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Boé e concreto Contra-Flecha - o cerrado e a floresta na construção de uma dramaturgia mestiça

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO 
INSTITUTO DE LINGUAGENS 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA 
CONTEMPORÂNEA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
WANDERSON ALEX MOREIRA DE LANA 
 
 
 
 
 
 
Boé e concreto CONTRA- FLECHA: 
O CERRADO E A FLORESTA NA CONSTRUÇÃO DE UMA DRAMATURGIA MES-
TIÇA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Cuiabá-MT 
2021 
 
2 
 
 
WANDERSON ALEX MOREIRA DE LANA 
 
 
 
 
 
 
Boé e concreto CONTRA- FLECHA: 
O CERRADO E A FLORESTA NA CONSTRUÇÃO DE UMA DRAMATURGIA 
MESTIÇA 
 
 
 
 
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação 
em Estudos de Cultura Contemporânea da Univer-
sidade Federal de Mato Grosso como requisito par-
cial para obtenção do título de Doutor em Estudos 
de Cultura Contemporânea, na Área de Concentra-
ção Estudos Interdisciplinares de Cultura, linha de 
pesquisa: Poéticas Contemporâneas. 
Orientador: Prof. Dr. Mário Cezar Silva Leite 
 
 
 
 
 
 
Cuiabá-MT 
2021 
 
 
 
 
 
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA
FOLHA DE APROVAÇÃO
TÍTULO: BOÉ e concreto CONTRA- FLECHA: O CERRADO E A FLORESTA NA CONSTRUÇÃO DE UMA
DRAMATURGIA MESTIÇA
Doutorando – Wanderson Alex Moreira da Lana
Tese defendida e aprovada em 26/02/2021.
COMPOSIÇÃO DA BANCA EXAMINADORA
Doutor Mário Cezar Silva Leite (Presidente da Banca / Orientador)
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Doutora Teresinha Rodrigues Prada Soares (Examinadora Interna)
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Doutora Maria Thereza de Oliveira Azevedo (Examinadora Interna)
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
SEI/UFMT - 3151388 - DOUTORADO - Folha de Aprovação https://sei.ufmt.br/sei/controlador.php?acao=documento_imprimir...
1 of 2 17/06/2021 14:26
Doutor Ronaldo Henrique Santana (Examinador Externo)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
Doutor Vicente Concilio (Examinador Externo)
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
Doutor José Carlos Leite (Examinador Suplente)
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
CUIABÁ, 26/02/2021.
Documento assinado eletronicamente por TERESINHA RODRIGUES PRADA SOARES, Docente da
Universidade Federal de Mato Grosso, em 21/03/2021, às 15:42, conforme horário oficial de Brasília,
com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.
Documento assinado eletronicamente por Maria Thereza de Oliveira Azevedo, Usuário Externo, em
21/03/2021, às 15:53, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do
Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.
Documento assinado eletronicamente por Vicente Concilio, Usuário Externo, em 21/03/2021, às
20:41, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de
8 de outubro de 2015.
Documento assinado eletronicamente por RONALDO HENRIQUE SANTANA, Usuário Externo, em
22/03/2021, às 21:28, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do
Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.
Documento assinado eletronicamente por MARIO CEZAR SILVA LEITE, Docente da Universidade
Federal de Mato Grosso, em 23/03/2021, às 11:41, conforme horário oficial de Brasília, com
fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.
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Referência: Processo nº 23108.099863/2020-85 SEI nº 3151388
SEI/UFMT - 3151388 - DOUTORADO - Folha de Aprovação https://sei.ufmt.br/sei/controlador.php?acao=documento_imprimir...
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AGRADECIMENTOS 
 
 
Ao meu generoso orientador Mário Cézar Silva Leite, experiente conhecedor das coisas, grande 
escritor e mestre. Caminhou comigo sob provocações e incentivos deixando o caminho mais 
fácil, denso e prazeroso. 
 
Ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Fe-
deral de Mato Grosso e à CAPES pelo apoio institucional e aos membros da banca de qualifi-
cação desta pesquisa. 
 
Ao Grupo Teatro Experimental de Alta Floresta - TEAF por permitir que caminhasse pela me-
mória e registros desse importantíssimo grupo para a história do teatro brasileiro. 
 
Aos fazedores de Teatro de Primavera do Leste que mostram todos os dias que é forte, articu-
lado, potente e incrível o teatro realizado no interior de Mato Grosso; 
 
E ao querido Teatro Faces que há 16 anos acreditaram que era possível, mudando a história de 
muitas pessoas, inspirando lutas e conquistas, mudando a minha vida para sempre. 
 
 
 
6 
 
RESUMO 
 
A pesquisa analisa a dramaturgia do processo cênico Boé (2014) do Grupo Teatro Faces de 
Primavera do Leste e de concreto CONTRA-FLECHA (2017) do Grupo Teatro Experimental 
de Alta Floresta interessando-se em como o cerrado e a floresta amazônica impactam, não so-
mente, na estética dos trabalhos, mas também, evidencia uma política de organização em grupo 
e o interesse em discutir aspectos ligados aos desencadeamentos da colonização em Mato 
Grosso a partir do século XX. O Teatro Faces é o primeiro grupo de Primavera do Leste (su-
deste/cerrado) a se organizar como instituição cultural no município, o mesmo acontece com o 
Teatro Experimental de Alta Floresta em Alta Floresta (norte/Amazônia mato-grossense), ainda 
na década de 1.980. Os grupos possuem 15 anos e 32 anos de fundação, respectivamente, e suas 
produções são profundamente engendradas pela localização geográfica. Cerrado e Floresta im-
pactam numa maneira muito particular a metodologia de suas montagens cênicas e suas manei-
ras de existir e movimentar as artes da cena no interior do estado. Através de Boé, processo 
cênico que abandona a centralidade do texto e abraça a performatividade e o conceito de dra-
maturgia expandida, e concreto CONTRA-FLECHA, que se utiliza da memória como fio con-
dutor para pensar o território, é possível perceber as relações que os dois grupos mantêm com 
aspectos da colonização e a luta contra as raízes da colonialidade (MIGNOLO, 2010, 2017; 
QUIJANO 2005, 2010). Atravessados pelos conceitos de lugar e não lugar (AUGÉ, 1994) – 
bem como os conceitos de espaço, território, territorialidade, a ideia de tempo-espaço (HAES-
BART, 2002; SANTOS, 2014) e conceitos de mistura e seus desencadeamentos (GLISSANT, 
2005; GRUZINSKI, 2001; PINHEIRO, 2020) – os processos cênicos do Teatro Faces de Pri-
mavera do Leste e do Teatro Experimental de Alta Floresta caracterizam uma dramaturgia des-
territorializadora e territorializadora, política, decolonial e por assim ser, uma Dramaturgia 
Mestiça. 
 
Palavras-chave: Teatro Faces. Teatro Experimental. Dramaturgia Mestiça. Decolonialidade, 
Teatro Brasileiro. 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
 
This research analyzes the dramaturgy of the stage plays Boé (2014) by Primavera do Leste’s 
Teatro Faces and “concreto CONTRA- FLECHA” (2017) by Alta Floresta’s Teatro Experi-
mental, taking into account how the cerrado (Brazilian Savanna) and the Amazon Rainforest 
not only impact the works’ aesthetics of these groups, but also put in evidence a group organi-
zation policy and influence the interest in debating aspects related to the colonization process 
in the (Brazilian) state of Mato Grosso starting in the 20th Century.Teatro Faces is the first 
theater group in the city of Primavera do Leste (southeast/cerrado) to be organized as a local 
cultural institution. This is also true for Alta Floresta’s Teatro Experimental (north/Mato Grosso 
Amazon Rainforest) founded in the 1980s. Respectively, the groups count with 15 and 32 years 
since their foundation and their productions are profoundly rooted in their geographical loca-
tion. Cerrado and the Amazon Rainforest impact in a very particular way the methodology of 
the theater groups’scenic montages, the ways in which they exist and move the scenic arts in 
Mato Grosso’s inland areas. Through Boé, a stage play that abandons the centrality of the text 
and embraces performativity and the concept of expanded dramaturgy, and “concreto CON-
TRA-FLECHA”, which uses memory as a conducting wire to think about territory, it is possible 
to perceive the relationships that both groups keep with colonization aspects and the fight 
against these colonial roots (MIGNOLO, 2010, 2017; QUIJANO 2005, 2010). Intertwined by 
the concepts of place and non-place (Marc Augé, 1994) – as well as the concepts of space, 
territory, territoriality, and the idea of space-time (HAESBART, 2002; SANTOS, 2014), and 
the concepts of mixture and its consequences (GLISSANT, 2005; GRUZINSKI, 2001; PIN-
HEIRO, 2020) – stage plays of Primavera do Leste’s Teatro Faces and Alta Floresta’s Teatro 
Experimental characterize a deterritorialized and territorialized dramaturgy, political, decolo-
nial, therefore, a Mestizo Dramaturgy. 
 
Keywords: Teatro Faces. Teatro Experimental.Mestizo Dramaturgy. Decoloniality. Brazilian 
Theater 
 
 
8 
 
 
LISTA DE ILUSTRAÇÕES 
 
Figura 1- Foto aérea de Primavera do Leste-MT ..................................................................... 22 
Figura 2 – Mapas de Primavera do Leste ................................................................................. 23 
Figura 3 -Alta Floresta em destaque no Mapa de Mato Grosso. .............................................. 31 
Figura 4 - Figura 5: Cidade de Alta Floresta Arquivo .............................................................. 31 
Figura 5- Árvore Gigante em Alta Floresta – Sumaúma Ceiba Pentandra. ............................. 32 
Figura 6 - Todos os vermelhos em cena ................................................................................... 48 
Figura 7 - Homem e Mulher juntos. Alta Floresta. .................................................................. 49 
Figura 8- A caça ao Homem. Alta Floresta .............................................................................. 50 
Figura 9 - Homem preso em meio ao arame. Alta Floresta. ..................................................... 51 
Figura 10 - Regando o corpo nos braços da Mulher. Campo Novo dos Parecis. ..................... 53 
Figura 11 -Vermelha e Onça. Alta Floresta. ............................................................................. 53 
Figura 12 -Vermelho e a Onça de Brinquedo. Alta Floresta .................................................... 54 
Figura 13 - Vermelho escrevendo carta sobre a morte do Homem .......................................... 55 
Figura 14 -: Homem e Mulher se despedem. Campo Novo dos Parecis .................................. 56 
Figura 15 - Ronaldo e Angélica na construção– Concreto CONTRA-FLECHA. ..................... 61 
Figura 16 - Josué sonhando com a vida, Concreto Contra-Flecha .......................................... 62 
Figura 17 Três trabalhadores, concreto CONTRA FLECHA -.................................................. 63 
Figura 18 - Trabalhador no Andaime, concreto CONTRA-FLECHA ....................................... 63 
Figura 19 - Mulher segurando o corpo do Homem .................................................................. 87 
Figura 20 - Teatro Faces e Teatro O Bando, Teatro Faces e residentes Portugueses ............... 90 
Figura 21-Teatro Faces e Teatro O Bando conversando .......................................................... 91 
Figura 22 - Três homens com a tábua....................................................................................... 96 
Figura 23 - Paulo Isaac recebendo nomes ................................................................................ 98 
Figura 24 -Mulher e Homem se conhecendo............................................................................ 99 
Figura 25 -Primeiros Ensaios no Círculo de Terra aos fundos do Centro Cultural ................ 101 
Figura 26 - Arena do Centro de Artes – Ceart da UDESC – SC ............................................ 104 
Figura 27 -Rascunho da disposição da cena ........................................................................... 107 
Figura 28 -Homem preso por asas de ferro com arames ........................................................ 110 
Figura 29 -Perseguição. .......................................................................................................... 112 
Figura 30 -Homem morto no círculo de Terra cercado de grandes de arame ........................ 114 
Figura 31 - Mulher chora a morte do Homem deitada no círculo de terra ............................. 117 
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Figura 32 -Renan Nunes sozinho em cena tocando a música final ........................................ 121 
Figura 33 - Primeiro teste de maquiagem ............................................................................... 125 
Figura 34 - Maquiagem utilizada atualmente ......................................................................... 126 
Figura 35 - Mulher ilumina o corpo do Homem morto, preso nos arames ............................ 129 
Figura 36 - Projeção da onça-pintada ..................................................................................... 130 
Figura 37 - Apresentação para os alunos do ensino fundamental em Poxoréu-MT ............... 140 
Figura 38 - Jantar Flores com o Teatro Faces. ....................................................................... 146 
Figura 39 – Fotografia de um ensaio ...................................................................................... 157 
Figura 40 - André de Castro com um violão e uma furadeira na mão ................................... 159 
Figura 41 - Rider Técnico de Som do espetáculo concreto CONTRA-FLECHA ................... 160 
Figura 42- Linha da Memória ................................................................................................. 161 
Figura 43 -Caderno de decupagem das personagens de concreto CONTRA-FLECHA ......... 162 
Figura 44 -Gean, Ronaldo e Angélica carregando tijolos para cena ...................................... 163 
Figura 45-Ronaldo e Angélica no Cenário de Andaimes ....................................................... 165 
Figura 46 - Angélica com o Figurino treinando no cenário ................................................... 166 
 
 
 
 
10 
 
 
 
SUMÁRIO 
1. INTRODUÇÃO 10 
2. CONTEXTOS DE CRIAÇÃO DE “BOÉ RED/APPROPIATION” ECONCRETO CONTRA-FLECHA 22 
2.1 PRIMAVERA DO LESTE: CIDADE NO CERRADO MATO-GROSSENSE 22 
2.2 ALTA FLORESTA: CIDADE NA AMAZÔNIA MATO-GROSSENSE 28 
2.3 GRUPO FACES, PROJETO DE TEATRO E BOÉ/RED APPROPRIATION 34 
2.3.1 Teatro Faces: Formação de Plateia – Novas Gerações – Trabalhos e Premiações 36 
2.3.2 Festival Velha Joana 44 
2.3.3 Teatro Faces e Boé/Red Appropriation 46 
2.4 TEATRO EXPERIMENTAL E O CONCRETO CONTRA-FLECHA 56 
3. TERRITÓRIO, TERRITORIALIDADES E O LUGAR: A DRAMATURGIA MESTIÇA E O EXISTIR NO INTERIOR DE 
MATO GROSSO 64 
3.1 CONCEITOS DE TERRITÓRIO E LUGAR 64 
3.2 BOÉ/RED APPROPRIATION E CONCRETO CONTRA-FLECHA E OS CONCEITOS DE TERRITÓRIO E LUGAR 70 
3.3 O ENTRE LUGAR E OS ESPAÇOS PÚBLICOS PRIVADOS 73 
3. 4 A DRAMATURGIA MESTIÇA COMO DESENCADEAMENTO DECOLONIAL 75 
4. CERRADO E AS ESTÉTICAS DE MONTAGEM DO PROCESSO CÊNICO BOÉ/RED APPROPRIATION DO 
TEATRO FACES 87 
4.1 RELAÇÕES COM O TEATRO O BANDO 89 
4.2 OS ACORDOS DO PROCESSO COLETIVO E A PRIMEIRA EQUIPE 92 
4.3 A DRAMATURGIA DE BOÉ/RED APPROPIATION 95 
4.3.1 Dramaturgia:A ausência do círculo 96 
4.3.2 Dramaturgia: o círculo na construção do entre lugar 104 
4.4 A POÉTICA DA MÚSICA, DO SOM E DO SILÊNCIO 108 
4.5 MAQUIAGEM COMO POSSIBILIDADE DE EXISTÊNCIA 122 
4.6 LUZ E PROJEÇÃO – A DRAMATURGIA DA LUZ 126 
4.7 A DIREÇÃO COLETIVA – CONFLITOS E SUBJETIVIDADES 132 
4.8 O SURGIMENTO DE RED/APPROPIATION E AS DEMAIS CURVAS 137 
5. A FLORESTA E AS ESTÉTICAS DE MONTAGEM DO PROCESSO CÊNICO CONCRETA CONTRA-FLECHA DO 
TEAF – TEATRO EXPERIMENTAL DE ALTA FLORESTA 141 
5.1 DEPOIS DAS FLORES: OS DESENCADEAMENTOS DA MONTAGEM DE CONCRETO CONTRA-FLECHA 143 
5.2 OS CAMINHOS DA DRAMATURGIA EM DIÁLOGO COM A DIREÇÃO 148 
5.3 A MÚSICA ANTES DO CONCRETO 156 
 
 
5.4 OS ATUANTES E A DIREÇÃO NA CONSTRUÇÃO COLABORATIVA DA ENCENAÇÃO, LUZ, CENÁRIO E FIGURINO: O DESENHO FINAL DE 
CONCRETO CONTRA-FLECHA 161 
5.6 O ADEUS AO MESTRE DA FLORESTA DA AMAZÔNIA MATO-GROSSENSE E A NECESSIDADE DE CONTINUAR 168 
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 171 
7. REFERÊNCIAS 177 
ANEXO 182 
 
 
10 
 
1. INTRODUÇÃO 
 
A princípio, a ideia era pensar o território para entender as criações dramatúrgicas de 
dois grupos de teatro de Mato Grosso: o Teatro Faces e o Teatro Experimental de Alta Floresta 
através dos trabalhos Boé/Red Appropiation e concreto CONTRA-FLECHA respectivamente. 
Esta se apresentou pela forte presença agrícola e de exploração do território do Cerrado – em 
contraste com o grande número de comunidades indígenas, em especial os Boe-Bororo e os 
Xavante – e pelo processo de desmatamento da Floresta Amazônica para edificação da cidade 
de Alta Floresta e para a exploração do ouro, diamante e, posteriormente para a agropecuária. 
 Primavera do Leste – cidade onde está sediado o Grupo Teatro Faces – e Alta Floresta 
– cidade onde está sediado o Grupo Teatro Experimental (TEAF) – representam municípios 
que tiveram, nos processos de fundação, políticas ostensivas de perseguição indígena, desma-
tamento e, ainda, modelos oligárquicos estruturais que, muitas vezes, dificultam o debate diante 
de discussões de território, sejam eles físicos ou do campo do sensível. Otávio Velho e Rogério 
Haesbaert (2001) fazem menção ao processo de globalização e suas múltiplas consequências 
pelo espaço terrestre, e alertam-nos sobre a possibilidade de um território conter várias territo-
rialidades. Para eles, essas mudanças implicam na necessidade de se pensar as relações globais, 
e na ideia de tempo-espaço e território de maneira diferente, mais dilatada, generosa e sem 
deixar de lado as subjetividades. 
Mesmo diante de uma crise em que o velho deixou de existir e o novo ainda não surgiu 
(HAESBAERT, 2001), é necessário pensar como essa nova maneira de sentirmos o mundo – 
por hora dilatado, por vezes comprimido – contribui para entendermos as novas territorialidades 
e o retorno agressivo pela retomada do fortalecimento da ideia de Estado-nação. Além disso, 
soma-se o acirramento da perseguição que a arte passou a sofrer a partir do ano de 2017, de-
sencadeada pela exposição Queer Museum 1e a performance Macaquinhos (2014)2, retomando 
a velha discussão sobre o que seria ou não a arte. 
 
1 Queer museum: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira é uma mostra de artes visuais, com 
curadoria de Gaudêncio Fidelis, que reunia 270 trabalhos de 85 artistas que abordavam a temática 
LGBT, questões de gênero e de diversidade sexual. Com obras que percorrem o período histórico de 
meados do século XX até os dias de hoje. Entre os artistas expostos estavam: Cândido Portinari, Lygia 
Clark Yuri Firmesa, Adriana Varejão e Hudinilson Jr. Após forte movimentação e ameaças de 
cancelamento de contas e destruição do espaço onde era realizada a ação, principalmente pelas redes 
sociais, a exposição foi cancelada em setembro de 2017 sob acusações de apologia à pedofilia, zoofilia 
e, também, de agressão aos valores cristãos. 
2 Macaquinhos é uma performance realizada por nove atores, completamente nus, que vão explorar os 
ânus uns dos outros com o objetivo, segundo o grupo, de ampliar os conhecimentos do público sobre 
novos conceitos de arte, pensar os corpos dissidente e a questões dos países emergentes, representados 
https://brasil.elpais.com/tag/lgtb/a/
11 
 
 Em um cenário geral, no qual qualquer discussão de território incute situações emergen-
tes como reforma agrária, demarcação de terras indígenas e menores áreas de Áreas de Proteção 
Permanente (APPs), as artes conseguem discutir esses assuntos. Se no mundo, as eleições de 
Donald Trump no Estados Unidos, a saída do Reino Unido da União Europeia, o resultado das 
eleições de 2018 no Brasil nos incute a sensação de retomada da ideia de Estado-nação, de 
uniformização, de construção de um território que elimine as múltiplas identidades, no estado 
de Mato Grosso consigo senti-la muito presente. Isso se dá principalmente pela relação com a 
terra, seja na exploração de recursos minerais, no processo de captura de indígenas para trabalho 
escravo ou pelo atual momento em que a agropecuária se organiza como potência econômica 
nacional (MADUREIRA SIQUEIRA, 2009). O movimento cívico obrigatório, de bandeiras nas 
casas e nos comércios, de distribuição de cartilhas para toda população com os principais hinos 
do país foram algumas das retomadas do fortalecimento do Estado-nação que se manifestam 
em Primavera do Leste. 
Temo estarmos caminhando a passos largos para o “Brasil, ame-o ou deixe-o”, slogan 
da ditadura militar no período regido por Emílio Garrastazu Médici (FICO, 2004) que, de 
acordo com Carlos Fico tratava-se da maneira que a polícia política encontrava de se afirmar 
pela força contra o pensamento contrário3. 
 Boé ou Red Appropriation do Teatro Faces de Primavera do Leste é um processo cênico 
de criação coletiva que se utiliza do performativo como fio condutor para os desencadeamentos 
da cena. Este se apresenta como uma obra que foi o reflexo da vontade de todo o elenco de 
atores/performers envolvidos no processo cênico. Por se tratar de um trabalho onde a constru-
ção da história não parte da figura central de um texto, mas sim, da percepção de todos os atores 
e atrizes envolvidos que se utilizaram de dinâmicas de ação cênica, centrando-se numa drama-
turgia em seu conceito expandido (dramaturgia da luz, dramaturgia do corpo, dramaturgia da 
música) sem abrir mão de suas subjetividades – resultado de suas vivências. Apesar desta tese 
não apresentar um estudo sobre o teatro performativo, é importante destacar o que é. Para isso, 
trago passagem do artigo de Josette Féral (2009) apenas para pontuar suas características, de 
acordo com a autora. 
 
pelo anus. A performance foi apresentada no palco do Sesc Patativa do Assaré, no Cariri, em 
Pernambuco no ano de 2015 e uma gravação de um trecho do trabalho rodou pelas redes sociais 
causando imensa crítica por grande parte da população brasileira e se tornando o centro das discussões 
sobre as fronteiras da produção artística e do financiamento público. 
3 E para não pensarmos que esse tempo passou o canal de televisão brasileiro SBT retomou slogans do 
período da Ditadura Militar em 06 de novembro de 2018 que, após críticas, retirou do ar. Segue link das 
propagandas nacionalistas, entre elas: “Brasil ame-o ou deixe-o”: 
https://www.youtube.com/watch?v=2_C8et4j0Ks 
12 
 
 
[...] se há uma arte que se beneficiou das aquisições da performance, é 
certamente o teatro, dado que ele adotou alguns dos elementos fundadores que 
abalaram o gênero(transformação do ator em performer, descrição dos 
acontecimentos da ação cênica em detrimento da representação ou de um jogo 
de ilusão, espetáculo centrado na imagem e na ação e não mais sobre o texto, 
apelo à uma receptividade do espectador de natureza essencialmente especular 
ou aos modos das percepções próprias da tecnologia...). Todos esses 
elementos, que inscrevem uma performatividade cênica, hoje tornada 
frequente na maior parte das cenas teatraisdo ocidente (Estados Unidos, 
Países-Baixos, Bélgica, Alemanha, Itália, Reino Unido em particular), 
constituem as características daquilo a que gostaria de chamar de “teatro 
performativo” (FÉRAL, 2009, p. 02). 
 
Boé/Red Appropriation não se utiliza de texto escrito e sua potência está na dramaturgia 
do corpo e das imagens construídas em cena. Dois atores podem, então, responder de diferentes 
formas do que se trata o processo cênico, porque assim como a plateia que assiste, o que é 
apresentado pelo Teatro Faces é visto de maneira diversa pelos atores/performers, de acordo 
com suas vivências. Porém, é clara a relação com a morte como fio condutor do processo cênico 
e disparador das escritas desses mesmos atores/performers: 
 
Acredito que Boé fala sobre o encontro de culturas, de maneiras de existir no 
mundo, que para mim se resume ao encontro de corpos, não somente do corpo 
humano biológico, mas do corpo como uma extensão da cidade, do corpo 
como uma maneira de pensar a floresta, o cerrado, enfim, Boé é um convite 
para discutir territórios, que se encontram e também se repelem, mas que 
coexistem de alguma maneira no caos da contemporaneidade. O processo 
cênico Boé é um convite para adentrarmos no território poético da cena teatral 
sem sairmos da nossa poética de existência. (SONTAK, 2020, p. 1, não publi-
cado)4 
 
Em minha concepção Boé/Red Appropriation parte de ritual de morte de uma 
comunidade específica (Boe-Bororo) e de como esse jeito diferente do nosso 
de ritualizar a morte nos afeta e como passamos a pensar as nossas 
ritualizações a partir do contato. Trata também da causa indígena e de como 
se dá a sua dizimação e as das florestas e rios, em favor de proprietários de 
terras e empresas diante dos nossos olhos e dos nossos silêncios. O processo 
propõe também uma reflexão a respeito da apropriação cultural e de como 
nossas ações em comunidade precisam ser repensadas. Nunca é tarde demais 
para entender que ações consideradas aceitáveis socialmente podem, na 
verdade, estar revestidas de preconceitos e violências estruturais. Boé/Red 
Appropriation fala também da dor da perda e como a morte é vista de 
 
4 André Francisco Sontak de Morais [Kiko Sontak]. Questionário Processo Cênico Boé 
(RedAppropriation) 1. [Entrevista cedida a] LANA, Wanderson [pelo e-mail]. p.1-5. Brasil, 15, maio 
2020 (não publicado). 
13 
 
diferentes maneiras por todos nós do elenco que construímos o trabalho. 
(SAMOLÃO, 2019, p. 1, não publicado) 5 
 
 Escolhi esse projeto do Teatro Faces como disparador para esta pesquisa por evidenciar 
como o Grupo se organiza e pensa sua dramaturgia através das problemáticas do território do 
Cerrado e, também, por se tratar de um processo coletivo de criação, processo em que não há a 
figura central de um diretor e sim, uma divisão e/ou negociação das decisões do que permanece 
ou não no processo cênico. Foi o primeiro trabalho com o Teatro Faces em que a direção artís-
tica não coube a mim, modificando, também, minha forma de pensar essa criação artística e a 
própria organização de um grupo do qual idealizei e sou fundador, mas, principalmente, enten-
der como esses atores e atrizes pensam a diversidade da cultura local e se entendem como pro-
tagonistas de suas comunidades nessa continuada relação de contato, a partir de suas relações 
com a morte. 
O Espetáculo concreto CONTRA-FLECHA6 do Teatro Experimental de Alta Floresta 
(TEAF) apresenta a história de colonos que formaram a cidade, daqueles que trabalharam para 
que oligarquia se efetivasse e se mantivesse e/ou se fizesse rica e próspera à custa de pessoas 
que só queriam um pedaço de terra para morar. O trabalho surgiu de um entrecruzamento dos 
relatos dos próprios moradores da cidade colhidos pelos atores, da história de formação de Alta 
Floresta e das memórias dos três atores do grupo. Abaixo, segue sinopse do espetáculo narrada 
em entrevista feita com ator Ronaldo Adriano7 e o ator Gean Nunes8 a partir da seguinte inda-
gação: “Em sua concepção do que trata concreto CONTRA-FLECHA?” 
 
Trata-se da trajetória de pessoas que são atraídas para trabalhar em um projeto 
de grande empreendimento. São confrontadas com os interesses e 
manipulações de quem tem o poder econômico que, ao custo de garantir seu 
empreendimento, colocam as camadas de baixo da sociedade para disputar 
entre si. Como resultado, ganha apenas a camada de cima que, em momento 
algum foi afetada. É a história de ocupação da Amazônia mato-grossense, na 
qual somos parte integrante. CONTRA-FLECHA é o nome dado a estruturas 
em madeira, utilizadas na construção civil para sustentar a lage ou o concreto 
armado até se solidificar. É sobre estas forças frágeis que algo mais forte do 
que elas se sustentam. Depois passa a pautar a sociedade como um todo. As 
 
5 SAMOLÃO, Rafaela. Questionário Espetáculo concreto CONTRA-FLECHA 4. [Entrevista cedida a] 
LANA, Wanderson [pelo e-mail]. p.1-4. Brasil, 27, jul. 2019 (não publicado). 
6 De acordo com o ator Ronaldo Adriano, o título possui a palavra concreto em minúsculo porque na 
ideia da montagem do espetáculo, o CONTRA-FLECHA seriam os trabalhadores esquecidos, mas que 
na metáfora da construção civil, foram os que deram sustentação ao surgimento da cidade. Comento 
sobre a sistematização do espetáculo concreto CONTRA-FLECHA no capítulo 04 desta tese; 
7 Nome Artístico de Ronaldo Adriano Freitas Lima do Teatro Experimental de Alta Floresta (TEAF); 
8 Nome Artístico de Gean Nunes de Araújo do Teatro Experimental de Alta Floresta (TEAF); 
14 
 
estacas são inevitavelmente descartadas, mas sem elas tudo desabaria. 
(ADRIANO, 2019, p.2, não publicado)9 
 
Trata-se de sonhos, frustrações, domínios e degradações do humano. Aborda 
as questões sensíveis do humano, memórias pessoais e relatos que 
contribuíram para concretizar sonhos e frustrações no processo de abertura e 
ocupação da Amazônia mato-grossense. (NUNES, 2019, p.1, não publicado 10 
 
 
 Após trabalharem dramaturgias clássicas mundiais como Dom Quixote (Miguel de Cer-
vantes, 1605) e Santa Joana dos Matadouros (Bertolt Brecht, 1931), o TEAF se viu em crise – 
nas palavras de Ronaldo Adriano – levando os atores a perceberem que havia muito a ser dito 
sobre onde estavam e como o Floresta Amazônica influenciava suas vidas, suas percepções e 
sonhos. Retomaram, então, o projeto de pesquisa sobre os processos migratórios e formação do 
município criando, novamente, uma dinâmica de identificação entre o grupo e a arte que pro-
duziam. 
 Caminho desde o princípio falando de território, mas o que seria de fato? O território 
onde moram os atores? Território geográfico de Alta Floresta e Primavera do Leste? O território 
construído através de concreto CONTRA-FLECHA e Boé/Red Appropriation? Ou a soma des-
sas diversas territorialidades? 
 Acreditei que a resposta fosse se apresentar de maneira turva à princípio, porém, enten-
der a nova organização social e cultural que acontece com a globalização e seus desencadea-
mentos de tempo-espaço, seja expandindo-o, seja suprimindo-o, foi primordial para esse estudo 
que pretendeu entender como a soma das mais diversas territorialidades contribuiu para a dra-
maturgia (em seu conceito expandido) dos dois processos trazidos para pesquisa. 
 Para Jean Gottmann (2012), o território se concentra como uma construção física e po-
lítica, demarcada pela influência humana. Entende-se que o Território está em constante movi-
mento e que sua organização ou reorganização é sempre política. 
 
Território é uma porção do espaço geográfico que coincide com a extensão 
espacial da jurisdição de um governo. Ele é o recipiente físico e o suporte do 
corpo político organizado sob uma estrutura de governo. Descreve a arena 
espacial do sistema político desenvolvido em um Estado nacional ou uma 
parte deste que é dotada de certa autonomia. Ele também serve para descrever 
as posições no espaço dasvárias unidades participantes de qualquer sistema 
de relações internacionais. Podemos, portanto, considerar o território como 
 
9 ADRIANO, Ronaldo. Questionário Espetáculo concreto CONTRA-FLECHA 1. [Entrevista cedida a] 
LANA, Wanderson [pelo e-mail]. p.1-9. Brasil, 24, nov. 2019 (não publicado). 
10 Gean Nunes de Araújo [NUNES, Gean]. Questionário Espetáculo concreto CONTRA-FLECHA 2. 
[Entrevista cedida a] LANA, Wanderson [pelo e-mail]. p.1-4. Brasil, 25, nov. 2020 (não publicado). 
15 
 
uma conexão ideal entre espaço e política. Uma vez que a distribuição 
territorial das várias formas de poder político se transformou profundamente 
ao longo da história, o território também serve como uma expressão dos 
relacionamentos entre tempo e política (GOTTMANN, 2012, p. 523). 
 
 A partir desse conceito de território como espaço físico, passo a pensar no conceito 
simbólico de território e mais, pensar o território político e geográfico, também e principal-
mente, construído de sentidos através das subjetividades. Quem decidiu que a área demarcada 
hoje para a comunidade indígena Boe-bororo foi a própria comunidade indígena? Se não, essa 
construção aconteceu a partir de como eles veem seu próprio território físico em contraste com 
seu território legítimo? A montanha sagrada que agora é de um fazendeiro e está cercada de 
arames ainda faz parte do seu território? Por isso, caminho com a definição de territorialização 
e reterritorialização trazida por Haesbaert em que afirma ao falar do tempo presente: 
 
Toda desterritorialização implica, obrigatoriamente, uma reterritorialização, 
pois é inerente ao ser humano, aos grupos culturais, a recomposição da 
sociedade em bases territoriais [...] mais do que o desaparecimento dos 
territórios, o que estamos presenciando é consolidação de novas formas de 
organização territorial. (HAESBAERT, 2002, p.31) 
 
 Dessa forma é bem mais prudente pensar que as comunidades se organizam dentro de 
um território geográfico, porém as fronteiras são construídas levando em consideração também 
suas subjetividades: religiosidade, cultura, alimentação, modos de criação... para assim pensar-
mos na existência de um lugar, e digo lugar como a identificação com o ser, da identificação 
da comunidade com o seu território. 
O Lugar, respaldo-me em Milton Santos (2014) para afirmar isso, é o espaço em que a 
comunidade se entende geograficamente e simbolicamente como pertencente e agente mante-
dor e modificador desse espaço. O lugar emerge como a possibilidade de ritualizar semelhanças 
e conflitos e, principalmente, onde a arte se faz possível. No lugar “[...] cooperação e conflito 
são a base da vida em comum [...] mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, 
responsáveis, por meio da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da esponta-
neidade e criatividade”. (SANTOS, 2014, p. 322) Milton Santos (2014) não está falando so-
mente de espaço geográfico, porque, apenas ele, não é capaz de se constituir como um lugar. 
Esse se organiza com as mais diversas subjetividades das pessoas que ali estão e é dependente 
das relações afetivas e de pertencimento inerentes a essas pessoas. 
 Pensando território, caminho para o lugar, e no lugar é onde as pessoas conseguem se 
aninhar, encolher. É espaço protegido para que possam ser e fortalecerem suas potencialidades. 
Gaston Bachelard em A Poética do espaço diz “encolher-se pertence à fenomenologia do verbo 
16 
 
habitar. Só habita com intensidade aquele que soube encolher” (2005, p.15). Ou seja, o nosso 
lugar está marcado por uma proteção palpável e também subjetiva que nos permite descanso e 
segurança, como um ninho em que o passarinho se sente protegido e pousa. Por isso, é perigoso 
pensarmos território como uma construção apenas geográfica e entendermos a importância das 
subjetividades e suas territorialidades na busca do lugar. E que esse lugar em concreto CON-
TRA-FLECHA e em Boé são resultados de tantas misturas estéticas e de tanta interferência 
causada pelos desencadeamentos da colonização que as fronteiras se tornam porosas e, por ve-
zes indeterminadas, caminhando para um entre lugar (SANTIAGO, 2000), apresentando-se 
como uma Dramaturgia Mestiça. E uma dramaturgia mestiça é aquela cujaa simples existências 
já acarreta discussões ligadas ao território e aos resquícios da colonização. Uma Dramaturgia 
Mestiça é sempre decolonial, como mostrei mais à frente11. 
 Percebendo-me como um corpo presente na construção de Boé/Red Appropriation e das 
relações de afeto que o Grupo Faces mantém com o TEAF, entendi que era necessário evitar a 
ideia de afastamento das obras para tentar entendê-las e mergulharei pela Cartografia como 
método de pesquisa e através da obra de Suely Rolnik, CARTOGRAFIA ou de como pensar 
como um corpo vibrátil (1989), assumir como pertencente a pesquisa que é viva e pulsa e se 
modifica enquanto navegamos por ela. Pensar como se deu a construção dos dois processos 
enquanto esses processos continuam em cartaz e se modificando em cada retorno a sala de 
ensaio e/ou criação por meio da Cartografia é a melhor maneira de compreender como a dra-
maturgia dos dois trabalhos se constituem em sentido para atores de subjetividades e territoria-
lidades diferentes. 
 No método cartográfico não há um procedimento definido, o próprio pesquisador pode 
encontrar a fórmula de organizar seu trabalho, seus procedimentos. “A diretriz cartográfica se 
faz por pistas que orientam o percurso da pesquisa sempre considerando os efeitos do processo 
do pesquisar sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados” (KASTRUP, 2014, 
 
11 Para pontuar o Termo Decolonial e não confundirmos com descolonial segue Trechos do artigo Notas 
Desobedientes: Decolonialidade e a Contribuição Para A Crítica Feminista à Ciência de Vivian Matias 
dos Santos (2018)Como se diferencia "descolonial" e "decolonial"? Primeiramente, é relevante pontuar 
que as diferenciações postas por estes termos articulam-se como teóricas e políticas. O decolonial 
encontra substância no compromisso de adensar a compreensão de que o processo de colonização 
ultrapassa os âmbitos econômico e político, penetrando profundamente a existência dos povos 
colonizados mesmo após “o colonialismo” propriamente dito ter se esgotado em seus territórios. 
O decolonial seria a contraposição à “colonialidade”, enquanto o descolonial seria uma contraposição 
ao “colonialismo”, já que o termo descolonização é utilizado para se referir ao processo histórico de 
ascensão dos Estados-nação após terem fim as administrações coloniais, como o fazem Castro Gómez 
e Grosfoguel (2007) e Walsh (2009). O que estes autores afirmam é que mesmo com a descolonização, 
permanece a colonialidade. 
 
17 
 
p.17). A autora apresenta então oito pistas que servem como referências para se pensar o mé-
todo, mas sem hierarquizá-las e sem decretar a totalidade do método, mas um conjunto de linhas 
em conexão. Cada uma dessas pistas foi construída através da aplicação do método cartográfico 
feita por pesquisadores distintos: 
 
01. Indissociabilidade entre o conhecimento e a transformação, tanto da reali-
dade quanto do pesquisador; 02. gestos da atenção cartográfica: o rastreio, o 
toque, o pouso e o reconhecimento atento; 03. (Não representar objetos, mas 
sim) de acompanhar processos; 04. Três movimentos-funções: de referência, 
de explicitação e de produção e transformação da realidade; 05. (Observar 
que) ao lado dos contornos estáveis do que denominamos formas, objetos ou 
sujeitos, coexiste o plano coletivo das forças que os produzem, além de defi-
nirem a cartografia como prática de construção desse plano; 6. A recusa do 
objetivismo positivista não deve conduzir à afirmação da participação de in-
teresses, crenças e juízos do pesquisador, concluindo que objetivismo e sub-
jetivismo são duas faces da mesma moeda; 7. A importância da imersãodo 
cartógrafo no território e seus signos; 8. A ideia de que a alteração metodoló-
gica proposta pela cartografia exige uma mudança das práticas de narrar. 
(KASTRUP, 2014, p.12-14) 
 
 Para Suely Rolnik (1989) há uma diferenciação de muita importância na raiz geográfica 
da palavra com o método de pesquisa apresentado. Para os geógrafos, afirma Suely Rolnik, a 
cartografia - diferentemente do mapa, representação de um todo estático - é um desenho que 
acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem. E vai 
além quando afirma que as paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, 
nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – 
sua perda de sentido – e a formação de outros mundos que se criam para expressar afetos con-
temporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos. Sendo tarefa 
do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja 
mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, e que 
devore as que lhe parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que se 
fazem necessárias. Antes de tudo, afirma Rolnik, “O cartógrafo é um antropófago”. (ROLNIK, 
1989). 
 Atento às possibilidades e perigos, navego na metodologia cartográfica de suas maneiras 
distintas. Com Boé/Red Appropiation do Teatro Faces de primavera do Leste, utilizo-me de 
entrevistas do elenco de forma escrita estruturada e falada através de relatos livres, conversas 
particulares, registros fotográficos, o autorrelato e as minhas próprias memórias como partici-
pante do processo cênico. Com o concreto CONTRA-FLECHA do Teatro Experimental de Alta 
18 
 
Floresta utilizo-me registros fotográficos, e registros de vídeo, análise do texto, entrevistas es-
critas estruturadas e semiestruturadas, conversas por plataformas online através de relatos livros 
e a minha experiência de expectador e produtor do espetáculo em Primavera do Leste. 
Além da Cartografia, utilizei-me da performance na pesquisa, apresentada por Jean-Luc 
Moriceau e Isabela Paes (2004). Os autores falam da impossibilidade do distanciamento, visto 
que ao participar, acompanhar e entrevistar, o olhar já foi afetado e tudo que for produzido a 
seguir será o resultado do palpável e do sensível. E “o sensível não é a sensibilidade ou o sen-
timentalismo individual, ela é essa forma partilhada de ordenar e moldar a experiência estética” 
((MORICEU e PAES, 2004, p. 111). Assim, a minha experiência como ator/performer do pro-
cesso, em contraste e interação com as demais experiências, pretende construir detalhes só pos-
síveis na experiência de ver nascer, contribuir e continuar fortalecendo o trabalho. Se no teatro 
performativo a construção da personagem perde espaço para o nosso corpo presença, na pes-
quisa enquanto performance apresentada por Moriceau e Paes o relato do pesquisador afetado 
pelo objeto de pesquisa é primordial para entendermos detalhes que o afastamento (não credi-
tado pelos autores, já que é inimaginável, por exemplo, participar de um ritual tradicional de 
passagem de uma comunidade que desconhecemos pela primeira vez e não ser, de algum modo, 
afetado) não consegue prover e que para a arte, principalmente, são tão caros e necessários. 
 
Como dissemos, a comunicação científica neutraliza esse tecido sensível, 
agindo como se ele não existisse, como se ele fosse o “ruído” da comunicação. 
Podemos dizer que a comunicação científica gostaria de ser transmitida de 
cérebro a cérebro, se limitar às significações ou ao sensato, e é por isso que 
ela privilegia as representações. O sentido veiculado é preferencialmente in-
telectualizado, descontextualizado, “Asseptizado”. [...] A experiência estética, 
o sensível, pode assim ser objeto de estudo, mas não o meio de comunicação 
ou veículo de uma parte indissociável do sentido. (MORICEAU e PAES, 
2004, p. 113) 
 
 Assim, o estudo compreendeu 03 (três) Etapas – Contextualizações de lugar em discus-
são com contexto de grupo e, também, as características da Floresta Amazônica Mato-Gros-
sense e do Cerrado; 2 – Apresentação das territorialidades trazidas pelos processos cênicos do 
Teatro Faces e do TEAF; 3 – Coleta de informações através de entrevistas sobre o processo de 
montagem de Boé/Red Appropriation e concreto CONTRA-FLECHA. A partir dessas etapas 
dividi a tese em 06 (seis) partes: quatro capítulos propriamente ditos, além da introdução, das 
considerais finais e da dramaturgia de Lúcio Pessôa nos anexos. 
 Após esta introdução, no segundo capítulo apresentei as cidades em que os grupos são 
sediados, características econômicas e sociais, população e como a comunidade interage com a 
19 
 
arte. Apresentei, em seguida, as histórias de fundação e fortalecimento do Teatro Faces e do 
TEAF em suas cidades, como se estruturaram e como mantém viva a prática de teatro de grupo, 
característica muito forte nas cidades de Mato Grosso. Além disso, com o Teatro Faces, foi 
feito um trajeto por seus textos e montagens evidenciando a reticente pesquisa sobre o território 
a morte. Já com o TEAF apresentei os textos e as montagens que evidenciam uma relação com 
a cidade e as memórias dos atores do grupo no processo migratório da região da Amazônia 
mato-grossense. 
 No terceiro capítulo, a partir dos dois processos cênicos, refleti sobre os conceitos de 
território, territorialidade, lugar, entre lugar e não lugar na perspectiva de entender como a arte 
constrói territórios subjetivos e afetivos que, durante as apresentações, se tornam lugares geo-
gráficos que ritualizam a partilha do sensível (RANICIÈRE, 2011) na construção de uma dra-
maturgia mestiça. Como suporte para essa discussão trouxe Milton Santos e a Natureza do 
Espaço (2014), Gaston Bachelard com A Poética do Espaço (2005) Gilles Deleuze através de 
Espinosa e a Filosofia prática (2002), Rogério Haebeart com Desterritorialização na Obra de 
Deleuze e Guatarri (2002) e Marc Augé e seu texto Não lugares – Introdução a uma antropo-
logia da supermodernidade (1994). Caminhei, então, para o urgente debate sobre os processos 
de colonialidade promovido pela Europa Ibérica, a princípio, e que mantém raízes sociais, po-
líticas, culturais e incute na arte uma hierarquia de qualidade que nos afasta de nossas potencias 
criativas tentando impor um jeito de ser e de se fazer arte, que tem como forte interesse a ma-
nutenção da colonização. Walter Mignolo e a Desobediencia Epistémica: A retórica de la mo-
dernidad, Lógica de la colonialidad, y Gramática de la descoloniadad (2010) e Aníbal Quijano 
com Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina (2005) deram suporte a essa 
discussão. Amparo-me, também, aos conceitos de Crioulização de Édouard Glissant (2005), 
da Mestiçagem de Serge Gruzinski e da Mestiçagem Cultural de Amálio Pinheiro (2020). 
 No Terceiro capítulo apresento as poéticas de montagem do processo cênico Boé/Red 
Appropriation, descrevendo aspectos da direção coletiva, da dramaturgia expandida da luz, da 
maquiagem, da música, dos desenhos dos corpos e do que chamo de território de apresentação. 
Evidenciando a escolha pela não utilização de um texto escrito e, por conseguinte, de um texto 
falado em cena, mostrando as problemáticas de uma mudança de organização hierárquica no 
grupo e de como entender a importância de se estar e sentir-se territorializado foi primordial 
para continuidade e fortalecimento do processo cênico. Além de evidenciar a Mestiçagem Cul-
tural presente no processo. Para demonstrar o que seria uma mestiçagem cultural: 
 
20 
 
[...] na mestiçagem cultural, o acento não se coloca mais em totalizações 
unitárias, mas nos encadeamentos (sintaxe) do bordado ou mosaico. Ainda 
trilhando esse pensamento, as noções de descontinuidade, inacabamento e não 
ortogonalidade estão na base da constituição mentale empírica, situação de 
escritura ao aberto [...] procedimentos de composição retirados das estruturas 
do ambiente urbano (saltos bruscos de um assunto para o outro, solavancos de 
direção, profusão de falas e vozes, etc.) (PINHEIRO, 2009, 23-24). 
 
 No quinto capítulo passei para a análise das entrevistas feitas com os atores e direção 
do espetáculo concreto CONTRA-FLECHA abordando os mesmos aspectos de território, e lugar 
na possibilidade de compreender como o espetáculo conseguiu através do entrecruzamento das 
memórias trazidas pelo elenco, juntamente com a história de fundação de Alta Floresta e com 
os relatos de outras pessoas da cidade apresentar o desenho de uma Alta Floresta construída por 
trabalhadores inspirados por sonhos de uma vida melhor e de uma terra boa para morarem em 
contraste com a presença de garimpeiros e pecuaristas em uma outra relação com o território. 
Apresentei, ainda, as poéticas de criação da música, cenário, luz e demais dramaturgias nesse 
processo cênico performativo. 
 A partir desse caminho percorrido que chamei de capítulos, pretendi mostrar a força da 
relação do cerrado e da floresta na construção da dramaturgia do Teatro Faces e do Teatro 
Experimental e como o fato de estarem ou pertencerem a esses biomas afeta desde o texto a ser 
apresentado, seja pela fala ou pelo corpo, imagem e demais dramaturgias dos processos cênicos, 
incutido a percepção dos processos de colonialidade e se posicionando contra essas raízes co-
loniais tão caras a toda América Latina. Como me corrigiu o ator Ronaldo Adriano do TEAF 
quando perguntando sobre como era ser sediado na região da Amazônia Mato-Grossense: 
 
O Teatro Experimental de Alta Floresta não é sediado na Amazônia mato-
grossense, ele é da Amazônia mato-grossense. Sua trajetória se dá como a de 
milhares de pessoas e organizações, nasce dentro de um discurso e lógica da 
colonialidade e de dentro desta matriz acaba por adotar – em certos momentos 
de sua trajetória – o discurso do colonizador. Mas, graças as inquietudes 
próprias do teatro, também soube enxergar por frestas que mostram uma outra 
lógica. Logo cedo passou a se colocar no lugar de discutir e questionar as 
narrativas oficiais em suas obras, sejam artísticas ou políticas. (ADRIANO, 
2020, p.9, não publicado). 
 
 Por ser fundador do Grupo Teatro Faces e participar de todos os processos de montagem, 
inclusive em Boé/Red Appropriation em que me faço presente desde as primeiras discussões, 
fica perceptível um olhar mais profundo aos detalhes que em relação ao concreto CONTRA-
FLECHA do TEAF com o qual não mantenho a mesma relação. Nas reflexões sobre o Faces 
consigo me esgueirar sozinho, muitas vezes, através de minhas próprias memórias, anotações e 
21 
 
registros, já no caso do TEAF é necessário, quase sempre, mais atenção e cautela para que eu 
não me perca na riqueza de informações levantadas e produzidas pelo grupo. Isso pode trazer a 
falsa impressão de maior dedicação com o Cerrado do que com a Floresta. Destino o mesmo 
respeito, o mesmo tempo e a mesma dedicação à análise dos dois trabalhos que contribuem 
como objeto dessa tese para demonstrar as características de uma Dramaturgia Mestiça. 
 Mais do que falar sobre território e dramaturgia, como pesquisador performer, sinto-me 
impactado pela quase total invisibilidade que os grupos sediados longe dos grandes centros são 
sujeitados – seja relacionado aos outros estados, seja relacionado ao estado de Mato Grosso. O 
Teatro Faces e o TEAF são grupos vanguardistas na criação de espaços de discussão do teatro 
nacional, como espaço de trânsitos artísticos, são grupos realizadores de festivais, mantedores 
de Ponto de Cultura, criadores de escolas de teatro e projetos de formação de plateia. Precurso-
res na implantação e formação dos primeiros profissionais das Artes Cênicas em um curso em 
Mato Grosso na cidade de Primavera do Leste12 e, inspiradores como na construção de seu 
próprio teatro, na cidade de Alta Floresta. O teatro que se desenvolve nessas cidades movimenta 
a população e fortalece os discursos decoloniais e explicita como a não percepção de nosso 
caráter mestiço, principalmente nas artes, acarreta a formação de pequenas metrópoles que as-
sumem a potência da criação e transforma as demais cidades e regiões somente em receptoras 
universais. Por isso, vejo como fundamental a pesquisa sobre Boé/Red Appropriation e con-
creto CONTRA-FLECHA para mostrar como pulsa de maneira potente a Dramaturgia Mestiça 
no Cerrado e na floresta amazônica de Mato Grosso. 
 
 
 
12 Curso semipresencial de Licenciatura em Teatro ofertado pela UnB (Universidade de Brasília) através 
da UAB (Universidade Aberta do Brasil) de Primavera do Leste, com vestibular no ano de 2010, início 
das aulas em 2011 e os primeiros formandos no final de 2014 e no início de 2015. O curso agora é 
ofertado na UAB de Barra do Bugres. 
22 
 
2. CONTEXTOS DE CRIAÇÃO DE “BOÉ RED/APPROPIATION” ECONCRETO 
CONTRA-FLECHA 
2.1 Primavera do Leste: cidade no Cerrado Mato-Grossense 
 Em minha dissertação O menino e o céu: o trágico no teatro para infância e juventude 
apresentada em 2014 (programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea 
ECCO/UFMT), sob a orientação da Professora Maria Thereza de Oliveira Azevedo sobre a 
tragédia no espetáculo “O menino e o céu” montado pelo Teatro Faces contextualizei Primavera 
do Leste. Ao revisitá-la, percebo muitas mudanças, principalmente no crescimento. Importante 
salientar que em 2014 eu completava 29 anos de idade e 14 anos vivendo nesse município, 
menos da metade de minha existência; hoje, com 19 anos vivendo aqui, me vejo e me percebo 
mais ligado à cidade e percebo como a arte a redesenha a todo o momento com muita potência 
e dinâmica ocupando espaços, descentralizando-se e garantindo o acesso desde às comunidades 
centrais, até às comunidades periféricas e rurais. 
 
Figura 1- Foto aérea de Primavera do Leste-MT 
 
 Fonte: Arquivo Prefeitura Municipal de Primavera do Leste, 2020. 
 
 Primavera do Leste está localizada ao Sul de Mato Grosso e ao Leste da capital Cuiabá, 
tem uma população de 52.066 (cinquenta e dois mil e sessenta e seis) (IBGE, Censo de 2010), 
agora, segundo uma projeção em 2018 do próprio IBGE, estamos em torno de 61.038 (sessenta 
e um mil e trinta e oito) habitantes, sendo a grande maioria da população residente em área 
urbana. Com dados divulgados pelo Ministério da Economia e amplamente massificado em 
23 
 
jornais impressos e online, consolidou-se como a terceira cidade com o maior volume de ex-
portação e a 48a em importância na balança comercial brasileira. 
 
Além de terceira em Mato Grosso, o município assumiu a 48a posição em 
relevância na Balança Comercial entre as mais de 5.500 cidades de todo país. 
A soja continua sendo o grande carro chefe da produção local, representando 
47% do volume exportado [...] vem o milho com 37% e o restante se completa 
com diversos produtos e subprodutos. (NOTÍCIAS DE MATO GROSSO, s/p , 
2019) 
 
 A agricultura constrói o modo de vida da população que tem sua origem como distrito 
de uma cidade diamantífera chamada Poxoréu, cidade em que nasci e vivi até os quase 14 anos 
de idade. Sua emancipação e crescimento se deu de maneira ordeira (seguindo um plano diretor) 
e rápida, desde o princípio, Primavera do Leste se organizou politicamente de maneira atuante, 
principalmente dada a experiência de migrantes vindos das cidades que formam os três estados 
do sul do Brasil: Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O escoamento da safra acontece 
facilmente por causa de sua privilegiada localização: No entroncamento da MT 130 que liga 
Mato Grosso a Mato Grosso do Sul, com a BR 070 que liga o Estado de Mato Grosso ao Estado 
de Goiás, além de ser o caminho para a capital Cuiabá. 
 
 
Fonte: Arquivo da Prefeitura Municipal de Primavera do Leste, 2020 
 
Figura 2 – Mapas de Primaverado Leste 
24 
 
 
 Cito o texto encontrado no site da Prefeitura Municipal de Primavera do Leste em ja-
neiro de 2021, como história oficial da emancipação política-administrativa do município: 
 
Primavera do Leste era chamada de Bela Vista das Placas, Rodovia 070, Km 
150, Entroncamento Paranatinga. A Fundação e implantação do projeto 
Cidade de Primavera ocorreu no dia 26 de setembro de 1979, projetada pela 
Construtora e Imobiliária Consentino. 
Com um vertiginoso crescimento populacional, no ano de 1981, face ao seu 
franco desenvolvimento, Primavera do Leste é elevada a categoria de distrito, 
pertencente ao município de Poxoréo, começando assim, a dar os primeiros 
passos em busca de sua independência política. 
A partir daí, vislumbrando um futuro promissor, uniram-se forças 
representantes e lideranças do distrito até que, em 24 de agosto de 1984, foi 
criada a Comissão Pró-Emancipação do distrito, composta por vinte e seis 
abnegados pioneiros que escolheram por unanimidade, Darnes Egydio Cerutti 
para presidi-la. 
Como primeira sugestão, a comissão acatou o nome de Primavera D`Oeste, 
para o novo município pleiteado, nome este rejeitado pela Comissão de 
emancipação da Assembléia Legislativa Estadual, pois o mesmo estava 
incorreto geograficamente em relação a localização no estado. Em vista disto, 
no dia 27 de junho de 1985 , por maioria simples, definiu-se que o novo 
município deveria se chamar Primavera do Leste, sendo de imediato rejeitadas 
as demais sugestões como Nova Primavera e ou Alto Primavera. 
Cumpridas todas as demais formalidades legais, burocráticas e políticas que a 
questão exigia e para felicidade da Comissão de desbravadores e pioneiros, o 
sonho tornou-se realidade. No plebiscito realizado no dia 21 de abril de 1986, 
de 1.142 inscritos, compareceram 741 eleitores, sendo que 704 participantes 
votaram a favor da criação do município de Primavera do Leste.Em 13 de 
maio de 1986, o governador do Estado de Mato Grosso, Julio Campos, assinou 
a Lei estadual n°. 5.014, que outorgava ao distrito, a categoria de Município 
de Primavera do Leste. 
Com uma área de 5.664 Km², a cidade enfrentou alguns problemas na sua 
fundação mas, assim mesmo, dava-se início a vida político-administrativa do 
Município, com a eleição do primeiro Prefeito, por sinal, um dos pioneiros na 
Região, Sr. Darnes Egydio Cerutti, que teve como Vice prefeito o médico Dr. 
Milton João Braff, vencedores do pleito de 15 de novembro de 1986. 
Nossa jovem cidade, desde sua criação, tem tido um crescimento acelerado, 
com apenas 2 anos de emancipação político-administrativa tornou-se 
Comarca, através da Lei Estadual n°. 5.436 de 03 de maio de 1989, só vindo 
a ser instalada no dia 10 de maio de 1992. 
Deixou de ser Distrito de Poxoréu e passou a ser cidade no dia 13 de maio de 
1986, através da Lei nº 5.014, tendo um crescimento surpreendente, tanto 
econômico quanto populacional. (PREFEITURA MUNICIPAL DE 
PRIMAVERA DO LESTE, s/p , 2021). 
 
 Falar de Poxoréu e sobre o seu passado como um grande território que depois dividiu-
se em Primavera do Leste faz-se importante por conta da forte presença indígena, principal-
mente dos Boe-Bororo, da qual parte o processo Boé/Red Appropiation. Fomos criados para 
25 
 
termos medo dos indígenas, para enxergá-los sempre com um olhar de desconfiança e reprova-
ção. “O índio vai te pegar” eram frases comuns em minha infância evocada todas as vezes que 
queriam nos colocar medo para não caminharmos sozinhos pelo bairro. Jurandir Xavier em seu 
livro Poxoréu e o Garça (1996) fala sobre a dizimação dos Boe-Bororo que dominavam toda a 
região. Dizimação ocorrida através da bala, do álcool e das doenças. 
 Com o declínio dos garimpos de diamantes e com a ascensão da agricultura, Poxoréu, 
com solo completamente diferente de seu antigo distrito, experenciou uma verdadeira diáspora 
de seus habitantes. E mesmo distantes apenas 30 quilômetros, as diferenças culturais são enor-
mes: Poxoréu, colonizada por baianos e maranhenses, Primavera do Leste por paranaenses, 
catarinenses e rio-grandenses-do-sul e mesmo com uma outra relação com a terra e o lugar, 
ainda cultivavam a mesma visão sobre os indígenas, dessa vez de forma mais verticalizada, 
como inimigos do progresso. O que as duas cidades também mantêm em comum é a forte ex-
ploração do solo: Poxoréu atrás das grupiaras e monchões e seus diamantes, Primavera do Leste 
e a monocultura da soja, milho e algodão. 
 Sobre as belezas naturais escrevi em 2014 o que continua representando o município: 
 
A cidade não possui grandes números de espaços de belezas naturais em seu 
entorno, de acordo com o site da Prefeitura Municipal de Primavera do Leste, 
apenas uma Lagoa de águas profundas e cristalinas, chamada Lagoa Azul, 
afastada da cidade, e em uma propriedade particular; e o Rio das Mortes, a 30 
quilômetros da região urbana. Por isso, são os espaços públicos que são 
bastante frequentados, destacando-se, entre eles: a Pista de Caminhada 
(complexo com praça, concha acústica e quadra de tênis) e o Lago Municipal 
(além do lago, possui pista de caminhada e grande extensão gramada, onde 
também são realizados grandes eventos de música). (LANA, 2018, p.20) 
 
 Hoje, o Largo Municipal (conhecido como Largo Municipal) passa por reformas per-
dendo bastante sua região de grama para a construção de pergolados, quadras esportivas e de-
mais equipamentos de lazer modificando-o de espaço ambiental para espaço poliesportivo. 
 Uma das marcas de Primavera do Leste é o investimento em infraestrutura e na quali-
dade de vida. A maioria das casas buscam investir em arquitetura e buscam dialogar com o que 
tem de mais moderno no país. Começou um processo de industrialização e já é possível ver 
empresas multinações como CARGILL13 e IHARA14 já são realidades no município. É percep-
 
13 É uma empresa multinacional com sede em Minnesota (EUA), atua no processamento de alimentos. 
Inaugurou sua sétima indústria em Primavera do Leste em 27/05 de 2009 (sefaz.mt.gov.br) 
14 Multinacional de origem Japonesa especialista em agrotóxicos. Iniciou as obras da indústria em 
Primavera do Leste no ano de 2020 com previsão de inauguração para 2021. 
26 
 
tível a preocupação em não estruturar a economia apenas na agricultura, diversificá-la, princi-
palmente com a indústria, dada as experiências passadas da ferrugem asiática15 que devastou 
inúmeras plantações e atirou a cidade em uma enorme recessão. 
 No setor cultural, grupos artísticos, eventos e demais ações colocam o munícipio no 
mapa das artes de Mato Grosso. A Prefeitura Municipal de Primavera do Leste abriu uma Se-
cretaria de Cultura, Turismo, Lazer e Juventude (SECULT) em 2015, onde tive papel impor-
tante no processo. Foi em 2014 como Chefe da Seção de Cultura da Secretaria Municipal de 
Educação, Cultural, Esporte e Lazer propus e organizei um projeto de abertura de uma secreta-
ria que englobasse apenas a cultura, o turismo, o lazer e a juventude. Apresentei o impacto 
financeiro e a descrição de cargos e funções que foi prontamente aprovada pelo prefeito, Érico 
Piana Pinto Pereira, e de maneira unânime pela câmara de vereadores da cidade. A SECULT 
iniciou seus trabalhos em janeiro em 2015 com o convite para que eu assumisse a pasta como 
seu secretário. Aceitei o desafio e acabei me tornando o primeiro Secretário de Cultura de Pri-
mavera do Leste e mesmo com as mudanças de gestão continuei secretário e fui convidado em 
janeiro de 2021 para permanecer na pasta. 
 A SECULT impulsionou muito as práticas já realizadas. Mantém uma Escola Municipal 
de Música com uma média de 300 alunos frequentes por semestre; uma escola municipal de 
teatro com média de 350 alunos por semestre e a escola municipal de dança com cerca de 900 
alunos por semestre. Ainda conta com Orquestra Sinfónica de Primavera do Leste, Batalhas de 
Rimas, Festival de Culturas Urbanas (um festival que reúneo grafitti, o break, biboy e bigirl, o 
rap, o patins, skate e bicicleta), Festival Castro Alves/Manoel de Barros de Poesia, Festival de 
Dança Tema Cinema, Festival de Cinema Itinerante e o Festival Velha Joana que em 2019 
reuniu 565 atores e técnicos em 10 dias de apresentações com um público superior a 10.000 
pessoas16 e em 2020, mesmo com a Pandemia, realizou atividades presenciais e remotas forta-
lecendo a relação do município com as artes da cena. 
 A SECULT realiza ações populares artísticas e de lazer como o Pôr do sol com MPB 
todos os domingos no Lago Municipal, Bailinho da Pista que também ocorre todo domingo 
 
15 Segundo a descrição de Agrolink (s/p) “A doença é causada pelo fungo Phakopsora pachyrhizi, sendo, 
hoje, uma das doenças que mais têm preocupado os produtores de soja. O seu principal dano é a desfolha 
precoce, impedindo a completa formação dos grãos, com consequente redução da produtividade. O nível 
de dano que a doença pode ocasionar depende do momento em que ela incide na cultura, das condições 
climáticas favoráveis à sua multiplicação. Os danos podem chegar a cerca de 70%. A doença foi 
diagnosticada pela primeira vez no Brasil em 2001. Devido à facilidade de disseminação do fungo pelo 
vento, a doença ocorre em praticamente todas as regiões produtoras de soja do país”. Disponível em: 
<https://www.agrolink.com.br/problemas/ferrugem-asiatica_2241.html > Acesso em out.2021. 
16 Informações da SECULT – Secretaria de Cultura Turismo, Lazer e Juventude 
https://www.agrolink.com.br/problemas/ferrugem-asiatica_2241.html
27 
 
para a melhor idade; Carnaval, 10 dias de festividades de Natal e réveillon com queima de fogos 
que atrai quase a metade da população em apenas uma noite. 
 A cidade investiu nas políticas de biblioteca, livro, leitura e literatura construindo o pro-
jeto de “Biblioteca Containers” que foram instaladas em oito lugares diferentes da cidade, sendo 
uma delas na zona rural. As bibliotecas não possuem cuidadores então o cuidado com o equi-
pamento público depende da própria população, numa política de cidadania. Além de reformar 
a biblioteca municipal e abrir uma biblioteca modelo na comunidade do Primavera 3 e Lotea-
mento Padre Onesto Costa, região com um alto índice de vulnerabilidade e risco social que 
fornece além das práticas de literatura, inclusão digital, uma farmácia e uma subprefeitura. 
 Artistas da música circulam com seus shows por todo o Estado e até mesmo por Estados 
da Região Norte do país. As Artes Visuais além de ganhar em 2018 um salão permanente de 
exposições Salão das águas, financiado pelo poder público municipal, tiveram, com Lívia Car-
valho, prêmio em Londres, em evento da ANAP – Academia Nacional de Artes Plásticas, em 
parceria com a Art Link Eventos Internacionais, que todos os anos realizam exposições de arte 
no exterior para divulgar novos talentos da arte do Brasil. A exposição aconteceu durante o mês 
de outubro na Canning House, em Londres, durante a London Art Week – Brazilian Visions e 
teve a participação de 52 obras de artistas brasileiros, sendo a obra de Lívia a medalhista de 
ouro. 
 No campo das Artes da Cena, o Teatro Faces recebeu o principal prêmio da Funarte para 
o Teatro brasileiro (Myriam Muniz), Prêmio Circula MT 2017 e 2018. Cumpriu temporada no 
mês das crianças no CCBB em São Paulo – SP em 2019; e hoje é uma das principais companhias 
de Teatro de Mato Grosso, fundou um método de ensino que resultou no surgimento do Ponto 
Faces de Cultura e no Projeto Escola de Teatro Faces e impulsionou se tornando uma das prin-
cipais forças na luta por políticas públicas no município. 
 Duas obras sobre a história de Primavera do Leste foram escritas e podem ser facilmente 
acessadas: Primavera (com e sem Flores) de José Antônio de Castro Leite Nogueira (2010) 
organizado através de crônicas numa visão bem particular do autor sobre acontecimentos polí-
ticos do município. E Primavera floresce em Maio de Elizabete Louzano (2018) que acompa-
nha a história de fundação de Primavera do Leste caminhando até a atualidade. Esses dois livros 
contribuem para entendermos através de quais conceitos surgiu o município. 
 Boé/Red Appropriation surgiu como potência dramatúrgica ou possibilidade de pro-
cesso a partir do nosso convívio rotineiro com os indígenas que estão nos supermercados, ban-
cos, pronto-socorro ou pelas ruas, e passamos a discutir e pensar sobre esse contato e sobre esse 
território que tinha a nós todos. Geograficamente não há nenhuma comunidade indígena em 
28 
 
Primavera do Leste, mas várias comunidades indígenas têm na cidade o seu território e, por 
isso, o ocupam sobre olhares recriminatórios e exotizantes. Os desencadeamentos do contato 
nãos permitiram uma harmonia, visto a natureza de discussão territorial que falar sobre a causa 
indígena carrega. Mas decidimos conversar e, afetados pelo equilíbrio da vida, passamos a pen-
sar como é perder alguém para todos nós atores do Teatro Faces, perder de maneira irreversível. 
Quando a palavra morte apareceu, sabíamos o que pretendíamos e sabíamos que estar em Pri-
mavera do Leste, cidade que vimos crescer e que compartilhamos a vivência com o discurso de 
ódio em contraste com nosso posicionamento diante desse mesmo discurso. 
 Boé/Red Appropriation só seria possível em Primavera do Leste pelo simples fato do 
trabalho ser uma construção desse lugar que ajudamos a edificar e, edificado, podemos perceber 
as diferenças culturais são determinantes e mesmo plural ainda há a dificuldade de entender 
“aqueles” com pele vermelha e história diferente de ocupação, aquele que se relaciona de ma-
neira diferente da minha com a natureza e tem outros conceitos sobre propriedade privada. Eu 
percebi ainda que, quando os adultos falavam na infância “o índio vai te pegar” não era apenas 
para que eu tivesse medo, mas também, para que eu tivesse raiva quando adulto. Com a mesma 
força que Primavera do Leste abraça a arte ela também nos fez questionar nossa própria arte e 
a olhar diferente para os lugares que chamamos de nosso território. 
 
2.2 Alta Floresta: cidade na Amazônia Mato-Grossense 
 
Alta Floresta fica localizada no extremo norte de Mato Grosso na divisa com o Estado 
do Pará. A cidade tem sua economia baseada, hoje, na agropecuária, mas em sua fundação a 
mineração foi fator determinante para vinda de pessoas até a região de floresta amazônica em 
que a cidade se encontra. De acordo com o Censo de 2010 realizado pelo IBGE a população da 
cidade era de 49.164 (quarenta e nove mil cento e sessenta e quatro) habitantes e com uma 
projeção de crescimento em 2018 de 51.615 (cinquenta e um mil seiscentos e quinze) habitan-
tes. Um crescimento bem menor e menos acelerado do que vem acontecendo em Primavera do 
Leste. 
Ao buscar informações em páginas do município sobre sua história de formação, depa-
rei-me com textos oficiais (site do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de um 
verdadeiro ufanismo pelo projeto de exploração executado na cidade. Os adjetivos utilizados 
para os “desbravadores” nos colocam diante da grande importância que o espetáculo concreto 
CONTRA-FLECHA – ao falar da perspectiva dos trabalhadores, das pessoas simples – tem para 
29 
 
ajudar a entender o próprio surgimento da cidade, já que a história oficial comemora os bandei-
rantes, o processo de colonização, e é indiferente a seus terríveis desencadeamentos para com 
a floresta. A história oficial é contada através do olhar das pessoas que enriqueceram e possuem 
grande influência no município; já o espetáculo se responsabiliza em contar a história dos mo-
radores que ajudaram com seu suor regado pelo sonho de um futuro melhor, edificaram a ci-
dade, mas por não serem figuras de grande poder aquisitivo tem sua bravura constantemente 
atacada e uma tentativa, recorrente, de serem apagados da história. 
 
A cidade de Alta Floresta foi fundada pelo colonizadorAriosto da Riva, 
apelidado pelo jornalista David Nasser de "O Último Bandeirante", por ter a 
ousadia de penetrar na floresta amazônica e implantar um projeto de 
colonização. Naquele tempo, abrir estradas era um ato de coragem e 
determinação, o trabalho marchava lento, enfrentando árvores gigantes de 
angelins, mogno, castanha-do-pará dentre outras. Em maio de 1976, três anos 
após o começo da abertura da estrada, é que se acabou de desmatar a primeira 
clareira onde a cidade de Alta Floresta iria ser construída. O nome de Alta 
Floresta deu-se em função da própria natureza da região, com mata alta e 
densa, já que o local se encontrava na região da Amazônia mato-grossense. 
Empresa de caráter privado, o chefe, Ariosto da Riva sempre dava a última 
palavra. Mas pela prática de colonizações, Riva se fazia assessorar por pessoas 
tarimbadas em serviços de emergência e imprevistos. Os apodos altissonantes 
dados a Riva provinham do projeto duplo: ao mesmo tempo colonizar e 
pesquisar a Amazônia. Para o êxito da colonização eram necessários 
conhecimentos cabais da natureza local, a fim de lhe tirar o máximo proveito. 
Enquanto abria espaço para o estabelecimento de infraestrutura, abria também 
canteiro de pesquisas agrícolas. O município foi criado a 18 de dezembro de 
1979, através da Lei Estadual nº 4.157. Em 3 de junho de 1980, o Presidente 
da República, João Figueiredo, visitou Alta Floresta e escutou de Ariosto da 
Riva a seguinte frase "...Alta Floresta terá o direito de se orgulhar por ter sido 
a cidade que em tempo recorde - apenas quatro anos - se tornou município, 
fato esse certamente único na história do País". (PREFEITURA MUNICIPAL 
DE ALTA FLORESTA, s/p, 2020) 
 
 Contextualizando com o período – meados da década de 1.970 para o início da década 
de 1.980 – e o momento político que o país vivia, percebemos que desbravar a Amazônia e 
fazer surgir dali uma cidade, caminhava com os projetos de “integração nacional”, o conceito 
de Estado-nação e a marcha para oeste surgida no Estado Novo de Vargas que ignorava as 
múltiplas existências na tentativa de forjar uma única identidade para o Brasil. O que não foi 
muito diferente com o cerrado onde surgiu Primavera do Leste. Sobre a Marcha para Oeste 
Maurílio Dantielly Calonga (2015) afirma: 
 
A Marcha para Oeste foi lançada oficialmente em 1938, com a proposta de 
colonizar as terras da região Centro-Oeste até a Amazônia. O projeto 
governamental incluía a construção de escolas, hospitais, estradas, ferrovias e 
30 
 
aeroportos no interior do Brasil, com o objetivo de integrar e consolidar a 
nação, de acordo com as diretrizes ideológicas do Estado Novo (1937-1945). 
Além disso, incorporou aspectos simbólicos, como a ideia de reserva de 
brasilidade, presente na dicotomia sertão/litoral (...) O confronto entre o 
sertão, reserva de brasilidade, e o litoral, porta de entrada das ideias 
corruptoras da nacionalidade, vindas principalmente da Europa, tornou-se 
temática frequente no debate político e intelectual da época. O 
reconhecimento por parte dos intelectuais ligados ao Estado Novo da 
importância do domínio espacial do território como elemento constitutivo de 
identidade nacional impulsionou o projeto da Marcha para Oeste. A ocupação 
de áreas até então escassamente povoadas tornou-se o eixo central das 
políticas de integração, não obstante, o desafio de construir uma nacionalidade 
em meio à diversidade. (CALONGA, 2015, p.127) 
 
 
 O que faz da história de Alta Floresta ainda mais interessante é a ideia de desmatar para 
progredir, destruir para edificar, poluir para possuir reflexos das políticas desgovernadas, ad-
ministradas por órgãos como a SUDAM - Superintendência para o desenvolvimento da Ama-
zônia, que não levaram em consideração os impactos ambientais e, assim como no Cerrado, as 
comunidades indígenas que ali viviam. 
No livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert A Queda do Céu (2015), um dos relatos de 
Bruce Albert em seu primeiro contato com os Yanomami em 1973: 
 
Meio vestidos com camisetas publicitárias ou de campanhas eleitorais, sujas 
e rasgadas, um grupinho de homens e mulheres caminhavam em fila na lama 
vermelha. Esgueiravam-se no barulho ensurdecedor de caminhões e 
escavadeiras, para pedir aos operários, com sorrisos imperturbáveis, comidas 
roupas, latas e sacos plásticos usados. Eu viria a saber depois que aqueles eram 
sobreviventes do pequeno grupo Yawari, Yanomami da região do rio Ajarani, 
o primeiro a ser atingido pela abertura da perimetral norte. Boa parte deles 
ficou vagando assim, a partir de 1973, pelo traçado da estrada, tanto que o 
missionário os tinha apelidado, numa mistura de português e yanomami, de os 
Estrada T(h)ëri pë (Os habitantes da estrada). (KOPENAWA E ALBERT, 
2015, p. 517). 
 
 Essa descrição foi feita apenas sete anos antes da fundação de Alta Floresta pelo presi-
dente militar João Figueiredo, mas no mesmo período de ocupação, e nos mostra como foram 
tratados o lugar(es) dos povos indígenas na região da floresta amazônica. 
 Já estive por muitas vezes em Alta Floresta, deslocando-me de maneiras diferentes, a 
primeira vez de ônibus, depois de carro, outras vezes de avião. A distância é de quase 1.000 
(mil) quilômetros e mesmo assim percebo inúmeras semelhanças com Primavera do Leste. Seja 
pelo início garimpeiro – já que Primavera do Leste foi distrito de Poxoréu e a primeira prática 
econômica foi o garimpo de diamantes –, e agora relacionado ao agronegócio. Soma-se a esses 
31 
 
aspectos econômicos a densidade demográfica semelhante, e, principalmente, a política de tea-
tro de grupo que tanto o Teatro Faces quanto o Teatro Experimental de Alta Floresta realizam 
em suas cidades. 
 
Figura 3 -Alta Floresta em destaque no Mapa de Mato Grosso. 
 
Fonte: Arquivo pessoal. Fotografia de Fabio Bonadeu, 2020. 
 
Fonte: Arquivo da Prefeitura Municipal de Primavera do Leste, 2020. 
 
Figura 4 - Figura 5: Cidade de Alta Floresta Arquivo 
32 
 
 É perceptível a importância do município em relação aos municípios circunvizinhos, o 
que transformou a cidade em um polo regional. Possui aeroporto com voos regulares da com-
panhia aérea AZUL, grandes atrativos turísticos ligados à exploração da floresta e a observação 
e catalogação de pássaros. 
 Uma situação interessante aconteceu em 2016 quando Eugênio Barba17 esteve em Alta 
Floresta, pelo projeto Encontros Possíveis organizado pela Cia Pessoal de Teatro18, ação que 
reunia pensadores de teatro de todo Brasil para discutirem suas práticas, métodos, para assisti-
rem apresentações e produzirem encontros (com sugere o nome), dentro da Programação do 
Festival de Teatro da Amazônia Mato-Grossense. Eugênio Barba ao saber de uma árvore cen-
tenária pediu para que o levasse, outras pessoas se interessaram e foram juntas. Esse grupo de 
pessoas sentiu-se extremamente tocado pela potência da floresta. Ao voltar para a sede do Odin 
Teather na Dinamarca, inspirado pelo impacto amazônico, Barba começou a trabalhar em seu 
novo trabalho The Tree (2016). 
 
Figura 5- Árvore Gigante em Alta Floresta – Sumaúma Ceiba Pentandra. 
 
Fonte: Arquivo pessoal. Fotografia de Zig Koch. 
 
17 Eugenio Barba (Brindisi, 29 de outubro de 1936) é um autor italiano, pesquisador e diretor de teatro. 
Fundador e diretor do Odin Teatret, criador do conceito da Antropologia Teatral, fundador e diretor do 
Theatrum Mundi Ensemble, e criador da ISTA (International School of Theatre Anthropology). 
18 Companhia de Teatro de Cuiabá formado pelas atrizes e pesquisadoras Juliana Capilé e Tatiana 
Horevich 
33 
 
 O Teatro Experimental viveu situações adversas na cidade, Ronaldo Adriano participou 
da vida política do município até o ano de 2012, a partir daí, acabaram expulsos do Centro 
Cultural e se tornaram pessoas não gratas à gestão de cultura do município. O Grupo resolveu 
construir um Centro Cultural, e enquanto a cidade sofria

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