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Uma filosofia da linguagem divina: os atos de fala de Deus, o mundo e a história humana na narrativa bíblica A philosophy of divine language: God's speech acts, the world and human history in the biblical narrative Lucas Furlaneto Ávila 1 Resumo: Este ensaio é um estudo sobre uma filosofia da linguagem a partir das Escrituras judaico-cristãs. Considerando que a filosofia da linguagem, como disciplina e campo de pesquisa, costuma se ocupar principalmente com questões de valor de verdade, semântica, pureza lógica etc., este trabalho também tem por objetivo uma abordagem alternativa à linguagem, a partir de uma fonte pouco usual na filosofia: a Bíblia. Além disso, este artigo pretende defender, a partir da teoria dos Atos de fala, de John L. Austin, com auxílio das Confissões de Santo Agostinho e de teólogos contemporâneos como Kevin Vanhoozer, que as palavras proferidas pelo Deus da Bíblia devem ser entendidas como atos de fala que determinam o enredo da história humana, especialmente na história contida na narrativa bíblica. Palavras-chave: Linguagem. Atos de fala. Narrativa bíblica. Logos. Abstract: This essay is a study about a philosophy of language from the Judeo-Christian Scriptures. Considering that the philosophy of language, as a discipline and a research field, is usually concerned with questions of truth value, semantics, logical purity, etc., this essay also aims at an alternative approach to the language, from an unusual source in philosophy: The Bible. Furthermore, this essay intends to defend, from John L. Austin's theory of Speech Acts, with the help of the Confessions of St. Augustine and contemporary theologians such as Kevin Vanhoozer, that the words spoken by the God of the Bible must be understood as speech acts that determine the plot of human history, especially in the story contained in the biblical narrative. Keywords : Language. Speech acts. Biblical narrative. Logos. *** Mediante a palavra do Senhor foram feitos os céus, e os corpos celestes, pelo sopro de sua boca. Ele ajunta as águas do mar num só lugar; das profundezas faz reservatórios. Toda a terra tema o Senhor; tremam diante dele todos os habitantes do mundo. Pois ele falou, e tudo se fez; ele ordenou, e tudo surgiu (Salmo 33:6-9) 1 Graduando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: lucasfavila@live.com . mailto:lucasfavila@live.com Uma filosofia da linguagem divina Introdução Buscando, de certo modo, uma alternativa aos modos tradicionais de conceber a linguagem, e pensando na relevância e na antiguidade das Escrituras judaico-cristãs, nosso propósito com este ensaio é de procurar estabelecer qual seria a visão acerca da linguagem que este livro sagrado apresenta. Além disso, acreditamos que, exatamente pela importância cultural e religiosa deste livro, investigações acerca das contribuições linguísticas que ele possa trazer, são sempre bem-vindas. Também pensamos que, uma abordagem alternativa a partir de uma fonte que é igualmente alternativa (pelo menos no meio filosófico), pode ser útil, já que a linguagem tem sido quase sempre analisada em termos apenas propositivos e declarativos. De fato, a filosofia da linguagem se ocupa quase que exclusivamente com questões de valor de verdade, semântica, pureza lógica etc. Para realizar esta investigação de uma “teoria” bíblica da linguagem, procuramos, acima de tudo, nos voltar ao próprio texto sagrado. Para nos auxiliar, recorremos também a escritos de teólogos e comentadores do texto bíblico, além de apelar para as ideias de John Austin que, segundo nos parece, podem auxiliar na compreensão dos modos como a linguagem é tratada na Bíblia. A dificuldade (ou a beleza) desta análise linguística das Escrituras se encontra no fato dela ser uma narrativa e não um livro filosófico. Essa constatação nos leva não a uma simples tarefa sistemática ou estritamente teológico-filosófica, mas a uma viagem por um desvendamento progressivo não só de como a linguagem se comporta na Bíblia, mas também de como o próprio Deus se mostra nela (através da linguagem). Por fim, nosso objetivo não é tratar da visão bíblica da linguagem de forma exaustiva. Pelo contrário, nossa proposta aqui é de, através de uma “filosofia imaginativa teológica”, explorar apenas uma parcela dessa vasta história humana e divina. 1. Disse Deus: haja! E houve “Haja luz!” . Esse é o modo como o livro de Gênesis narra a origem do universo. 2 Isso significa, segundo o relato bíblico, que tudo veio a existir por meio da linguagem, 2 Gênesis 1.3. In: Bíblia Sagrada: Nova Versão Internacional. São Paulo: Editora Vida, 2000. Vol. 16, 2021 www.marilia.unesp.br/filogenese 208 http://www.marilia.unesp.br/filogenese Uma filosofia da linguagem divina que o universo é “o resultado da palavra dinâmica de Deus.” (KAISER JR, 1980, p. 74). “Falaste e o mundo foi feito. Tua palavra o criou.”, escreveu Agostinho, em suas Confissões. (2017, p. 332). Se o mundo é uma obra de arte, “Gênesis 1 é uma apresentação do Artista” na qual aprendemos que Deus é a “Fonte misteriosa e pessoal” do universo e que “esse Deus, sem início e sem fim, meramente profere uma palavra de ordem a fim de trazer à existência todo o restante que existe.” (BARTHOLOMEW e GOHEEN, 2017, p. 40). O primeiro evento da narrativa bíblica é, por si só, uma amostra bastante significativa a respeito da visão sobre a linguagem que ela possui, isto é, a de que dizer é o mesmo que fazer. Na Bíblia, palavras são criadoras de realidade, motores da história e reveladoras do caráter divino: “Deus simplesmente fala, e sua poderosa palavra cria." (CARSON, 2007, p. 115). Essa “filosofia da linguagem divina” nos remete às ideias de John Austin a respeito do assunto. Segundo Austin, “dizer algo é fazer algo” (1990, p. 29). Sua teoria parte da limitação que uma visão exclusivamente semântica da linguagem possui, já que as condições de verdade não se aplicam a sentenças que ele chama de “performativas”. As sentenças performativas são aquelas que não descrevem nem declaram os atos que se praticam: proferir uma sentença performativa é, pelo contrário, o mesmo que realizar o ato nela contido. Entre os exemplos apresentados por Austin, estão sentenças de contextos como o do casamento, no qual dizer “aceito” não descreve o ato de aceitar, mas, na verdade, realiza a ação de aceitar; e do batismo, em que dizer “eu batizo este barco com tal nome” não é descrever o ato de batizar, mas é a própria ação de atribuir um nome ao objeto (1990, p. 24). Como dito acima, os valores de verdade não são aplicáveis a esse tipo de sentença. O ato de falar como sendo uma forma de ação é, segundo o teólogo americano Kevin Vanhoozer, um “tema conhecido na Bíblia”: A palavra de Deus é algo que Deus diz, algo que Deus faz e (com referência à encarnação) algo que Deus é. Quanto às Escrituras, elas não são apenas a divulgação de informações a respeito de Deus (revelação), mas uma coleção de diversos tiposde atos comunicadores divinos. (2016, p. 63). A Bíblia conta uma história. Mas não apenas uma história descritiva (ou constatativa). É claro que, entre os muitos estilos literários dos livros da Bíblia, há declarações descritivas. Contudo, em sua essência, a narrativa bíblica é uma história das Vol. 16, 2021 www.marilia.unesp.br/filogenese 209 http://www.marilia.unesp.br/filogenese Uma filosofia da linguagem divina palavras-feitos de Deus: “dizer que Deus falou e dizer que ele fez costumam ser a mesma coisa.” (WARD, 2017, p. 23-24). No início do universo, o silêncio existencial é rompido pela voz divina, que preenche cada espaço ainda “sem forma e vazio” (Gênesis 1.2). Se o ato criacional de Deus é realizado única e exclusivamente por intermédio da palavra, então podemos dizer que “enquanto Deus não falou, não existia nada.” (KIDNER, 1979, p. 41). Timothy Ward (2017, p. 24) observa que, quando as Escrituras descrevem Deus dizendo “haja” e determinada coisa vem a existência imediatamente, temos que o desejo expresso de Deus de que algo exista e a criação desse algo “são duas maneiras de descrever o mesmo acontecimento”. Para Vanhoozer, uma teologia evangélica, isto é, cristã, “não precisa escolher entre o Deus que fala e o Deus que age” (2016, p. 79). Teríamos aqui, então, uma relação pensamento-linguagem-mundo, na qual o que Deus deseja, fala e cria acontecem imediata e simultaneamente. Nas Escrituras, essa relação poderia ser chamada de desejo-palavra-criação (principalmente ao analisar o relato da criação de Gênesis 1), mas seria possível propor ainda outras denominações, como desejo-palavra-ato, plano-promessa-cumprimento, desígnio-palavra-realização etc. 1.1. As palavras-feitos de Deus Hans Urs von Balthasar, teólogo do século XX, elaborou a ideia de “palavra-feito” ( Tatwort ) ao se deparar com a tradução que Goethe fez do primeiro versículo do Evangelho de João: “no princípio era o feito ” (VANHOOZER, 2016, p. 63). A passagem do evangelho de João se refere a Jesus como sendo o Logos, que geralmente é traduzido por Verbo ou Palavra (“no princípio era o Verbo”). É significativo que nas Escrituras cristãs ambos os testamentos comecem com afirmações a respeito da linguagem: no Antigo Testamento o universo é criado pela palavra criadora de Deus; no Novo Testamento descobrimos que essa palavra criadora é o próprio Filho de Deus (“Todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe teria sido feito.” - João 1.3) . 3 3 F.F. Bruce, ao comentar o primeiro verso do Evangelho de João (“No princípio era o Verbo...”), afirma que “não é por acaso que o evangelho inicia com a mesma frase de Gênesis. Em Gênesis 1.1, ‘no princípio’ inicia a história da primeira criação; aqui a expressão inicia a história da nova criação. Nas Vol. 16, 2021 www.marilia.unesp.br/filogenese 210 http://www.marilia.unesp.br/filogenese Uma filosofia da linguagem divina A Bíblia, portanto, é Palavra de Deus em dois sentidos. Primeiro, porque fala sobre Deus; segundo, porque o próprio Deus faz coisas e revela a si mesmo por meio de palavras. Vanhoozer vai dizer que a linguagem, na visão bíblica, não é apenas um instrumento de “processamento de informações”, mas sim “um rico meio de ação comunicadora e de interação pessoal” (2016, p. 64). Ou seja, Deus não só informa e ensina seus mandamentos pela linguagem, como também, por meio da palavra, age e se relaciona com os seres humanos criados. Essa relação reveladora de si mesmo de Deus para com os seres humanos se dá por meio de proferimentos de promessas, não só para indivíduos, como também para a comunidade de Israel e a respeito da comunidade de todos os seres humanos. É esse o modus operandi divino que encontramos na chamada de Deus a Abraão: Então o Senhor [Deus] disse a Abrão: ‘Saia da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei. Farei de você um grande povo, e o abençoarei. Tornarei famoso o seu nome, e você será uma bênção’. (Gênesis 12.1-2). Aqui, seria possível imaginar que Deus, como soberano e poderoso, poderia ter movido Abraão de seu lugar geográfico simplesmente por meio de sua providência. Mas, em vez disso, “Deus age falando”: Ele chama Abraão e lhe faz uma promessa de aliança, convidando-o a aceitá-la como base sólida para confiar que ele cumprirá o que prometeu (Gn 12.1-3). Ao dirigir a Abraão as palavras de uma promessa [...], Deus se compromete com um curso de ação fiel [...]. Com essas palavras, Deus define e explica o objetivo de sua atividade redentora futura, comprometendo-se com um curso específico de ação na história. (WARD, 2017, p. 26). Deus começa a história da redenção (em Abraão) assim como começou a história da criação: falando (KIDNER, 1979, p. 105). A ideia de que “Deus costuma agir simplesmente falando” não é, como observa Ward, apenas sobre alguns pontos importantes da história bíblica. Na verdade, por todo Antigo Testamento encontramos esse padrão plano-promessa-cumprimento, no qual “Deus vincula suas ações futuras às palavras de sua promessa.” (2017, p. 26-27). Os atos de fala de Deus, principalmente as duas obras de criação o agente é a Palavra de Deus” ( João: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1987, p. 33). Vol. 16, 2021 www.marilia.unesp.br/filogenese 211 http://www.marilia.unesp.br/filogenese Uma filosofia da linguagem divina promessas que ele faz, são o que “põem a história de Israel em movimento, estruturam a vida da nação e moldam seu futuro.” (VANHOOZER, 2016, p. 80). Como vimos, John Austin fala a respeito das sentenças performativas, isto é, sentenças que, ao serem proferidas, realizam os atos que estão contidos nelas mesmas. Podemos dizer, voltando ao ato criador de Deus por meio da fala, que a palavra-feito “haja luz” é um exemplo apropriado desse tipo de sentença, já que não seria possível aplicar a ela as condições semânticas de verdade, uma vez que não se trata de uma “declaração ou proferimento constatativo - que, ao contrário do performativo, é verdadeiro ou falso” (AUSTIN, 1990, p. 52). Entretanto, se as condições de verdade não se aplicam às sentenças performativas e, por consequência, também não servem para analisar as palavras-feitos de Deus, que condições temos para analisar esse tipo de sentença? 2. Uma linguagem viva e eficaz “A palavra de Deus é viva e eficaz ”, afirma o autor da carta aos cristãos hebreus do primeiro século. Além disso, a palavra divina é “mais afiada que qualquer espada de dois gumes: penetra ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e intenções do coração” (Hebreus 4.12). Se a linguagem divina é “viva e eficaz”, penetrante e julgadora dos corações humanos, então ela possui um propósito, um objetivo de ação, uma dimensão performativa. O próprio Deus, por meio do profeta Isaías, diz: “assim também ocorrecom a palavra que sai da minha boca: Ela não voltará para mim vazia, mas fará o que desejo e atingirá o propósito para o qual a enviei.” (Isaías 55:11). A palavra divina, portanto, é teleológica. Aquilo que é dito nas 4 Escrituras sempre traz em si o plano (vontade, desejo, propósito) de Deus. O que Deus diz é julgado pelo acontecimento (cumprimento) ou não do que foi dito. Assim sendo, para analisar as sentenças performativas de Deus (suas palavras-feitos), podemos recorrer uma vez mais a John Austin. Austin valora as sentenças performativas por meio do que podemos chamar de condições de felicidade, isto é, aplica a esse tipo de enunciado um status de “feliz ou sem tropeços” (1990, p. 30) ou “malogrado” (p. 31). Basicamente, um enunciado performativo será bem-sucedido (“feliz”) caso atinja seu objetivo, que varia de acordo 4 Grifo nosso. Vol. 16, 2021 www.marilia.unesp.br/filogenese 212 http://www.marilia.unesp.br/filogenese Uma filosofia da linguagem divina com o contexto, e será malsucedido (“malogrado”) caso contrário . Entretanto, para que seja considerado bem-sucedido ou “feliz”, um proferimento performativo deve satisfazer as condições de felicidade descritas por Austin (1990, p. 31), que, segundo pensamos, podem ser resumidas da seguinte maneira: deve existir um procedimento convencionalmente aceito, as pessoas envolvidas no procedimento devem ser adequadas e o procedimento deve ser realizado de maneira correta e completa. Além disso, os que participam do procedimento devem ser sinceros (devem ter a intenção de agir de acordo com o que dizem) e, por fim, os participantes devem continuar agindo de acordo com o que foi dito. Não é tão fácil adequar a visão geral da bíblia acerca da linguagem às condições de felicidade propostas por Austin. Contudo, em alguns casos é possível identificar como as palavras-feitos de Deus são, nos termos de Austin, bem-sucedidas. No exemplo apresentado anteriormente, em que Deus se dirige a Abraão proferindo uma promessa, constatamos que todas as condições de felicidade são, de certa forma, satisfeitas. No entanto, nos contextos bíblicos de proferimentos performativos, nem sempre há a necessidade de que ambas as partes envolvidas no procedimento sejam adequadas ou permaneçam agindo de acordo com o que foi proferido. No caso de Abraão, por exemplo, que recebeu a promessa de uma grande descendência a partir de um filho que ele teria na velhice (Gênesis 12.2; 15.4), constatamos, no decorrer da narrativa, que apenas Deus se manteve fiel a sua promessa, enquanto que o velho Abraão tomou uma espécie de atalho ao recorrer à sua serva para gerar um herdeiro (16.1-15). 2.1. Condições de fidelidade Nas Escrituras, portanto, a maioria dos proferimentos performativos de Deus são alicerçados apenas na própria fidelidade divina, sem a necessidade de os demais envolvidos manterem-se fiéis. A aliança de Deus com Noé, de nunca mais destruir a terra por meio de um dilúvio (Gênesis 9.11); a promessa feita a Abraão de uma descendência que seria benção para todos os povos da terra (12.1-3); ou a profecia de que o rei Davi teria um descendente que reinaria para sempre (I Crônicas 17.7-14) são 5 exemplos desta realidade bíblica: “se somos infiéis, ele [Deus] permanece fiel, pois não 5 Os cristãos acreditam que essa promessa foi cumprida em Jesus Cristo que, em sua humanidade é descendente de Davi e, em sua divindade, “reina à direita de Deus” (1 Pedro 3.22). Vol. 16, 2021 www.marilia.unesp.br/filogenese 213 http://www.marilia.unesp.br/filogenese Uma filosofia da linguagem divina pode negar-se a si mesmo.” (II Timóteo 2.13). As condições de felicidade na teoria 6 bíblica da linguagem não são, deste modo, as mesmas que aquelas propostas por John Austin, apesar de em alguns casos ser possível aplicá-las. Na verdade, para os atos de fala de Deus, podemos dizer que a condição mais importante ou a condição definidora para que o processo seja adequado é a fidelidade de Deus: Embora os montes sejam sacudidos e as colinas sejam removidas, ainda assim a minha fidelidade para com você não será abalada, nem a minha aliança de paz será removida", diz o Senhor, que tem compaixão de você. (Isaías 54:10). 3. Austin e Deus: atos de fala divinos Por fim, para ajudar a distinguir entre sentenças performativas e constatativas, é necessário “considerar desde a base em quantos sentidos se pode entender que dizer algo é fazer algo, ou que ao dizer algo estamos fazendo algo, ou mesmo os casos em que por dizer algo fazemos algo.” (AUSTIN, 1990, p. 85). Para isso, Austin (1990, p. 85-94) elabora uma distinção entre três camadas do ato de fala: (1) ato locucionário , que corresponde ao “ato de ‘dizer algo’ nesta acepção normal e completa”; (2) ato ilocucionário, que se trata da “realização de um ato ao dizer algo” ou da força performativa (“realizar um ato locucionário é, em geral, [...] realizar um ato ilocucionário.”); e (3) ato perlocucionário, que inclui “o que, de certo modo, são consequências” do ato ilocucionário. Contudo, segundo Austin, há uma distinção entre o ato ilocucionário e o ato perlocucionário, pois deve-se distinguir “a ação que fazemos (no caso uma ilocução) de sua consequência.” (1990, p. 97). Nesse ponto, o filósofo aborda a questão da intencionalidade, já que consequências podem surgir de maneira involuntária a partir do ato ilocucionário, e, portanto, torna-se imprescindível “distinguir uma tentativa de um ato consumado, um ato intencional de um não-intencional.” (AUSTIN, 1990, p. 95). A narrativa bíblica é uma viagem em um trem de atos ilocucionários (OHMANN apud VANHOOZER, 2016, p. 80). Deus participa e movimenta a história humana pela linguagem. A história da Bíblia, como vimos, é realizada pelas palavras-feitos de Deus, 6 Em outros casos, contudo, promessas e profecias são proferidas por Deus com a condição de que os demais envolvidos também cumpram sua parte (p. ex. II Crônicas 7.14). Vol. 16, 2021 www.marilia.unesp.br/filogenese 214 http://www.marilia.unesp.br/filogenese Uma filosofia da linguagem divina que se compromete com um determinado curso de ação. As promessas divinas aos personagens bíblicos são formas de Deus fazer algo: realizar seus planos e, em especial, o plano da redenção. Deus, na visão bíblica, age por meio da fala e é “membro da comunidade linguística”: Por que haveríamos de ficar surpresos diante da afirmação de que Deus fala? Afinal, as Escrituras o retratam sistematicamente como agente do discurso, o Deus que fala para indivíduos e nações de diversas maneiras – por intermédio de sonhos, profetas, leis, alianças – embora, nesses últimos dias, ele nos tenha falado por meio de seu Filho (Hb 1.2). (VANHOOZER, 2016, p. 194). Nos atos de fala divinos, sempre estão presentes simultaneamente a ilocução e a perlocução. Isto é, há sempre o aspecto da intencionalidade, mencionado por Austin. Quando Deus fala, sua intenção é realizaralgo, é cumprir o que diz: “Deus não é homem para que minta, nem filho de homem para que se arrependa. Acaso ele fala, e deixa de agir? Acaso promete, e deixa de cumprir?” (Números 23:19). As palavras-feitos de Deus, isto é, seus atos de fala, são, portanto, carregadas de intencionalidade. 4. Cristo: a palavra pronunciada eternamente “Mas, como falaste?”, questiona Santo Agostinho, em sua oração, imediatamente após declarar, em conjunto com as Escrituras, que o mundo foi criado pela Palavra de Deus: “Tua palavra o criou.” (2017, p. 332). Como é possível que Deus tenha falado se não havia nenhum corpo físico criado para emitir ondas sonoras? Pois, se foi com palavras sonoras que disseste ‘Que se façam o céu e a terra!’ [...], é que já havia, antes do céu e da terra, uma criatura corporal, cujos movimentos temporais haviam feito vibrar essa voz no tempo. Mas não havia corpo algum antes do céu e da terra, ou se algum existia, tu certamente já o tinhas criado sem o intermédio de uma voz de palavras sucessivas [...] (AGOSTINHO, 2017, p. 332). De acordo com o relato de Gênesis, não havia nada por meio do qual Deus pudesse falar. Segundo a tradição cristã, tudo foi criado por Deus ex nihilo , ou seja, a Vol. 16, 2021 www.marilia.unesp.br/filogenese 215 http://www.marilia.unesp.br/filogenese Uma filosofia da linguagem divina partir do nada. Então, se não foi por palavras proferidas por um corpo físico 7 anteriormente criado, “de que palavra te serviste?” (AGOSTINHO, 2017, p. 333). Afinal, como Deus falou e criou? Agostinho de Hipona se volta para o início do Evangelho de João para responder essa dúvida: No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito (João 1.1-3). 8 No Livro XI das Confissões, Santo Agostinho chega à conclusão de que é por meio do Verbo que Deus diz eternamente tudo o que diz e que “existe tudo o que mandas que exista”. Esse Verbo, intermediário do ato criacional de Deus, é a “palavra pronunciada eternamente e na qual tudo é pronunciado eternamente”, que não pode ser “uma sequência de palavras, ou uma palavra que termina e é seguida por outra”, mas uma Palavra em que “tudo é dito ao mesmo tempo e eternamente” (2017, p. 333). O Verbo, isto é, o Logos ( λογος ), é a “voz” pela qual o mundo foi criado. E este Verbo, que “tornou-se carne e viveu entre nós”, é o próprio Jesus Cristo, o “Unigênito vindo do Pai, cheio de graça e de verdade” (João 1.14), o Filho “por meio de quem [Deus] fez o universo” (Hebreus 1.2). Deus, portanto, segundo Agostinho, não cria nada a não ser dizendo o Verbo, ou seja, pronunciando “a palavra pronunciada eternamente” (2017, p. 333). Percebemos no Verbo de Deus, o Cristo, além de seu poder criacional, duas outras características linguísticas: a comunicação não verbal do Deus-Filho que revela o Deus-Pai e o poder transformador das palavras-feitos de Jesus. 4.1. “Quem me vê, vê o Pai” 8 Tradução da Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. A citação em forma de poesia vem da sugestão de alguns estudiosos de que há a possibilidade do trecho de João 1.1-18 ter sido um hino cristão do primeiro século e de que o trecho em questão tenha sido escrito em “prosa rítmica” (ÁVILA, Lucas. Gosp”EU”: o individualismo na música gospel brasileira contemporânea, São Paulo: Ase Editorial, 2017, p. 24). 7 Santo Agostinho, no livro XII das Confissões, afirma: “Mas fora de ti nada existia com que pudesses fazer o céu e a terra, ó Trindade una, Unidade trina. Por isso criaste do nada o céu e a terra, essa imensidão e essa pequenez.” (2017, p. 365). Vol. 16, 2021 www.marilia.unesp.br/filogenese 216 http://www.marilia.unesp.br/filogenese Uma filosofia da linguagem divina Após algum tempo de ministério, prestes a ser entregue para a crucificação, Jesus afirma para os seus discípulos que ele mesmo é “o caminho, a verdade e a vida” e que “ninguém vem ao Pai, a não ser por mim.”. Além disso, Jesus continua sua fala afirmando que quem conhece ele de fato também conhece o Pai: “Já agora vocês o conhecem e o têm visto.” (João 14.6-7). Então, um dos doze apóstolos, Filipe, faz um pedido: “Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta.” (14.8). Jesus, então, um pouco incomodado com aquele pedido, diz a Filipe: “Quem me vê, vê o Pai. Como você pode dizer: ‘Mostra-nos o Pai’?” (14.9). Jesus afirmou, com todas as letras, que toda a sua vida e todas as suas obras e milagres estavam o tempo todo comunicando, de forma não-verbal, quem era o Deus-Pai. Após a morte, ressurreição e ascensão aos céus de Jesus, os cristãos de fato creram nisso. O apóstolo Paulo, em sua carta aos cristãos da cidade de Colossas, por exemplo, afirmou que Jesus Cristo “é a imagem do Deus invisível” (Colossenses 1.15). Além disso, o autor da epístola aos hebreus diz que “o Filho [o Cristo] é o resplendor da glória de Deus e a expressão exata do seu ser.” (Hebreus 1.3). Na visão bíblica, portanto, há uma linguagem sem palavras por meio da qual o próprio Messias se utilizou para comunicar algo sobre Deus. Na verdade, o que Jesus Cristo expressou com todo o seu ministério (por meio de palavras ou não) foi o próprio caráter do Deus-Pai: “Ninguém jamais viu a Deus, mas o Deus [o Filho] Unigênito, que está junto do Pai, o tornou conhecido.” (João 1.18). 4.2. “...uma palavra...” Jesus, como Filho de Deus e Verbo criador, também realizava coisas através de seus atos de fala. Nas Escrituras, podemos perceber que apenas uma palavra ou uma ordem do Cristo era suficiente para algo acontecer. Para o Messias “dizer algo é fazer algo”, assim como para Austin (1990, p. 29) . Um episódio específico ilustra bem isso: 9 Jesus foi com eles. Já estava perto da casa quando o centurião mandou amigos dizerem a Jesus: "Senhor, não te incomodes, pois não mereço receber-te debaixo do meu teto. Por isso, nem me considerei digno de ir ao teu encontro. Mas dize uma palavra, e o meu servo será curado . Pois eu também sou homem sujeito a autoridade, e com soldados sob o meu comando. Digo a um: ‘Vá’, e ele vai; e a outro: ‘Venha’, e ele vem. Digo a meu servo: ‘Faça isto’, e ele faz". Ao ouvir isso, Jesus admirou-se dele e, 9 Talvez, o mais correto, por uma questão de lógica temporal, seria dizer: “Para Austin ‘dizer algo é fazer algo, assim como para o Messias.”. Vol. 16, 2021 www.marilia.unesp.br/filogenese 217 http://www.marilia.unesp.br/filogenese Uma filosofia da linguagem divina voltando-se para a multidão que o seguia, disse: "Eu lhes digo que nem em Israel encontrei tamanha fé". (Lucas 7:6-9). 10 O poder transformador da realidade inerente às palavras de Jesus, isto é, às suas palavras-feitos (ou, por que não, “palavras-milagres”?) pode ser visto por toda a narrativa dos quatro evangelhos: ao perdoar pecados (p. ex. Mateus 9.2); expulsar demônios(p. ex. Lucas 11.14); curar leprosos, paralíticos, cegos etc. (p. ex. Lucas 17.12-19, João 5.8-9 e João 9.1-7); ao ressuscitar mortos (p. ex. Lucas 8.54-55) e, principalmente, ao declarar realizada a obra de remissão dos pecados da humanidade: “está consumado!” (João 19.30). 5. Nós falamos porque Ele falou primeiro Na antropologia bíblica, os seres humanos são distintos do restante da criação, pois foram criados à imagem e semelhança do próprio Deus (Gênesis 1.26-27). Um dos significados mais prováveis da imago dei é de que o ser humano “é semelhante a Deus e o representa” (GRUDEM, 1999, p. 364). Nesse sentido, poderíamos dizer que, assim como Deus profere palavras-feitos, também nós, seres humanos, realizamos algo semelhante. Algumas passagens bíblicas sugerem exatamente essa característica humana de poder realizar coisas por meio de atos de fala. A maioria delas parece sugerir que nós possuímos certa responsabilidade no uso das palavras e suas consequências, o que nos remete às distinções austinianas entre locução, ilocução e perlocução. Os conselhos do livro de Provérbios são bons exemplos disso: “há palavras que ferem como espada, mas a língua dos sábios traz a cura.”; “o falar amável é árvore de vida, mas o falar enganoso esmaga o espírito.”; “as palavras do tolo provocam briga, e a sua conversa atrai açoites.”; “a língua tem poder sobre a vida e sobre a morte; os que gostam de usá-la comerão do seu fruto.”; entre outros (Provérbios 12.18; 15.4; 18.6,21). Porém, a passagem mais forte talvez seja a que encontramos no Sermão do Monte, proferido por Jesus, em que ele afirma que um simples xingamento de desprezo direcionado a um semelhante é comparado ao pecado de assassinato: Vocês ouviram o que foi dito aos seus antepassados: ‘Não matarás’, e ‘quem matar estará sujeito a julgamento’. Mas eu lhes digo que qualquer que se irar 10 Grifo nosso. Vol. 16, 2021 www.marilia.unesp.br/filogenese 218 http://www.marilia.unesp.br/filogenese Uma filosofia da linguagem divina contra seu irmão estará sujeito a julgamento. Também, qualquer que disser a seu irmão: ‘Racá’ , será levado ao tribunal. E qualquer que disser: ‘Louco! 11 ’, corre o risco de ir para o fogo do inferno . (Mateus 5.21-22). 12 Os atos de fala dos quais fala John Austin, utilizando os exemplos do casamento e do batismo, são, nas Escrituras, uma ação humana que só é possível por causa do modo como os seres humanos foram criados, isto é, à imagem e semelhança do próprio Deus. Na verdade, assim como as Escrituras afirmam que “nós amamos porque ele nos amou primeiro.” (1 João 4:19), poderíamos também dizer que nós só falamos, porque o próprio Deus, por meio do Verbo coeterno, falou primeiro. Ou melhor: nós falamos porque Deus falou eternamente. Conclusão Quando se trata do livro sagrado judaico-cristão, parece-nos que quase tudo é feito pela linguagem. Aliás, como afirmou o teólogo inglês J.I. Packer, o deus revelado nas Escrituras Sagradas é um “Deus que fala” (PACKER apud WON, 2020, p. 25). Deste modo, seria possível afirmar que encontramos na Bíblia uma “teoria” da linguagem suficientemente bem definida. Uma concepção linguística que, diga-se de passagem, é bastante similar àquela que foi proposta por Austin muitos séculos depois dos tempos bíblicos. Poderíamos dizer, inclusive, que, ao nos depararmos com as Escrituras, estamos diante de uma compreensão da linguagem que se apresenta como uma precursora daquilo que hoje chamamos de atos de fala. Consideramos que o propósito deste ensaio, isto é, de estabelecer uma visão bíblica acerca da linguagem, foi alcançado de maneira parcial. Muitos outros exemplos e passagens bíblicas ficaram de foram de nossa análise, tais como as que descrevem os atos proféticos (encenações que transmitiam mensagens) dos profetas do Antigo Testamento ou até mesmo algo ainda mais grandioso, como a Cruz de Cristo, que traz em si muitos significados teológicos e culturais. Outra análise ainda poderia ser feita acerca das pregações dos apóstolos que são encontradas, por exemplo, no livro de Atos. A pregação é, inclusive, o modo como Deus, segundo as Escrituras do Novo 12 Jesus não afirma que palavra literalmente mata, mas que o xingamento é equivalente ao pecado de assassinato. 11 “Racá” é um termo de desprezo em aramaico. Vol. 16, 2021 www.marilia.unesp.br/filogenese 219 http://www.marilia.unesp.br/filogenese Uma filosofia da linguagem divina Testamento, decidiu espalhar a mensagem do Evangelho de Jesus Cristo a todo mundo (Marcos 16.16-16 e 1 Coríntios 1.21). Entretanto, apesar de conseguirmos extrair algumas definições a respeito da visão bíblica da linguagem, as Escrituras não fazem uma apresentação sistemática (propositiva) acerca desse assunto. O que temos, na verdade, é que as palavras-feitos de Deus e o modo como elas funcionam vão sendo desvendados pouco a pouco no decorrer de uma história que é contada do início (Gênesis) ao fim (Apocalipse). A visão bíblica 13 da linguagem, portanto, não é descrita de forma propositiva, mas revelada progressivamente por meio de uma narrativa histórica, que acaba por revelar o próprio Deus. Referências AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução: Frederico Ozanam Pessoa de Barros. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. BARTHOLOMEW, Graig C; GOHEEN, Michael W. O Drama das Escrituras: encontrando o nosso lugar na história bíblica. Tradução: Daniel Kroker. São Paulo: Vida Nova, 2017. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada: Nova Versão Internacional . São Paulo: Editora Vida, 2000. CARSON, D.A. O comentário de João. São Paulo: Shedd Publicações, 2007. GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1999. KAISER JR, Walter C. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1980. KIDNER, Derek. Gênesis: introdução e comentário. Tradução: Odayr Olivetti. São Paulo: Vida Nova, 1979. VANHOOZER, Kevin J. O drama da doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. São Paulo: Vida Nova, 2016. 13 A essa história diversos teólogos têm dado nomes como Drama da Redenção, Drama Bíblico ou ainda Drama das Escrituras (ver, por exemplo, BARTHOLOMEW, Graig C e GOHEEN, Michael W. O Drama das Escrituras: encontrando o nosso lugar na história bíblica . São Paulo: Vida Nova, 2017.). Vol. 16, 2021 www.marilia.unesp.br/filogenese 220 http://www.marilia.unesp.br/filogenese Uma filosofia da linguagem divina WARD, Timothy. Teologia da Revelação: as Escrituras como palavras de vida. Tradução: A.G. Mendes. São Paulo: Vida Nova, 2017. WON, Paulo. E Deus falou na língua dos homens: uma introdução à Bíblia. 1.ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020. Vol. 16, 2021 www.marilia.unesp.br/filogenese 221 http://www.marilia.unesp.br/filogenese
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