Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO FACULDADE DE COMUNICAÇÃO E ARTES PROGRAMA DE POS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA DOUTORADO JULIANA CAPILE RIVERA POR UMA POÉTICA CARTOGRÁFICA: estratégias para a construção da dramaturgia e da encenação em EntreNãoLugares. Cuiabá 2021 JULIANA CAPILE RIVERA POR UMA POÉTICA CARTOGRÁFICA: estratégias para a construção da dramaturgia e da encenação em EntreNãoLugares. . Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, da Faculdade de Comunicação e Artes da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito para obtenção do título de doutora na Linha de Pesquisa: Poéticas Contemporâneas. Orientadora: Prof.ª Dra. Maria Thereza de Oliveira Azevedo Cuiabá 2021 Dedico esse trabalho aos parceiros de estrada e de cena: os que eu já encontrei e os que ainda virão. AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, à Julia Varley, por ter aceitado trabalhar conosco nessa obra. Sua generosidade, competência e carinho definiram os rumos do que fizemos juntas. À Eugenio Barba, por sua contribuição e, principalmente, por ter encontrado as cartoneras para nós. Agradeço, também, a todos os professores que tive, porque minha história no teatro foi uma sucessão de encontros felizes que me trouxeram até aqui. Ao Odin Teatret, por ter sido sede de gratificantes trocas e experiências. Meus colegas do Nordisk Teaterlaboratorium, essa tese tem um pouco de vocês. Minha gratidão pelas contribuições e por ajudar a manter essa teia de afetos que nos une em um mesmo idioma. À minha orientadora, Maria Thereza de Oliveira Azevedo, agradeço imensamente. Seu zelo por esse trabalho corresponde com tudo que você fez e faz pelos artistas-pesquisadores de Mato Grosso. Meu muito obrigada aos professores e técnicos do PPG ECCO, que lutam para que um dos melhores programas de pós-graduação da UFMT não morra estrangulado por uma política retrógrada. Aos meus colegas do grupo de pesquisa Artes Híbridas: contaminações, intersecções, transversalidades, pelas contribuições em nossas reuniões. Agradeço aos parceiros, colaboradores e profissionais que nos ajudaram a criar EntreNãoLugares: Ana Wolf, Anna Stigsgaard, Claudio Coloberti, Cristiane Puertas, Douglas Peron, Eleonor Bovon, Elka Victorino, Fausto Pro, Fred Gustavos, Jane Klitzke, Karina Figueredo, Karla Izidro, Paul Hales, Rina Skeel e Sabrina Martello. Às doutoras e doutor, membros da banca, por sua generosidade e competência, cujas observações contribuíram para que a pesquisa assumisse um novo rumo. E, finalmente, à minha amada Tatiana Horevicht, parceira de todas as cenas. Ao seu lado todo caminho é prazeroso. O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES). RESUMO No contexto do teatro contemporâneo, a dramaturgia deixou de ser uma palavra ligada somente ao texto e passou a caracterizar as conjugações dinâmicas entre elementos da encenação, como corpo, voz, espaço e objetos de cena. A dramaturgia passa a ser vista como parte da encenação e utiliza um conjunto de procedimentos em sua elaboração localizados na instabilidade das junções limítrofes das territorialidades e na estabilidade das tradições teatrais. Essa construção dramatúrgica concebida na encenação é definida por nós, para esta tese, como poética cartográfica. O objeto da pesquisa é a sondagem desses procedimentos na construção da poética de um espetáculo cênico elaborado em consonância com a tradição teatral do Terceiro Teatro e teatro laboratório difundido pelo grupo dinamarquês Odin Teatret. O campo de experiência é o processo de construção da obra teatral EntreNãoLugares, da Cia Pessoal de Teatro (MT) Nordisk Teaterlaboratorium (DK), com direção de Julia Varley (Odin Teatret). O processo de montagem da obra se assemelha ao processo da cartografia como procedimento de criação artística, tal como pensada por Deleuze, Guattari e desenvolvida por Rolnik, Passos e Kastrup. A metodologia utilizada na tese emprega levantamento bibliográfico, análise auto descritiva, revisão bibliográfica e estudo de caso, além de se apoiar nos cadernos de anotações do processo. Na compreensão da dramaturgia em campo expandido, a mediação no trabalho teatral e as questões acerca da performatividade, é fundamental os escritos de, respectivamente, José Sánchez, Erika Fischer-Lichte e Eleonora Fabião. Para observar a complexidade da dramaturgia contemporânea, autores como Sílvia Fernandes, Patrícia Leonardelli, José da Costa e Stephen Baumgärtel. Na abordagem do teatro laboratório e Terceiro Teatro, Eugenio Barba, Jerzy Grotowski, Jane Turner e Patrick Campbell. Também são utilizados depoimentos das atrizes do Odin Teatret como Julia Varley, Roberta Carreri, Else-Marie Laukvik e Iben Nagel Rasmussen. Que dramaturgia é essa elaborada na tradição do Terceiro Teatro? É possível que a dramaturgia esteja vinculada ao processo de encenação e a criação da dramaturgia seja a própria encenação. A elaboração da obra passa a ser um procedimento de criação que pode se apropriar de metodologias como a cartografia realizando, assim, uma poética cartográfica. Palavras-chave: Dramaturgia contemporânea; encenação; Terceiro Teatro; cartografia; EntreNãoLugares. ABSTRACT In the context of contemporary theater, dramaturgy is no longer a word linked only to the text; rather it has started to characterize the conjugations between differing elements of staging, such as body, voice, space and scenic objects. Dramaturgy can now be seen as part of staging, and uses a set of procedures in its elaboration, located in the instability of borderline junctions between territorialities, and in the stability of theatrical traditions. This dramaturgical construction conceived in the staging is defined by us, for this thesis, as a cartographic poetics. Our object is to probe these procedures in terms of the construction of the poetics of a theatrical performance, elaborated in accordance with the theatrical tradition of the Third Theater and laboratory theater, as disseminated by the Danish theater group Odin Teatret. We used, as a field of experience, the devising process of the show EntreNãoLugares (BetweenNoPlace), by Cia Pessoal de Teatro (MT) and Nordisk Teaterlaboratorium (DK), directed by Julia Varley (Odin Teatret). The making process employed cartography as a dramaturgical principle, a concept first elaborated by Deleuze and Guattari, and further developed by Rolnik, Passos and Kastrup. Methodologically, the thesis employs a literature review, self-descriptive analysis, and a case study, in addition to relying on artist notebooks. In order to understand dramaturgy as an expanded field, the role of mediation in theatrical work and questions regarding performativity, the writings of José Sánchez, Erika Fischer-Lichte and Eleonora Fabião are referred to, respectively. To better delineate the complexity of contemporary drama, authors such as Sílvia Fernandes, Patrícia Leonardelli, José da Costa and Stephen Baumgärtel are referenced. In terms of approaching laboratory theater and the Third Theater, we drew on the writing of Eugenio Barba, Jerzy Grotowski, Jane Turner and Patrick Campbell. We also used the testimonies of OdinTeatret actresses, such as Julia Varley, Roberta Carreri, Else-Marie Laukvik and Iben Nagel Rasmussen. What type of dramaturgy is elaborated in the Third Theater tradition? It is possible that this approach to dramaturgy is linked to the staging process, and the creation of the dramaturgy is the staging itself. The elaboration of the performance becomes a creative procedure that can appropriate methodologies such as cartography, thus realizing a cartographic poetics. Keywords: Contemporary dramaturgy; staging; Third Theater; cartography; BetweenNoPlaces (EntreNãoLugares). LISTA DE IMAGENS Figura 1 - Ikarus Stage Arts ...................................................................................................... 64 Figura 2 - Cena das viúvas ..................................................................................................... 106 Figura 3 - Cena da benzedeira ................................................................................................ 109 Figura 4 - Cena de Guilhermina ............................................................................................. 113 Figura 5 - Castelo de papelão ................................................................................................. 114 Figura 6 - Cena dos vestidos .................................................................................................. 115 Figura 7 - Partitura Zélia Gattai .............................................................................................. 116 Figura 8 - Construindo cemitério............................................................................................ 117 Figura 9 - Cemitério de livros................................................................................................. 118 Figura 10 - A última "lápide" ................................................................................................. 120 Figura 11 - Mágicas ................................................................................................................ 123 Figura 12 - Registro no caderno de anotações ........................................................................ 125 Figura 13 - Cena das vivandeiras ........................................................................................... 126 Figura 14 e 15 - O jornal quebra a realidade .......................................................................... 140 Figura 15 - Pisando no cotidiano ............................................................................................ 141 Figura 16 - Autoras de sua própria história ............................................................................ 142 Figura 17 - Ensaio em busca do figurino - Sala Vermelha (2016) ......................................... 185 Figura 18 - Ensaio - Sala Branca (2016) ................................................................................ 185 Figura 19 - Ensaio com primeiro carrinho – Sala Preta (2016) .............................................. 186 Figura 20 - Ensaio com Atlas - Sala Preta (2016) .................................................................. 186 Figura 21 - Ensaio com o segundo carrinho - Sala Preta (2017) ............................................ 187 Figura 22 - Ensaio das músicas com Anna Stigsgaard - Sala de Música (2017) ................... 187 Figura 23 – Ensaio da cena: Regras para os refugiados - Sala Preta (2018) .......................... 188 Figura 24 - Estudando a dobradura do jornal – Sala Branca (2019) ...................................... 188 Figura 25 - Cena do jornal - Sala Branca (2019) .................................................................... 189 Figura 26 - Ensaio regras para os refugiados com terceiro carrinho - Sala Branca (2019) .... 189 Figura 27 - Regras para os refugiados - Sala Branca (2019) .................................................. 190 Figura 28 - A Princesa Nausicaa - Sala Branca (2019) .......................................................... 190 Figura 29 - Preparação de luz para a estreia - Sala Vermelha (2019) .................................... 191 SUMÁRIO I INTRODUÇÃO: O INÍCIO DA LONGA JORNADA ................................... 12 Cia Pessoal de Teatro, a dramaturgia autoral e a academia..................................................... 12 O encontro com o Odin Teatret ............................................................................................... 15 EntreNãoLugares e o processo poético ................................................................................... 19 A pesquisa da dramaturgia que se desdobra em observação da poética .................................. 19 Por que seguir a rota da dramaturgia? ..................................................................................... 21 A poética observada em EntreNãoLugares e a relação com o Terceiro Teatro ...................... 22 A cartografia no processo poético e os principais conceitos ................................................... 23 1 CAPÍTULO 1: RASTREANDO AS PEGADAS .............................................. 27 1.1 A revolução do Drama Moderno .......................................................................... 28 1.2 Os reformadores da virada do século.................................................................... 30 1.3 O narrador, o sujeito rapsódico e a autoficção ..................................................... 34 1.4 O século XX e o “Novo Teatro” ........................................................................... 36 1.5 A dramaturgia contemporânea .............................................................................. 38 1.6 A contribuição das artes visuais ........................................................................... 41 1.7 Dramaturgia expandida ......................................................................................... 42 2 CAPITULO 2: DRAMATURGIA DO TERCEIRO TEATRO E AS ROTAS POSSÍVEIS ............................................................................................................................ 50 2.1 Para além do texto escrito: a dramaturgia que desenha poesia no espaço ............ 50 2.2 A Dramaturgia Expandida do Terceiro Teatro: quando o ethos se transforma em poética.......................................................................................................................................53 2.2.1 Terceiro Teatro: uma cultura de teatro de grupo .................................................. 55 2.2.2 Cultura teatral e os modos de fazer....................................................................... 58 2.2.3 A prática dramatúrgica do Terceiro Teatro .......................................................... 62 2.2.4 Treinamento, exercícios, partituras: a dramaturgia orgânica ................................ 65 2.2.5 Partitura e subpartitura .......................................................................................... 68 2.2.6 Os exercícios na construção da dramaturgia ........................................................ 70 2.2.7 Para tecer a dramaturgia a partir de partituras ...................................................... 73 2.3 Os procedimentos da sala de ensaio ..................................................................... 74 2.4 O espectador como cocriador do espetáculo ........................................................ 77 2.4.1 Os dois elencos: atores e espectadores ................................................................. 78 2.4.2 Dramaturgia evocativa e a relação com o espectador ........................................... 79 2.4.3 Opostos complementares ...................................................................................... 84 2.5 Construção da dramaturgia evocativa: Rumo a uma poética cartográfica ........... 85 2.5.1 Cartografia: o anti-método.................................................................................... 86 2.5.2 A cartografia na elaboração do espetáculo ........................................................... 88 2.5.3 A escrita como mapeamento ................................................................................. 90 2.5.4 A dramaturgia cartografada da poética ................................................................. 91 2.5.5 Poética cartográfica .............................................................................................. 92 3 CAPÍTULO 3 - ENTRENÃOLUGARES: A CONSTRUÇÃO POÉTICA ..... 96 3.1 A preparação da jornada: a tripulação .................................................................. 99 3.2 O início da jornada: os primeiros mapas ............................................................ 100 3.3 Mapeando histórias e depoimentos: lidando com outras vozes .......................... 101 3.4 A sala de ensaio como território a ser habitado .................................................. 102 3.5 O mapa complexo das territorialidades .............................................................. 102 3.6 O Outro como o Diverso..................................................................................... 104 3.7 Equipando os navios: os materiais dramatúrgicos .............................................. 104 3.8 A obra de lastro: um procedimento antigo que não se aplica ............................. 105 3.9 Juntas, no mesmo barco ...................................................................................... 107 3.10 Içando as velas: a criação de partituras e seus procedimentos ........................... 107 3.11 Procedimento com imagens e objetos: dramaturgia evocativa ........................... 111 3.12 A memória como procedimento ......................................................................... 120 3.13 Estratégias para partituras ................................................................................... 122 3.14 Procedimentos de registro: caderno de anotação ................................................ 125 3.15 O “tudão” e o “haja o que hajar”: nossos procedimentos ................................... 125 3.15.1 Nossa briga com Ulisses: uma questão de gênero .............................................. 128 3.16 A voz que viaja e faz viajar ................................................................................ 129 3.17 Procedimentos da dramaturgia sonora ................................................................ 133 3.18 A rede de afetos: disposição para receber críticas e contribuições ..................... 134 3.18.1 Ulisses se amarra no mastro para ouvir o canto da sereia: é ou, não é? ............. 135 3.18.2 A estratégia do excesso: Lidar com as necessidades fez surgir materiais .......... 136 3.18.3 As narradoras de sua própria história ................................................................. 138 3.19 Quando impedimentos influenciam a dramaturgia ............................................. 143 3.20 Procedimentos da tradição teatral que promovem estratégias ............................ 144 3.21 O extracotidiano na cantiga finlandesa e a gordura sobre manteiga .................. 146 3.22 Por último, as Catadoras de Papel ...................................................................... 149 CONCLUSÃO: DE UM AFLUENTE ATINGI O MAR .............................. 151 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 155 ANEXO A - TEXTO DE ENTRENÃOLUGARES ......................................... 162 ANEXO B – FOTOS PROCESSO DE MONTAGEM .................................................... 185 ANEXO C – FICHA TÉCNICA - ENTRENÃOLUGARES ............................................. 192 12 INTRODUÇÃO: O INÍCIO DA LONGA JORNADA Dentre as muitas descobertas que essa tese me trouxe, uma delas eu considero especial: sempre trabalhei alinhada com o ethos do Terceiro Teatro e não sabia disso. Foi preciso vivenciar uma imersão na sede do Odin Teatret1, na Dinamarca, e mergulhar no estudo sobre o Terceiro Teatro para reconhecer que eu e minha companhia de teatro pertencemos a uma “tribo” teatral na qual falamos um mesmo idioma. Antes de iniciar a pesquisa acadêmica em torno da elaboração dramatúrgica de EntreNãoLugares2, o Terceiro Teatro era uma denominação que se referia a um teatro datado, ultrapassado, que pertencia somente a grupos de teatro e não a companhias, como era o caso da Cia. Pessoal de Teatro. Além disso, acreditava que fazer parte de um ethos coletivo internacional poderia restringir a capacidade criativa da nossa companhia e nos aliar a uma ideia de “seita” teatral. Eu estava enganada. Cia Pessoal de Teatro, a dramaturgia autoral e a academia 1 Odin Teatret é um grupo de teatro laboratório desenvolvido por Grotowski. Foi fundado por Eugenio Barba em 1964, na Noruega, e posteriormente migrou para Dinamarca. Trabalha com dramaturgia do ator baseada em partituras de ações físicas. Possui 40 membros, oriundos de 11 países e 4 continentes. Odin Teatret criou cerca de 79 performances, realizadas em 66 países em diferentes contextos sociais. (Baseado em informações do site do grupo: www.odinteatret.dk 2 Espetáculo coproduzido por Cia Pessoal de Teatro e Nordisk Teaterlaboratorium, com direção de Julia Varley, dramaturgia: Julia Varley, Juliana Capilé e Tatiana Horevicht; atuação: Juliana Capilé e Tatiana Horevicht. O espetáculo foi financiado pelo Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz 2015 e Fundo Municipal de Fomento à Cultura de Cuiabá 2016. Estreou no NTL Festival, (Holstebro, Dinamarca) em fevereiro de 2019. http://www.odinteatret.dk/ 13 A Cia Pessoal de Teatro3 foi criada por mim, minha companheira Tatiana Horevicht4 e Karla Izidro5, durante nossa graduação na UFOP/MG. Eu e Tatiana estávamos no curso de Direção Teatral e Karla cursava Música. Por influência dos nossos professores, que haviam estudado nos livros de Eugenio Barba e seguiam os embasamentos da Antropologia Teatral, a companhia já nasceu alinhada com o espírito do teatro laboratório. Tínhamos uma tríade de trabalho, que envolvia pesquisas com técnicas de atuação, música cênica e dramaturgia autoral. Fizeram parte da companhia, em Ouro Preto: Marco Túlio Müller, Antônio Apolinário, Clóvis Domingos e Nicollas Lopes. A montagem de estreia foi Primeira Pele (2001), para participar do Festival de Monólogos organizado pelo Centro Acadêmico da UFOP. Escrevi o texto para Tatiana atuar e eu dirigir, mas trocamos os papéis no meio do caminho. Com Tatiana na direção, mergulhamos em uma pesquisa que incluía a música cênica composta junto com as partituras físicas. Para a composição da dramaturgia textual trabalhei a história de duas mulheres: minha amiga Mariana e D. Aparecida, nossa vizinha em Ouro Preto: ambas sofriam com problemas psíquicos. Na época eu trabalhava com depoimentos na elaboração de dramaturgia autoral e nosso nome é “Pessoal” não para designar uma trupe de teatro, mas porque nosso interesse eram as histórias íntimas, secretas, pessoais. Eu trabalhava a partir de depoimentos e confissões criando uma narrativa ficcional a partir do que eu chamava de “desabafos” colhidos de histórias de outros. Mais tarde, passei a buscar um narrador oculto nos meus textos. Havia sempre o ponto de vista de algum personagem, ou vários. Como no caso do experimento cênico Casa de Asterion sob o ponto de vista do Minotauro, no qual me baseava no conto de Jorge Luís Borges como obra de lastro6. Ou, nos dois monólogos Eu Sempre Acabo..., e ...Esbarrando no 3 Cia Pessoal de Teatro nasceu em Ouro Preto (MG), em 2001, com o espetáculo Primeira Pele. Monta Antígone, História do Zoo e Criadouro, além de diversos experimentoscênicos, como: O Chá, A Ratoeira, Casa de Asterion, entre outros. Participa do projeto Trilhas da Cultura – MG, do primeiro Fórum das Artes Brasil/Portugal e do Festival de Inverno de Ouro Preto. Em 2005 muda-se para Cuiabá onde realiza o Núcleo de Pesquisas Teatrais, que em 2012 se torna Encontros Possíveis – seminário internacional de teatro contemporâneo. Participa do Amazônia das Artes, do FITO de Ourense, na Espanha e representa MT no encontro nacional Primeiro Ato, do Itaú Rumos. Espetáculos:Criadouro (2009), Cidade dos Outros (2010), Réquiém para Dançar (2014), Criame (2018), EntreNãoLugares (2019). Participou do Palco Giratório 2014, do Festival de Teatro Amazônia Mato- grossense, Festival Velha Joana de Primavera do Leste, Mindelact de Cabo Verde e NTL Festival da Dinamarca. Atualmente é artista residente do Nordisk Teaterlaboratorium (DK) e tem como integrantes: Juliana Capilé, Tatiana Horevicht e Elka Victorino. 4 Tatiana Horevicht é atriz de teatro e cinema, e encenadora, com curso técnico no CEFAR-BH e graduação na UFOP-MG, mestra e doutoranda no PPG-ECCO - UFMT, cujo foco de pesquisa é o espaço como propositor na encenação. Proponente do seminário internacional de teatro Encontros Possíveis. É uma das fundadoras da Cia. Pessoal de Teatro, desde 2001, e minha companheira de vida e de trabalho. 5 Karla Izidro é formada em Música na FAP (Faculdade de Artes do Paraná / PR), desenvolve em Curitiba trabalhos como preparadora vocal e compositora de música cênica para espetáculos e trilhas. Vencedora do Prêmio Gralha Azul de Melhor Canção em 2013.Foi integrante da Cia Pessoal de Teatro na sua formação, em 2001 em Ouro Preto 6 Nomino “obra de lastro” a obra, literária ou dramatúrgica, na qual me baseio para escrever uma livre adaptação. 14 Vermelho, onde dois personagens, em monólogos diferentes, conversam um com a foto do outro sobre um mesmo evento. Também nesse período iniciei minha apropriação de obras autorais. Adaptei Terra em Transe e A Hora da Estrela para teatro, por encomenda dos colegas de curso. Escrevi, para o TCC da Tatiana, uma livre adaptação do texto As Criadas, de Jean Genet, que retomamos recentemente. No entanto, para o meu TCC montei História do Zoo, de Edward Albee, ipsis literis. Não mudei uma vírgula. Precisava experimentar montar o texto de outra pessoa para entender que, para mim, era fundamental me apropriar dos textos e mudá-los. Nessa época eu era conhecida como dramaturga na universidade e todos me pediam textos. Pensava que minha função era escrever e me dediquei a isso. Até então, dramaturgia era, apenas, o trabalho com o texto teatral. O entrelaçamento das dramaturgias na encenação era um trabalho físico da atuação, que envolvia uma assimilação do texto pelo corpo. Ou seja, nessa época a encenação, para mim, tinha início no trabalho com o texto e os primeiros dias de ensaio eram em volta de uma mesa, sentada, com o texto na mão. Quando eu e Tatiana nos mudamos para Cuiabá, em 2005, deixamos a outra metade da companhia em Ouro Preto com várias turnês e festivais na bagagem. Precisamos interromper as atividades e começar de novo. Passamos a desenvolver, então, o Núcleo de Pesquisas Teatrais7 na tentativa de encontrar parceiros para dialogar. Iniciava nosso braço pedagógico e a companhia ficou mais conhecida pelas oficinas e seminários do que por seus espetáculos, que passaram a ser raros. Em Cuiabá a companhia ganhou parcerias de grandes artistas como Daniela Leite, Lilian Marques e Karina Figueredo, além de várias associações profícuas e gratificantes, como: Fora do Eixo, Cia D’Artes do Brasil, Spectrolab, Elka Victorino, Fred Gustavos e tantas mais. Para aprimorar nossos conhecimentos participamos de eventos nacionais, festivais e encontros. Parte da renda da companhia é frequentemente convertida em cursos e investida para ampliar nossos horizontes. Estávamos construindo uma rede nacional de trocas e práticas teatrais. Ao ingressar no PPG – ECCO e me aproximar dos estudos de performance através do Grupo de Pesquisas Artes Híbridas: contaminações, intersecções, transversalidades8, vivi uma 7 Projeto criado por nós em 2009 para fomentar a pesquisa prática e o estudo teórico do teatro contemporâneo. 8 O grupo de pesquisa Artes Híbridas: intersecções, contaminações, transversalidades foi criado e cadastrado no CNPQ em 2009, liderado pela prof.ª Dra. Maria Thereza de Oliveira Azevedo. Tem aderência à linha de Pesquisa Poéticas Contemporâneas do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, ECCO da UFMT. É organizado em quatro linhas de investigação: Artes da cena, territórios e fronteiras; Cinema e transversalidades; Feminismos, decolonialidade e autobiografias; Transferências e deslocamentos na arte contemporânea. As investigações em nível de mestrado e doutorado, na sua maioria, são realizadas por artistas- pesquisadores/pesquisadoras que desenvolvem suas propostas de criação, no lugar onde vivem. Essas práticas poéticas são transversalizadas pelas discussões que ocorrem no interior do grupo, fornecendo suporte teórico para pesquisas em poéticas, visto que o Programa não é de Artes Cênicas. 15 crise com a dramaturgia. Eu ainda queria escrever histórias, mas acreditei que não cabia mais no teatro a dramaturgia autoral e fabular. Passei, então, a escrever roteiros para cinema para seguir lidando com a fábula, o personagem e o conflito. No teatro, desenvolvi uma escrita mais contaminada, intersticial, mais próxima do Dramaturgismo9, ou seja, recolhia textos, promovia a criação das palavras a serem usadas, ao invés de escrever sozinha e de próprio punho. Minha orientadora Dra. Maria Thereza de Oliveira Azevedo, a Marithê, é cineasta e diretora de teatro, uma junção que me ajudou a pensar o meu fazer artístico. Da mesma forma, o programa de pós- graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT alargou meus limites para além do teatro, incluindo artes plásticas, cinema e performance. No mestrado, e posteriormente no doutorado, fui apresentada aos autores vindos da filosofia, antropologia, sociologia, psicologia. O teatro passou a ser acompanhado de um pensamento teórico e crítico, conectado com o tempo presente. Quando a Cia Pessoal de Teatro montou Cidade dos Outros (2010) com a direção de Amauri Tangará eu ainda era responsável pelo texto, mas a maneira como lidava com essa autoria havia mudado. Eu achava que quanto mais elementos do meio eu conseguisse incluir no texto mais interessante ficaria. Ter montado o espetáculo em regime de imersão, na sede da Cia D’Artes do Brasil10 em Chapada dos Guimarães fez toda a diferença, pois promoveu uma maior interação entre nós criadores11. O encontro com o Odin Teatret Eu e Tatiana Horevicht conhecemos o Odin Teatret durante o Odin Week Fest de 2011, em uma das viagens para aprimoramento técnico. Foi impactante. Tínhamos aulas com Augusto Omolú12, palestras com Eugenio Barba13, oficinas com Julia Varley e Roberta Carreri, e 9 O termo dramaturg foi cunhado por Lessing para definir o trabalho teórico que precede a encenação. O Dramaturgismo, como utilizado no Brasil, é o trabalho de pesquisa para a montagem. O dramaturgista não escreve o texto, e sim, recolhe e organiza o material teórico. 10 Cia D’Artes do Brasil é a companhia de teatro de Amauri Tangará e Tati Mendes. Trabalham em parceria com o Teatro O Bando, de Portugal. A sede fica no meio do cerrado, em Chapada dos Guimarães/MT. 11 O trabalho dramatúrgico serviu de campo de experiência para minha pesquisa acadêmica no mestrado: CAPILÉ RIVERA, Juliana. CIDADE DOS OUTROS: contaminações de um processo poético. Orientadora: Maria Thereza de Oliveira Azevedo. 2014. 110 f. Dissertação (Mestrado Estudos de Cultura Contemporânea) – PPG-ECCO, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2014. 12 Augusto Omolú, baiano, trabalhou no Odin Teatret de 2002 a 2013. Desenvolveua Dança dos Orixás, criando repertório a partir dos movimentos de dança das entidades do Candomblé. Foi assassinado na Bahia no dia 2 de junho de 2013. A Cia Pessoal, em sua homenagem, montou Réquiem para Dançar (2014). 13 Eugenio Barba é italiano e um dos encenadores que reformulou o teatro do século XX. Foi assistente de direção de Jerzy Grotowski e seu principal divulgador. Criou o Odin Teatret em 1964, em Oslo, Noruega, onde vivia como migrante, mudando para Dinamarca, a atual sede, em 1966. Nominou sua pesquisa de Antropologia Teatral e é o principal idealizador da ISTA – Internacional School of Theatre Antropology e, até 2019, foi diretor do Nordisk 16 assistimos os espetáculos do repertório do grupo. Desde esse momento, nossa aproximação maior foi com Julia Varley14. Por sua habilidade poliglota Julia nos traduzia nas ocasiões nas quais não conseguíamos nos comunicar direito em inglês e traduzia para nós o que não podíamos compreender. A primeira vez que vi uma peça do Odin notei que os espetáculos não trabalhavam com texto previamente escrito. Eles tinham uma outra relação que eu ainda não entendia muito bem, mas que produzia um efeito inquietante. A princípio isso me atraiu porque nos seus livros Barba menciona a dramaturgia o tempo todo, que nada tem a ver com texto. Cada ator fala em seu idioma: a dinâmica não estava nas palavras, mas em todo o espetáculo, isto é: não era texto, era corpo em cena. Com a intenção de compartilhar com os fazedores de teatro de Cuiabá organizamos o primeiro Encontros Possíveis15, um seminário internacional de teatro contemporâneo, com a participação de Roberta Carreri e Jan Ferslev, ambos do elenco Odin Teatret. Estreitamos os laços com o Nordisk Teaterlaboratorium16 a partir desses seminários, a fim de estudar melhor o que era dramaturgia para o Odin Teatret. Mais do que a técnica ou os fundamentos da Antropologia Teatral, o que me chamou a atenção era a cultura teatral cultivada pelo grupo. Me interessou, naquele momento, saber como o grupo se formou, as histórias de vida, os conflitos internos e as soluções que criaram. Para mim havia uma ligação entre o que eles faziam e quem eles eram. E mais, como haviam permanecido juntos por tanto tempo? Por trás dessa pergunta estava o interesse em descobrir os arranjos internos e suas dinâmicas de sobrevivência. Saber o que os mantinha unidos significava adentrar nos segredos internos que poderiam revelar os ajustes, negociações, soluções e conflitos. Em 2015, Tatiana e eu ficamos três meses em Holstebro com o intuito de pesquisar essas questões. Entrevistamos todo o elenco, inclusive Barba e sua família. O que Teaterlaboratorium. Escreveu muitos livros e artigos, participou de centenas de seminários e dirigiu mais de 79 espetáculos, com intercâmbio cultural com mais de 66 países. Vive em Holstebro, Dinamarca, onde é a sede de seu grupo. 14 Julia Varley nasceu em Londres, em 1954, e se mudou ainda jovem para a Itália, onde iniciou sua carreira artística nos grupos Teatro del Drago, Centro Sociale Santa Marta e Circolo La Comune. Se juntou ao Odin Teatret em 1976. Além de atriz e diretora de vários espetáculos, é diretora artística dos festivais Transit e NTL Festival. Participa da concepção e organização do Magdalena Project, uma rede de mulheres do teatro contemporâneo, e da ISTA, a Escola Internacional de Antropologia Teatral. 15 A Cia Pessoal de Teatro produz o seminário internacional Encontros Possíveis, através do Núcleo de Pesquisas Teatrais, desenvolvido desde 2009, com o intuito de estabelecer um intercâmbio entre grupos teatrais e interessados, de um lado, e profissionais de áreas diversas, personalidades da cultura e grandes mestres do teatro. O Odin Teatret participou das edições de 2012, 2013, 2015 e 2016. 16 Nordisk Teaterlaboratorium é a instituição que abriga o Odin Teatret, e promove, ainda, diversos projetos de pesquisa, difusão e produção teatral. Possui um programa internacional de residências artísticas, do qual a Cia Pessoal de Teatro faz parte como artista residente desde 2017. 17 ficou claro, a partir desses encontros, foi a lealdade do grupo com seu ofício e com a parceria compartilhada no trabalho com as obras. Tatiana e eu já nos identificávamos com o teatro laboratório, mas, como artistas latino- americanas, tínhamos preconceito contra o Terceiro Teatro. Recebemos, na nossa formação, os respingos das discussões da ISTA e dos encontros de teatro de grupo, onde foi dito que “Terceiro Teatro” era um termo pejorativo para designar o teatro do “Terceiro Mundo”, ou seja, o teatro de grupo latino-americano. Com razão, os grupos da América do Sul não queriam se associar a um termo que os designavam como inferiores, subdesenvolvidos, selvagens. Foi em Holstebro, convivendo com artistas do Terceiro Teatro de tantos países, que ressignificamos o termo. Foi determinante, também, o encontro com a pesquisa dos professores da Manchester Metropolitan University, Jane Turner e Patrick Campbell, durante sua estada no OTA (Odin Teatret Archives). Nossas conversas ampliaram minha percepção, e mais, me fizeram perceber a ligação do Terceiro Teatro com um ethos com o qual me identificava. O termo Terceiro Teatro, quando foi cunhado na década de 1970, se relaciona com a “marginalidade, o autodidatismo, a dimensão ética e existencial do ofício e a vocação social” (BARBA, 2010a, p. 186) de um teatro realizado por artistas que se preocupavam com as causas dos problemas sociais, mais do que com seus efeitos. O mesmo termo foi utilizado por Octavio Getino e Fernando “Pino” Solanas para designar um “Terceiro Cinema”17, periférico e engajado politicamente, realizado entre as décadas de 1960 e 1970, ou seja, o termo fazia referência a uma terceira via e era recorrente sua utilização na época. Quando Barba se apropriou do termo buscava nominar o teatro que conheceu em seu encontro com grupos da América do Sul, que praticavam uma arte comprometida política e socialmente com seu tempo e inventavam procedimentos próprios e autodidatas, criando heranças para si mesmos. O Terceiro Teatro, atualmente, é uma comunidade de artistas que opera nas dimensões existencial e ética do ofício teatral, que consideram a cultura teatral como campo ético, poético e pedagógico. Comumente criam sua própria tradição teatral e inventam seus próprios procedimentos de criação. Compactuam uma mesma prática laboratorial diária com vocação para o autodidatismo e se localizam nas margens de sua realidade cultural, contestando seu tempo e espaço. O Terceiro Teatro pratica os fundamentos do teatro realizado em grupo e amplia para a prática artística individual, de artistas sem um coletivo. Por isso, Terceiro Teatro 17 Para o artigo Hacia um tercer cine: Apuntes y experiencias para el desarollo de um cine de Liberación em el tercer mundo, texto de 1969. Em: https://cinedocumentalyetnologia.files.wordpress.com/2013/09/hacia-un-tercer- cine.pdf Acessado em 10/07/2021. https://cinedocumentalyetnologia.files.wordpress.com/2013/09/hacia-un-tercer-cine.pdf https://cinedocumentalyetnologia.files.wordpress.com/2013/09/hacia-un-tercer-cine.pdf 18 trata de um ethos, de um modo de fazer que tem relação com a forma que o artista se compromete com o teatro que realiza, independentemente de ser em grupo, coletivo ou solo. Eu e Tatiana nos identificamos com a comunidade de artistas do Terceiro Teatro porque queríamos fazer parte de um coletivo maior, mais amplo, que não se relacionava apenas com uma realidade local, mas sim, possuía um propósito que unificava artistas no mundo todo. Unificava, e não homogeneizava, quer dizer, a diversidade é a tônica principal. No nosso encontro com outros grupos e artistas que se identificavam com o Terceiro Teatro conhecemos trabalhos diversos, de estéticas diferentes, como o Yuyachkani, do Peru, cujos espetáculos revolvem opassado indígena andino ou o Teatro Tascabile, da Itália e Teatr Om, da Dinamarca. Durante muito tempo nós, artistas da cena, vivemos com uma ideia de que havia um jeito certo de fazer teatro, como se realmente houvesse um método, um sistema, uma fórmula, apesar da maioria dos encenadores/encenadoras serem avessos a essa ideia. Continuávamos insistindo na ideia de que havia um caminho pré-determinado para a elaboração de um espetáculo. Com isso, copiamos fórmulas, imitamos experiências, repetimos o que outros fizeram, tentando encontrar esse “jeito certo de fazer”. Não há um jeito certo quando se trata de produto artístico. O que existe são técnicas, que podem ou não ser aplicadas, depende de onde se quer chegar. É como cartografar18 um tema: é a experiência que desenha as rotas. É ao longo da experiência que se aprende a ouvir as necessidades de um trabalho, porque quando se está elaborando um trabalho cênico, tudo o que foi vivido até ali, importa para a obra: desde as pessoas envolvidas e o que elas trazem para o trabalho, até o local onde essa obra será elaborada. Fazer parte de uma comunidade teatral como o Terceiro Teatro não significa ter um método ou sistema de trabalho. Nem se trata de um “jeito certo” de fazer. O Terceiro Teatro não busca um alinhamento estético e nem mesmo técnico. Está mais para uma confraria que compactua de ideais semelhantes, humanos e cênicos. Para mim, significa pertencer a uma família teatral e reconhecer que, apesar de nossas diferenças, concordamos que o teatro é mais do que nossa profissão. É nossa existência. 18 A cartografia utilizada como método social serve de apoio para pensar no processo determinando o percurso e auxilia na análise dos dispositivos utilizados para o desenvolvimento de uma obra artística. Cartografar, nesse caso, passa a ser a experiência em si. 19 EntreNãoLugares e o processo poético Encontrei com o tema de EntreNãoLugares pela primeira vez quando estava em Holstebro realizando a série de entrevistas com o Odin Teatret, em 2015. A experiência em um país estrangeiro me despertou para a questão das migrações, mas, me deparar com as estratégias de adaptação dos integrantes do grupo em um país diferente forneceu um panorama mais amplo19. Quando eu e Tatiana conversamos com Julia sobre a possibilidade de ela nos dirigir em um novo espetáculo queríamos uma oportunidade de vivenciar a cultura teatral do grupo e ver como funcionava, na prática, a elaboração da dramaturgia de uma montagem. O trabalho iniciou em 2016, quando passamos no edital Myriam Muniz de Teatro, da Funarte, que financiou até a penúltima viagem à Holstebro. A última viagem foi paga pela Cia. Pessoal de Teatro. As viagens foram: 15 de janeiro a 12 de março de 2017; 20 de julho a 15 de agosto de 2017; 20 de dezembro de 2017 a 15 março de 2018 e 16 de dezembro de 2018 a 18 de fevereiro de 2019. A estreia aconteceu no 1st NTL International Theatre Festival and Meeting20, dia 01 de fevereiro de 2019. Trabalhar com Julia Varley foi um privilégio. Sua generosidade e rigor técnico transformaram para sempre nosso teatro e nos inseriu na rede extensa e prolífica de artistas residentes do Nordisk Teaterlaboratorium. A experiência que vivemos na montagem de EntreNãoLugares serviu de campo de pesquisa para meus questionamentos em torno da dramaturgia no teatro. A pesquisa da dramaturgia que se desdobra em observação da poética Para estudar os procedimentos para a elaboração de EntreNãoLugares precisei trancar matrícula do doutorado, entre os anos de 2017 e 2018, para avançar um pouco mais na montagem. Durante o avanço da pesquisa eu ainda estava sendo guiada pela ideia de 19 Os integrantes do Odin Teatret e Nordisk Teaterlaboratorium são, em sua maioria, estrangeiros na Dinamarca, vindos da Itália, Inglaterra, Canadá, Chile, Índia, Noruega, com ex-integrantes de países como Brasil, Espanha, Colômbia, Argentina e outros. O idioma oficial do setor de administração é o dinamarquês, da sala de ensaio do grupo é o italiano, dos simpósios, seminários, palestras e oficinas é o inglês e espanhol. 20 Em 2019, entre os dias 30 de janeiro e 3 de fevereiro, o Nordisk Teaterlaboratorium promoveu o primeiro NTL Festival, com o tema The Laboratory Spirit (O Espírito do Laboratório). Além da apresentação de espetáculos, palestras e demonstrações de trabalho, o evento comportou um seminário, conduzido por Jane Turner e Patrick Campbell, ambos doutores do Departamento de Artes Contemporâneas da Manchester Metropolitan University, da Inglaterra. No seminário discutiu-se questões em torno do teatro laboratório: sua prática, os treinamentos, as produções e, a organização interna de trabalho: o ethos que move os adeptos do Terceiro Teatro. 20 dramaturgia quanto escrita de texto. Meu interesse era entender como a dramaturgia de EntreNãoLugares estava sendo construída, já que não utilizamos texto previamente escrito, nem dramaturgia autoral; o texto é um mosaico de recortes, excertos, citações, o que me levou a observar a intertextualidade no processo. Algumas questões apareciam como problema da tese: Que dramaturgia era essa e quais suas características? Quais foram os procedimentos utilizados para a elaboração da dramaturgia de EntreNãoLugares? Como esses procedimentos foram criados? Acreditava que a resposta era um procedimento dramatúrgico e que estava diante de uma escrita que havia sido elaborada seguindo padrões da cartografia. Mais tarde entendi que a dramaturgia, a elaboração de materiais da atuação e a encenação haviam sido construídos ao mesmo tempo. Não se tratava mais de texto e sim, de procedimentos de criação. Essa tese foi desenvolvida dentro de um programa interdisciplinar, na linha de pesquisa em Poéticas Contemporâneas. A linha de pesquisa me permite tratar aqui da elaboração da poética de um espetáculo teatral observando seu processo de construção que segue a tradição do teatro laboratório difundido pelo grupo dinamarquês Odin Teatret e seu diretor, Eugenio Barba e do qual a diretora, Julia Varley, é integrante desde 1976. Nessa construção, dramaturgia, atuação e encenação se misturam utilizando procedimentos como estratégia para a criação teatral. Criação de partituras cênicas e vocais, resolução de tarefas, repetição e excesso são alguns procedimentos que serão abordados adiante. A montagem esteve aliada, ainda, a um mergulho nos valores éticos do Terceiro Teatro com o qual nos relacionamos através dos colegas do Nordisk Teaterlaboratorium. O Terceiro Teatro é a nominação dada a uma comunidade internacional ampliada de artistas e grupos de teatro, que cultivam um ethos comum e desenvolvem sua poética a partir de uma prática pedagógica expandida. Se desenvolve em torno da cultura teatral criada por um determinado grupo de artistas, onde todos compartilham um mesmo território criativo. Essa proximidade conferiu o tom pedagógico da pesquisa teatral, como ensaios com a presença de observadores aprendizes e a disposição de todos em contribuir com o espetáculo. Nesta tese, nominamos de poética cartográfica a estratégia que organiza os procedimentos para a confecção da trama dramatúrgica realizada simultaneamente com a criação de cenas, derivadas do trabalho da atuação e com a conjunção dos elementos teatrais. Designa um conjunto de procedimentos criados na elaboração de uma obra que dizem respeito aos vários níveis do urdimento da criação cênica. Ou seja, a poética cartográfica é uma forma de chegar a um resultado que evidencia o processo e que é decorrente das escolhas subjetivas dos criadores. Esse procedimento tem como característica a utilização de diversos recursos 21 dramatúrgicos, mas está calcado na tradição teatral do teatro laboratório difundido por Jerzy Grotowski e Eugenio Barba. Por que seguir a rota da dramaturgia? Na conjuntura do teatro contemporâneo,a dramaturgia está além da criação de um escritor dramaturgo e pode ser entendida, também, como um procedimento que mapeia as conexões dos elementos da cena para conjugá-los, formando uma trama invisível que pretende dialogar com todos os sentidos do espectador. Essa dramaturgia foi amplamente abordada por Lehmann (2007) com a provocação do termo “pós-dramático”, que gerou muito debate, mas, levanta a questão dos procedimentos para elaboração da criação artística e a proximidade entre cena e performance21. As abordagens contemporâneas para a elaboração dramatúrgica não excluem a dramaturgia tradicional e não estamos tratando de um processo que “evolui” para outro. A dramaturgia tradicional continua sendo amplamente utilizada em montagens teatrais, que operam do texto para a cena e que partem do trabalho de um dramaturgo-escritor ou dramaturga-escritora. No entanto, tratamos aqui de uma dramaturgia praticada nos moldes do teatro laboratório e utilizada na prática do Terceiro Teatro. Ou seja, uma dramaturgia executada pela encenação e atuação, que confere mais ênfase para a cena do que para as palavras ditas pelo elenco. Quando a dramaturgia não está baseada no texto, mas naquilo que se produz articulando os elementos da encenação com a atuação, passa a ser composta a partir de procedimentos utilizados como disparadores para a criação de cenas. O termo dramaturgia passa a ser uma operação, em vários níveis, que procede nos interstícios, no entre, não mais dependente do discurso para fazer sentido para quem assiste. No caso da dramaturgia de EntreNãoLugares, o sentido brota das conexões entre, principalmente, texto falado ou cantado e partitura cênica. Em EntreNãoLugares, a dramaturgia foi elaborada durante o percurso de montagem baseado na criação de partituras de ação física. Aborda a questão dos refugiados, migrantes e deserdados da terra, citando a odisseia de Ulisses, personagem de Homero, para tratar da migração humana. A peça é conduzida por duas catadoras de papel que encontram uma caixa 21 Lehmann revisa sua posição e acrescenta que não entende o pós-dramático como um programa a ser aprendido. Segundo ele, pós-dramático é um conceito que visa abranger uma série de estéticas teatrais muito distintas. E ressalta ainda que, a palavra pós-dramático “não expressa de forma alguma ‘fim do drama’, mas que denota ‘visto em relação com o drama’. Afinal, desenvolvimentos históricos não ocorrem como a sucessão de capítulos de um livro” (LEHMANN et al., 2013, p. 241). 22 cheia de livros dispensados para reciclagem. Na medida em que começam a ler a Odisseia, de Homero, incorporam a aventura do herói grego na sua própria jornada diária de trabalho e mergulham em um passeio pela ancestralidade, repleta de viajantes anônimos e destituídos. A montagem utiliza trechos de outros livros, depoimentos dos familiares das atrizes e de refugiados, matérias de jornais e músicas compostas a partir de pesquisas em sala de ensaio. A poética observada em EntreNãoLugares e a relação com o Terceiro Teatro O objeto de pesquisa dessa tese é sondar a criação de procedimentos na elaboração de uma obra teatral utilizando a construção poética de EntreNãoLugares para auscultar a dinâmica dessa criação. Devido a forma como o espetáculo foi montado foi preciso aprofundar na prática de trabalho do teatro laboratório e nos métodos criativos do Odin Teatret para estabelecer uma linguagem em comum com a encenadora Julia Varley. O Odin Teatret possui uma forte tradição pedagógica mantida pelo grupo desde sua criação, em 1964. Desde então, o grupo mantém uma série de atividades, em sua sede em Holstebro e ao redor do mundo, com o intuito de promover o estudo e a pesquisa teatral. Sua prática segue os princípios do teatro laboratório de Grotowski, de quem Barba foi assistente de direção. A Cia Pessoal de Teatro segue, também, essa tradição. Foi criada dentro da Universidade Federal de Ouro Preto, por alunas dos cursos de Artes e desde o início estava vinculada com programas pedagógicos de teatro. A pesquisa sempre esteve no cerne das nossas produções e o teatro laboratório sempre foi entendido como o “nosso jeito” de fazer teatro. Recentemente, por ocasião da parceria com o Nordisk Teaterlaboratorium, nos aproximamos mais da tradição laboratorial praticada pelo Odin Teatret e nos identificamos com o Terceiro Teatro como uma comunidade de fazedores de teatro que compactuam de uma cultura teatral semelhante. O convívio e a experiência de EntreNãoLugares nos incluiu nessa comunidade e passamos a partilhar procedimentos de criação com os colegas estrangeiros. Nesta tese vamos seguir a trilha da poética que é criada tendo, como um dos propositores, uma cultura teatral, ou seja, o ethos participando ativamente da montagem dramatúrgica. O compartilhamento e troca entre as diferentes culturas teatrais, da Cia Pessoal de Teatro e de Julia Varley, provoca a criação de procedimentos que servirão de disparadores para a criação de cenas. A cartografia utilizada como método, por ser aplicável a processos em que o criador importa tanto quanto a criação, surge como um recurso para acompanhar a dinâmica da criação artística promovida por essas culturas teatrais. O que será chamado aqui 23 de poética cartográfica é a metodologia para essa criação artística produzida por esse processo baseado no compartilhamento entre artistas. A cartografia no processo poético e os principais conceitos A cartografia aborda um campo a ser pesquisado, sem excluir as influências do meio ou dos pesquisadores/pesquisadoras, como é comum em metodologias mais objetivas. Por essa característica é uma metodologia bastante utilizada em pesquisas sociais, que precisam englobar elementos subjetivos em suas observações. Sondaremos a utilização dessa estratégia metodológica na criação de procedimentos para a elaboração de uma obra teatral, construída nos moldes laboratoriais. A obra que nos serve de campo para essa sondagem é EntreNãoLugares, montada em regime de imersão. A escolha deste espetáculo, em especial, se dá pela experiência que significou sua elaboração. O mergulho na cultura teatral do Odin Teatret, de seus colaboradores e parceiros, a convivência com a comunidade do Terceiro Teatro, a imersão na Dinamarca são alguns fatores. Essa experiência influenciou nos meus estudos no doutorado e ainda reverbera para conexões que vão além do palco. Esse estudo aborda os procedimentos utilizados para criação da obra, que juntam dramaturgia, encenação e atuação em um mesmo processo criativo. Apesar de abordar a junção entre encenação, dramaturgia e atuação, a ênfase está na dramaturgia. Interessa saber como foi construída a dramaturgia da obra e quais procedimentos foram utilizados no processo criativo. Entende-se por dramaturgia da obra o encadeamento elaborado, propositadamente, na busca de um sentido, não lógico, mas, cinestésico. Lidamos, portanto, com a dramaturgia em seu sentido expandido, como a engrenagem que despertará os sentidos de quem assiste. O conceito das múltiplas dramaturgias de Barba (2010b) serve de embasamento para essa pesquisa, que concebe a dramaturgia orgânica22 como nível de organização do trabalho cênico, na qual as ações dos atores/atrizes são orquestradas para criar um fluxo que visa atingir o cinestésico23 do espectador/espectadora tecendo, assim, a dramaturgia evocativa e a narrativa. Abordaremos a questão mais adiante. 22 Para aprofundar na elaboração da dramaturgia orgânica, ver os trabalhos das atrizes do Odin Teatret descritos em seus livros: VARLEY, 2010; 2016, RASMUSSEN, 2016, CARRERI, 2011. 23 O que estamos chamando de cinestésico é a capacidade humana de perceber o que se passa em volta utilizando os sentidos do corpo: audição, olfato, visão, tato e paladar. Atingir o cinestésico é uma expressão comum que designa o esforçoem envolver o espectador pela sua capacidade de percepção, e não pela capacidade intelectual. 24 Para abarcar a dramaturgia que reverbera para além do momento da apresentação e a dramaturgia que se utiliza de elementos do cotidiano e das relações para se constituir, recorro a José Sánchez, que elabora a ideia de uma dramaturgia no campo expandido. Sánchez vê a dramaturgia como mediadora entre teatro, atuação e drama. Segundo o autor, dramaturgia é a relação entre o espaço da encenação, o trabalho do ator e a articulação do tema. Para Sánchez (2010), a dramaturgia em campo expandido surge como uma interrogação a partir do entrecruzamento dessas linhas de força e não tem a ver com texto falado, e sim, com mediação. Bernard Dort e Joseph Danan vão discorrer sobre a "mentalidade dramatúrgica" (DANAN, 2010) que trata do pensamento que está na gênese do trabalho e diz respeito às escolhas da encenação, o espaço além da cena e o diálogo com o público. E ainda, a esfera imaterial na qual o espetáculo é construído. Essa noção de dramaturgia como “mentalidade” ajuda a entender a dramaturgia como um procedimento e não uma obra encadernada em uma prateleira de livraria. Erika Fischer-Lichte (2008) vai falar de medialidade e co-presença para se referir às mesmas instâncias que são convocadas na criação de sentidos na dramaturgia expandida. Para ela o público também está presente com o corpo inteiro, não apenas com olhos e ouvidos e se relaciona com o que é apresentado não somente com o intelecto. A poética cartográfica tratada aqui foi inspirada na cartografia como recurso metodológico. A cartografia, a partir da proposta de Passos, Escóssia e Kastrup (2009), apoiados em Rolnik (1989), Guattari (1986) e Deleuze (1995) não é considerada um método, mas um “anti-método”. É adotada no nosso grupo de pesquisa, Artes Híbridas: contaminações, intersecções, transversalidades, para abordar processos artísticos e criativos auxiliando no mapeamento das experiências, vivências e impressões dos processos de criação. A cartografia fornece pistas para a abordagem nas pesquisas, ao contrário de impor métodos. Ademais, a cartografia confia na percepção do pesquisador-cartógrafo/pesquisadora-cartógrafa, porque foca no destino sem descartar o percurso e se assemelha ao próprio procedimento de elaboração de uma obra artística. Assim como na experiência poética, o resultado do trabalho é o produto dos procedimentos aplicados. Sendo assim, observa-se que a cartografia pode ser uma estratégia aplicada, também, na elaboração da dramaturgia teatral, tal como no processo de construção de EntreNãoLugares. O conjunto de procedimentos utilizados na elaboração do espetáculo mais a dinâmica de criação das criadoras é o que chamo aqui de poética cartográfica. Utilizo a palavra poética seguindo o conceito que Aristóteles utilizou para se referir à poesia, atualizado por Pareyson (2005) que ampliou o termo para toda produção no campo das 25 artes. Com isso, o termo poética surge como “criação”, “modo de fazer”, de um processo artístico. A poética cartográfica se refere, portanto, à criação de uma obra artística que utiliza a cartografia como estratégia de elaboração e construção. É o que será abordado nos capítulos para sondar os procedimentos utilizados na elaboração de uma poética cartográfica, construída na conjunção dos elementos constitutivos da cena, tendo EntreNãoLugares como campo de experiência. Para compreender como a dramaturgia passou a ser vista para além do texto há uma breve revisão bibliográfica no capítulo 1, partindo do final do Drama Moderno abordado por Peter Szondi. Seguimos com os provocadores Artaud, Brecht e Henry Müller, pelos reformadores Stanislavski, Grotowski e Barba. Observo a dramaturgia que privilegia os procedimentos aplicados na construção da obra, o que vai desembocar no que estamos chamando de poética cartográfica. No capítulo 2 observo a dramaturgia do ator, os procedimentos de sala de ensaio e a partitura de ação como uma ferramenta da dramaturgia para a criação de sentido. Trato ainda do espectador/espectadora como cocriador/cocriadora e da encenação que busca o efeito cinestésico elaborado para ressoar nos campos sensíveis de quem está presente, lidando com seus sentidos físicos, mais do que com o entendimento lógico. Apesar de tratar do espectador/espectadora, este trabalho não pretende lidar com as questões em torno da recepção. O espectador/espectadora é entendido aqui como o receptor/a receptora, para quem a cena é elaborada com o intuito de ser percebida de forma mais abrangente e não como texto falado a ser compreendido logicamente. Será abordado ainda as questões subjetivas que influenciam a criação em sala de ensaio e que conduzem a dramaturgia do espetáculo observando a elaboração de uma poética cartográfica. A cartografia utilizada como metodologia é tratada desde os estudos de Deleuze a partir de conversas com Foucault, quando o conceito recebe a contribuição de Guattari e, mais tarde, Rolnik, até ser atualmente utilizada como estratégia metodológica para abordar campos de experiência e pesquisa artística. A partir dos estudos de Passos, Kastrup e Escóssia surge uma ferramenta de acercamento do tema que pode vir a ser utilizada no processo de construção dramatúrgica. Essa ferramenta metodológica foi utilizada para a composição da dramaturgia de EntreNãoLugares, como dito anteriormente. O campo de experiência é abordado no capítulo 3, onde serão identificadas as questões abordadas nos capítulos anteriores. A experiência vivida na montagem de EntreNãoLugares 26 conflui com a criação de procedimentos utilizados na elaboração das cenas, amalgamando técnica e vivência cotidiana. O interlocutor oculto dessa tese é o estudante de teatro que inicia seus estudos, tanto em atuação quanto em encenação e dramaturgia. As questões discutidas aqui estão se referindo ao teatro de encenação, realizado em um espaço cênico que define, separadamente, palco e plateia. O teatro abordado aqui possui, ainda, funções de atuação e direção previamente determinadas, que elaboram a dramaturgia ao longo do processo de trabalho, concomitantemente com a construção de cenas. É diferente, por exemplo, de um teatro elaborado em criação coletiva no qual todos os integrantes criam em todas as áreas: todos fazem o texto, todos atuam, um dirige o outro. É mais próximo do processo colaborativo24 de trabalho, no qual os integrantes da criação possuem áreas definidas na criação e colaboram a partir de suas áreas. Apesar dessa proximidade, não será abordado aqui o processo colaborativo, e sim, o processo utilizado no teatro laboratório difundido por Grotowski e Barba. Tentar acercar dos procedimentos utilizados em uma construção teatral é uma tarefa que nos aproxima da crítica genética de Cecília Salles (2011), porque é preciso recorrer a registros sobre o processo de trabalho. Nos registros encontram-se os resquícios dos momentos da criação que são apagados pela dinâmica do fazer e são incorporados na obra, por vezes, sem deixar pegadas. Utilizarei, na escrita dessa tese, barras para pontuar os termos masculinos e femininos de uma palavra. Não utilizo a linguagem neutra para não complicar a leitura dos deficientes visuais que utilizam o recurso de voz, mas sinalizo, com isso, a necessidade da inclusão do feminino das palavras por se tratar de uma tese cuja orientanda e orientadora são mulheres e que possui, como campo de estudo, uma experiência que envolveu criadoras mulheres. Infelizmente, criadoras mulheres ainda são poucas na teoria teatral e precisamos agir para mudar essa realidade. Concluo a trajetória no doutorado com uma bagagem volumosa e um mapa aberto nas mãos. Tenho ainda um longo caminho para percorrer, tanto no estudo acadêmico quanto como artista, mas as possibilidades animam a porção caminhanteque existe em mim: que venham os novos caminhos! Como disse Julia Varley na nossa estreia: “esse não é o fim de um trabalho, mas o início de uma jornada”. 24 Para aprofundar no entendimento do processo colaborativo, sugerimos ARAÚJO, Antônio. O processo colaborativo no Teatro da Vertigem. Revista Sala Preta, v. 6, p. 127-133, 28 nov. 2006. 27 1 CAPÍTULO 1: RASTREANDO AS PEGADAS Os processos de criação dramatúrgica contemporânea se distinguem bastante entre si, principalmente no que tange ao modo de fazer e a dinâmica de sua elaboração. A crise do drama, ou da forma dramática, é localizada por Peter Szondi (2001) por volta de 1880, período em que “a crescente complexidade das relações sociais já não cabe no mecanismo do drama absoluto” (FERNANDES, 2001, p. 70). Segundo Sílvia Fernandes, essa crise gerou os precedentes para o que, hoje, observamos nas Artes da Cena: uma profusão de procedimentos dramatúrgicos, modos e tipos de escrituras, que ampliaram o entendimento sobre a dramaturgia contemporânea e suas possibilidades. No entanto, depois de ampliar seus procedimentos de escrita, a dramaturgia passa a ser operada para além da palavra e recebe a contribuição do trabalho do ator/da atriz, da iluminação de cena, do espaço utilizado, ou seja, a dramaturgia expande para ser operada no espaço entre os elementos da encenação. É entendida como um acontecimento, em tempo real, ocorrido nos interstícios do espetáculo e para além do momento da apresentação. De acordo com Jorge Dubatti em seu livro O Teatro dos Mortos (2016), o teatro é um acontecimento no sentido que propõe Deleuze, como “algo que acontece e em que se dá a produção de sentido” (DUBATTI, 2016, p. 27). Ainda segundo ele, o acontecimento excede o texto e a cadeia de significantes de uma compreensão semiótica da linguagem escrita e produz entes em seu acontecer, vinculados à “cultura aurática dos corpos viventes” (DUBATTI, 2016, p. 27). Um processo que começa a ser articulado na confecção e montagem tem seu ápice no ato da apresentação e prolonga sua reverberação com a participação do público, inclusive, depois da apresentação. Para compreender o caminho da dramaturgia contemporânea traçamos aqui uma breve revisão do percurso histórico dos fatos que marcaram os desdobramentos no campo da dramaturgia, lembrando que estamos tratando da dramaturgia praticada no ocidente, mais especificamente na Europa. Essa forma dramatúrgica reverberou para as colônias europeias, chegando dessa forma no Brasil e fundamentando o teatro praticado hoje25. 25 Essa forma dramatúrgica reverberou para as colônias europeias, chegando dessa forma no Brasil e fundamentando o teatro praticado hoje. Por mais que outras teatralidades tenham se imiscuído, o teatro brasileiro ainda é um afluente do teatro perpetuado pela Europa durante o período colonial. ALCÂNTARA, C. N. O Decolonial na pesquisa em artes no Brasil [online]. SciELO em Perspectiva: Humanas, 2018. Disponível em:https://humanas.blog.scielo.org/blog/2018/10/23/o-decolonial-na-pesquisa-em-artes-no- brasil/#.YMY6vKhKjDc https://humanas.blog.scielo.org/blog/2018/10/23/o-decolonial-na-pesquisa-em-artes-no-brasil/#.YMY6vKhKjDc https://humanas.blog.scielo.org/blog/2018/10/23/o-decolonial-na-pesquisa-em-artes-no-brasil/#.YMY6vKhKjDc 28 1.1 A revolução do Drama Moderno Até meados do século XIX, os espetáculos possuíam uma relação forte e estreita com o dramático. Dramaturgia era um termo que servia, exclusivamente, para designar a porção que se referia ao texto escrito. A relação com o dramático consistia em: histórias com enredo e encadeamento causal; diálogo como forma de linguagem; ênfase na ação sem a interferência de um narrador, ou qualquer coisa “fora” da cena; utilização de personagens que “agiam” na história; apresentações ocorridas, preferencialmente, no palco e diante do espectador com o uso do “frontalidade”26 (SZONDI, 2001). A função da dramaturgia era “projetar uma ação dramática que a cena deveria atualizar” (FERNANDES, 2001, p. 73). Ou seja, prescindia de um sentido direto e obrigatório, do autor para a cena. O diretor era encarregado de encenar o que estava no texto escrito, de preferência, sem alterar uma só palavra do que escreveu o dramaturgo: vivia-se o período conhecido por textocentrismo. Melhor dizendo, o texto escrito era o início e o fim de uma representação teatral e a parte mais importante da montagem. Tudo na cena derivava do texto escrito. Quando iniciei no teatro, em 1988, participava de espetáculos montados na escola salesiana e dirigidos pelas professoras de arte. Naquele contexto os textos eram livretos finos na biblioteca, na sua maioria da autora Maria Clara Machado em uma coleção difundida pela Funarte, que copiávamos e distribuíamos entre nós, para ler e reproduzir o que estava escrito. Quando entrei para o Grupo Folhas de Teatro, em 1990, havia o “ensaio de mesa” que consistia na leitura da obra, discussão e compreensão de cada palavra, cada rubrica, cada movimentação de cena. O diretor, eu não conhecia diretoras mulheres, contava com um assistente que ficava com o texto na mão conferindo a fala dos atores: se houvesse alguma alteração, ele corrigia e pedia para repetir. A valorização da palavra escrita, em detrimento do que acontece em cena, como a atuação, a iluminação, cenário e figurino, não faz parte do protocolo do drama e nem é citado por Aristóteles, na Poética. Mas, criou-se uma tradição, alimentada pela elite intelectual francesa, para a valorização do teatro literário em detrimento das comédias, balés, farsas e óperas, mais populares na época. Essa manobra afirmava o poder dos que sabiam ler, no caso, a aristocracia. O textocentrismo, portanto, foi uma prática que acaba por reafirmar o poder do autor-dramaturgo, colocando-o acima de todas as outras instâncias da produção cênica. 26 “Frontalidade” descreve a disposição da cena, de frente para o espectador. Nessa disposição, os espectadores/espectadoras estão dispostos em apenas um dos lados do palco, chamado de “quarta parede”. 29 Esse textocentrismo começa a ser abalado no final do século XIX e início do século XX. De acordo com Szondi (2001), esse é o período em que o teatro passa a assimilar um novo mundo, desmantelado pela Primeira Grande Guerra, e que já vinha abalado desde as Revoluções Europeias. É necessário esclarecer que tratamos aqui do teatro europeu e a partir da Europa. As revoluções, rupturas e reformas acontecem no teatro a partir da história vivida pela Europa e se espalha pelas “colônias” culturais, onde o teatro europeu foi disseminado. Por muito tempo, a Europa ditou as regras do que acontecia no teatro, assim como nas artes em geral, criando um código a ser seguido (MIGNOLO, 2010; 2019) e moldando o sentido estético com o qual experiencia-se a arte. Apesar de não nos atermos às questões da Colonialidade estética, é imprescindível observar que o assunto não está apartado das discussões teóricas atuais, pois boa parte de nosso atual entendimento de arte deriva dos processos de colonização. O que acontece na cena, geralmente, está relacionado aos processos de seu tempo. Nos espetáculos da tragédia antiga havia o prólogo, o coro, o epílogo, e o diálogo dos personagens, como elementos da narrativa. Ao longo dos séculos, os elementos passaram por transformações ficando somente os diálogos dos personagens como elemento condutor da narrativa. O que estava no palco pertencia a um universo paralelo e fictício, fechado na ilusão da “'quarta parede', onde o espectador era um observador que compactuava da 'ilusão do drama'” (LEHMANN, 2007, p. 26). O Drama Moderno rompe com fundamentos bastante rígidos, que até então regiam a cena (SZONDI, 2001). No drama absoluto tudo devia ser mencionado anteriormente para existir como realidade na obra. A criação não podia conter citação ou ser aadaptação de outra obra; o drama devia ser primário (SZONDI, 2001). Da mesma forma, o dramaturgo ou autor27 não podia expor sua opinião, ou ao menos, não deveriam ser explicitadas em primeira pessoa. O drama devia estar sempre no presente e precisa ser uma sucessão de acontecimentos que seguem, gradativamente, para um desfecho. Um acontecimento deve estar conectado ao outro e nada pode fugir desse encadeamento causal. A unidade de lugar era seguida fielmente e só podia haver o local do acontecimento. Tudo o mais devia ser eliminado da consciência dos espectadores/espectadoras. O drama dependia do conflito para a ação se desenvolver e do herói dramático, um resquício do herói trágico, para guiar a linha narrativa, que, por sua vez, era uma sucessão de fatos que geravam outra situação e assim por diante, até o desfecho ou desenlace. 27 Durante esse período, dramaturgos, autores teatrais e diretores eram, majoritariamente, homens. Temos raras mulheres na posição de criadoras de produtos cênicos e mais raras ainda são as mulheres na posição de líderes de companhia teatral. 30 A forma dramática era entendida, portanto, como uma ação que se desenrola através da relação intersubjetiva ocorrida entre os personagens através dos diálogos. Nos interessa aqui acompanhar, nesse momento da história da dramaturgia, o que acontece com a condução da narrativa, quer dizer, como o acontecimento cênico se desenrola em cena, quem conta e se existe alguém na posição de narrador. Para Szondi (2001), o elemento épico invade o dramático e o transforma, como se o épico “elevasse” o dramático. Sarrazac (2017) discorda que o épico venha, de alguma forma, superar o dramático e fala em “desdramatização do dramático”, que consiste em uma “série descontínua de micro conflitos, mais ou menos ligados uns aos outros” (SARRAZAC, 2017, p. 20). Para chegar na desdramatização, Sarrazac segue a trilha traçada por Schiller e sua “teoria do contrapeso”, que “embaralha a fronteira” entre épico e dramático, sendo o momento épico um relaxamento da tensão do dramático. Ou seja, a tensão do Drama move continuamente para frente, os motivos progressivos, e uma força de resistência da poesia épica se impõe, os motivos regressivos (SARRAZAC, 2017). O que nos interessa em relação ao épico é identificar o papel de quem fala, da condução da história. Se, de acordo com Schiller, a tensão do épico está em motivos regressivos que aplicam uma resistência ao movimento progressivo do Drama, pode-se notar que quem conduz a narrativa o faz regredindo na história, ou seja, tratando do que aconteceu. Diferente do Drama no qual a condução da história está na ação dos personagens, quer dizer, no que vai acontecer, conduzindo a história para o futuro. De qualquer forma, a utilização do recurso de lembrar, narrar, relatar, sempre esteve presente nas dramaturgias, em maior ou menor intensidade, e o épico pode ser identificado no teatro medieval, pós-medieval, no Renascimento, no Iluminismo, em Shakespeare e outros. É um elemento que remete aos contadores de histórias, às narrativas históricas e à relação que nós, humanos, temos com a conversa em torno da fogueira. Por isso, a discussão sobre a desdramatização do drama pelo épico, ou a invasão do épico no drama é irrelevante, já que são recursos de se contar uma história: ora é possível identificar quem conta, e ora a história se passa diante de quem a acompanha. 1.2 Os reformadores da virada do século A revolução que ocorre no teatro, na virada do século XX, é uma mudança na abordagem do texto teatral. Quando autores, como Tchekhov, passam a dissociar o que o 31 personagem diz daquilo que ele faz em cena cria a “conversação”, diferente de “diálogo”, como comenta Silvia Fernandes: Nem é preciso dizer que a peça de Tchekhov abre espaço para uma interpretação sujeita a amplas variações. As constantes divergências do dramaturgo com Stanislavski a respeito da montagem de seus textos são mais uma prova da instauração da polifonia significante a que Bernard Dort se refere quando analisa o teatro contemporâneo. (FERNANDES, 2001, p. 73). O texto de Tchekhov possui diálogos que tratam de trivialidades, aparentemente desconectadas do todo, sem grandes acontecimentos, com maior potencial de sugestão do que de ação. Isso leva Peter Szondi (2001) a dizer que o texto de Tchekhov é uma negação da própria forma dramática. É possível pensar que foi essa “brecha” no texto de Tchekhov que permitiu o trabalho de Stanislavski, que por sua vez inaugura, com suas pesquisas e metodologia, o trabalho das ações. Esse trabalho é baseado na atuação e exige um aprofundamento nas técnicas do ator. Com Tchekhov, os personagens aparecem conversando um “outro diálogo”, como chamou Maeterlink, dizendo que “a qualidade e a extensão desse diálogo inútil é que determinam a qualidade e o alcance inefável da obra” (MAETERLINK, apud SARRAZAC, 2018, p 18). É necessário constatar que o “outro diálogo” ocupa hoje um lugar considerável nos textos teatrais e que já não se limita, como nos tempos de Maeterlinck, a expressar o “inefável”. Quando Nathalie Sarraute institui como diálogo teatral o que na verdade é tão somente a “subconversação” ou o “pré-diálogo” entre seus personagens, ou quando Michel Vinaver desnaturaliza e transfigura — por meio da despontuação, por meio da descronologização e por meio do jogo da repetição-variação... — a palavra hegemônica, estamos perante “outro diálogo”, um diálogo de segundo grau e um diálogo mediatizado que se impõe em cena. (SARRAZAC, 2018, p. 18-19). Considerando que o diálogo é, por si só, a relação entre personagens falantes de um texto, temos, na observação acima de Sarrazac, uma expansão da relação dialógica. Com isso, o diálogo se amplia para, além de expor a relação entre personagens, revelar também sua mediação. A relação é expandida, pois deixa de ser embasada pelas palavras e passa a ser ampliada pela relação que há entre os personagens. Falar o que se quer dizer, para além das palavras, expandindo seu significado, era o desejo de Antonin Artaud. Artaud é, de todos os reformadores, o que deixou um legado mais impactante por ter mudado a forma do Drama. Além disso, ele definiu uma dimensão política para o que fazia, transformando em arte o seu dilema psíquico28. Ele questiona a sujeição do teatro à palavra e 28 Antonin Artaud (1896-1948), ator, diretor e poeta francês, foi diagnosticado como louco e internado, seguidas vezes, no manicômio, de onde denuncia seu sofrimento e desenvolve suas teorias mais expressivas. 32 pergunta se o teatro não teria uma linguagem própria (ARTAUD, 2006), como uma arte independente da literatura. Para ele, a encenação era uma linguagem que podia estar além das palavras. Quanto à linguagem da encenação considerada como linguagem pura, trata-se de saber se ela é capaz de atingir o mesmo objeto interior que a palavra; se, do ponto de vista do espírito e teatralmente, ela pode pretender a mesma eficácia intelectual que a linguagem articulada. Em outras palavras, é possível perguntar se ela pode não precisar de pensamentos, mas fazer pensar, se pode levar o espírito a assumir atitudes profundas e eficazes de seu próprio ponto de vista. (ARTAUD, 2006, p. 76). O ponto que Artaud toca é a questão do logos na cena. Isto é, o fato de o teatro reforçar a ênfase na sua capacidade de produzir sentido no intelecto, não só do espectador, mas antes disso, do ator, do diretor e de todos os profissionais envolvidos na obra. O que estamos chamando de logos da cena, se refere à capacidade do texto de trabalhar o sentido a partir das palavras. O discurso, baseado em diálogos, força o espectador a compreender o sentido das palavras do texto, intelectualmente. Artaud contesta esse peso dado ao intelecto, assim como muitos artistas depois dele: o teatro precisa
Compartilhar