezas naturais em seu entorno, de acordo com o site da Prefeitura Municipal de Primavera do Leste, apenas uma Lagoa de águas profundas e cristalinas, chamada Lagoa Azul, afastada da cidade, e em uma propriedade particular; e o Rio das Mortes, a 30 quilômetros da região urbana. Por isso, são os espaços públicos que são bastante frequentados, destacando-se, entre eles: a Pista de Caminhada (complexo com praça, concha acústica e quadra de tênis) e o Lago Municipal (além do lago, possui pista de caminhada e grande extensão gramada, onde também são realizados grandes eventos de música). (LANA, 2018, p.20) Hoje, o Largo Municipal (conhecido como Largo Municipal) passa por reformas per- dendo bastante sua região de grama para a construção de pergolados, quadras esportivas e de- mais equipamentos de lazer modificando-o de espaço ambiental para espaço poliesportivo. Uma das marcas de Primavera do Leste é o investimento em infraestrutura e na quali- dade de vida. A maioria das casas buscam investir em arquitetura e buscam dialogar com o que tem de mais moderno no país. Começou um processo de industrialização e já é possível ver empresas multinações como CARGILL13 e IHARA14 já são realidades no município. É percep- 13 É uma empresa multinacional com sede em Minnesota (EUA), atua no processamento de alimentos. Inaugurou sua sétima indústria em Primavera do Leste em 27/05 de 2009 (sefaz.mt.gov.br) 14 Multinacional de origem Japonesa especialista em agrotóxicos. Iniciou as obras da indústria em Primavera do Leste no ano de 2020 com previsão de inauguração para 2021. 26 tível a preocupação em não estruturar a economia apenas na agricultura, diversificá-la, princi- palmente com a indústria, dada as experiências passadas da ferrugem asiática15 que devastou inúmeras plantações e atirou a cidade em uma enorme recessão. No setor cultural, grupos artísticos, eventos e demais ações colocam o munícipio no mapa das artes de Mato Grosso. A Prefeitura Municipal de Primavera do Leste abriu uma Se- cretaria de Cultura, Turismo, Lazer e Juventude (SECULT) em 2015, onde tive papel impor- tante no processo. Foi em 2014 como Chefe da Seção de Cultura da Secretaria Municipal de Educação, Cultural, Esporte e Lazer propus e organizei um projeto de abertura de uma secreta- ria que englobasse apenas a cultura, o turismo, o lazer e a juventude. Apresentei o impacto financeiro e a descrição de cargos e funções que foi prontamente aprovada pelo prefeito, Érico Piana Pinto Pereira, e de maneira unânime pela câmara de vereadores da cidade. A SECULT iniciou seus trabalhos em janeiro em 2015 com o convite para que eu assumisse a pasta como seu secretário. Aceitei o desafio e acabei me tornando o primeiro Secretário de Cultura de Pri- mavera do Leste e mesmo com as mudanças de gestão continuei secretário e fui convidado em janeiro de 2021 para permanecer na pasta. A SECULT impulsionou muito as práticas já realizadas. Mantém uma Escola Municipal de Música com uma média de 300 alunos frequentes por semestre; uma escola municipal de teatro com média de 350 alunos por semestre e a escola municipal de dança com cerca de 900 alunos por semestre. Ainda conta com Orquestra Sinfónica de Primavera do Leste, Batalhas de Rimas, Festival de Culturas Urbanas (um festival que reúneo grafitti, o break, biboy e bigirl, o rap, o patins, skate e bicicleta), Festival Castro Alves/Manoel de Barros de Poesia, Festival de Dança Tema Cinema, Festival de Cinema Itinerante e o Festival Velha Joana que em 2019 reuniu 565 atores e técnicos em 10 dias de apresentações com um público superior a 10.000 pessoas16 e em 2020, mesmo com a Pandemia, realizou atividades presenciais e remotas forta- lecendo a relação do município com as artes da cena. A SECULT realiza ações populares artísticas e de lazer como o Pôr do sol com MPB todos os domingos no Lago Municipal, Bailinho da Pista que também ocorre todo domingo 15 Segundo a descrição de Agrolink (s/p) “A doença é causada pelo fungo Phakopsora pachyrhizi, sendo, hoje, uma das doenças que mais têm preocupado os produtores de soja. O seu principal dano é a desfolha precoce, impedindo a completa formação dos grãos, com consequente redução da produtividade. O nível de dano que a doença pode ocasionar depende do momento em que ela incide na cultura, das condições climáticas favoráveis à sua multiplicação. Os danos podem chegar a cerca de 70%. A doença foi diagnosticada pela primeira vez no Brasil em 2001. Devido à facilidade de disseminação do fungo pelo vento, a doença ocorre em praticamente todas as regiões produtoras de soja do país”. Disponível em: <https://www.agrolink.com.br/problemas/ferrugem-asiatica_2241.html > Acesso em out.2021. 16 Informações da SECULT – Secretaria de Cultura Turismo, Lazer e Juventude https://www.agrolink.com.br/problemas/ferrugem-asiatica_2241.html 27 para a melhor idade; Carnaval, 10 dias de festividades de Natal e réveillon com queima de fogos que atrai quase a metade da população em apenas uma noite. A cidade investiu nas políticas de biblioteca, livro, leitura e literatura construindo o pro- jeto de “Biblioteca Containers” que foram instaladas em oito lugares diferentes da cidade, sendo uma delas na zona rural. As bibliotecas não possuem cuidadores então o cuidado com o equi- pamento público depende da própria população, numa política de cidadania. Além de reformar a biblioteca municipal e abrir uma biblioteca modelo na comunidade do Primavera 3 e Lotea- mento Padre Onesto Costa, região com um alto índice de vulnerabilidade e risco social que fornece além das práticas de literatura, inclusão digital, uma farmácia e uma subprefeitura. Artistas da música circulam com seus shows por todo o Estado e até mesmo por Estados da Região Norte do país. As Artes Visuais além de ganhar em 2018 um salão permanente de exposições Salão das águas, financiado pelo poder público municipal, tiveram, com Lívia Car- valho, prêmio em Londres, em evento da ANAP – Academia Nacional de Artes Plásticas, em parceria com a Art Link Eventos Internacionais, que todos os anos realizam exposições de arte no exterior para divulgar novos talentos da arte do Brasil. A exposição aconteceu durante o mês de outubro na Canning House, em Londres, durante a London Art Week – Brazilian Visions e teve a participação de 52 obras de artistas brasileiros, sendo a obra de Lívia a medalhista de ouro. No campo das Artes da Cena, o Teatro Faces recebeu o principal prêmio da Funarte para o Teatro brasileiro (Myriam Muniz), Prêmio Circula MT 2017 e 2018. Cumpriu temporada no mês das crianças no CCBB em São Paulo – SP em 2019; e hoje é uma das principais companhias de Teatro de Mato Grosso, fundou um método de ensino que resultou no surgimento do Ponto Faces de Cultura e no Projeto Escola de Teatro Faces e impulsionou se tornando uma das prin- cipais forças na luta por políticas públicas no município. Duas obras sobre a história de Primavera do Leste foram escritas e podem ser facilmente acessadas: Primavera (com e sem Flores) de José Antônio de Castro Leite Nogueira (2010) organizado através de crônicas numa visão bem particular do autor sobre acontecimentos polí- ticos do município. E Primavera floresce em Maio de Elizabete Louzano (2018) que acompa- nha a história de fundação de Primavera do Leste caminhando até a atualidade. Esses dois livros contribuem para entendermos através de quais conceitos surgiu o município. Boé/Red Appropriation surgiu como potência dramatúrgica ou possibilidade de pro- cesso a partir do nosso convívio rotineiro com os indígenas que estão nos supermercados, ban- cos, pronto-socorro ou pelas ruas, e passamos a discutir e pensar sobre esse contato e sobre esse território que tinha a nós todos. Geograficamente não há nenhuma comunidade indígena em 28 Primavera do Leste, mas várias comunidades indígenas têm na cidade o seu território e, por isso, o ocupam sobre olhares recriminatórios e exotizantes. Os desencadeamentos do contato nãos permitiram uma harmonia, visto a natureza de discussão territorial que falar sobre a causa indígena carrega. Mas decidimos conversar e, afetados pelo equilíbrio da vida, passamos a pen- sar como é perder alguém para todos nós atores do Teatro Faces, perder de maneira irreversível. Quando a palavra morte apareceu, sabíamos o que pretendíamos e sabíamos que estar em Pri- mavera do Leste, cidade que vimos crescer e que compartilhamos a vivência com o discurso de ódio em contraste com nosso posicionamento diante desse mesmo discurso. Boé/Red Appropriation só seria possível em Primavera do Leste pelo simples fato do trabalho ser uma construção desse lugar que ajudamos a edificar e, edificado, podemos perceber as diferenças culturais são determinantes e mesmo plural ainda há a dificuldade de entender “aqueles” com pele vermelha e história diferente de ocupação, aquele que se relaciona de ma- neira diferente da minha com a natureza e tem outros conceitos sobre propriedade privada. Eu percebi ainda que, quando os adultos falavam na infância “o índio vai te pegar” não era apenas para que eu tivesse medo, mas também, para que eu tivesse raiva quando adulto. Com a mesma força que Primavera do Leste abraça a arte ela também nos fez questionar nossa própria arte e a olhar diferente para os lugares que chamamos de nosso território. 2.2 Alta Floresta: cidade na Amazônia Mato-Grossense Alta Floresta fica localizada no extremo norte de Mato Grosso na divisa com o Estado do Pará. A cidade tem sua economia baseada, hoje, na agropecuária, mas em sua fundação a mineração foi fator determinante para vinda de pessoas até a região de floresta amazônica em que a cidade se encontra. De acordo com o Censo de 2010 realizado pelo IBGE a população da cidade era de 49.164 (quarenta e nove mil cento e sessenta e quatro) habitantes e com uma projeção de crescimento em 2018 de 51.615 (cinquenta e um mil seiscentos e quinze) habitan- tes. Um crescimento bem menor e menos acelerado do que vem acontecendo em Primavera do Leste. Ao buscar informações em páginas do município sobre sua história de formação, depa- rei-me com textos oficiais (site do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de um verdadeiro ufanismo pelo projeto de exploração executado na cidade. Os adjetivos utilizados para os “desbravadores” nos colocam diante da grande importância que o espetáculo concreto CONTRA-FLECHA – ao falar da perspectiva dos trabalhadores, das pessoas simples – tem para 29 ajudar a entender o próprio surgimento da cidade, já que a história oficial comemora os bandei- rantes, o processo de colonização, e é indiferente a seus terríveis desencadeamentos para com a floresta. A história oficial é contada através do olhar das pessoas que enriqueceram e possuem grande influência no município; já o espetáculo se responsabiliza em contar a história dos mo- radores que ajudaram com seu suor regado pelo sonho de um futuro melhor, edificaram a ci- dade, mas por não serem figuras de grande poder aquisitivo tem sua bravura constantemente atacada e uma tentativa, recorrente, de serem apagados da história. A cidade de Alta Floresta foi fundada pelo colonizadorAriosto da Riva, apelidado pelo jornalista David Nasser de "O Último Bandeirante", por ter a ousadia de penetrar na floresta amazônica e implantar um projeto de colonização. Naquele tempo, abrir estradas era um ato de coragem e determinação, o trabalho marchava lento, enfrentando árvores gigantes de angelins, mogno, castanha-do-pará dentre outras. Em maio de 1976, três anos após o começo da abertura da estrada, é que se acabou de desmatar a primeira clareira onde a cidade de Alta Floresta iria ser construída. O nome de Alta Floresta deu-se em função da própria natureza da região, com mata alta e densa, já que o local se encontrava na região da Amazônia mato-grossense. Empresa de caráter privado, o chefe, Ariosto da Riva sempre dava a última palavra. Mas pela prática de colonizações, Riva se fazia assessorar por pessoas tarimbadas em serviços de emergência e imprevistos. Os apodos altissonantes dados a Riva provinham do projeto duplo: ao mesmo tempo colonizar e pesquisar a Amazônia. Para o êxito da colonização eram necessários conhecimentos cabais da natureza local, a fim de lhe tirar o máximo proveito. Enquanto abria espaço para o estabelecimento de infraestrutura, abria também canteiro de pesquisas agrícolas. O município foi criado a 18 de dezembro de 1979, através da Lei Estadual nº 4.157. Em 3 de junho de 1980, o Presidente da República, João Figueiredo, visitou Alta Floresta e escutou de Ariosto da Riva a seguinte frase "...Alta Floresta terá o direito de se orgulhar por ter sido a cidade que em tempo recorde - apenas quatro anos - se tornou município, fato esse certamente único na história do País". (PREFEITURA MUNICIPAL DE ALTA FLORESTA, s/p, 2020) Contextualizando com o período – meados da década de 1.970 para o início da década de 1.980 – e o momento político que o país vivia, percebemos que desbravar a Amazônia e fazer surgir dali uma cidade, caminhava com os projetos de “integração nacional”, o conceito de Estado-nação e a marcha para oeste surgida no Estado Novo de Vargas que ignorava as múltiplas existências na tentativa de forjar uma única identidade para o Brasil. O que não foi muito diferente com o cerrado onde surgiu Primavera do Leste. Sobre a Marcha para Oeste Maurílio Dantielly Calonga (2015) afirma: A Marcha para Oeste foi lançada oficialmente em 1938, com a proposta de colonizar as terras da região Centro-Oeste até a Amazônia. O projeto governamental incluía a construção de escolas, hospitais, estradas, ferrovias e 30 aeroportos no interior do Brasil, com o objetivo de integrar e consolidar a nação, de acordo com as diretrizes ideológicas do Estado Novo (1937-1945). Além disso, incorporou aspectos simbólicos, como a ideia de reserva de brasilidade, presente na dicotomia sertão/litoral (...) O confronto entre o sertão, reserva de brasilidade, e o litoral, porta de entrada das ideias corruptoras da nacionalidade, vindas principalmente da Europa, tornou-se temática frequente no debate político e intelectual da época. O reconhecimento por parte dos intelectuais ligados ao Estado Novo da importância do domínio espacial do território como elemento constitutivo de identidade nacional impulsionou o projeto da Marcha para Oeste. A ocupação de áreas até então escassamente povoadas tornou-se o eixo central das políticas de integração, não obstante, o desafio de construir uma nacionalidade em meio à diversidade. (CALONGA, 2015, p.127) O que faz da história de Alta Floresta ainda mais interessante é a ideia de desmatar para progredir, destruir para edificar, poluir para possuir reflexos das políticas desgovernadas, ad- ministradas por órgãos como a SUDAM - Superintendência para o desenvolvimento da Ama- zônia, que não levaram em consideração os impactos ambientais e, assim como no Cerrado, as comunidades indígenas que ali viviam. No livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert A Queda do Céu (2015), um dos relatos de Bruce Albert em seu primeiro contato com os Yanomami em 1973: Meio vestidos com camisetas publicitárias ou de campanhas eleitorais, sujas e rasgadas, um grupinho de homens e mulheres caminhavam em fila na lama vermelha. Esgueiravam-se no barulho ensurdecedor de caminhões e escavadeiras, para pedir aos operários, com sorrisos imperturbáveis, comidas roupas, latas e sacos plásticos usados. Eu viria a saber depois que aqueles eram sobreviventes do pequeno grupo Yawari, Yanomami da região do rio Ajarani, o primeiro a ser atingido pela abertura da perimetral norte. Boa parte deles ficou vagando assim, a partir de 1973, pelo traçado da estrada, tanto que o missionário os tinha apelidado, numa mistura de português e yanomami, de os Estrada T(h)ëri pë (Os habitantes da estrada). (KOPENAWA E ALBERT, 2015, p. 517). Essa descrição foi feita apenas sete anos antes da fundação de Alta Floresta pelo presi- dente militar João Figueiredo, mas no mesmo período de ocupação, e nos mostra como foram tratados o lugar(es) dos povos indígenas na região da floresta amazônica. Já estive por muitas vezes em Alta Floresta, deslocando-me de maneiras diferentes, a primeira vez de ônibus, depois de carro, outras vezes de avião. A distância é de quase 1.000 (mil) quilômetros e mesmo assim percebo inúmeras semelhanças com Primavera do Leste. Seja pelo início garimpeiro – já que Primavera do Leste foi distrito de Poxoréu e a primeira prática econômica foi o garimpo de diamantes –, e agora relacionado ao agronegócio. Soma-se a esses 31 aspectos econômicos a densidade demográfica semelhante, e, principalmente, a política de tea- tro de grupo que tanto o Teatro Faces quanto o Teatro Experimental de Alta Floresta realizam em suas cidades. Figura 3 -Alta Floresta em destaque no Mapa de Mato Grosso. Fonte: Arquivo pessoal. Fotografia de Fabio Bonadeu, 2020. Fonte: Arquivo da Prefeitura Municipal de Primavera do Leste, 2020. Figura 4 - Figura 5: Cidade de Alta Floresta Arquivo 32 É perceptível a importância do município em relação aos municípios circunvizinhos, o que transformou a cidade em um polo regional. Possui aeroporto com voos regulares da com- panhia aérea AZUL, grandes atrativos turísticos ligados à exploração da floresta e a observação e catalogação de pássaros. Uma situação interessante aconteceu em 2016 quando Eugênio Barba17 esteve em Alta Floresta, pelo projeto Encontros Possíveis organizado pela Cia Pessoal de Teatro18, ação que reunia pensadores de teatro de todo Brasil para discutirem suas práticas, métodos, para assisti- rem apresentações e produzirem encontros (com sugere o nome), dentro da Programação do Festival de Teatro da Amazônia Mato-Grossense. Eugênio Barba ao saber de uma árvore cen- tenária pediu para que o levasse, outras pessoas se interessaram e foram juntas. Esse grupo de pessoas sentiu-se extremamente tocado pela potência da floresta. Ao voltar para a sede do Odin Teather na Dinamarca, inspirado pelo impacto amazônico, Barba começou a trabalhar em seu novo trabalho The Tree (2016). Figura 5- Árvore Gigante em Alta Floresta – Sumaúma Ceiba Pentandra. Fonte: Arquivo pessoal. Fotografia de Zig Koch. 17 Eugenio Barba (Brindisi, 29 de outubro de 1936) é um autor italiano, pesquisador e diretor de teatro. Fundador e diretor do Odin Teatret, criador do conceito da Antropologia Teatral, fundador e diretor do Theatrum Mundi Ensemble, e criador da ISTA (International School of Theatre Anthropology). 18 Companhia de Teatro de Cuiabá formado pelas atrizes e pesquisadoras Juliana Capilé e Tatiana Horevich 33 O Teatro Experimental viveu situações adversas na cidade, Ronaldo Adriano participou da vida política do município até o ano de 2012, a partir daí, acabaram expulsos do Centro Cultural e se tornaram pessoas não gratas à gestão de cultura do município. O Grupo resolveu construir um Centro Cultural, e enquanto a cidade sofria