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Psicologia Social Neiva.indd 1 21/2/2011 15:44:32 N???? Neiva, Elaine R. Psicologia social: principais temas e vertentes / Elaine Rabelo Neiva e cols. ; – Porto Alegre : Artmed, 2011. ??? p. ; 25 cm. ISBN ?????????????????? 1. ????????. 2. ??????????????????. I. ????????????????. II. Título. CDU ?????????????? Catalogação na publicação: Ana Paula M. Magnus – CRB 10/2052 Neiva.indd 2 21/2/2011 15:44:32 2011 Cláudio vaz torreS elaine rabelo neiva e colaboradores Psicologia Social Principais temas e vertentes Neiva.indd 3 21/2/2011 15:44:32 © Artmed Editora S.A., 2011 Capa Tatiana Sperhacke Preparação do original Elisângela Rosa dos Santos Editora Sênior – Ciências humanas Mônica Ballejo Canto Projeto e editoração Armazém Digital® Editoração Eletrônica – Roberto Carlos Moreira Vieira Reservados todos os direitos de publicação, em língua portuguesa, à ARTMED® EDITORA S.A. Av. Jerônimo de Ornelas, 670 – Santana 90040-340 – Porto Alegre, RS Fone: (51) 3027-7000 Fax: (51) 3027-7070 É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, foto cópia, distribuição na Web e outros), sem permissão expressa da Editora. SÃO PAULO Av. Embaixador Macedo Soares, 10735 – Pavilhão 5 – Cond. Espace Center – Vila Anastácio 05095-035 – São Paulo, SP Fone: (11) 3665-1100 Fax: (11) 3667-1333 SAC 0800 703-3444 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Neiva.indd 4 21/2/2011 15:44:33 Cláudio Vaz Torres (org.). Ph.D. em Psicologia pela California School of Professional Psychology, San Die‑ go, California, EUA. Pós ‑doutorados em Marketing pela Griffith University, Austrália, e Pesquisa e Psicolo‑ gia Transcultural pela UniversityofSussex, Inglaterra. Professor do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia na Universidade de Brasília, onde também atua como professor do Pro‑ grama de Pós ‑Graduação em Administração. Um dos fundadores do grupo de estudo e pesquisa em com‑ portamento de consumo da Universidade de Brasília – Consuma/UnB. É membro e contribui ativamente com a International Association for Cross ‑cultural Psychology, InternationalAcademy for Intercultural Research, The American Psychological Association (Divisão 52) e da Sociedade Interamericana de Psicologia. Elaine Rabelo Neiva (org.). Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília. Professora do Depar‑ tamento de Administração da Universidade de Brasília. Atua no Programa de Pós ‑graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações – PSTO. Fundadora do grupo de Pesquisa Inovare da Universidade de Brasília. É membro da InternationalAssociationofAppliedPsychology (Divisão 1) e da Sociedade Interame‑ ricana de Psicologia. cologia pela Universidade de Brasília.Bacharel em Psicologia e Psicóloga pela Universidade Federal de São Carlos. Tem experiência docente em cur‑ sos de graduação em Psicologia e Administração de Empresas. Pesquisadora e consultora em Psico‑ logia do Trabalho e das Organizações, incluindo tó‑ picos relacionados a Administração de Empresas. Ana Lúcia Galinkin. Pós ‑Doutoraem Psicologia Social pela Universidade René Descartes, Paris, França. Doutora em Sociologia pela Universida‑ de de São Paulo. Mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Psicóloga pela Uni‑ versidade Federal de Minas Gerais. Professora Associada II no Programa de Pós ‑Graduação em Psicologia Social do Trabalho e das Organizações, Universidade de Brasília. Angela M. O. Almeida. Psicóloga pela Univer‑ sidade de São Paulo. Mestre em Psicologia da Educação, pela PUC/SP. Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela UniversitéCatholique de Louvain.Doutorado em Psicologia pela Université Autores Amália Raquel Perez ‑Nebra. Psicóloga e Dou‑ tora em Psicologia Social, do Trabalho e das Or‑ ganizações pela Universidade de Brasília. Estágio doutoral na Universidad Autónoma de Madrid. Professora do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Fundadora e coordenadora do Grupo Consuma – Grupo de Estudo e Pesquisa em Com‑ portamento do Consumidor. Amanda Zauli ‑Fellows. Graduada em Desenho Industrial pela Escola Superior de Desenho Indus‑ trial – ESDI, da UERJ. Atuou como tutora de cursos de graduação e de pós ‑graduação em educação a distância no Centro de Educação a Distância da Universidade de Brasília – CEAD/UnB. Especialista em Desenvolvimento Gerencial. Mestre em Ges‑ tão Social e Trabalho. Doutoranda em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações (Psto) na Universidade de Brasília. Ariane Agnes Corradi. Doutoranda no Inter‑ nationalInstituteof Social Studies, Universidade Erasmus Rotterdam, Países Baixos. Mestre em Psi‑ Neiva.indd 5 21/2/2011 15:44:33 Catholique de Louvain. Professora Associada 1 da Universidade de Brasília. Coordenadora do Labo‑ ratório de Psicologia Social do Desenvolvimento. Diretora do Centro Internacional de Pesquisa em Representações e Psicologia Sociais. Aurea de Fátima Oliveira. Professora do Ins‑ tituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia. Doutora em Psicologia pela Univer‑ sidade de Brasília (UnB). Leciona nos cursos de graduação em Psicologia e Administração, e pós‑ ‑graduação lato sensu e strito sensu. BartholomeuTôrresTróccoli. Possui Licenciatura em Psicologia pelo Instituto Paraibanos de Educa‑ ção. Psicólogo pelo Instituto Paraibanos de Educa‑ ção. Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba. Mestre e Doutorem Personality and Social Psychology pela University of Wisconsin, Madison.Professor Associado I da Universidade de Brasília. Coordenador do Laboratório de Pesquisa em Avaliação e Medida – LabPAM da UnB. Carlos Eduardo Pimentel. Psicólogo. Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba. Doutorando em Psicologia Social, do Tra‑ balho e das Organizações na Universidade de Bra‑ sília. Bolsista do CNPq. Christin ‑Melanie Vauclair. Professor na Uni‑ versityof Kent, Canterbury, Inglaterra. Doutor pelo Centre for Applied Cross ‑Cultural Research, Victoria Universityof Wellington, Nova Zelândia. Recebeu o prêmio GermanStudyAward, Hambur‑ gerKoerberStiftung, por seu trabalho no desenvol‑ vimento de treinamento para gerentes alemães que trabalham no Brasil. Hartmut Günther. Estudou psicologia nas uni‑ versidades de Hamburg, Alemanha (1966 ‑67) e de Marburg, Alemanha. Psicólogo pelo Albion Colle‑ ge, Michigan, EUA. Mestre em Psicologia Experi‑ mental (AEC) pela Western Michigan University. Doutor em Psicologia Social pela UniversityofCa‑ liforniaat Davis. Professor Titular na Universidade de Brasília. Helga Cristina Hedler. Doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pelo Ins‑ tituto de Psicologia da Universidade de Brasília. Professora na Universidade Católica de Brasí‑ lia – UCB, no Curso de Mestrado em Gestão do Conhecimento e da Tecnologia da Informação. Professora convidada do Curso de Especialização em Gestão da Qualidade do Instituto de Educação Superior de Brasília. Hugo Rodrigues. Psicólogo pela Universidade de Brasília (bacharelado e licenciatura). Mestre em Psicologia Social,Organizacional e do Trabalho. Doutorando pela mesma instituição. Jaqueline Gomes de Jesus. Doutora em Psico‑ logia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília. Professora em diferentes instituições de ensino superior e Integrante do Con‑ selho Nacional de Combate à Discriminação, vincu‑ lado à Presidência da República. Assessora Técnica da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. José Augusto Dela Coleta. Psicólogo pela Uni‑ versidade de São Paulo, Ribeirão Preto. Doutor em Psicologia pela Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro. Foi professor da Universidade Federal Fluminense e aposentou ‑se como Professor Titu‑ lar da Universidade Federal de Uberlândia. Profes‑ sor em cursos e programas de graduação, Mestra‑ do e Doutorado nas áreas de Psicologia, Educação, Administraçãoe Enfermagem ministrando as dis‑ ciplinas relacionadas à Psicologia Social, Psicologia Organizacional e do Trabalho, metodologia de in‑ vestigação científica. Professor na Universidade de Uberaba no campus de Uberlândia, MG. Maria Cristina Ferreira. Doutora em Psicologia pela Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.Pos‑ ‑Doutora em Psicologia Transculturalpela Victoria Universityat Wellington, Nova Zelândia. Profes‑ sora Titular da Universidade Salgado de Oliveira. Coordenadora do Mestrado em Psicologia dessa instituição. É membro e contribui ativamente com a InternationalAssociation for Cross ‑cultural Psycho‑ logy, The American PsychologicalAssociatione com a Sociedade Interamericana de Psicologia. Maria de Fátima de Souza Santos. Psicóloga pela Universidade Federal de Pernambuco. Dou‑ tora em Psicologia pelaUniversité de Toulouse leMirail. Professora Associada 2 da Universidade Federal de Pernambuco, no Departamento de Psi‑ cologia e da Pós ‑Graduação em Psicologia. Marilia Ferreira Dela Coleta. Psicóloga pela Universidade Federal Fluminense.Mestre pela Uni‑ versidade de Brasília.Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília. Professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlân‑ dia, onde atua no programa de pós ‑graduação em Psicologia e no curso de graduação em Psicologia. Membro Associado Pleno da Sociedade Brasileira de Psicologia, tendo assumido cargo na Diretoria em duas gestões. vi AUTORES Neiva.indd 6 21/2/2011 15:44:33 Mirlene Maria Matias Siqueira. Psicóloga pela Universidade de Brasília. Mestre em Psicologia pela Universidade de Brasília. Doutoraem Psico‑ logia pela Universidade de Brasília. Pós ‑doutora como docente visitante em 2010 na Universidade de Coimbra. Mestre em Psicologia Organizacional e do Trabalho (WOP ‑P) do Programa EramusMun‑ dus. Presidente da Comissão Organizadora do IV CBPOT. Professora Titular na Universidade Meto‑ dista de São Paulo. Onofre Rodrigues de Miranda. Administra‑ dor de Empresas pela Universidade de Brasília. Especialista em Gestão e Desenvolvimento da Educação Profissional pelo SENAC e UnB. Mes‑ tre em Psicologia Social e das Organizações pela UnB. Doutor em Psicologia Social, do trabalho e das Organizações pela UnB. Professor Titular do Curso de Administração Geral e MBA em Gestão Estratégica da Faculdade Cambury. Patrícia Nunes da Fonsêca. Doutora em Psico‑ logia Social pela Universidade Federal da Paraíba. Professora do Departamento de Psicopedagogia da Universidade Federal da Paraíba.Llíder doNú‑ cleo de Estudos em Desenvolvimento Humano, Educacional e Social (NEDHES). Membro da So‑ ciedade Brasileira de Psicopedagogia. Ronald Fischer.Professor (SeniorLecturer) na Victoria Universityof Wellington, Nova Zelândia. Membro do Centre for Applied Cross ‑Cultural Research. Doutor pela Universidade de Sussex, Inglaterra. Editor Associado do Journalof Cross‑ ‑Cultural Psychology. Seu trabalho com valores e pacificação recebeu em 2010 o premio Otto Kline‑ berg Intercultural andInternationalRelationsAward agraciado pelaSociety for thePsychologicalStudyof Social Issues. Sinésio Gomide Júnior. Psicólogo. Mestre e Doutor em Psicologia pela Universidade de Bra‑ sília. Professor Associado na Universidade Federal de Uberlândia. Solange Alfinito. Doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universida‑ de de Brasília. Mestre em Economia de Empresas pela Universidade Católica de Brasília. Professora no Departamento de Administração da UnB, onde também atua como professora do Programa de Pós ‑Graduação em Administração. Membro do grupo de estudo e pesquisa em comportamento do consumidor da Universidade de Brasília – Con‑ suma/UnB. Taciano Lemos Milfont. Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba. Ph.D. em Psicologia Social e Ambiental pela Universityof Auckland,Nova Zelândia. Professor (SeniorLec‑ turer) na Victoria Universityof Wellington, Nova Zelândia, onde também atua no Centre for Applied Cross ‑Cultural Research. Já recebeu prêmios in‑ ternacionais por suas pesquisas e desde 2010 faz parte do corpo editorial do Journalof Environmental Psychology. Túlio Gomes da Silva Mauro. Mestre pelo De‑ partamento de Psicologia Social do Trabalho e das Organizações da Universidade de Brasília. Atua como consultor em Gestão de Pessoas e Desen‑ volvimento Organizacional. Professor do Depar‑ tamento de Psicologia da Universidade Paulista – UNIP. Valdiney V. Gouveia. Doutor em Psicologia So‑ cial pela UniversidadComplutense de Madrid, Espanha. Professor Associado do Departamento de Psicologia na Universidade Federal da Paraíba, atuando como professor e orientador na gradu‑ ação e pós ‑graduação (Mestrado e Doutorado). Pesquisador 1B do CNPq. É fundador e membro do grupo de pesquisas Bases Normativas do Com‑ portamento Social. AUTORES vii Neiva.indd 7 21/2/2011 15:44:33 Neiva.indd 8 21/2/2011 15:44:33 Sumário 1. Breve história da moderna psicologia social .................................................................11 Maria Cristina Ferreira 2. Psicologia social no Brasil: uma introdução ..................................................................29 Elaine Rabelo Neiva, Cláudio Vaz Torres e Ariane Agnes Corradi 3. Métodos de pesquisa em psicologia social ...................................................................56 Hartmut Günther parte I O indivíduo 4. Cognição social .............................................................................................................77 Bartholomeu T. Tróccoli 5. Normas sociais: conceito, mensuração e implicações para o Brasil .............................98 Cláudio Vaz Torres e Hugo Rodrigues 6. Conhecendo a si e ao outro: percepção e atribuição de causalidade ........................132 José Augusto Dela Coleta e Marilia Ferreira Dela Coleta 7. Influência social e poder .............................................................................................151 Ronald Fischer e Christin ‑Melanie Vauclair 8. Atitude e mudança de atitudes ...................................................................................169 Elaine Rabelo Neiva e Túlio Gomes Mauro 9. Estratégias de mensuração de atitudes em psicologia social ......................................202 Carlos Eduardo Pimentel, Cláudio Vaz Torres e Hartmut Günther 10. Preconceito, estereótipo e discriminação ..................................................................217 Amalia Raquel Pérez ‑Nebra e Jaqueline Gomes de Jesus Neiva.indd 9 21/2/2011 15:44:33 11. Atração e repulsa interpessoal ...................................................................................236 Jaqueline Gomes de Jesus parte II O grupo e o contato intergrupal 12. A identidade social e a alteridade ...............................................................................251 Ana Lúcia Galinkin e Amanda Zauli ‑Fellows 13. Contato intergrupal: conflito realístico, privação relativa e equidade ........................260 Solange Alfinito e Ariane Agnes Corradi 14. A teoria das representações sociais ...........................................................................285 Angela Maria de Oliveira Almeida e Maria de Fátima de Souza Santos 15. Valores humanos: contribuições e perspectivas teóricas ...........................................294 Valdiney V. Gouveia, Patrícia Nunes da Fonsêca, Taciano L. Milfont e Ronald Fischer 16. Cultura, valores humanos e comunicação nas relações intergrupais .........................312 Onofre Rodrigues de Miranda e Helga Cristina Hedler 17. Aplicações da psicologia social às organizações .........................................................338 Sinésio Gomide Júnior, Áurea de Fátima Oliveira e Mirlene Maria Matias Siqueira 10 SUMáRIO Neiva.indd 10 21/2/2011 15:44:33 Introdução A psicologia social é uma disciplina relati- vamente recente, já que adquiriutal status apenas no começo do século XX, razão pela qual alguns dos que contribuíram para a construção de seu passado ainda estão vi- vos e atuantes em suas respectivas áreas de investigação. Um rápido exame dessa curta história evidencia que, desde o início, essa área da psicologia social foi marcada por uma relativa falta de consenso acerca de seu objeto de estudo. Ainda assim, é possível ob- servar que o binômio indivíduo -sociedade, isto é, o estudo das relações que os indiví- duos mantêm entre si e com a sociedade ou a cultura, esteve frequentemente no centro das preocupações dos psicólogos sociais. No entanto, a ênfase maior dada ao indivíduo ou à sociedade irá acompanhar a evolução da teorização no campo da psico- logia social desde os seus primórdios, levan- do à caracterização de duas diferentes mo- dalidades da disciplina: a psicologia social psicológica e a psicologia social sociológica. A psicologia social psicológica, segundo a definição de Gordon Allport (1954), que se tornou clássica, procura explicar os senti- mentos, pensamentos e comportamentos do indivíduo na presença real ou imaginada de outras pessoas. Já a psicologia social socio- lógica, segundo Stephan e Stephan (1985), tem como foco o estudo da experiência so- cial que o indivíduo adquire a partir de sua participação nos diferentes grupos sociais com os quais convive. Em outras palavras, os psicólogos sociais da primeira vertente tendem a enfatizar principalmente os pro- cessos intraindividuais, enquanto os da se- gunda tendem a privilegiar as coletividades sociais. A história “oficial” da psicologia social foi contada, durante muito tempo, nos ca- pítulos dos Handbooks of Social Psychology, escritos por Gordon Allport e sucessiva- mente publicados nos anos de 1954, 1968 e 1985 com ligeiras modificações. Contudo, o trabalho de Allport tem sofrido críticas (Apfelbaum, 1992) associadas ao fato de ser uma história parcial, que ressalta ape- nas as raízes da psicologia social psicológi- ca, procurando assim legitimar tão somente os pressupostos teóricos e metodológicos de parte da comunidade científica que atua no âmbito dessa modalidade de psicologia social. Publicações mais recentes (Álvaro e Garrido, 2007; Farr, 1999; Jahoda, 2007; Vala e Monteiro, 2004) têm procurado supe- rar tais limitações ao abordar as raízes não apenas da psicologia social psicológica, mas também da psicologia social sociológica e de outras vertentes que, ao longo do tempo, fo- ram desenvolvendo -se em outras partes do mundo, de forma independente da corrente dominante que era praticada sobretudo nos Estados Unidos. O presente capítulo tem como objetivo realizar uma revisão descritiva e cronológi- ca dos principais eventos apontados como marcantes no desenvolvimento das diferen- tes modalidades nas quais se desdobra a moderna psicologia social, como forma de 1 Breve história da moderna psicologia social MARiA CRiSTiNA FERREiRA Neiva.indd 11 21/2/2011 15:44:33 12 TORRES, NEIVA & COLS. contextualizar suas origens, sem ter a pre- tensão de esgotar o assunto. Nesse sentido, inicia -se com a abordagem dos autores que, na segunda metade do século XIX, desen- volveram reflexões sobre temas que exer- cerão significativa influência na construção da nova disciplina para, em seguida, tecer comentários sobre as obras que assinalaram a sua fundação. Posteriormente, discutem- -se os desdobramentos que ocorreram nos Estados Unidos, na Europa e na América Latina, para, à guisa de conclusão, trazer algumas reflexões acerca do estado atual da psicologia social. Cumpre ressaltar que a excelente revisão histórica de ambas as vertentes da psicologia social, realizada por Álvaro e Garrido (2007), mostrou -se funda- mental à elaboração do presente capítulo. os precursores da psIcologIa socIal A expressão “psicologia social” foi utilizada pela primeira vez em 1908, ou seja, no iní- cio do século XX, em dois diferentes livros, razão pela qual esse ano é considerado por muitos como a data de fundação da discipli- na. Porém, ao longo do século XIX, quando os limites entre a sociologia e a psicologia ainda não eram muito claros, foram publi- cadas várias obras nas quais o indivíduo e a sociedade já eram abordados e discutidos. Seus autores eram pensadores oriundos de vários campos do saber, como, por exemplo, a filosofia, a antropologia, a biologia, etc., já que naquela época o papel profissional do psicólogo social ainda não havia sido insti- tuído. Entre esses, merecem destaque os es- tudos de Darwin e Spencer, na Inglaterra, os estudos de Wundt, na Alemanha, e os estudos de Durkheim, Tarde e Le Bon, na França. Os precursores da psicologia social na inglaterra A teoria da evolução de Charles Darwin (1809 -1882) é considerada uma das mais poderosas e populares inovações do século XIX, tendo exercido grande influência sobre a psicologia. Em 1859, Darwin publica a obra Origem das espécies, na qual desenvolve a tese da seleção natural (Boeree, 2006a). Segundo ela, na briga pelos escassos recur- sos da natureza, somente as espécies com maior capacidade de adaptação às varia- ções da natureza conseguiram sobreviver e reproduzir -se. Darwin acreditava, portanto, que o ser humano constitui -se como o pro- duto final de um processo evolucionista que envolveu todos os organismos vivos, ou seja, um animal social que desenvolveu maior ca- pacidade de se adaptar física, social e men- talmente às mudanças ambientais e sociais. Para ele, então, haveria uma continuidade entre as espécies humanas e não humanas. Tempos depois, Herbert Spencer (1820 -1903), fundamentando -se na teoria da seleção natural, converte -se em um dos principais líderes do movimento conhecido como darwinismo social, sendo dele a ex- pressão “sobrevivência do mais adaptado”. No livro Princípios de psicologia, publicado em 1870, ele aplica as ideias de Darwin so- bre o desenvolvimento da espécie humana ao desenvolvimento de grupos, socieda- des e culturas, enfatizando a existência de uma continuidade entre ambos (Boeree, 2006a). Seu principal argumento era o de que as nações e os grupos étnicos podiam ser classificados na escala evolucionista de acordo com o seu grau de desenvolvimento, organização, poder e capacidade de adap- tação. Desse modo, os povos mais civiliza- dos e avançados em termos culturais eram hierarquicamente superiores aos povos mais atrasados no que tange à escala evolucio- nista. As abordagens de Darwin e Spencer exerceram forte influência na psicologia dos instintos, praticada ao início do século XX por alguns psicólogos sociais, conforme se verá mais à frente. O precursor da psicologia social na Alemanha Wilhelm Wundt (1832 -1920) é o principal representante da psicologia dos povos, que Neiva.indd 12 21/2/2011 15:44:33 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 13 surgiu na esteira do movimento de reunifi- cação da Alemanha e que tinha como foco o estudo dos principais atributos em comum que definiam o caráter nacional ou o pensa- mento coletivo do povo alemão (Mcgarty e Haslam, 1997). Suas ideias, entretanto, so- freram uma considerável evolução ao longo de sua carreira. Assim é que, inicialmente, ele defendia que a psicologia científica de- veria ser vista como uma ciência natural que se ocupava do estudo da mente, isto é, dos processos mentais básicos (sensação, ima- gem e sentimentos). Para Wundt, esse tipo de investigação deveria ser conduzido por meio da introspecção, ou seja, mediante a auto -observação rigorosa e controlada do modo pelo qual esses fenômenos ocorriam (Álvaro e Garrido, 2007). Em virtude dessas preocupações, Wundt criou em 1879, na cidade de Leipizig, o pri- meiro laboratório de psicologia do mundo, tendo ali realizado uma série de experimen- tos com o objetivo de estudar os processos mentais básicos, além de ter fundado o pri- meiro periódico de psicologia experimental. Tais ações levaram -no a serconsiderado o fundador da psicologia experimental. Com o passar do tempo, porém, Wundt sentiu necessidade de estudar os proces- sos mentais mais complexos ou superiores, como a memória e o pensamento, tendo constatado que o método experimental não era adequado a tal estudo. Assim, propôs uma distinção entre a psicologia experimen- tal, responsável pelo estudo dos processos mentais básicos, e a Völkerpsychologie (psi- cologia dos povos), dedicada ao estudo dos processos mentais superiores por meio do método histórico -comparativo. Com isso, ele estabelece uma clara distinção entre os fenômenos psicológicos mais externos, que estariam na periferia da mente, e os fenô- menos mais profundos, que constituiriam a mente propriamente dita (Álvaro e Garrido, 2007). Em sua Völkerpsychologie, Wundt toma a mente como um fenômeno histórico, um produto da cultura e da linguagem de um determinado povo, que não poderia ser ex- plicada em termos individuais, mas sim em termos coletivos. Por essa razão, detém -se no estudo da língua, da arte, dos mitos e dos costumes, como forma de compreender a mente. Em síntese, haveria uma íntima relação entre a mente humana e a cultura, entre o indivíduo e o contexto cultural no qual ele se desenvolve. Desse modo, a psico- logia deveria estudar as produções mentais coletivas originadas das ações de conjuntos de indivíduos se quisesse chegar à mente humana (Farr, 1999). A psicologia dos po- vos de Wundt exerceu influência principal- mente sobre a psicologia social sociológica, em virtude da ênfase atribuída à questão da determinação sócio -histórica do indivíduo e ao uso da metodologia não experimental. Os precursores da psicologia social na França Conforme já mencionado, entre os pre- cursores da psicologia social na França encontram -se Durkheim, Tarde e Le Bon. Emile Durkheim (1858 -1917) é considera- do um dos fundadores da sociologia, tendo publicado várias obras nas quais aborda a evolução da sociedade, os métodos da socio- logia e a vida religiosa. No livro intitulado Representações individuais e representações coletivas, publicado em 1898, ele desenvol- ve o conceito de representações coletivas (Melo Neto, 2000), que exerceu significativa influência sobre a psicologia social europeia. Para ele, as representações coletivas (como a religião, os mitos, etc.) constituem -se em um fenômeno ao nível da sociedade e distin- to das representações individuais, que estão no nível do indivíduo. Nesse sentido, postu- la que os sentimentos privados só se tornam sociais quando extrapolam os indivíduos e associam -se, formando uma combinação que se perpetua no tempo, transformando- -se na representação de toda uma sociedade. As posições de Durkheim influenciarão so- bretudo o psicólogo social Serge Moscovici, que, muitos anos depois, desenvolve a teo- ria das representações sociais. Gabriel Tarde (1843 -1904), na obra As leis da imitação, publicada em 1890, de- Neiva.indd 13 21/2/2011 15:44:33 14 TORRES, NEIVA & COLS. fende que a vida social tem como mecanis- mo básico a imitação (Karpf, 1932). Desse modo, qualquer produção individual, surgi- da sob a forma de uma invenção ou desco- berta, propaga -se na vida social por meio da imitação, uniformizando -a. Para ele, as ini- ciativas individuais constituem -se em uma invenção, enquanto as uniformidades da vida social associam -se à imitação, que con- siste, portanto, em uma socialização da ino- vação individual. Avançando em suas pro- posições, o autor ressalta que as pessoas de status inferior costumam imitar as de maior status, que o processo de imitação começa lentamente e com o tempo se acelera e que a cultura nacional é imitada antes da estran- geira (Álvaro e Garrido, 2007). As ideias de Tarde exercerão influência no trabalho de Ross, que publicou um dos primeiros livros de psicologia social. Em 1895, Gustav Le Bon (1814 -1931) publicou o livro Psicologia das multidões (Melo Neto, 2000), que exerceu significa- tiva influência nos trabalhos de vários psi- cólogos sociais posteriores. Nesse livro, o autor defende a tese de que as massas ou multidões constituem -se em seres psíquicos de características diferentes dos indivíduos que as compõem. Nesse sentido, quando eles se juntam às massas, perdem suas ca- racterísticas superiores e sua autonomia, passando a ser regidos por uma alma cole- tiva, com características independentes das de seus membros, além de mais primitivas e inconscientes. As multidões seriam, as- sim, as responsáveis pelo fato de os sujeitos perderem sua individualidade e passarem a fazer parte de um todo com características totalmente distintas das partes que o com- põem. Segundo Le Bon, ao se encontrar em uma multidão, o indivíduo sufoca sua per- sonalidade consciente e passa a ser domi- nado pela mente coletiva da multidão, que é capaz de levar seus membros a apresen- tar comportamentos unânimes, emocionais e desprovidos de racionalidade. Em outras palavras, as pessoas perdem sua capacidade de raciocínio e tornam -se altamente suges- tionáveis, o que as leva a cometer atos de barbárie que não praticariam se estivessem sozinhas. Quando enfatiza a irracionalidade das multidões, Le Bon estabelece um vínculo en- tre a psicologia social e a psicopatologia, ao qual se contrapõe a psicologia social psicoló- gica de base cognitiva, surgida nos anos de 1970 (Farr, 1999). Por outro lado, a questão da sugestão ou influência social, implícita na psicologia das multidões, posteriormente se converterá em objeto de atenção da psicolo- gia social psicológica de base experimental. No entanto, o estudo da mente grupal e do comportamento das multidões propriamen- te dito, foco central da obra de Le Bon, so- mente será resgatado mais recentemente, por autores como Moscovici e colaboradores (McGarty e Haslam, 1997). a fundação da psIcologIa socIal No início do século XX, a psicologia social começa a adquirir o status de uma discipli- na independente, e seu centro de gravidade começa a mudar da Europa para os Estados Unidos (Jahoda, 2007). Duas obras, publica- das no ano de 1908, irão marcar a fundação oficial da psicologia social moderna: Uma introdução à psicologia social, de William McDougall, e Psicologia social: uma resenha e um livro texto, de Edward Ross (Pepitone, 1981). Cumpre registrar, porém, que esses dois autores, embora fossem contemporâne- os e tivessem usado a expressão psicologia social nos títulos de seus livros, não estavam falando do mesmo assunto. Edward Ross (1866 -1951) era um so- ciólogo norte -americano que, influenciado pelas obras de Tarde e de Le Bon, caracte- rizou a psicologia social como o estudo das uniformidades de pensamentos, crenças e ações decorrentes da interação entre os seres humanos (Pepitone, 1981). Segundo Ross, os fenômenos subjacentes a essa uniformi- dade são a imitação, a sugestão e o contá- gio, o que explicaria a rápida uniformidade verificada entre as emoções e as crenças das multidões. Embora Ross tenha especificado Neiva.indd 14 21/2/2011 15:44:33 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 15 algumas variáveis que interferem na suges- tão (como, por exemplo, o prestígio da fon- te), sua análise da vida social humana não se reverteu no desenvolvimento de um mo- delo teórico formal, tendo ele se limitado a organizar observações extraídas da história, da literatura e do trabalho de outros auto- res. McDougall (1871 -1938), por outro lado, era um psicólogo britânico que foi fortemente influenciado pelas concepções de Darwin e Spencer sobre a evolução. Sua obra gira em torno do conceito de instinto, ressaltando a importância de certas carac- terísticas inatas e instintivas para a vida so- cial. Segundo ele, os instintos apresentam três componentes: a percepção, que leva o indivíduo a prestar atenção aos estímulos relevantes a seus instintos; o comporta- mento, responsável por levar o indivíduo a manifestar condutas destinadasa satisfazer seus instintos; e a emoção, que faz com que os instintos estejam associados a estados emocionais positivos ou negativos (Boeree, 2006b). Propôs ainda uma classificação dos instintos em primários, de segunda ordem e pseudoinstintos (Álvaro e Garrido, 2007). Os instintos primários são em número de sete e associam -se a emoções. Entre eles, es- tão, por exemplo, a fuga, associada ao medo, e o combate, associado à raiva. Os instintos secundários são em número de quatro e mostram -se importantes para a vida social, como, por exemplo, o instinto gregário. Já os pseudoinstintos são em número de três e interferem nas interações entre as pessoas, como no caso da imitação, por exemplo. Os estudos de McDougall são considerados pre- cursores das teorias motivacionais, que pos- teriormente se tornarão objeto de investiga- ção de alguns psicólogos sociais (McGarty e Haslam, 1997). No momento em que a psicologia co- meça a se definir como uma disciplina in- dependente, a publicação concomitante das obras de Ross e McDougall, estando situadas uma no âmbito da psicologia e outra, no âm- bito da sociologia, pode ser vista como uma evidência da separação entre a psicologia social psicológica e a psicologia social socio- lógica que se avizinhava. A partir do início do século XX, ambas as correntes sofrerão grande impulso nos Estados Unidos, ainda que trilhando direções distintas. Nesse sen- tido, acompanharemos inicialmente a evolu- ção da psicologia social psicológica para, em seguida, trilharmos os caminhos percorridos pela psicologia social sociológica ao longo do século XX. o desenvolvImento da psIcologIa socIal psIcológIca nos estados unIdos Nas primeiras décadas do século XX, os Estados Unidos assistem à ascensão do beha- viorismo, segundo o qual uma psicologia verdadeiramente científica deveria estudar e explicar apenas o comportamento humano observável, sem considerar construtos men- tais não observáveis, como a mente, a cog- nição e os sentimentos (McGarty e Haslam, 1997). Com isso, os psicólogos sociais pro- gressivamente abandonam as explicações do comportamento social em termos de instintos, bem como o uso da introspecção, passando a adotar uma psicologia social eminentemente experimental e focada no in- divíduo (Jahoda, 2007). Consequentemente, a divisão entre psicologia social psicológica e sociológica aprofunda -se na medida em que a psicologia passa a ser vista muito mais como uma ciência natural do que como uma ciência social (Pepitone, 1986). Cumpre registrar, porém, que o primei- ro experimento em psicologia social ocorreu ainda no século XIX, tendo sido conduzido por Tripplett em 1897 (Rodrigues, 1972). Esse experimento foi realizado com crianças que foram solicitadas a enrolar um anzol o mais rapidamente possível, sozinhas ou na presença de outras crianças que faziam a mesma tarefa. Os resultados mostraram que elas agiam muito mais rapidamente quan- do estavam acompanhadas do que quando estavam sozinhas, lançando assim as bases do estudo do fenômeno de facilitação social, Neiva.indd 15 21/2/2011 15:44:33 16 TORRES, NEIVA & COLS. que ainda hoje é um dos temas de interesse da psicologia social psicológica. Entretanto, é somente em 1924 que surge o livro -texto de psicologia social de Floyd Allport (1890 -1978), considerado um dos mais famosos psicólogos sociais beha- vioristas da época (Pepitone, 1981). O autor contrapõe -se ao estudo da consciência cole- tiva ou mente grupal pela psicologia social, por acreditar não ser possível a existência de uma mente comum a várias pessoas, de modo similar ao que ocorre com um indi- víduo particular. Além disso, ele considera que a psicologia social faz parte da psicolo- gia do indivíduo e não da sociologia e, como tal, deve ocupar -se do estudo das influên- cias do comportamento do indivíduo em ou- tras pessoas e das reações a tais influências (Karpf, 1932). Allport desenvolve uma série de expe- rimentos sobre facilitação social, demons- trando que os grupos nos quais as pessoas estavam juntas, mas trabalhando individu- almente, em tarefas mentais ou perceptuais, apresentavam melhor desempenho do que pessoas que estavam sozinhas realizando o mesmo tipo de tarefa. Com sua obra, ele de- fine, portanto, os limites da psicologia social psicológica como uma disciplina objetiva e de base experimental (Jones, 1985). Nos anos de 1920, inicia -se também o estudo das atitudes, sob a coordenação de Thurstone e colaboradores, que desen- volveram uma metodologia própria para a investigação do referido construto, toma- do como um fenômeno mental (McGarty e Haslam, 1997). Esse trabalho pioneiro sus- citou o desenvolvimento de várias outras técnicas para a mensuração das atitudes. Tais técnicas, aliadas à sofisticação cada vez maior do método experimental, garantirão o status científico da psicologia social psico- lógica ao longo das décadas subsequentes (Graumann, 1996). A Segunda Guerra Mundial Com a escalada do nazismo na Europa e a Segunda Guerra Mundial, muitos cientistas imigraram para os Estados Unidos. Além dis- so, os psicólogos sociais foram convocados a cooperar na resolução dos problemas sociais provocados pela guerra. Tais fatos influen- ciarão sobremaneira os novos rumos toma- dos pela psicologia social psicológica no pe- ríodo que vai da década de 1930 à década de 1950. Nesse sentido, os psicólogos europeus trarão para a psicologia norte -americana a perspectiva do gestaltismo, que substituirá o behaviorismo até então dominante. Para o gestaltismo, as propriedades perceptivas de um objeto formavam uma gestalt, isto é, um todo que apresentava características distintas da soma das partes que o consti- tuem (McGarty e Haslam, 1997). Entre os psicólogos sociais europeus que, nos anos 1940, desenvolveram trabalhos influencia- dos pelas ideias do gestaltismo destacam- -se Muzar Sheriff (1906 -1988), Kurt Lewin (1890 -1947), Fritz Heider (1896 -1988) e Solomon Asch (1907 -1996). Com o objetivo de explorar as condições e os fatores que levam à formação e à perma- nência das normas sociais, Sheriff (1936) de- senvolveu vários experimentos. Neles, uma pessoa era solicitada a fazer julgamentos de estímulos ambíguos (o quanto uma luz em um quarto escuro se movia, quando na re- alidade estava parada), individualmente ou na presença de outras pessoas. Observou -se que a pessoa, ao tomar conhecimento dos julgamentos feitos pelos demais (norma so- cial), antes ou depois do próprio julgamento, tendia a convergir para a norma do grupo e a desconsiderar a própria norma. Lewin era um psicólogo judeu que imigrou para os Estados Unidos em 1933 e, juntamente com seus colaboradores (Lewin, Lippitt e White, 1939), desenvolveu pesqui- sas sobre o clima grupal, nas quais estudou experimentalmente, em grupos reais, a in- fluência dos estilos de liderança no compor- tamento do grupo. Os resultados levaram -no a concluir que o papel do líder era central para o funcionamento do grupo, já que di- ferentes estilos de liderança provocavam ní- veis distintos de produtividade e agressão. Lewin (1943) também propôs a teoria de campo, na qual o grupo era visto como um Neiva.indd 16 21/2/2011 15:44:33 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 17 campo de forças que tinha primazia sobre suas partes, isto é, sobre seus membros. Ele inaugurou ainda um programa a que deno- minou de pesquisa -ação, cujo objetivo era avaliar o comportamento dos membros de grupos da comunidade e colaborar com sua mudança de atitudes e comportamentos. Em contraste com a posição de Allport e de outros psicólogos sociais experimen- tais, para quem o grupo representava tão somente uma variável externa que exercia influência sobre os indivíduos que dele par- ticipavam, a concepção de Lewin de que o grupo tem uma dinâmica própria, não re- dutível à soma das partes que o compõem, soou como bastante original e teve grande impacto nas discussõesteóricas travadas na época (Pepitone, 1981). Seus engenhosos experimentos trouxeram a realidade social para dentro do laboratório e converteram- -se em um modelo paradigmático de pesqui- sas sobre processos e estruturas grupais que eram ao mesmo tempo empíricas e teóricas (Smith, 1961). Os trabalhos seminais de Heider (1944, 1946, 1958) lançaram as bases con- ceituais de duas linhas de pesquisa que do- minarão as décadas subsequentes. Nas pu- blicações de 1944 e 1958, ele estabelece os fundamentos das teorias de atribuição, ao defender a ideia de que, em suas relações interpessoais, o indivíduo percebe o outro e suas ações como um todo organizado e, por essa razão, tende a procurar as causas do comportamento do outro, como forma de tornar o mundo social mais organizado, estável e previsível. Para tanto, utiliza -se de fatores pessoais, internos (capacidade, esforço, etc.) ou de fatores impessoais, ex- ternos (sorte, situação, etc.). Já no artigo de 1946, Heider constrói os pilares das teorias da consistência cognitiva ao propor o princí- pio do equilíbrio cognitivo, segundo o qual as pessoas tendem a manter sentimentos e cognições coerentes sobre um mesmo objeto ou pessoa, de modo a obter uma situação de equilíbrio. Quando esse equilíbrio se des- faz, elas vivenciam uma situação de tensão e procuram restabelecê -lo mediante a mu- dança de algum dos elementos da situação. Asch (1946) coloca -se contra a posição adotada pelos psicólogos sociais adeptos do behaviorismo, procurando aplicar os princí- pios gestaltistas no campo da percepção de pessoas, que até hoje consiste em uma das áreas centrais de estudo da psicologia so- cial psicológica. Segundo ele, ao formarmos uma impressão sobre uma pessoa, construí- mos um todo organizado sobre ela, uma im- pressão que difere do somatório de todas as suas características pessoais. Os trabalhos de Sheriff, Lewin, Heider e Asch exerceram forte influência sobre toda uma geração de seguidores que fizeram a história da psico- logia social psicológica nas décadas subse- quentes. O período do pós ‑guerra O período do pós -guerra constituiu -se em uma fase de intensa produção pelos psi- cólogos sociais da época, estimulada pela continuação dos esforços de cooperação empreendidos durante a guerra e pela cons- tatação por parte das entidades militares e governamentais de que as ciências sociais e comportamentais estavam preparadas para colaborar no gerenciamento dos comple- xos problemas humanos daquele período. Desse modo, nas duas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial, a psicologia so- cial psicológica converte -se em um campo científico produtivo, com bases solidamen- te estabelecidas, e torna -se responsável por uma série de pesquisas inovadoras, talento- sas e cada vez mais sofisticadas do ponto de vista metodológico, as quais desencadearão o surgimento de novas direções de pesquisa e teorização (Jackson, 1988). Com o intuito de melhor compreender as razões que levaram pessoas aparente- mente normais e civilizadas a cometer hor- rores contra outros seres humanos durante a guerra, Theodor Adorno (1903 -1969) dedica -se ao estudo dos tipos de persona- lidade. Ele pertencia à Escola de Frankfurt – nome utilizado para designar o Instituto de Pesquisa que funcionava na Universidade de Frankfurt – e, a exemplo de outros emi- Neiva.indd 17 21/2/2011 15:44:33 18 TORRES, NEIVA & COLS. nentes psicólogos já citados, também imi- grou para os Estados Unidos durante a guerra. Logo após o término do conflito, irá publicar, juntamente com outros membros de sua equipe (Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Sanford, 1950), a obra A perso‑ nalidade autoritária, na qual defende a tese de que o preconceito contra as minorias so- ciais em geral (bem como o antissemitismo, em particular) está associado a um tipo de personalidade autoritária, caracterizado por traços de rigidez de opiniões, adesão a valo- res convencionais e intolerância. Outra consequência do período do pós -guerra foi o ressurgimento do interesse pela pesquisa sobre atitudes. Enquanto na primeira fase da pesquisa sobre o tema o foco era a mensuração das atitudes, confor- me já apontado, nessa nova fase os psicólo- gos sociais se concentrarão na investigação experimental da mudança de atitudes. Tais estudos iniciaram -se ainda nos tempos de guerra, sob a liderança de Carl Hovland (1912 -1961), com o objetivo de verificar os efeitos de filmes bélicos e de programas de treinamento do exército norte- -americano sobre as atitudes dos soldados. Terminada a guerra, Hovland e colaborado- res (Hovland, Jonis e Kelley, 1953) desenvol- veram um extenso programa de pesquisas ex- perimentais sobre comunicação e persuasão, com o intuito de elucidar as influências das características do comunicador (como, por exemplo, seu prestígio, seu grau de credibili- dade, etc.), da mensagem (como, por exem- plo, seu conteúdo) e da audiência (como, por exemplo, suas características de personalida- de) na mudança de atitudes. Esses estudos fizeram com que as atitudes tivessem um papel central na psicologia social psicológi- ca durante os anos de 1960, tendo ocupado maior espaço do que qualquer outro tópico nos livros -texto da época (McGuire, 1968). Contudo, nos anos de 1970, esse interesse entrou em declínio com a consequente ascen- são do cognitivismo. Uma terceira consequência do pós- -guerra foi o impulso que as investigações sobre grupos receberam, especialmente pe- las mãos de Solomon Asch (1907 -1996), que anteriormente havia realizado estudos sobre a formação de impressões, e Leon Festinger (1919 -1989). Tais pesquisas constituíram as bases da teorização sobre influência social e processos intragrupais, temas presentes na maior parte dos modernos manuais de psi- cologia social psicológica. Na sequência dos estudos iniciados por Sheriff nos anos de 1930, Asch (1952) dedicou -se a pesquisas sobre a influência social, procurando avaliar a influência da pressão do grupo sobre o julgamento dos in- divíduos. Em contraste com os experimen- tos de Sheriff, nos quais os estímulos eram ambíguos, ele usou estímulos sem nenhuma ambiguidade (comparação de linhas de va- riados tamanhos com uma linha de tama- nho padrão). Ainda assim, seus experimen- tos demonstraram que, quando uma pessoa tem certeza de que seu julgamento está cor- reto, mas é confrontada com uma maioria que fez um julgamento errado, ela tende a se conformar com essa maioria e mudar seu julgamento, seja porque realmente passa a acreditar que estava enganada em seu julga- mento e que a maioria é que estava correta, seja porque tem necessidade de ser aceita pelo grupo. Os estudos de Asch sobre conformida- de suscitaram uma série de desdobramentos posteriores, relacionados à investigação dos diferentes fatores que influenciavam tal fe- nômeno, além de inspirar os experimentos clássicos de Milgram (1965) sobre obediên- cia à autoridade. Em tais experimentos, o autor demonstra que os indivíduos sentem- -se tão submissos à autoridade do experi- mentador que, atendendo às suas instru- ções, são capazes de ministrar choques cada vez mais fortes em uma determinada pessoa (por causa de erros que ela vai simulando cometer durante o desempenho de uma tarefa), apesar de ela demonstrar que está sentindo dores cada vez piores. Festinger (1954) recebeu influências de Lewin, tendo publicado uma das primeiras teorias formais em psicologia social – a teoria da comparação social –, com base nos resul- Neiva.indd 18 21/2/2011 15:44:33 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 19 tados de uma série de experimentos destina- dos a testar hipóteses sobre as pressões para a uniformidade que ocorrem nos grupos. De acordo com essa teoria, as pessoas, quando não têm um padrão objetivo de comparação, sentem necessidade de se comparar com os demais membros de seu grupo e confirmar que eles têm crenças e habilidades seme- lhantes às suas, o queas faz se sentirem mais seguras. Quando, por outro lado, surge um membro com opinião divergente, o grupo faz pressão para que ele mude essa opinião e conforme -se às regras grupais e, caso isso não aconteça, rejeita -o, levando esse mem- bro a escolher outros grupos de comparação. A teoria de Festinger foi submetida a inú- meros desdobramentos, especialmente por Shachter (1959), que desenvolveu uma sé- rie de experimentos sobre a necessidade de comparação de experiências emocionais. No final dos anos de 1950 e ao longo dos anos de 1960 e 1970, as pesquisas sobre mudança de atitudes e sobre processos gru- pais foram progressivamente sendo substi- tuídas pelas teorias de base cognitiva. Nesse sentido, as teorias da consistência domina- ram a década de 1960, sob a influência do princípio do equilíbrio cognitivo de Heider (1946). Entre elas, merece destaque a te- oria da dissonância cognitiva de Festinger (1919 -1989), que antes já havia desenvolvi- do a teoria da comparação social. De acordo com Festinger (1957), as pessoas tendem a buscar a harmonia ou a congruência entre suas crenças e atitudes. Desse modo, quando são induzidas a emitir atitudes contrárias às suas crenças, entram em dissonância cognitiva, o que lhes causa desconforto e as leva a mudar suas crenças ou atitudes, de modo a alcançar novamente a congruência. Assim, por exemplo, se uma pessoa fuma e sabe que isso é prejudicial à saúde, ela poderá resolver essa dissonância parando de fumar (mudança de atitude) ou buscando informações de que fumar não é prejudicial à saúde (mudança de crenças). A teoria da dissonância suscitou, nas décadas seguintes, um volume considerá- vel de pesquisas experimentais rigorosas, destinadas a testar seus pressupostos sobre as inconsistências, contradições, tensões ou perturbações da harmonia cognitiva que movem o comportamento social, bem como sobre os diferentes fatores que interferiam na redução ou não da dissonância. Apesar de ter sido também alvo de críticas, ela foi a principal responsável pelo desenvolvimento da psicologia social psicológica nas décadas seguintes (Rodrigues, Assmar e Jablonski, 2000). À medida que o interesse pelas teo- rias da dissonância e do equilíbrio decaía, a pesquisa sobre as teorias da atribuição au- mentava, tendo marcado os anos de 1970 e 1980. Essas teorias desenvolveram -se a partir dos trabalhos de Heider (1944, 1958) sobre as relações interpessoais e têm como principal objetivo a investigação acerca do modo pelo qual as pessoas inferem causas sobre o próprio comportamento e sobre o comportamento das outras pessoas, isto é, o que as leva a concluir que o responsável pelo comportamento é o próprio indivíduo ou a situação. Tais preocupações foram in- tensamente exploradas nas obras de Jones e Davis (1965), Kelley (1967), Ross (1977) e Weiner (1986), sendo as responsáveis pelo fato de, ainda hoje, as teorias atribuicionais constituírem -se em importante campo de estudo e pesquisa da psicologia social psi- cológica. As teorias da atribuição representam também a consolidação definitiva do cogni- tivismo, que se tornou, a partir dos anos de 1980, a perspectiva dominante na psicolo- gia social psicológica atual. Tal abordagem focaliza -se na compreensão da cognição so- cial, isto é, do processamento da informa- ção social, baseado no pressuposto de que o comportamento social pode ser explicado por meio dos processos cognitivos a ele sub- jacentes (Fiske e Taylor, 1984). Ela se volta para o estudo da categorização dos objetos sociais, ou seja, para a análise das estraté- gias que as pessoas utilizam para formar impressões, crenças ou cognições sobre os estímulos sociais que as rodeiam (o próprio indivíduo, bem como outras pessoas, grupos Neiva.indd 19 21/2/2011 15:44:34 20 TORRES, NEIVA & COLS. e eventos sociais), e do modo pelo qual tais categorias afetam seu comportamento. A crise da psicologia social O período que vai do pós -guerra aos anos de 1970 é visto por alguns autores (Apfelbaum, 1992) como a era de ouro da psicologia social, em função da grande evolução ob- servada na construção e na verificação de teorias, assim como na elaboração de pro- cedimentos metodológicos e estatísticos cada vez mais sofisticados. Com o passar do tempo, porém, o modelo de pesquisa -ação orientado para a comunidade e para o estu- do dos grupos, introduzido por Lewin ainda nos anos de 1930, foi sendo paulatinamente abandonado e substituído pela investigação de fenômenos e processos eminentemente intraindividuais, de natureza cognitiva. Tendo como meta última a investiga- ção das leis universais capazes de explicar o comportamento social, a psicologia social psicológica estrutura -se progressivamente como uma ciência natural e empírica, que desconsidera o papel que as estruturas so- ciais e os sistemas culturais exercem sobre os indivíduos (Pepitone, 1981). É nesse contexto que a década de 1970 assistirá ao surgimento da chamada “crise da psicologia social”, que marcará em definitivo os novos rumos tomados pela psicologia social psico- lógica a partir de então. A crise da psicologia social ou “era das dúvidas” surgiu, portanto, em consequência da excessiva individualização da psicologia social psicológica e dos movimentos sociais ocorridos nos anos de 1970 (como o femi- nismo, por exemplo), tendo se caracteriza- do pelo questionamento das bases concei- tuais e metodológicas da psicologia social psicológica até então dominante, no que tange à sua validade, relevância e capacida- de de generalização (Apfelbaum, 1992). Os questionamentos voltam -se principalmente à sua relevância social, isto é, ao fato de essa vertente da psicologia social usar uma linguagem científica cada vez mais neutra e afastada dos problemas sociais reais e, consequentemente, desenvolver modelos e teorias que não são capazes de contribuir para a explicação da nova realidade social que surgia. Além disso, criticava -se a artifi- cialidade dos experimentos conduzidos em laboratório, a falta de compromisso ético de seus mentores e a excessiva fragmentação dos modelos teóricos (Jones, 1985). Tais críticas suscitaram grande resis- tência da comunidade científica estabeleci- da à época. No entanto, contribuíram para o movimento de internacionalização da psi- cologia social, responsável pelo desenvolvi- mento de uma psicologia social europeia, mais preocupada com o contexto social, e, mais recentemente, de uma psicologia latino -americana. o desenvolvImento da psIcologIa socIal socIológIca nos estados unIdos Durante o século XIX, as questões psicos- sociais estiveram entre as preocupações de filósofos, sociólogos e psicólogos europeus e norte -americanos. No início do século XX, porém, os sociólogos sentiram a necessida- de de se diferenciar dos psicólogos sociais que, no contexto da psicologia, passaram a adotar o behaviorismo como paradigma e a praticar uma psicologia social psicológica que aos poucos se tornava cada vez mais in- dividualista. Surge então a psicologia social sociológica, cuja principal vertente é o inte- racionismo simbólico e que tem, nas figuras de Charles Cooley (1864 -1929) e George Mead (1863 -1931) seus mais notáveis pre- cursores. Os precursores da psicologia social sociológica Cooley era um sociólogo que recebeu in- fluências de Spencer, tendo defendido uma concepção evolucionista da mente e da so- ciedade. Em sua obra Natureza humana e Neiva.indd 20 21/2/2011 15:44:34 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 21 ordem social, datada de 1902, ele ressaltou a influência do ambiente social na configu- ração da natureza humana e, consequen- temente, da natureza da identidade ou self (Álvaro e Garrido, 2007). Ao explicar a formação da identidade, Cooley usa a expressão “eu refletido no es- pelho” para designar o fato de que tal for- mação está eminentemente associada ao modo pelo qual a pessoa imagina que apa- rece diante dasoutras pessoas, assim como ao modo pelo qual ela imagina que as outras pessoas reagem a ela e aos sentimentos daí decorrentes, que podem ser de orgulho ou de decepção. Em outras palavras, segundo o autor, o indivíduo, ao interagir com as ou- tras pessoas, torna -se consciente da imagem e dos sentimentos que essas outras pessoas nutrem por ele, isto é, elas atuam como um espelho no qual o indivíduo se vê. Para Cooley, o desenvolvimento da identidade ocorre no contexto da intera- ção com os outros e por meio do uso da linguagem e da comunicação. Tais formula- ções serviram de base a desenvolvimentos posteriores, tendo influenciado Mead, que também adota a expressão “eu refletido no espelho” ao discorrer sobre a identidade. Mead era um filósofo norte -americano que estudou por algum tempo com Wundt em Leipizig, o que teve grande influência em sua obra. Posteriormente, ele passou a dar aulas de filosofia em Michigan, onde conviveu com Cooley, que na época estava escrevendo sua tese de doutorado, e depois em Chicago, onde permaneceu até a sua morte. Suas aulas de psicologia social foram posteriormente compiladas no livro A men‑ te, o eu e a sociedade: do ponto de vista de um behaviorista social, publicado após a sua morte, em 1934 (Farr, 1999). A linguagem desempenha um papel fundamental no pensamento de Mead, a ponto de ele considerar o ato comunicativo como a unidade básica de análise da psi- cologia social. Segundo ele, a linguagem é um fenômeno inerentemente social e, con- sequentemente, as atitudes e os gestos só adquirem significado por meio da interação simbólica. É, portanto, no contexto das rela- ções sociais que a comunicação e a expres- são tornam -se possíveis, bem como a possi- bilidade de uma pessoa prever a reação do outro a seus atos, isto é, de assumir o papel do outro (Jahoda, 2007). Analisando a emergência desse pro- cesso na infância, Mead enfatiza a impor- tância dos jogos infantis, em virtude de eles permitirem à criança assumir o papel dos outros (outro significativo) ou dos membros da sociedade em que vive (eu generaliza- do). Com isso, ela passa a ter consciência de si mesma, formando assim a sua própria identidade, que reflete a internalização das normas e dos papéis presentes em sua co- munidade (Álvaro e Garrido, 2007). Em síntese, para Mead, o indivíduo é produto do desenvolvimento das pesso- as em sociedade e estrutura -se por meio do processo de interação simbólica, que leva as pessoas a tomarem consciência de si próprias, mediante a perspectiva dos de- mais membros de seu grupo social. Ele si- tua, portanto, a formação da identidade no campo das relações interpessoais, da organi- zação social e da cultura ao postular que o sujeito apropria -se do conjunto de padrões comuns a diferentes grupos socioculturais para desenvolver seu próprio eu (Stephan e Stephan, 1985). Mead é considerado um behaviorista social, porque, ainda que defendesse o es- tudo do comportamento observável, consi- derava que este era apenas um meio para se chegar à experiência interna do indivíduo (Álvaro e Garrido, 2007). Suas proposições, apesar de terem recebido várias críticas, exerceram forte influência no desenvolvi- mento da psicologia social sociológica, ten- do dado origem a duas diferentes correntes teóricas: a escola de Chicago e a escola de Iowa. A escola de Chicago Durante os anos de 1930 e 1940, as ideias de Mead não tiveram grande impacto. Caberá, porém, a Herbert Blumer (1900 -1987), em Chicago, nos anos de 1950, e a Manford Neiva.indd 21 21/2/2011 15:44:34 22 TORRES, NEIVA & COLS. Kuhn (1911 -1963), em Iowa, nos de 1960, reacenderem o interesse pela temática. Blumer era um sociólogo que, após a morte de Mead, assumiu seu curso anual de aulas de psicologia social, tendo cunhado de in- teracionismo simbólico a posição defendida por Mead. Segundo ele, o uso da expressão derivou -se da ênfase na compreensão do modo pelo qual as pessoas interagem com as outras usando símbolos. Desse modo, o in- teracionismo simbólico pode ser visto como uma forma sociológica de psicologia social iniciada em Chicago por Blumer, a partir de sua interpretação da obra de Mead. Segundo Blumer (1969), os principais pressupostos do interacionismo simbóli- co são os seguintes: a pessoa interpreta o mundo para si própria, atribuindo -lhe sig- nificado; o comportamento não é uma re- ação automática a um dado estímulo, mas sim uma construção criativa derivada da interpretação da situação e das pessoas que nela se encontram; a conduta humana é im- previsível porque os significados e as ações dependem de cada situação, enquanto a in- terpretação das situações e a construção do comportamento são processos que ocorrem durante a interação social. A escola de Chicago costuma ser iden- tificada com a abordagem qualitativa de pes- quisa, talvez porque Blumer fosse da opinião que o estudo do comportamento humano deveria ser conduzido por meio de métodos próprios que, em vez de impor estruturas ao indivíduo, fossem capazes de captar as realidades subjetivas construídas em cada situação (Stephan e Stephan, 1985). Na re- alidade, porém, a escola de Chicago primou pelo ecletismo metodológico, tendo usado abordagens quantitativas e qualitativas na tentativa de estudar cientificamente a rea- lidade social e resolver os problemas sociais que a cidade de Chicago enfrentou nos anos de 1930 e 1940, tais como o aumento da imigração, da criminalidade e da violência (Álvaro e Garrido, 2007). A esse respeito, vale destacar a pes- quisa realizada por Thomas e Znaniecki (1918), com o objetivo de analisar as ati- tudes de imigrantes poloneses, na qual uti- lizaram a análise de documentos, cartas e histórias de vida para traçar um perfil da situação social desses imigrantes, segundo a sua própria perspectiva (Álvaro e Garrido, 2007). Em contrapartida, Bogardus (1925), outro membro da escola de Chicago, desen- volveu a primeira escala para a medida de atitudes, numa evidência de que ambos os tipos de metodologia ali conviviam (Álvaro e Garrido, 2007). A Escola de iowa e a psicologia social sociológica na atualidade Conforme já mencionado, Kuhn (1964) é um dos principais representantes da esco- la de Iowa, responsável pela continuidade do interacionismo simbólico ao longo dos anos de 1960. Ele, no entanto, distancia -se mais das ideias de Mead do que a escola de Chicago. Nesse sentido, defendia a utiliza- ção dos mesmos métodos de pesquisa das ci- ências naturais, tendo testado algumas das proposições de Mead e abandonado outras, por considerá -las não passíveis de serem submetidas à verificação empírica. Além disso, ele postulava que o self e a sociedade dependiam da estrutura social. Desse modo, afirmava que as expectativas da sociedade a respeito do desempenho de determinados papéis limitavam as intera- ções sociais ao exercer influência sobre as concepções que as pessoas desenvolviam acerca de si próprias e dos outros, sobre as definições das situações e sobre os sig- nificados que as pessoas construíam. Kuhn (1964) destaca, porém, o papel ativo do in- divíduo nesse processo, na medida em que é ele quem escolhe os papéis a desempenhar, podendo também modificá -los. Orientados predominantemente pela perspectiva do interacionismo simbólico, e usando primordialmente a observação par- ticipante como método, aliada ao uso de entrevistas, os psicólogos sociais adeptos da corrente sociológica prosseguiram, nos anos subsequentes, investigando temas como a interação face a face, os processos de socia- lização, a formação e o desenvolvimento da Neiva.indd 22 21/2/2011 15:44:34 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 23 identidade, o comportamento desviante e o comportamento coletivo. Novos desdobramentos teóricos tam- bém foram surgindo com o tempo, entre os quais podem ser citadas a escola dramatúr- gica de Goffman (1985) e a teoria da identi- dade de Stryker (1980).Goffman deteve -se na análise da interação face a face, consi- derando seus participantes como atores que podem ser mais ou menos eficazes no desempenho de seus papéis. Stryker, por sua vez, propõe que a identidade apresen- ta múltiplos componentes, os quais se en- contram associados aos diferentes papéis desempenhados pelo indivíduo, sendo que alguns componentes são mais salientes e, por essa razão, mais evocados nas situações. Esses desdobramentos contribuíram para a revitalização da psicologia social sociológi- ca que, durante certo tempo, permaneceu à margem da psicologia social psicológica, dominante no cenário acadêmico da psi- cologia. o desenvolvImento da psIcologIa socIal na europa No ano de 1964, quando a psicologia so- cial psicológica já estava firmemente esta- belecida nos Estados Unidos, foi criado no país um Comitê Transnacional, sob o patro- cínio do Social Science Research Council, com o objetivo de promover a internacio- nalização da psicologia social (Moscovici e Marková, 2006). Em sua formação inicial, o comitê era composto por seis psicólogos norte -americanos e dois europeus, sob a presidência de Leon Festinger. Suas primei- ras iniciativas foram no sentido de fomen- tar o desenvolvimento da psicologia social na Europa, razão pela qual promoveu a realização de vários encontros científicos e treinamentos para os psicólogos sociais eu- ropeus, nos quais os conhecimentos por eles produzidos começaram a ser divulgados. O Comitê Transnacional exerceu também um papel ativo na construção e na consolida- ção da Associação Europeia de Psicologia Experimental. Nos anos de 1960, em vários países eu- ropeus, os psicólogos já realizavam pesquisas psicossociais, mas foi ao final da década que começaram a ser realizados esforços mais sis- temáticos, não apenas por parte do Comitê Transnacional, mas também por meio de ou- tras iniciativas mais isoladas, dirigidas à in- tegração dos psicólogos sociais europeus em uma comunidade científica atuante. Assim é que, desde os anos de 1970, a psicologia social europeia vem crescendo progressiva- mente em tamanho e influência. Apesar de ela ter caminhado inicial- mente lado a lado com a psicologia social psicológica, começou rapidamente a adqui- rir sua própria identidade e a demonstrar maior preocupação com a estrutura social. Nesse sentido, os temas de estudo mais fre- quentes entre os psicólogos sociais europeus são as relações intergrupais, a identidade social e a influência social, que remetem a uma psicologia dos grupos (Graumann, 1996). Entre os principais representantes dessa moderna psicologia social europeia, destacam -se Henri Tajfel (1919 -1982) e Serge Moscovici. Tajfel (1981) procurou enfatizar a dimensão social do comportamento indivi- dual e grupal, postulando que o indivíduo é moldado pela sociedade e pela cultura. Apoiando -se em tal perspectiva, desenvol- veu a teoria da identidade social, por meio da qual defende que as relações intergrupais estão intimamente relacionadas a processos de identificação grupal e de comparação so- cial. Moscovici (1976), retomando os estu- dos sobre influência social, que até então se preocupavam exclusivamente com os efeitos da maioria dos membros do grupo, isto é, com as pressões para a conformidade, intro- duz na área o conceito de influência das mi- norias, tendo realizado investigações com o intuito de averiguar a inovação e a mudança social introduzida por essas minorias. Outro campo de estudos a que ele se dedicou (Moscovici, 1981) foi o das representações sociais, derivado do conceito de representa- ções coletivas de Durkheim e caracterizado como modos de compreensão da realidade Neiva.indd 23 21/2/2011 15:44:34 24 TORRES, NEIVA & COLS. compartilhados por diferentes grupos so- ciais. A teoria das representações sociais foi amplamente difundida nas décadas seguin- tes, inclusive no Brasil, caracterizando -se hoje como uma das principais tendências da psicologia social europeia. o desenvolvImento da psIcologIa socIal na amérIca latIna A psicologia social praticada na América Latina, até a década de 1970, esteve for- temente influenciada pelo paradigma da psicologia social psicológica de natureza ex- perimental, dominante à época nos Estados Unidos. Ao final dos anos de 1960, de modo similar ao que já havia ocorrido na Europa, o Comitê Transnacional, fundado com o ob- jetivo de promover a internacionalização da psicologia social, procurou também atuar na América Latina (Moscovici e Marková, 2006). Nesse sentido, três de seus membros mantiveram contatos com vários psicólogos sociais latino -americanos e, em seguida, o Comitê Transnacional estimulou a criação de um comitê local, além de patrocinar al- guns encontros com esse grupo e um primei- ro treinamento para os psicólogos sociais latino -americanos, no qual foi amplamente discutida a necessidade de a psicologia so- cial estar mais diretamente vinculada aos problemas sociais da América Latina. Alguns dos psicólogos desse comitê lo- cal fundam, em 1973, a Associação Latino- -Americana de Psicologia Social (ALAPSO), que nos anos seguintes continuará a fomen- tar o desenvolvimento de atividades na área da psicologia social. Contudo, os proble- mas políticos que muitos dos países latino- -americanos vivenciaram naquele período, aliados a dissidências entre os membros do comitê local, acabaram por inviabilizar a con- tinuação da ação do Comitê Transnacional em prol da internacionalização da psicolo- gia social psicológica na América Latina. Ao final da década de 1970, porém, muitos dos psicólogos sociais latino -america- nos iniciam um forte movimento de ques- tionamento à psicologia social psicológica norte -americana, marcada pelo experimen- talismo e pelo individualismo, em prol de uma psicologia social mais contextualizada, isto é, mais voltada para os problemas po- líticos e sociais que a região vinha enfren- tando. Estimulados pela arbitrariedade dos regimes militares e pela grande desigualda- de social do continente, esses psicólogos so- ciais defendem uma ruptura radical com a psicologia social tradicional (Spink e Spink, 2005). Então, passam a praticar o que tem sido designado como psicologia social crí- tica (Álvaro e Garrido, 2007) ou psicologia social histórico -crítica (Mancebo e Jacó- -Vilela, 2004), expressões que abarcam, na realidade, diferentes posturas teóricas, como, por exemplo, o socioconstrucionis- mo (Gergen, 1997), a análise do discurso (Potter e Wetherell, 1987) e a psicologia marxista, entre outras. Em que pesem as diferenças observadas entre essas corren- tes, a psicologia social crítica, grosso modo, caracteriza -se por romper com o modelo ne- opositivista de ciência e, em consequência, com seus postulados sobre a necessidade de o conhecimento científico apoiar -se na ve- rificação empírica de relações causais entre fenômenos. Em contraposição a tal modelo, defende o caráter relacional da linguagem e a importância das práticas discursivas para a compreensão da vida social (Álvaro e Garrido, 2007). Na esteira da psicologia social críti- ca, irão surgir, na América Latina, diversos manuais de psicologia social organizados segundo tal perspectiva crítica (como, por exemplo, Aguilar e Reid, 2007; Cordero, Dobles e Pérez, 1996; Montero, 1991), bem como algumas associações de psico- logia social que se contrapõem à ALAPSO, como é o caso, por exemplo, da Associação Venezuelana de Psicologia Social (AVEPSO). Um autor frequentemente citado como legíti- mo representante dessa nova perspectiva na psicologia social latino -americana é Martin- -Baró (1942 -1989), psicólogo e padre jesuí- ta espanhol, radicado em El Salvador, que defendeu em suas obras o desenvolvimento Neiva.indd 24 21/2/2011 15:44:34 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 25 de uma psicologia social comprometida com a realidade social latino -americana. Para ele (1989), a construção teórica em psicologiasocial deve emergir dos problemas e confli- tos vivenciados pelo povo latino -americano, de forma contextualizada com sua história. No Brasil, as primeiras publicações com foco na análise de questões psicosso- ciais começaram a surgir na década de 1930 (Bomfim, 2003). Contudo, a instituciona- lização da psicologia social ocorre apenas em 1962, quando o Conselho Federal de Psicologia, por meio do Parecer no 403/62, criou o currículo mínimo para os cursos de psicologia, estabelecendo, assim, a obriga- toriedade do ensino da psicologia social. A partir de então, e até os anos de 1970, a psicologia social psicológica norte- -americana foi a dominante, tal como ocor- reu no restante da América Latina. Uma das obras adotadas nos cursos de psicologia social durante esse período, que expressa tal tendência, é o livro Psicologia social, de Aroldo Rodrigues, publicado pela primeira vez em 1972. Seu autor também foi o res- ponsável pelo desenvolvimento de uma pro- fícua linha de pesquisa em psicologia social psicológica no país, a qual foi divulgada em uma série de artigos publicados em perió- dicos nacionais e estrangeiros ao longo dos anos de 1970 e 1980. A partir do final da década de 1970, os psicólogos sociais brasileiros também parti- cipam ativamente do movimento de ruptura com a psicologia social tradicional ocorrido na América Latina. Assim, a partir da publica- ção, em 1984, do livro organizado por Silvia Lane e Vanderley Codo, intitulado Psicologia social: o homem em movimento, sucederam- -se vários outros manuais brasileiros de psi- cologia social (Campos e Guareschi, 2000; Jacques et al., 1998; Lane e Sawaia, 1994; Mancebo e Jacó -Vilela, 2004) na perspecti- va da psicologia crítica. Outra importante contribuição a tal movimento foi a fundação, em 1980, da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), estabelecida com o propósito de redefinir o campo da psicologia social e contribuir para a construção de um referen- cial teórico orientado pela concepção de que o ser humano constitui -se em um produto histórico -social, de que indivíduo e socieda- de implicam -se mutuamente (Jacques et al., 1998). No que tange à breve história da psi- cologia social brasileira, cabe registrar, por fim, o desenvolvimento dos cursos de pós- -graduação stricto ‑sensu no país a partir da década de 1980. Esses cursos exerceram im- portante papel na estruturação de diferen- tes linhas de pesquisa na área de psicologia social, orientadas por paradigmas e tendên- cias diversificadas, bem como no incremen- to da produção científica brasileira em psi- cologia social. consIderações fInaIs A revisão dos eventos que marcaram a his- tória da psicologia social contemporânea re- vela que, no século XIX, as reflexões sobre o indivíduo e a sociedade desenvolveram -se no contexto da psicologia e da sociologia, sem que houvesse a preocupação com o estabelecimento de limites sobre a nature- za do conhecimento psicossocial. No início do século XX, ocorre uma nítida separação entre esses dois campos do conhecimento, com a subdivisão da psicologia social, que se situava na interface dos dois, em psico- logia social psicológica e psicologia social sociológica, que passam a ter suas próprias questões centrais, suas teorias e seus méto- dos (House, 1977). No contexto da psicologia social psico- lógica que se desenvolveu a partir de então, o indivíduo sempre esteve no centro das principais perspectivas teóricas e dos temas de pesquisa. Desse modo, as teorias e os programas de pesquisa que lidavam com os fenômenos grupais ou coletivos, trabalhan- do com conceitos relacionais, acabaram por sofrer uma solução de descontinuidade e ti- veram pouco impacto na área. Tal tendência individuocêntrica amparou -se na concepção da psicologia como uma ciência natural em- pírica e, com o passar do tempo, revelou- -se incapaz por si só de explicar o compor- Neiva.indd 25 21/2/2011 15:44:34 26 TORRES, NEIVA & COLS. tamento social em todas as suas nuances (Pepitone, 1981). Ainda assim, durante muito tempo, os livros de psicologia social adotados nos cur- sos de psicologia abordavam, em sua maio- ria, apenas a psicologia social psicológica, o que fez com que a psicologia social socioló- gica tenha permanecido, ao longo de várias décadas, com menos peso do que a psicolo- gia social psicológica no âmbito da psicolo- gia (Jackson, 1988). Entretanto, a crise por que passou a psicologia social psicológica nos anos de 1970 contribuiu para modificar substancialmente esse quadro. Devido a isso, a psicologia social psico- lógica, sem abandonar os temas tradicional- mente estudados, passou por uma correção de rumos e prosseguiu na expansão de seu corpo de conhecimentos. Paralelamente, fo- ram surgindo novos olhares sobre antigos tópicos (como, por exemplo, no caso do estudo da identidade e das relações inter- grupais), novos tópicos de estudo (como, por exemplo, a análise das influências da cultura sobre o comportamento social, pela psicologia transcultural) e um maior esforço de aplicação dos conhecimentos sociopsico- lógicos na resolução dos problemas sociais (Jackson, 1988). Acrescente -se a isso o fato de que a psicologia social sociológica ressurgiu com nova força, levando um número cada vez maior de psicólogos sociais a recorrer ao in- teracionismo simbólico e a outros modelos psicossociológicos como estrutura de refe- rência teórica de suas pesquisas. Além disso, novos e diversificados paradigmas teóricos e metodológicos, que têm como traço em co- mum a crítica aos pressupostos da psicologia social tradicional, desenvolveram -se e vêm sendo designados de psicologia social crítica ou pós -modernas (Álvaro e Garrido, 2007). Por fim, as últimas décadas assistiram à in- ternacionalização da psicologia social e à consequente produção de um conhecimen- to psicossocial cada vez mais expressivo na Europa e na América Latina. A psicologia social contemporânea pode ser assim considerada uma disciplina plural que convive com várias tendências. Nesse sentido, DeLamater (2003) enfatiza que a psicologia social consiste hoje em um campo que se situa na interface da psicolo- gia e da sociologia, buscando compreender a natureza e as causas do comportamento social humano, partindo do pressuposto de que o contexto intraindividual e o social in- teragem mutuamente, influenciando e sendo influenciado pelo comportamento individu- al. Orientados por tal perspectiva, os manu- ais de psicologia social mais recentes têm procurado contemplar as várias vertentes nas quais a disciplina atualmente se desdo- bra, na tentativa de contribuir para a cons- trução de um conhecimento psicossocial de natureza científica e capaz de ser aplicado à realidade social dos novos tempos. referêncIas ADORNO, T.W.; FRENKEL-BRUNSWIK, E.; LE- VINSON, D.J.; SANFORD, R.N. The autoritarin personality. New York: Harper, 1950. AGUILAR, M.A.; REID, A. (orgs.). Tratado de psico‑ logia social: perspectivas socioculturales. Barcelona: Anthropos, 2007. ÁLVARO, J.L.; GARRIDO, A. Psicologia social: perspectivas psicológicas e sociológicas. São Paulo: McGraw-Hill, 2007. ALLPORT, G.W. The historical background of mo- dern social psychology. In: LINDZEY, G. (org.). Handbook of social psychology. Reading, M.A.: Addison-Wesley, 1954. ALLPORT, G.W. The historical background of social psychology. In: LINDZEY, G.; ARONSON, E. (orgs.). 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Neiva.indd 28 21/2/2011 15:44:34 O objetivo deste livro é apresentar a diver- sidade de estudos e abordagens que carac- terizam a psicologia social brasileira, mos- trando seus enfoques divergentes, algumas vezes complementares, que foram constru- ídos a partir de posições teóricas e políticas que procuram gerar conhecimentos bastante aplicáveis à realidade nacional, sem descon- siderar os temas clássicos da psicologia so- cial e possibilidades de estudos ainda pouco explorados no Brasil. A psicologia social se beneficia de te- orizações oriundas dos grandes sistemas psicológicos (behaviorismo, gestalt, psica- nálise, etc.), mas tambémapresenta teori- zações próprias, desenvolvidas a partir das pesquisas realizadas nos últimos 60 anos. O campo ainda apresenta microteorias, não desenvolvendo algo mais global e pretensio- so na explicação do comportamento huma- no no contexto social. Contudo, vários fe- nômenos psicossociais foram identificados e analisados, enfatizando -se os fatores que os influenciam. Nas últimas quatro décadas, a psicologia social tem sido totalmente domi- nada pela psicologia social -cognitiva, com preponderância de estudos que avaliem os fenômenos sociais sob a perspectiva indivi- dual. Em uma das chamadas “crises da psi- cologia social”, nos anos de 1960 e 1970, os estudos se envolveram mais com fenô- menos que abarcassem a interação e a rela- ção entre os indivíduos. Essa crise consistiu em uma crítica e autocrítica dos psicólogos sociais acerca da validade dos métodos uti- lizados em suas pesquisas, preponderante- mente experimentais, da relevância social de seus resultados, além da ética envolvi- da em alguns de seus experimentos. Essas críticas permanecem até hoje, envolvendo, inclusive, movimentos dissidentes no Brasil, como a psicologia social crítica. Este livro tem por objetivo, além de apresentar os te- mas da psicologia social clássicos, abordar outras vertentes de estudo que envolvem os fenômenos grupal e cultural e, dessa forma, mostrar como a psicologia social tem con- tribuído para a compreensão do homem no contexto social. Como forma de realizar tal empreendi- mento, este capítulo foi construído para apresentar a psicologia social no Brasil, rea- lizando uma retrospectiva histórica e apre- sentando dados sobre a situação atual dessa área no Brasil. Ao final do capítulo, há uma discussão mais acurada sobre os objetos da psicologia social, bem como dos objetivos do livro, ressaltando a diversidade de obje- tos que são motivadores de pesquisa e as teorizações que fundamentam as pesquisas realizadas. a psIcologIa socIal no BrasIl: um pouco de hIstórIa Segundo Bomfim (2004), o curso pioneiro em psicologia social no Brasil foi ministrado 2 Psicologia social no Brasil: uma introdução ELAiNE RABELO NEiVA CLáuDiO VAZ TORRES ARiANE AGNES CORRADi Neiva.indd 29 21/2/2011 15:44:34 30 TORRES, NEIVA & COLS. por Raul Briquet (1935), seguido pelo tra- balho de Arthur Ramos. Na década de 1930, surgiram os primeiros cursos superiores em psicologia social, cabendo a Raul Carlos Briquet o pioneirismo docente. Médico, nas- cido em São Paulo em 1887, foi responsável pela cadeira de psicologia social na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. Desse curso, resultou uma publicação do primeiro livro acadêmico em psicologia so- cial, editado em 1935. O livro foi estrutura- do em duas partes: a primeira versa sobre as contribuições da sociologia, da biologia e da psicologia; a segunda, denominada de especial, traz temáticas específicas acerca da psicologia social, tendo o autor realizado uma análise dos fatores psíquicos que moti- vam o comportamento social, o instinto, o hábito, as três formas de identidade social (sugestão, imitação e simpatia), a inteligên- cia e a vida social. O segundo curso de psicologia social foi ministrado em 1935, por Arthur Ramos – médico, nascido em Alagoas em 1903 –, e resultou na edição do livro Introdução à Psychologia Social, publicado em 1936, na Escola de Economia e Direito da extinta Universidade do Distrito Federal1. Para ele, a psicologia social era uma disciplina entre a psicologia e a sociologia que necessitava de maiores delimitações de seu campo, com crescente importância, embora seus métodos e objetivos ainda não estivessem claros. Na sua visão, caberia à psicologia social estudar as bases psicológicas do comportamento so- cial, as inter -relações psicológicas dos indi- víduos na vida social e a influência total do grupo sobre a personalidade. Vale notar que tal diferenciação ainda é discutida por auto- res mais atuais, como Sampson (1985), que defende a psicologia social como área que se localiza entre um contínuo bipolar de para- digmas do conhecimento, cujos polos foram por ele denominados como Individualismo Autocontido e Individualismo Abrangente. A diferenciação entre eles é feita com base nos critérios de: 1. compreensão do limite entre o self e o “outro”; 2. crença sobre o grau de controle do am- biente sobre o comportamento humano; 3. visão excludente versus visão includente do self. Talvez pelas influências da impreci- são do objeto sofrida em outros países, à psicologia social caberia o estudo das bases psicológicas do comportamento social, das inter -relações psicológicas dos indivíduos na vida social e da influência dos grupos sobre o indivíduo. Para Ramos, a psicologia social, uma disciplina entre a psicologia e a sociologia, estava em crescente importân- cia, embora não tivesse seus métodos e ob- jetivos ainda claros. A imprecisão no objeto refletia, e era reflexo, da imprecisão em sua própria nomeação, sendo denominada como interpsicologia, psicologia social, psicologia coletiva, psicologia das raças, psicologia dos povos, psicologia das massas ou psicologia das seitas. O próprio Ramos nomeava o pro- fissional da área ora como psicossociólogo, ora como sociopsicólogo. A articulação entre a psicologia social e antropologia social configurou -se como uma contribuição do curso de Ramos, fundamen- tada nos escritos de Malinowski (1917), Franz Boas (1932) e Lévy -Bruhl (1922). Sua visão se pautava na ideia de psi cologia so- cial comparada, com uma perspectiva cultu- ralista, originária da antropologia cultural, e em função de seu ponto de vista cultural, complementaria e questionaria o critério evolucionista linear, explicando a evolução psicológica dentro de suas culturas. Briquet e Ramos forneceram um pa- norama geral da psicologia, acentuando as contribuições do behaviorismo, da psica- nálise e do gestaltismo, tratando de forma semelhante temas como a sugestão, a imi- tação, a simpatia, a opinião pública, a cen- sura e a propaganda, os dois últimos pontos claramente influenciados pelo zeitgeist da época. A fundamentação de Ramos para a psicologia social se pautava na motivação biológica, no hábito, na aprendizagem so- cial, nas estruturas instintivo -afetivas, nas reações da personalidade, na interação mental, na interferência, no conflito e nos Neiva.indd 30 21/2/2011 15:44:34 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 31 desajustamentos psicossociais, sem relegar temas como a vida dos grupos, a relação entre o individual e o social, a psicologia da cultura, a estrutura da mentalidade pri- mitiva, a lógica afetiva e sua relação com o pensamento mágico -simbólico, as esferas primitivas da realidade e a sobrevivência das estruturas primitivas. Metodologicamente, Ramos também propunha a utilização de várias formas de coleta de dados, tais como medidas fisioló- gicas e morfológicas, os métodos biográfi- cos, os métodos de autorrelato e impressão pessoal, os questionários e entrevistas e os testes. Entre os vários pontos de congruên- cia dos dois cursos, ressalta -se a visão pa- norâmica da psicologia social presente tanto no curso de Ramos como no de Briquet. Essa abordagem abrangente seria con- trastada, na década de 1940, em um tercei- ro curso, ministrado por Donald Pierson, na Escola Livre de Sociologia e Política da Universidade de São Paulo. O referido curso foi registrado no livro Teoria e Pesquisa em Sociologia (1945), uma coletânea de artigos sobre sociologia e ecologia humana. Segundo Bomfin (2003a), três fatores fazem parte do contexto de evolução da psi- cologia social no Brasil: os relacionados com os avanços de áreas afins, como a sociolo- gia, a antropologia, a educação, a história social e a própria psicologia; o progresso da psicologia social em países da Europa, nos Estados Unidos e na América Latina, e, ainda, as condições históricas e econômi- cas mundiais,especialmente, as condições nacionais, que se caracterizavam por de- mandas sociais de comunidades, grupos e movimentos sociais, ofereceram rumos para a teorização e as pesquisas no campo do co- nhecimento psicossocial. Na década de 1950, as demandas de- senvolvimentistas tornam -se mais premen- tes no país, sustentadas por crenças de que um parque industrial forte proporcionaria a qualidade de vida do Brasil, de que a indus- trialização e a urbanização levariam à qua- lificação dos recursos humanos, construin- do um país moderno e desenvolvido, com maior ênfase no setor educacional. Assim, foram criados órgãos como o “Conselho Nacional de Pesquisas” (CNPq), em 1951, a “Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário” (CADES), em 1954, e o “Serviço de Educação de Adultos”, em 1957. Segundo Bomfim (2004), esse mo- mento foi importante para a psicologia social, pois possibilitou as primeiras teses de doutorado com temáticas comprometi- das com essa perspectiva, como a tese de Carolina Bori, que versava sobre a Análise dos Experimentos de Interrupção de Tarefas e da Teoria da Motivação na obra de Kurt Lewin (1943), e a tese de Dante Moreira Leite, sob o título de Caráter Nacional do Brasileiro (1954), que analisou a visão do que seja o “brasileiro” em diferentes obras representativas do chamado “pensamento social brasileiro”, apontando, nelas, caracte- rísticas conservadoras ou progressistas. A psicologia social, no início dos anos de 1960, foi atravessada por uma crise que questionava seu caráter teórico e ideológi- co, colocando em cheque tanto sua meto- dologia como as teorizações utilizadas, pois muitos consideravam que a psicologia não havia desenvolvido uma base sólida de co- nhecimentos estruturada na realidade social e nas vivências cotidianas. Sua teorização era centrada, segundo Krüger (1986), no cognitivismo (relevo aos fatores cognitivos do indivíduo), no experimentalismo como método de pesquisa, no individualismo (ou seja, na análise dos fenômenos sociais a par- tir da perspectiva do indivíduo), no etnocen- trismo (já que este modelo de indivíduo era o estabelecido na cultura norte -americana), no uso de microteorias (ou seja, na inves- tigação de microespaços do social) e, final- mente, na perspectiva a -histórica, já que o “homem” considerado nesses estudos seria um ser humano presente em todos os tem- pos e espaços. Essa crise teórica, de caráter internacional, residiu principalmente nas dúvidas sobre o método experimental e so- bre sua adequação à complexidade e às exi- gências do objeto de estudo, pois as regras do comportamento humano, contrariamen- te às das ciências naturais, não podem ser estabelecidas definitivamente, uma vez que Neiva.indd 31 21/2/2011 15:44:34 32 TORRES, NEIVA & COLS. elas se alteram em função das circunstân- cias culturais e históricas. Ao final da década de 1970, esse mo- vimento se intensifica na América Latina, em oposição à psicologia social psicológica norte -americana, marcada pelo experimen- talismo e pela perspectiva individual, em busca de uma psicologia social mais voltada para os problemas políticos e sociais que a região vinha enfrentando. Estimulados pela arbitrariedade dos regimes militares e pela grande desigualdade social do continente, esses psicólogos sociais iriam defender uma ruptura radical com a psicologia social tra- dicional (Spink e Spink, 2005). Um autor considerado representante dessa nova perspectiva na psicologia so- cial latino -americana é Martin -Baró (1942- -1989), psicólogo e padre jesuíta espanhol, radicado em El Salvador, que defende em suas obras o desenvolvimento de uma psico- logia social comprometida com a realidade social latino -americana. Para Martin -Baró (1989), a teorização em psicologia social deveria ser contextualizada na história da região, marcada por problemas e conflitos vivenciados pelo povo latino -americano. Assim, nasce uma tendência designada como uma psicologia social crítica (Álvaro e Garrido, 2007) ou psicologia social histórico- -crítica (Mancebo e Jacó -Vilela, 2004), que aglutina diferentes posturas teóricas, como o socioconstrucionismo (Gergen, 1997), a análise do discurso (Potter e Wetherell, 1987) e a psicologia marxista, entre outras. Na esteira desse movimento, surgem, na América Latina, diversos manuais de psico- logia social organizados segundo a perspec- tiva crítica (como, por exemplo, Aguilar e Reid, 2007; Cordero, Dobles e Pérez, 1996; Montero, 1991), bem como algumas asso- ciações de psicologia social. No Brasil, até os anos de 1970, a psi- cologia social psicológica norte -americana também esteve dominante, de modo seme- lhante ao que ocorreu no resto da América Latina. Uma das obras bastante adotada nos cursos de psicologia social durante esse período, e que expressa tal tendência, é o livro Psicologia social, de autoria de Aroldo Rodrigues, publicado pela primeira vez em 1972. Aroldo Rodrigues foi o responsável pelo desenvolvimento de inúmeras pesqui- sas, publicadas em periódicos nacionais e estrangeiros entre 1970 e 1980, em psico- logia social psicológica no país. No restante da América Latina, contudo, surge a obra Psicología Social de las Américas (Kimble, Hirt, Díaz -Loving, Hosch, Lucker e Zárate, 2002), que faz uma união entre a psicolo- gia social psicológica e a psicologia social crítica ou histórico -crítica, sob um diferente enfoque. A partir da década de 1970, o campo da psicologia continuava crescendo, com a implantação dos primeiros cursos de mes- trado específicos em psicologia social na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, os quais geraram dissertações com temáticas voltadas à realidade brasileira. A produção literária também aumentava, com uma grande ênfase nas traduções dos livros estrangeiros. No Brasil, outros psicólogos aderiram ao movimento da psicologia social crítica, segundo Bonfim (2003a), discutindo e ana- lisando as diferenças individuais, grupais e das comunidades e questionando seu papel político. Os argumentos principais afirma- vam que as investigações deveriam se esten- der do individual para o social e levar em conta o político e o econômico, no sentido de se obter uma compreensão apropriada da evolução da psicologia contemporânea e da vida social. Segundo Bomfim (2003b), pelo fato de a psicologia social no Brasil crescer em meio às conturbações políticas e sociais in- ternas, houve também uma preocupação com o caráter aplicado da psicologia so- cial com ações pautadas em intervenções em comu nidades e em organizações com e sem fins lucrativos. Cresceram, também, nas empresas e nas instituições brasileiras, as práticas de dinâmica de grupo e de inter- venção psicossociológica, que privilegiavam as relações interpessoais, empresariais e/ou terapêuticas. Houve, ainda, um crescente aumento no número de cursos de psicologia criados no país. Nesses cursos, as produções Neiva.indd 32 21/2/2011 15:44:35 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 33 como Relações Humanas: psicologia das re‑ lações interpessoais (1978), de Agostinho Minicucci, e Psicosociologia das Relações Pú blicas (1975), de Cândido de Andrade, podem ser citados como outras obras nacio- nais da área. O movimento de ruptura com a Psi- cologia Social tradicional se tornou forte no Brasil a partir do final da década de 1970, com a publicação, em 1984, do livro organizado por Silvia Lane e Wanderley Codo intitulado Psicologia Social: o homem em movimento. A partir dele, outros manu- ais brasileiros de psicologia social tiveram o mesmo enfoque (Campos e Guareschi, 2000; Jacques, Strey, Bernardes, Guareschi, Carlos e Fonseca, 1998; Lane e Sawaia, 1994; Mancebo e Jacó -Vilela, 2004, entre outros). De acordo com Bomfim (2003), Lane fez seguidores e iniciou teorizações características de psicólogos sociais sócio- -históricos, que produzem artigos criticando o Estado e o modo neo -liberal de produçãoque tem um forte impacto na construção de subjetividades. Segundo Lane e Codo (1984), a psicologia deve assumir um ca- ráter de compromisso com a criação da consciência entre os atores sociais, consi- derando principalmente o contexto da luta de classes. Silvia Tatiana Maurer Lane e Aniela Ginsberg foram professoras fundadoras do Programa de Estudos Pós -Graduados em psicologia social da PUC -SP, o primeiro cur- so de mestrado e doutorado da área a fun- cionar no Brasil, entre 1972 e 1983, em que a psicologia social tornou -se uma disciplina (teórica/prática) referendada em pesquisas empíricas sobre os problemas sociais bra- sileiros. Segundo Bonfim (2003), os textos desenvolvidos por professores e autores es- colhidos são adotados como bibliografia bá- sica em muitos cursos de psicologia do Brasil e, também, em concursos públicos na área da saúde e educação. Receberam o prêmio outorgado pela Sociedade Interamericana de Psicologia (SIP), em julho de 2001. Outro evento importante para a psi- cologia social foi a fundação da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), que se ocupa, em especial, da vinculação científica de pesquisas desenvolvidas com base na perspectiva da psicologia social crítica. A ABRAPSO foi estabelecida em ju- lho de 1980 com o propósito de redefinir o campo da psicologia social e de contribuir para a construção de um referencial teórico orientado pela concepção de que o ser hu- mano se constitui em um produto histórico- -social, de que indivíduo e sociedade se im- plicam mutuamente (Jacques et al., 1998), o que contribuiu para a consolidação do movimento. Além do aumento da produção de ar- tigos e de dissertações de mestrado, foram criados os primeiros cursos de doutorado específicos nessa área e defendidas as pri- meiras teses nos cursos instituídos, e a cria- ção das associações científicas promoveu o debate científico de modo sistemático, por meio de encontros com a categoria em dife- rentes eventos científicos. Nesse período, a psicologia social no Brasil, de acordo com Bomfim (2003b), buscou autonomia científica, por meio de um conjunto de atividades: crescimento expressivo da produção publicada, detalha- mento das temáticas como educação, saúde, comunidade, trabalho, etc., inclusão de ou- tras perspectivas teóricas e de objeto como (representações sociais, relações de gêne- ro, movimentos sociais, etc.) inseridos em estudos contextualizados em comunidades carentes, além de publicação de estudos e de ampliação da divulgação de aplicações da psicologia social. Segundo Bomfim (2004), Pinel (2005), Camino (2006) e Lima (2009), a psicolo- gia social brasileira foi marcada por duas tendências em oposição, representadas por Aroldo Rodrigues e José Augusto Dela Coleta (empirista, adotando uma aborda- gem mais de experimental -cognitiva, pre- ocupada com processos individuais que se relacionam com o contexto social) e Silvia Lane (marxista e sócio -histórica). As discor- dâncias teóricas e metodológicas presentes neste campo evidenciaram não apenas posi- ções antagônicas em relação a temas impor- tantes no campo da psicologia social, mas Neiva.indd 33 21/2/2011 15:44:35 34 TORRES, NEIVA & COLS. também deram visibilidade a alguns autores que representavam essas rivalidades. De maneira geral, alguns argumentos que resumem as críticas e posições de am- bos os lados podem ser levantados: a) A psicologia social baseia -se em um mé- todo descritivo e experimental, ou seja, um método que se propõe a descrever e relacionar aquilo que é observável, fatual. É uma psicologia que organiza, dá nome aos processos observáveis dos encontros sociais. b) Tem seu desenvolvimento comprometido com os objetivos da sociedade norte- -americana do pós -guerra, que precisava de conhecimentos e de instrumentos que possibilitassem a intervenção na realida- de, de forma a obter resultados imedia- tos, com a intenção de recuperar a nação, garantindo o aumento da produtividade econômica. Os temas mais desenvolvidos estiveram centrados na compreensão do indivíduo, desconsiderando fatores que sejam característicos da relação interpes- soal e social. c) Os métodos experimentais trazem pers- pectivas reduzidas do contexto social, o que gera um conhecimento centrado no indivíduo, nos processos sociocognitivos, partindo de uma noção estreita do social. Este é considerado apenas como a relação entre pessoas – a interação pessoal –, e não como um conjunto de produções hu- manas capazes de, ao mesmo tempo em que vai construindo a realidade social, construir também o indivíduo. d) Por outro lado, a psicologia social crítica tornou esse debate relacionado a toma- das de posições políticas, o que produziu uma psicologia social comprometida com as lutas sociais, engajada com as mu- danças sociais que seriam resultantes do empoderamento das classes populares e, ao mesmo tempo, um tanto quanto mani- queísta e dicotomizada, sobretudo no que se refere aos aportes metodológicos. e) Além do maniqueísmo, existem os ar- gumentos que consideram as pesquisas “qualitativas como frouxas metodologica- mente e sem validade” (Bauer e Gaskell, 2004, p. 35), além da impossibilidade de estipular explicações causais sobre o comportamento humano. f) Outro argumento se fundamenta nas te- orizações com pouco respaldo empírico, de caráter metateórico, que se sustentam em visões ideológicas de mundo e de ser humano. Essas teorizações se tornam difíceis de serem transformadas em problemas científicos, muitas vezes se tornando uma repetição de discursos. Segundo Camino (2006), um olhar mais apurado a respeito desse aspecto de- monstrará que, no cerne deste problema, encontra -se a questão do tipo de explicação mais adequado ao comportamento humano. Esse debate tem tomado a forma de dua- lismos, como, por exemplo, subjetividade- -objetividade, natureza -cultura, explicação- -compreensão, individual -social, quanti- tativo -qualitativo, etc. Nesse debate, esco- lher um polo dos dualismos significa neces- sariamente negar a relevância ou o poder heurístico do outro. Ainda para Camino (2006), a primeira dessas concepções tem como ponto de partida o lugar central ocu- pado pelo indivíduo e seus processos intra- psíquicos para a explicação dos fenômenos sociais. Essa concepção, denominada na atualidade de psicologia social psicológica, coloca a psicologia social como um ramo da psicologia geral. A segunda, denominada de psicologia social sociológica, tem suas ori- gens no pensamento psicossocial presente na sociologia e preconiza, como objeto de estudo da psicologia social, o social. Dito em outros temos, na primeira, o social seria o adjetivo, e, na segunda, o social seria o pró- prio substantivo. Enfim, envolvida em discussões sobre a natureza do objeto, definido por uns como societal, ou, por outros, como a introjeção do social no indivíduo, o campo específico da psicologia social é o campo da articula- ção de diferentes níveis de análise, desde os processos cognitivos até os níveis culturais. Neiva.indd 34 21/2/2011 15:44:35 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 35 a psIcologIa socIal no BrasIl hoje Para que seja desenhado um retrato da psi- cologia social no Brasil, serão apresentados os dados da pesquisa de redes sociais de pesquisadores da pós -graduação em psicolo- gia no Brasil, realizada por Neiva e Corradi (2008). Serão apresentados e discutidos os dados sobre a pesquisa no que tange aos pesquisadores da área de psicologia social. A classificação dos pesquisadores por área foi feita por meio da análise do Currículo Lattes dos pesquisadores. A partir da clas- sificação, foi traçada uma rede com os pes- quisadores que foram classificados na área de psicologia social, demonstrando as cone- xões da área. A pesquisa foi realizada em 2007, por meio de um questionário eletrônico, que foi respondido por vários pesquisadores que se encontram vinculados a programasde pós- -graduação no Brasil na área de Psicologia. A base de dados para identificar os respon- dentes dos questionários foi elaborada a partir dos dados disponíveis nas bases do CNPq, da CAPES e da Associação Nacional de Pesquisa e Pós -graduação em Psicologia no Brasil – ANPEPP. Os dados dos respon- dentes foram validados pelos Coordenadores dos Programas de pós -graduação em psico- logia vinculados a ANPEPP. Novos nomes de pesquisadores poderiam ser inseridos no banco de dados a partir dos vínculos indica- dos pelos pesquisadores que respondiam ao questionário. A pesquisa teve por objetivo caracte- rizar as redes de pesquisadores brasileiros e estrangeiros (com conexões com brasilei- ros) envolvidos com a pós -graduação em psicologia. O questionário online usado para a pesquisa envolveu questões sobre as ca- racterísticas das redes sociais sob o ponto de vista dos atores (pesquisadores). Os temas do questionário foram relações existentes entre os pesquisadores, tipo de conteúdo transacionado nas relações entre pesquisa- dores, tais como participação em bancas, publicações conjuntas, realização de pesqui- sas ou apresentações de trabalhos, etc. A pesquisa contou com o apoio da ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós -graduação em Psicologia) para realizar o contato com os pesquisadores e divulga- ção da pesquisa. De forma resumida, pode -se conside- rar que a amostra da pesquisa foi constitu- ída por: • 395 pesquisadores que responderam à pesquisa, sendo que 350 responderam completamente. • 2.787 indicações de pesquisadores entre membros de Grupos de Trabalho (GTs) de 2006 da ANPEPP, outros pesquisadores no Brasil e pesquisadores estrangeiros. • 1.344 pesquisadores foram indicados no bojo das 2.787 indicações totais. Para separar os pesquisadores perten- centes a essa rede social, foi elaborada uma classificação dos pesquisadores por meio do Currículo Lattes. A classificação, por meio do autorrelato, indicado pelo Lattes, demonstra uma ampla possibilidade de ob- jetos que são classificados como objetos da psicologia social, enfatizando desde temas bastante aplicados como comportamentos do consumidor, violência, pesquisa transcul- tural e construção da subjetividade até estu- dos com temas de aplicação menos visível, como atribuição de causalidade e erros de julgamento, etc. A rede de psicologia social possui ca- racterísticas muito peculiares. Trata -se de uma rede com 403 atores (dos 1.344 atores participantes da pesquisa), constituindo a rede com maior número de atores dentre as subáreas da psicologia. Os 403 atores envol- veram 522 indicações de relacionamentos realizados entre os pesquisadores da rede social. Considerando o número de relações existentes sobre as relações possíveis, a den- sidade da rede é de 0,4%, considerando -se seus 403 atores. O índice de coesão da rede está em torno de 0,8%, enquanto que a dis- tância média entre os atores (distância ge- odésica) é de 2,3 atores. Ou seja, cada pes- quisador da rede precisa, em média, de 2,3 Neiva.indd 35 21/2/2011 15:44:35 36 TORRES, NEIVA & COLS. contatos intermediários para se relacionar com qualquer ator da rede social. O diâme- tro (maior distância entre atores) da rede de psicologia social é de 9 atores. Mais da me- tade da rede apresenta uma distância entre 2 e 5 atores, conforme mostra a Tabela 2.1. A densidade diz respeito à proporção entre os vínculos possíveis e os vínculos existen- tes na rede social. A coesão aborda o grau de fragmentação da rede que permite des- conexões ou quebras entre relacionamentos possíveis. A distância geodésica aborda as distâncias entre os atores que podem exigir intermediários para que as conexões entre as pessoas ocorram, ou seja, a distância geo- désica aborda quantas pessoas são necessá- rias para que um ator acesse outros atores. O diâmetro é formado pela maior distância geodésica da rede social. De maneira geral, pode -se avaliar que é uma rede satisfatoriamente conecta- da, considerando -se seu tamanho, com um conjunto de relações consideráveis, não se tratando das redes com maiores índices de fragmentação, ou menores índices de coe- são e densidade. Há uma distância média entre atores relativamente baixa para o ta- manho da rede, e o diâmetro também não é alto, para uma rede com tais proporções, principalmente se levarmos em conside- ração os resultados das outras redes (ver Neiva e Corradi, 2008). Existiram redes com distância geodésica em torno de 3 atores e diâmetro em torno de 9 atores, com número de atores ligeiramente inferior ao da rede de psicologia social (em torno de 220 e 280 atores). Não se trata de uma rede social com subgrupos dispersos, voltados para redes sociais com pesquisadores estrangeiros (net‑ working internacional) e pouca imersão na rede nacional. Na rede de psicologia social, há uma distribuição de pesquisadores es- trangeiros (76 estrangeiros para 307 atores nacionais, o que caracteriza 19% dos 403 pesquisadores da rede social). Os conteúdos mais trocados pelos atores seguem a ten- dência predominante em todas as subáreas da psicologia, pois os conteúdos trocados pelos autores, em sua maioria, são partici- pação em bancas de dissertações e teses e participação em simpósios e mesas redondas em congressos. Há uma tendência pequena para realização de pesquisas conjuntas e pu- blicações em coautoria. Verificou -se a presença de 35 cliques. Os cliques constituem subgrupos na rede que se caracterizam por relações recíprocas entre os pesquisadores. Trata -se de uma rede com um conjunto relativamente inferior de subgrupos ou panelinhas, o que abre espaço para uma endogenia menor dos subgrupos quando consideradas as demais redes das subáreas da psicologia (existem redes com 38 ou 37 cliques e 220 a 300 atores). A Figura 2.1 apresenta uma ilustração das relações entre os pesquisadores classifi- cados como psicólogos sociais, além de es- pecificar os tipos de papéis apresentados pe- los pesquisadores e o formato geral da rede social. É uma rede que apresenta quatro pesquisadores totalmente desconectados da rede social. Alguns atores indicados como conectores centrais, estabelecendo elos den- tro dos subgrupos (marcados em cinza cla- ro), outros atores que desempenham o pa- pel de expansores de fronteiras, conectando subgrupos diferentes (marcados em branco) e atores que atuam em função dupla (conec- tores e expansores, simultaneamente, mar- cados em preto). TABELA 2.1 Frequências da distância geodésica Frequen Propon 1 402.000 0,182 2 449.000 0,203 3 465.000 0,211 4 329.000 0,149 5 245.000 0,111 6 156.000 0,071 7 98.000 0,044 8 48.000 0,022 9 17.000 0,008 Fonte: UCINET Neiva.indd 36 21/2/2011 15:44:35 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 37 Uma análise preocupante ocorre quan- do são consideradas as características da rede social de pesquisadores em psicologia social no que diz respeito aos papéis desem- penhados pelos atores na rede social. A rede apresentada pela Figura 2.1 ilus- tra a divisão desses atores no que diz respeito aos papéis que eles representam na rede so- cial. Desses 403 atores, apenas 22 (5,46%, marcados em vermelho) atuam como expan- sores de fronteiras, responsáveis por realizar a conexão entre os subgrupos diferentes das redes sociais. São atores que mostram a pos- sibilidade de intercâmbio entre os vários ato- res que representam tendências diferencia- das na rede social. Outros três atores (0,74%, marcados em amarelo) realizam o papel de conectores centrais, que se encarregam de manter conectados os membros dos sub- grupos da rede. O conector central repassa conteúdos transacionados entre os próprios membros do subgrupo. Alguns atores atuam em ambos os papéis (conectores e expanso- res). No caso da psicologia social, são 11 ato- res, ou 2, 73%, do grupo de pesquisadores. Considerando -se os dados apresenta- dos no parágrafo anterior, a rede de psico- logiasocial possui mais possibilidades de crescimento do que possibilidades de forta- lecimento das relações internas. São muitos Figura 2.1 Representação da rede de psicologia social e os papéis de seus atores. 1807 1203 957 833 559 874 802 681 111 840 585 583 12871726 1637 1519 1133 1665 1065 1055 1061 1775 1775 1719 1146 1660 1855 1059 1551 1134 1835 1522 1814 1689 1062 1242 1456 1620 1138 1445 800 824 750 926 608 929 735 809 560 596 782 480 475 901 778 578 978 932 979 279 578 667 946 951 813 968 519 464 976 667 503 918 953 938 697 575 507 512 696 707 856 854 855 884 967 963 950 986 766 799 906 95 526 915 511 297 773 922 781 872 877 793 962 909 965 772 899 883 548 837738 934 973 512 644 637 974 566958 904 862 729 752859 596 537 792490 720 975 902 558 569 907 878 757 628 853 000 666 642 923 938 89 889 603 633 485 504 740 500 166 777 470 940 927 84 896 623 1661 1262 1036 1269 1279 1798 1787 1475 1169 1588 1739 1707 1361 1023 1010 1112 1902 1037 1071 1040 1465 1469 1106 1708 1839 1779 1899 1888 1554 1137 1368 1476 1348 1857 1836 1469 1011 1692 1804 1328 1367 1107 17701770 1901 1115 1107 1417 1361 1362 1291 1117 1172 1265 1233 1691 1624 125016641993 1500 1802 1134 1769 1646 1606 1607 1426 1151 1853 1006 1867 1074 1515 1108 1679 1070 1766 1073 1713 1797 1670 10 1238 1545 1516 1060 1336 1349 1513 1805 2126 1118 7151109 1590 1608 1029 1789 8 1341 1816 1479 1027 1767 1716 1596 1728 1009 1000 1114 1085 1347 1018 1224 1084 1799 1295 1325 1614 1124 1319 1605 1602 1592 1843 1047 1030 1765 1371 5555 1230 1327 Neiva.indd 37 21/2/2011 15:44:36 38 TORRES, NEIVA & COLS. atores (33 ao todo) realizando as atividades de conexão entre as partes mais diferen- ciadas da rede, enquanto que um número bem menor (14 ao todo) realiza as ativida- des de repasse de conteúdos, de materiais e de informações entre os membros de seus subgrupos. Os conectores centrais são ex- tremamente importantes, porque estão pre- ocupados com a manutenção das conexões internas, e não com a expansão delas. Outro fator mais preocupante diz respeito ao fato de que a maioria dos conectores centrais re- aliza duplo papel como expansores e conec- tores ao mesmo tempo. Considerando -se também os papéis representados por esses atores, apenas 11,17% (45) deles são bolsistas do CNPq, o que se traduz no menor índice de bolsis- tas quando comparadas todas as subáreas da psicologia. Outro questionamento bas- tante pertinente a área de psicologia social diz respeito ao menor número de bolsistas presentes na área. Tendo em vista que os bolsistas são escolhidos por critérios de pro- dutividade científica, pode existir uma baixa produção nas pesquisas em psicologia social no país. A Figura 2.2 ilustra a distribuição dos psicólogos sociais pelo território nacional. De acordo com Neiva e Corradi (2008), um dos fatores que interferem no aproveitamen- to e na produção da rede está relacionado à Figura 2.2 Distribuição dos pesquisadores por Estado/Região. Legenda: Pesquisadores estrangeiros Pesquisadores de outras áreas do conhecimento Pesquisadores do Sul Pesquisadores de São Paulo Pesquisadores do Centro ‑Oeste Pesquisadores do Nordeste Pesquisadores do Rio de Janeiro Pesquisadores de Minas Gerais Pesquisadores do Espírito Santo Pesquisadores do Norte 559 833 957 1203 1807 1347 1646 1030 1047 1716 1767 1027 1596 503 1009 985 1728 720 971 738 966 976 792 556 457 904 903 464 103 902 558 988 793 647 638 569 907907 996 889 929 957 633 603 781 923 878 628 757 666 877 608 872 843 824 585 531 840 518 583 681 896 927 485 926 802 800 797 965 909 782 979901 480 678 899 967 940 750 874 475 470 551 905 978 95 958 883 465 519 813 466 771 492 946 951 493 740 799 766 906 586 915 526 963 884 500 809 773 560 880 882771 642 922 550 511 504 888 778 112 974 548 537 151 512 837 934 1000 1008 1426 1607 1653 1606 1115 1107 1117 1172 1364 1362 1291 1367 1500 1074 1059 1053 1061 1735 1775 1262 1166 1006 1901 1417 1102 1899 1114 1770 1169 1475 1554 1361 1665 1768 1602 1739 1888 1839 1779 1265 1269 1279 1037 1069 1106 1592 1071 1787 1805 1233 1057 1591 1141 1348 1679 1667 1126 1242 1130 1287 1445 1551 1031 1824 1469 1456 1836 1523 1857 1835 1116 1689 1660489 1070 1670 1515 1765 1531 1465 1040 1238 1476 1343 1769 1023 1319 1109 1590 1588 1608 1323 1230 1327 1139 1803 1108 1124 1123 1029 1664 1593 1112 1110 1118 1624 1295 707 495 1816 1479 1614 1516 1336 1349 1063 1513 1804 1133 1065 1692 1328 1620 1665 1855 1719 1146 1134 1726 1519 1637 1138 1545 1661 1798 1702 1014 1368 1119 1018 1867 1224 1084 854 925 667 729 752 952 578 918 859 911 861 855 507 1799 1121 1667 1902 1789 1583 1764 644 637 973 575 697 938 856 1341 696 1797 1713 Neiva.indd 38 21/2/2011 15:44:44 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 39 proximidade geográfica e à distribuição de recursos. Os 403 atores estão distribuídos entre 6 pesquisadores da região norte, 44 do nor- deste, 46 de São Paulo, 20 de Minas Gerais, 46 do Rio de Janeiro, 3 do Espírito Santo, 34 da região centro -oeste e 42 da região sul. A região sudeste precisou ser dividida na pesquisa em função da alta concentração de pesquisadores. Ainda entre esses 403 atores, 96 (ou 23,82%) são pesquisadores estrangei- ros e 76 (ou 18,86%) de outras áreas do co- nhecimento (sociologia, antropologia, etc.). Trata -se de uma rede com índices medianos de presença de pesquisadores estrangeiros e de pesquisadores de outras áreas, quando a rede é comparada com outras subáreas da psicologia. A Figura 2.2 ilustra essa distribui- ção por estados/regiões brasileiras. É uma rede com pesquisadores dis- tribuídos em todo o território nacional, realidade diferente de outras áreas da psi- cologia como Desenvolvimento, Processos Psicológicos Básicos e Escolar e Educacional, que possuem uma quantidade maior de pes- quisadores entre os estados de São Paulo e o sul do país (Neiva; Corradi, 2008). A loca- lização geográfica pode ser mais importante que as atividades de networking para se ter acesso a recursos de pesquisa (concentra- ções de pesquisadores por Estado). Contudo, considerando -se as inferências sobre produ- ção feitas a partir do número de bolsistas na rede, a rede de psicologia social pode estar mais preocupada em realizar networking do que em fomentar produção em grupo, tão necessária à construção do conhecimento. De acordo com Neiva e Corradi (2008), os fatores que mais influenciam o desenvol- vimento de parcerias entre os pesquisadores brasileiros são a abordagem teórica, a abor- dagem metodológica e as afinidades pesso- ais, o que parece se reproduzir na área de psicologia social. Existem algumas razões a serem con- sideradas para que não ocorra colaboração entre os pesquisadores ou para que a colabo- ração não se transforme em produtos cien- tíficos. Essas razões podem se concretizar em interesses aparentemente similares que não se mostram como tais na prática; dife- rentes abordagens teóricas e metodológicas que não permitem que a parceria se efetive na prática, pois a colaboração requer tempo e energia (recursos individuais escassos), especialmente entre estranhos (mérito/ reconhecimento) e depende de condições geográficas que tornam a colaboraçao mais difícil quando potenciais colaboradores são geograficamente muito distribuídos, como é o caso da rede de psicologia social. O nível de cooperação também pode ser definido pela área à qual o pesquisador pertence. Estudos de Storer, Carpenter e Frame, Gordon e Lodahl (Balancieri et al, 2005) mostram que as ciências básicas e na- turais apresentamum índice maior de coope- ração do que as ciências aplicadas e sociais. Katz e Martin (1997) mostram que expe- rimentalistas tendem a colaborar mais do que teóricos. Alguns trabalhos demonstram que os trabalhos individuais predominam na área de humanidades, como Poclación e Noronha (2002) e Newman (2004). Enfim, essa dispersão de objetos e essa distribuição geográfica pode se concretizar em uma rede social da área que mantém um potencial considerável de contatos para uma rede com tal tamanho, mas a produção nacional pode ficar comprometida. temas de pesquIsa e pós ‑graduação em psIcologIa socIal no BrasIl Dos 58 programas de pós -graduação em funcionamento atualmente no Brasil, 9 adotam o termo psicologia social em sua nomenclatura formal. Os programas que se dedicam ao estudo de temas da psicologia social foram agrupados no Quadro 2.1. É importante ressaltar que todas as regiões brasileiras possuem algum programa que se dedica aos temas da psicologia social, além de envolver importantes universidades bra- sileiras no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Distrito Federal e no nordeste. Os 307 pesquisadores brasileiros clas- sificados como pertencentes à subárea da Neiva.indd 39 21/2/2011 15:44:44 40 TORRES, NEIVA & COLS. psicologia social foram objeto de uma aná- lise de conteúdo quanto a seus temas de pesquisa e uma classificação desses temas, realizadas por três pesquisadores. Os temas encontrados e classificados se encontram na Tabela 2.2. Os temas mais frequentes, de acor- do com as classificações dos currículos dos pesquisadores, foram: construção social da subjetividade; atividade, consciência, identidade, afetividade, emoções, lingua- gem e pensamento sob a perspectiva sócio- -histórica; história, representações sociais e cultura e construção da cidadania e inclu- são social. Dentre os temas mais frequentes, dois dizem respeito a fenômenos no nível individual sob a perspectiva social, e os dois últimos dizem respeito a fenômenos que ocorrem mais no nível social. Quando se olha para essa diversidade de temas e para a ambivalência entre temas que ora retratam aspectos individuais, ora retratam aspectos mais coletivos, retorna -se à questão sobre qual é o objeto da psicologia social. Enfim, o que é o social da psicologia social? A psicologia tenta explicar compor- tamento. Comportamento é algo observável. Para onde olhar quando se quer compreender os mecanismos usados para explicar o com- portamento manifesto? A psicologia sempre teve uma relação ambivalente com o social. Essa divisão entre psicologia e as outras ci- ências sociais possui origens remotas e leva- ram à dessocialização da psicologia social e a despsicologização das demais ciências so- ciais. Emile Durkeim (2002) afirma que o fenômeno sociológico não pode ser reduzi- do ao fenômeno psicológico, por outro lado, Floyd Allport (1920, 1924) definiu a psicolo- gia social como uma ciência dos indivíduos, e Gordon Allport (1954), seu irmão, definiu a psicologia social como o estudo de como os pensamentos, os sentimentos e os comporta- mentos dos indivíduos são influenciados pela presença de outros imaginários ou atuais. A ideia das causas dos comportamen- tos serem originárias nas mentes dos indi- víduos tornou -se especialmente prevalente depois da revolução cognitiva, e o social passou a ser visto como fonte de informação (Baerveldt, 2004). Alguns fatores compli- cadores, como cultura e fatores históricos, foram completamente negligenciados ou transformados em processos cognitivos co- letivos (Gardner, 1985). QuADRO 2.1 RELAçãO DOS PROGRAMAS DE PóS ‑GRADUAçãO EM PSICOLOGIA SOCIAL NO BRASIL Programa universidade Psicologia Social Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Psicologia Social Universidade Estadual do Rio de Janeiro Psicologia Clínica e Social Universidade Federal do Pará Psicologia Social Universidade Federal da Paraíba Psicologia Social e institucional Universidade Federal do Rio Grande do Sul Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações Universidade de Brasília Psicologia Social Universidade de São Paulo Psicologia Social FUF Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social Universidade Federal do Rio de Janeiro Neiva.indd 40 21/2/2011 15:44:44 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 41 Quando a psicologia social e a cogni- ção social definem o “social”, há uma indica- ção usual do social como variável indepen- dente e do comportamento como variável dependente. Além da tradição experimental na psicologia social, principalmente nos es- tudos norte -americanos, há também os estu- dos correlacionais, especialmente na forma da psicologia transcultural (abordada mais adiante), que transforma a cultura como uma fonte de variáveis independentes para compreender comportamentos, atitudes, sentimentos ou características individuais (Gardner, 1985). Contudo, quais são as vari- áveis dependentes e independentes quando o pesquisador está interessado no que ocor- re “entre as pessoas” em um determinado contexto? Como estudar e compreender o que ocorre em uma conversa ou diálogo? Os métodos experimentais ou correlacionais conseguem cobrir essa dimensão específica do social? O próprio Gordon Allport (1937), en- tre suas diversas aproximações inovativas ao estudo da psicologia humana, utilizava- -se de escritas pessoais e das criações artís- ticas dos indivíduos. Nem ele, autor da defi- nição mais psicológica de psicologia social, era restritivo quanto aos métodos e aborda- gens metodológicas do fenômeno psicosso- cial (Nicholson, 2000). Conforme ressaltado anteriormente, Allport (1954) define que a psicologia social tenta entender e explicar como os pensamentos, os sentimentos e os comportamentos dos indivíduos são influen- ciados pela presença atual, imaginada ou implícita dos outros. Todavia, na realidade, a psicologia social não se interessa apenas TABELA 2.2 Relação de temas indicados pelos pesquisadores da área de psicologia social Temas Nº de pesquisadores Construção da cidadania e inclusão social 31 Estudos sobre gênero, raça e idade 22 Cotidiano e participação social 15 Cultura e diversidade 12 Construção social da subjetividade 49 Comportamento, relacionamento e interação social 11 Atividade, consciência, identidade, afetividade, emoções, linguagem e pensamento sob as perspectivas antropológica e sócio ‑histórica 37 Aspectos teóricos e metodológicos ligados à psicologia social 11 Psicologia política e movimentos sociais 13 Estudos sobre a violência 23 Trabalho e ação social 14 Processos sociocognitivos e psicossociais (atribuição de causalidade, erros de julgamento, etc.) 9 História, representações sociais e cultura 33 Valores humanos e cultura 12 Psicologia ambiental 7 Estudos sobre justiça social 8 Neiva.indd 41 21/2/2011 15:44:45 42 TORRES, NEIVA & COLS. em como o indivíduo é influenciado por ou- tros ou por seu meio. Fica clara a preocupa- ção dos psicólogos sociais atuais sobre como o meio (e os outros!) são influenciados pelo indivíduo. A psicologia social é, de fato, uma via de mão -dupla. De acordo com Markus e Zajonc (1985), no Handbook of Social Psychology, o definidor do social é a reciprocidade e a intersubjetividade, ou seja, o social não é somente um fator de certo estímulo, mas é alguma coisa que acontece entre pessoas, na interação. Isso coloca diversos desafios para a tradição empírica individualista da psico- logia social, o que coloca questionamentos sobre o fato de a psicologia experimental colocar indivíduos separados em algumas condições experimentais e isso trazer gran- des explicações sobre o que acontece entre as pessoas. Por outro lado, os estudos cor- relacionais precisam avançar nas formas de estudo sobre o que as pessoas compartilham e quais pessoas compartilham certos arran- jos, convenções e acordos. Gold e Douvan (1997) propõem uma integração nos estudos da psicologia social, destacando uma integraçãode teorias e da- dos empíricos e uma integração de objetos. Não se trata de considerar que a psicologia social tenha um único objeto, mas seus obje- tos individuais (a introjeção do outro) e so- ciais (compartilhamento, o que forma e de- fine o grupal e o coletivo) possuem origem, natureza e repercussão no indivíduo, embo- ra não se resuma ao psicológico. A integra- ção possui foco na interação entre o social e o psicológico. Isso está relacionado às pes- soas e seus ambientes sociais. Esse tipo de psicologia social é vital às ciências sociais, porque a natureza de ambos, indivíduos e ambiente social, depende fortemente desse encontro. Segundo Gold e Douvan (1997), os psicólogos sociais estiveram perdidos, e a crise continua em função das frequentes posições antagônicas presentes entre pes- quisadores. Segundo esses mesmos autores (1997), a psicologia social não pode aspirar à descoberta de leis universais devido à na- tureza dessa ciência. A psicologia social é o estudo das influências recíprocas das pesso- as e de seus ambientes sociais, com ênfase nas relações entre os eventos e “entre” as pessoas e seus ambientes sociais. Em função desse foco dualístico (pessoas e ambiente social), torna -se difícil encontrar leis uni- versais, pois as disciplinas limítrofes dificil- mente alcançam leis universais. A missão da psicologia social de explicar a influência recíproca do psicológico e do contexto social das realidades coloca as leis universais em cheque. em Busca de conclusões... A maioria dos modelos estudados pela psico- logia social foi desenvolvida principalmente nos Estados Unidos e em países da Europa Ocidental, destacadamente o Reino Unido. Tais modelos enfocam prioritariamente o indivíduo em diversos contextos, tais como organização, escola, família ou convívio so- cial, inserido em um contexto nacional ou cultural, e tentam explicar o comportamento por meio dos valores e das metas individu- ais (Triandis, 1994). Como resultado dessa ênfase no indivíduo, boa parte da pesquisa em psicologia social realizada nas últimas três décadas tem ignorado as diferenças culturais e nacionais nos valores e crenças das pessoas, e como essas diferenças afetam seu comportamento cotidiano. Contudo, o rápido desenvolvimento no ambiente or- ganizacional e a globalização do mercado de trabalho não podem mais ser ignorados (Earley e Erez, 1997). Tais processos têm um impacto direto na vida de indivíduos co- muns, em sua motivação, comportamento, desempenho e demais resultados. Logo, é necessário confrontar as diferenças cultu- rais de necessidades pessoais, normas para comportamento e valores, para citar alguns. O que parece estar faltando é uma literatura que integre os contextos culturais e nacio- nais nos quais diferentes pessoas vivem com modelos teóricos desenvolvidos em países muito específicos nos quais a ênfase no in- divíduo é clara. As pesquisas desenvolvidas nesses países – que representam menos de Neiva.indd 42 21/2/2011 15:44:45 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 43 um quinto da população mundial quando levamos em consideração sua orientação in- dividualista, comparados aos outros quatro quintos da população que têm uma orienta- ção coletivista – podem não estar refletindo com adequação as preferências culturais e, consequentemente, podem estar propondo modelos de explicação da realidade que têm sua eficácia reduzida. A proposta deste livro é trazer uma perspectiva integradora para o objeto da psi- cologia social, considerando -se a produção de pesquisa nacional e outras possibilidades de estudo não presentes na realidade brasi- leira, sem ignorar as contribuições clássicas da psicologia social. Portanto, aqui serão abordados vários temas que foram tangen- ciados pela literatura científica brasileira. Afinal, o que você irá encontrar neste livro? o que você Irá encontrar neste lIvro? Como poderemos notar no decorrer do livro, de uma forma geral, os psicólogos sociais investigam alguns fenômenos da psicologia social que merecem destaque, especialmen- te por serem considerados “clássicos” na área. Dentre eles, vemos a proliferação de pesquisas em estudos sobre a percepção da pessoa; a influência social; o preconceito e a discriminação; e a atribuição de causa. Diversas dessas tradições de pesquisas serão exaustivamente abordadas neste livro, com especial enfoque em trabalhos realizados no país. De acordo com o levantamento de temas dos pesquisadores, esses processos cognitivos têm recebido uma atenção res- trita dos pesquisadores, pois somente nove pesquisadores se dedicam a tal empreendi- mento na literatura brasileira, em contrapo- sição, a literatura internacional oferece uma vasta gama de descobertas nessa área. É mister relembrar diretamente algumas des- sas pesquisas clássicas, sobretudo pelo fato de que todas, embora tratem de fenômenos distintos, trazem consigo uma similaridade. Essa similaridade é a base de um argumen- to que será desenvolvido mais adiante nos próximos capítulos sobre relacionamentos entre grupos e contatos intergrupais. Dentre esses temas já tradicionais de pesquisa, os psicólogos sociais interessados na percepção da pessoa buscam determinar a maneira pela qual as pessoas fazem julga- mentos sobre os outros e como elas contro- lam o julgamento que os outros fazem delas. O primeiro caso é conhecido como formação da impressão, e o segundo, como gerencia‑ mento de impressão. A formação de impres- são e outros tipos de julgamento social são afetados por processos e estruturas cogni- tivas. Dentre elas, algumas são ressaltadas a seguir, aliadas a uma breve apresentação dos pontos mais pesquisados: 1. Os “esquemas” (ou schemata) e protótipos. As pessoas desenvolvem esquemas, ou redes de informação que são organizadas e mentalmente interconectadas, basea- das nas experiências pessoais e sociais anteriores e, então, usam tais esquemas para julgar situações atuais. As pesquisas sobre os esquemas demonstraram que as pessoas tipicamente prestam mais atenção às evidências que confirmam os esquemas que já existem: elas interpretam a informação e os eventos de uma forma consistente com seus esquemas e também tendem a se lembrarem mais daquelas in- formações que são consistentes com seus esquemas (p. ex., Cohen, 1981; Rothbart, Evans e Fulero, 1979). Já os protótipos re- presentam outro tipo de estrutura mental e se referem a modelos que criamos sobre as qualidades típicas de certos grupos ou categorias (p. ex., líderes, criminosos, idosos). 2. A heurística. Para facilitar o processa- mento e uso das grandes quantidades de informação a que as pessoas estão expostas no cotidiano de suas vidas, elas desenvolvem “regras de conduta”, ou heurística. Tversky e Kahneman (1974) fizeram a distinção entre dois tipos de heurística, ambos os quais podem enviesar a formação de impressão e outros julga- Neiva.indd 43 21/2/2011 15:44:45 44 TORRES, NEIVA & COLS. mentos sociais. Quando estamos usando a heurística representativa, o julgamento que fazemos sobre alguém é baseado na similaridade que essa pessoa tem com um membro “típico” de um grupo (p. ex., “ela se veste e se parece como uma advogada; logo, ela deve ser uma advogada”). A heu- rística de disponibilidade é a tendência de se utilizar aquela informação que é mais facilmente acessada na memória. Por exemplo, Srull e Wyer (1980) encontra- ram que os participantes de sua pesquisa tinham uma maior tendência a interpretar situações sociais ambíguas como uma “situação hostil” quando eram expostos a palavras que sugeriam hostilidade (p. ex., briga, discussão) antes de analisarem a situação. Embora a heurística nos auxilie em nossa convivência diária, ela também pode levar a erros de julgamento, uma vez que faz com que as pessoas ignorem informações importantes. Por exemplo, a falácia do comum (base rate fallacy) é a tendência a ignorar informações que se relacionama características ou eventos que ocorrem com frequência na população (p. ex., crianças de rua). 3. Exemplares e abstrações. O estudo da formação de impressão sob uma perspec- tiva cognitiva revelou que exemplares e abstrações são contribuintes importantes às impressões que formamos dos outros (Sherman e Klein, 1994). Exemplares são comportamentos concretos que são apre- sentados por uma pessoa. Eles são particu- larmente importantes durante os estágios iniciais da formação de impressão. À medida que cresce nossa experiência com uma pessoa, nossas impressões são mais determinadas por abstrações mentais, as quais são derivadas de observações repeti- das do comportamento daquela pessoa. 4. Traços centrais. As principais pesquisas sobre o tema foram desenvolvidas por Asch (1946), que notou que certos traços centrais influenciam a impressão dos outros. Uma pessoa descrita como “inte- ligente, habilidosa, determinada, prática e cuidadosa” tende a ser percebida mais positivamente do que uma descrita como “inteligente, habilidosa, fria, determinada, prática e cuidadosa”. De acordo com Asch, isso ocorre porque o termo “fria” é um traço central, que carrega mais peso do que outros traços, uma vez que ele fornece uma informação única, que é associada a um grande número de características. 5. Efeito de primazia. Quando alguém se confronta com informações discrepan- tes sobre uma pessoa, sua impressão é normalmente mais influenciada pela in- formação que é apresentada em primeiro lugar, e tal fenômeno foi chamado “efeito de primazia”. Contudo, sob certas circuns- tâncias, o “efeito recente” pode acontecer. Se uma atividade irrelevante acontece entre a apresentação de duas informações conflituosas sobre uma pessoa, ou se o indivíduo é avisado para não fazer um julgamento imediato, a informação mais recente sobre a pessoa terá maior impacto sobre a formação da impressão. 6. Atração física. A aparência física tem um impacto poderoso na formação da impressão. Por exemplo, há maior ten- dência a se perdoar crianças atrativas por uma transgressão do que crianças pouco atrativas (Dion, 1972). Crianças atrativas também são julgadas mais favoravelmente em termos de QI e de sucesso acadêmico futuro (Clifford e Walster, 1973). 7. Estigma. Indivíduos estigmatizados são aqueles que possuem características que não são valorizadas por um grupo social. Hoje em dia, os estigmas incluem algumas deficiências físicas e mentais, além de fatores como pobreza ou obesidade. As respostas às pessoas estigmatizadas são afetadas por fatores como a visibilidade do estigma e crenças sobre a habilidade da pessoa em controlar o estigma. Por exem- plo, as reações a pessoas infectadas com HIV tendem a ser mais negativas quando a aquisição do vírus se deu em decorrên- cia de comportamento sexual promíscuo do que quando o vírus foi adquirido por transfusão sanguínea. 8. Contexto social. A formação de impressão também é influenciada pelo contexto social. Essa influência foi demonstrada Neiva.indd 44 21/2/2011 15:44:45 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 45 por Rosenhan (1973), que utilizou, em sua pesquisa, oito “pseudopacientes”, que se internavam em instituições para tratamento mental com a queixa de que estavam ouvindo vozes. Uma vez admi- tidos nos hospitais, os pseudopacientes paravam imediatamente com os supostos sintomas e agiam normalmente quando interagindo como outros pacientes ou com os empregados do hospital. Embora mais de um terço dos verdadeiros pacientes afirmavam que os pseudopacientes eram sãos, todos, com a exceção de apenas um dos pseudopacientes, foram diagnostica- dos com esquizofrenia. Os resultados do estudo de Rosenham indicaram que os comportamentos tendem a ser percebi- dos de forma consistente com o contexto social no qual eles aparecem. Já os psicólogos sociais interessados em gerenciamento de impressão (ou autoa- presentação) identificaram várias estraté- gias (ou táticas comportamentais) que são usadas pelas pessoas para criarem uma imagem ou identidade aceita socialmente. Um dos métodos mais comuns de gerencia- mento de impressão ficou conhecido como engraçamento (Snyder, 1987). Esse método refere -se a táticas que pessoas com pouco po- der social usam para aumentar ou melhorar sua imagem aos olhos de outra pessoa que tem mais poder social do que elas e, assim, reduzir a diferença de poder entre as duas. Engraçamento inclui as técnicas de “melho- ramento” ou “aumento”, tanto de si mesmo como dos outros. Exemplos dessa técnica são o elogio e a concordância. Outros métodos de gerenciamento de impressão são a inti- midação, a autopromoção, a exemplificação (convencer os outros de que o indivíduo é uma boa pessoa) e suplicação (convencer os outros de que o indivíduo merece ou tem necessidade de algo). Segundo Snyder (1987), as pessoas também se diferenciam em termos de auto‑ monitoramento, ou quanto a sua habilidade ou necessidade de gerenciar a impressão que outras pessoas formam delas. Indivíduos com alto automonitoramento analisam a si- tuação social através de seu “self público” e então se esforçam para adequá -lo à situ- ação. Essas pessoas são excepcionalmente boas em determinar quais comportamentos, atitudes, etc. são desejáveis socialmente ou esperadas em situações diferentes. Elas tam- bém são extremamente sensíveis às técnicas de gerenciamento de impressão utilizadas pelos outros e, consequentemente, usam essas mesmas técnicas em seu favor. Por outro lado, indivíduos com baixo automo- nitoramento tentam alterar a situação para adequá -la a seu self público. Essas pessoas são guiadas principalmente por suas pró- prias crenças e valores. Outro tema bastante pesquisado, mas com pouca investigação no Brasil, de acordo com o levantamento de temas (11 pesqui- sadores se dedicam a investigar o compor- tamento, o relacionamento e a interação social), se refere à influência social. Tal número se mostra ainda mais reduzido se focarmos somente na influência social. Esta ocorre quando as atitudes ou comportamen- tos de uma pessoa são o resultado direto ou indireto de pressão social. As respostas mais comuns à pressão social são a conformida- de, a concordância e a obediência. A confor- midade, por exemplo, ocorre quando uma pessoa muda suas ações para corresponder às ações de outras pessoas como resposta à pressão social indireta real ou imaginada. Ela pode envolver a aceitação pública ou privada de comportamentos, de atitudes ou de crenças. Em outras palavras, os compor- tamentos aparentes de uma pessoa podem refletir ou não suas atitudes e crenças inter- nas. A conformidade começou a ser pesqui- sada por Sherif (1935), que usou o efeito autocinético, ou fenômeno da percepção no qual um ponto estacionário de luz parece mover -se em uma sala escura. Sherif pediu aos participantes esua pesquisa que dessem estimativas de quanto o ponto de luz tinha se movido. Quando eles faziam estimativas sozinhos, encontrou -se uma grande variân- cia na posição do ponto de luz. Contudo, quando esses participantes eram colocados em um grupo, observou -se um “efeito de convergência”, ou seja, depois de escutar Neiva.indd 45 21/2/2011 15:44:45 46 TORRES, NEIVA & COLS. a estimativa dos outros membros do grupo (na verdade, assistentes de pesquisa), os participantes se conformavam com relação à norma imposta pelo grupo. Asch (1958) fez uma pesquisa similar, mas substituiu o efeito autocinético por uma tarefa não am- bígua. Foi pedido aos participantes de seu experimento que julgassem qual de um con- junto de três linhas tinha o mesmo tamanho de uma quarta. Embora não houvesse uma resposta correta, Asch notou que, quando os participantes eram colocados junto com um grupo de confederados, a maioria de suas respostas se conformava com as respostas dos assistentes de pesquisa, mesmo quan- do essas respostas estava claramente incor- retas. Já a concordânciaocorre como uma resposta a um pedido direto de um grupo ou pessoa em particular. Pesquisas sobre os “profissionais da concordância” mostram que essas pessoas usam, basicamente, seis estratégias (Cialdini, 1993): reciprocida- de, consistência, validação social, amizade, autoridade e criação de limites. Segundo Cialdini, alguns estudos mostraram que os vendedores tendem a obter mais concordân- cia ao enfatizarem as consequências negati- vas de não se comprar o produto. Outro tema investigado no campo da influência social diz respeito à obediência. Ela acontece quando uma pessoa se subme- te à demanda de uma autoridade. Os expe- rimentos conduzidos por Milgram (1963) tornaram -se pesquisas clássicas na área da obediência. Embora os estudos de Milgram tenham sido criticados por problemas éti- cos e metodológicos, eles continuam sendo vistos como uma demonstração poderosa da influencia social. Neles, os participantes foram informados que seriam os “professo- res”, enquanto que outra pessoa (na verda- de, um assistente de pesquisa) seria o “alu- no”. A tarefa do professor seria a de fazer com que o aluno se lembrasse de uma lista de palavras. Contudo, toda vez que o aluno cometesse um erro, o pesquisador ordenava ao professor que desse uma descarga elétri- ca no aluno, sendo que cada choque subse- quente tinha uma descarga elétrica maior. O objetivo da pesquisa de Milgram era saber se os participantes concordariam em obede- cer à autoridade (o pesquisador), mesmo se essa obediência resultasse em dor a outra pessoa. No início dos experimentos, o profes- sor e o pesquisador estavam juntos em uma sala, enquanto que o aluno era colocado em outra sala, da qual não podia ser visto, mas de onde podia ser ouvido. Para avaliar o efeito de fatores situacionais, Milgram fez alterações posteriores nas condições expe- rimentais. Ele aumentou, por exemplo, a proximidade entre o aluno e o professor, e observou que, quanto mais próximo o alu- no estava do professor, menor a tendência do professor em obedecer ao pesquisador. Contudo, na maioria das condições, os pro- fessores concordavam em dar choques elé- tricos nos alunos, mesmo quando eles grita- vam em desespero. O mais interessante foi que, em resposta a um questionário que foi mandado meses depois aos participantes, 84% deles disseram que estavam extrema- mente felizes em terem participado da pes- quisa. Como serão apresentados neste livro, diversos outros temas investigados na psi- cologia social se tornaram clássicos na área. Dentre eles, outra tradição de pesquisa des- tacada neste capítulo diz respeito ao precon‑ ceito e à discriminação. O tema do preconcei- to e da discriminação possui uma dedicação maior dos pesquisadores brasileiros, na medida em que 22 pesquisadores indicam que estudam gênero, raça e idade, objetos diretamente relacionados ao preconceito e à discriminação. O preconceito refere -se a atitudes into- lerantes, injustas ou negativas com relação a um indivíduo simplesmente por que esse in- divíduo pertence a um grupo, enquanto que a discriminação refere -se a comportamentos negativos, injustos ou agressivos com rela- ção a membros de um grupo em particular. Vários conceitos se relacionam à explicação dos preconceitos e da discriminação. Dentre esses conceitos, destaca -se a es‑ tereotipia. Estereótipos são “esquemas” diri- gidos a grupos inteiros e contêm impressões Neiva.indd 46 21/2/2011 15:44:45 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 47 simplificadas, rígidas e generalizadas com relação aos membros de tais grupos. Os es- tereótipos têm um forte efeito na maneira pela qual a informação social é processada: a informação relacionada a um estereótipo que foi ativado é processada mais rapida- mente; as pessoas prestam mais atenção às informações que são consistentes com seus estereótipos; informações que são inconsis- tentes com um estereótipo são normalmente negadas ou refutadas. Embora o estereótipo possa ser considerado como um processo natural que previne contra uma sobrecarga cognitiva, por meio da redução de grandes quantidades de informação para um núme- ro maneável de categorias, ele torna -se pro- blemático – ou seja, leva ao preconceito e à discriminação – quando os traços atribuídos a um grupo são predominantemente negati- vos, quando a pessoa que está estereotipan- do é dogmática e não acomoda suas crenças a novas informações, ou quando o estereóti- po gera uma profecia autorrealizadora. Os estereótipos podem ser mantidos por vários processos, incluindo a correlação ilusória, que é uma tendência a per ceber uma forte relação entre duas variáveis, normalmente distintas. A correlação ilusó- ria contribui para a estereotipia quando se supõe que uma característica negativa se aplica a todos ou a grande parte dos mem- bros de um grupo, porque essa característi- ca foi exibida por um ou poucos membros do grupo. Já o conceito de personalidade auto‑ ritária foi introduzido após a Segunda Guerra, por um grupo de cientistas inte- ressados em antissemitismo (Adorno et al., 1950). Segundo Adorno, o preconceito e a discriminação estão relacionados a certas características de personalidade, especial- mente com o autoritarismo. Esses cientistas criaram uma Escala F, ou escala de fascismo (F Scale), que avalia nove componentes do autoritarismo (p. ex., agressão autoritaris- mo, superstição, estereótipos, etc.), sendo que cada um desses componentes corres- ponde a uma das funções do ego, superego ou id. Segundo Adorno, altos níveis de auto- ritarismo refletem um ego fraco, um supere- go rígido e externalizado, e um id primitivo e forte. Observou -se que um alto escore na Escala F está associado ao preconceito, as- sim como a intolerância por ambiguidade, o conservadorismo político e social e um clima de família que enfatiza uma ideologia tradicional. O preconceito e a discriminação tam- bém estão associados à crença de que um grupo representa uma ameaça direta ao bem -estar de um indivíduo. Essa explicação é reforçada pelo fato de que, historicamente, os incidentes de violência racial aumentam durante períodos de depressão econômica. Sears (1988) desenvolveu a ideia de racismo simbólico (ou moderno). Essa noção propõe que o preconceito e a discriminação estão menos fortes e presentes do que costuma- vam estar, que eles realmente representam uma forma de resistência às mudanças ra- ciais, e que estão baseados em um sentimen- to moral de que negros e outras minorias violam valores tradicionais como a ética do trabalho. Os racistas simbólicos negam seus preconceitos e atribuem os problemas so- ciais e econômicos dos grupos minoritários a fatores internos (p. ex., pouco esforço ou disciplina). Recentemente, a noção de racis- mo moderno também tem sido aplicada ao gênero. Segundo Swim (1995), o sexismo moderno é caracterizado pela negação da discriminação contra a mulher e pelo res- sentimento com relação às demandas por igualdade social. Finalmente, em seu livro A Natureza do Preconceito, Allport (1954) argumenta que o preconceito intergrupal cresce de uma combinação de fatores históricos, culturais, econômicos, cognitivos e de personalidade, e propõe que, uma vez que o preconceito tem determinantes múltiplos, o enfoque em apenas um deles não vai levar a uma com- preensão ou resolução total do problema. Allport nota, contudo, que as várias causas do preconceito são internalizadas pelo indi- víduo e, consequentemente, é o indivíduo que se engaja em práticas discriminatórias, podendo este aprender a agir de maneiras mais igualitárias e não discriminatórias. Em termos de intervenções, Allport sugere que Neiva.indd 47 21/2/2011 15:44:45 48 TORRES, NEIVA & COLS. nem sempre o “senso comum” deve preceder o “senso de direito”, e que leis que proíbam a discriminação podem ser eficazes mesmo quando não refletem o consenso público. Além do preconceito e da discrimina- ção, outro tema bastanteinvestigado e que será bem detalhado no presente livro são os estudos sobre atribuição de causa. O termo atribuição se refere ao processo de deter- minar ou inferir a razão pela qual um com- portamento ocorre. Uma importante parte do trabalho sobre atribuição foi feita por Heider (1958), cuja teoria sugere que nós naturalmente desenvolvemos teorias sobre as causas do comportamento. A pesquisa desenvolvida por Heider e outros acadê- micos mostrou que as atribuições de causa podem ser descritas em termos de algumas dimensões. Essas dimensões formam de fato uma taxonomia, que pode ser utilizada para entender ou atribuir causas do comporta- mento. Assim, o comportamento pode ser atribuído a características disposicionais (internas) do indivíduo, assim como o hu- mor, as habilidades ou o desejo, ou também pode ser atribuído a fatores situacionais (ex- ternos), tais como características da tarefa, da situação social ou do ambiente físico. As reações humanas podem ser, ainda, o resul- tado de fatores percebidos como estáveis ou constantes, ou de fatores instáveis ou tem- porários. Além disso, os indivíduos perce- bem que alguns comportamentos têm efei- tos específicos (que envolvem um número limitado de eventos, condições ou outros fe- nômenos), enquanto que outros têm conse- quências globais (ou seja, afetam uma gran- de variedade de fenômenos). Finalmente, as pessoas entendem que algumas causas do comportamento estão sob o controle do in- divíduo (p. ex., esforço, atenção), enquanto que outras são incontroláveis (p. ex., apti- dão, sorte). Esses critérios, segundo Heider, são responsáveis por atribuições de culpa aos atores do comportamento, ou então à alocação de recompensas aos mesmos. Um achado consistente da pesquisa so- bre atribuição de causa é que observadores tendem a superestimar o papel dos fatores disposicionais e ignorar o papel dos fatores situacionais quando eles estão inferindo a causa do comportamento de um indivíduo. Por exemplo, um observador tende a atri- buir o fracasso de um indivíduo na execução de uma tarefa mais como um resultado da falta de inteligência ou habilidade do indiví- duo do que como um resultado de uma ca- racterística da tarefa em si (isto é, da dificul- dade). Essa falha na atribuição é conhecida como erro fundamental de atribuição, e tem sido usada na explicação de vários fenôme- nos, tais como as atribuições defensivas da crença em um mundo justo – tendência que as pessoas têm em considerar a vítima como a causa de seu próprio infortúnio (Lerner, 1966). Notem, porém, que as pesquisas na perspectiva da psicologia transcultural so- bre atribuição de causa sugerem que a ten- dência a superestimar o papel dos fatores disposicionais é uma característica limitada a culturas individualistas (p. ex., países do Norte Europeu, Estados Unidos). Pesquisas desenvolvidas com culturas mais coletivis- tas (p. ex., China, Índia) encontraram que os membros dessas culturas tendem a fa- zer atribuições mais situacionais. Segundo Morris e Peng (1994), essas diferenças se relacionam às teorias implícitas sobre o comportamento social: enquanto as culturas individualistas adotam uma teoria sobre o comportamento social centrada na pessoa, as culturas coletivistas tendem a aderir a uma teoria centrada na situação. Assim, é importante agora elaborar um pouco mais sobre o conceito de culturas individualistas e coletivistas, além do papel da psicologia transcultural na explicação desses termos. A presença de temas como cultura e diversidade (12 pesquisadores) e valores humanos e cultura (12 pesquisado- res) mostram que os pesquisadores estão descobrindo essa perspectiva de pesquisa no Brasil. Tal perspectiva reflete uma tendên- cia internacional de realização de pesquisas transculturais. Conforme dito anteriormente, todas (e outras) pesquisas clássicas da psicologia so- cial trazem em si uma similaridade: a maio- ria delas foi originalmente desenvolvida em Neiva.indd 48 21/2/2011 15:44:45 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 49 países individualistas. É interessante notar, contudo, que o simples fato de essas pesqui- sas terem sido originadas em países indivi- dualistas faz com que elas tragam consigo um viés também individualista, que se refle- te nos sujeitos recrutados para as pesquisas, na escolha de método utilizado, e até mes- mo no próprio fenômeno estudado. O que talvez seja mais interessante de se observar é que tudo isso ocorre pelo simples fato de que esses pesquisadores também carregam consigo características individualistas! Ora, é claro que todas as manifestações culturais desse tipo (como, por exemplo, o individu- alismo) são parte de um fenômeno social maior, a cultura. Se a cultura pode ser en- tendida como lentes que distorcem a reali- dade e nossa compreensão do mundo, então é importante perguntarmos até que ponto essas pesquisas e seus resultados têm apli- cação direta a outros grupos, assim como as culturas coletivistas, das quais o Brasil é um exemplo citado na literatura (p. ex., Triandis, 1995). Mas, afinal, o que são essas “mani- festações culturais” citadas anteriormente? Para que possamos discuti -las, é necessário antes entender o que está por trás do con- ceito de cultura. O conceito de cultura vem sendo profundamente discutido por mui- tos autores (p. ex., Hofstede, 1993; Smith e Bond, 1999; Triandis, 1994) que acabam por defini -lo de forma diferente e, em al- guns casos, complementar. O dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda apresenta uma definição de cul- tura bastante geral e que, de certo modo, representa uma síntese das diversas defi- nições existentes na literatura científica. Nele, a cultura é apresentada como “com- plexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições e de outros valores espirituais e materiais transmitidos coletiva- mente e característicos de uma sociedade”. Essa noção parece ser complementar àquela apresentada por Kluckhohn (1962), de que a variável cultura pode ser dividida entre elementos objetivos (expresso nos artefatos produzidos por grupos sociais) e subjetivos (valores, crenças e normas desses grupos). Seguindo a proposta de Kluckhohn, parece claro que o maior interesse da psicologia social esteja nos elementos subjetivos da cultura. Todavia, vários são esses elementos subjetivos, o que acaba por tornar o concei- to muito amplo para a utilização científica. Esse ponto tem sido discutido por diversos autores (p. ex., Smith, Bond e Kagitçibasi, 2006), que defendem o “desempacotamen- to” do conceito de cultura, ou seja, a ne- cessidade de se identificar, precisar e isolar esses elementos subjetivos para que, então, eles possam ser utilizados como variáveis de pesquisa. Em um esforço para “desempacotar” (Smith e Bond, 1999) a cultura, além de identificar estruturas valorativas que permi- tam o estabelecimento de uma diferenciação entre as culturas, Geert Hofstede coletou dados em mais de 50 países, investigando a experiência de trabalho, a estabilidade, a formação de equipes e outras variáveis li- gadas ao contexto organizacional. Uma das mais importantes descobertas de seu estu- do é que a cultura pode ser utilizada como uma variável causal e preditora. Sua pesqui- sa demonstrou que os povos têm intenções diferentes, dão atribuições diferentes para a mesma situação e até mesmo se comportam de maneira diferente por causa do grupo cultural do qual fazem parte. Para Triandis (1994), as pesquisas de Hofstede fornecem um conjunto de padrões de comparação por meio dos quais outros estudos podem ser organizados conceitualmente. Smith, Bond e Kagitçibasi (2006) também ressaltam que, no trabalho de Hofstede, a cultura nacional é conceituada em termos de seu significado, o que tornou apropriado o estudo das cultu- ras por meio do levantamento dos valores em amostras representativas dos membros de cada uma dessas culturas. Em seu trabalho, Hofstede(1980, 1983, 1984, 1991, 1993) identificou a variação de quatro dimensões culturais. Essas quatro di- mensões são: masculinidade -femininidade, evitação das incertezas, distância do poder e individualismo -coletivismo. Discussões extensas e revisões sobre essas dimensões são apresentadas por Smith e Bond (1999), Neiva.indd 49 21/2/2011 15:44:45 50 TORRES, NEIVA & COLS. Smith, Bond e Kagitçibasi (2006) e Torres (2009), dentre outros. Aqui, nós nos limi- taremos a apresentar uma breve descrição dessas dimensões, relacionando -as aos obje- tivos deste capítulo. A masculinidade é encontrada em so- ciedades que têm uma grande diferenciação sexual, enquanto a feminilidade é uma ca- racterística de culturas em que a diferen- ciação sexual é mínima. Hofstede (1980) também encontrou que países femininos en- fatizam mais a qualidade de vida do que o investimento em uma carreira ou no traba- lho, enquanto que o contrário é verdadeiro para culturas masculinas. Já a evitação das incertezas, a segunda dimensão, é refletida em uma ênfase nos comportamentos rituais, nas regras e na estabilidade no emprego. O autor observou altos índices de evitação das incertezas em culturas que apresentam altos níveis de estresse, e que se correlacionam negativamente com a necessidade de alcan- ce de metas. Hofstede observou que países com alta evitação das incertezas tendem a ser mais ideológicos e menos pragmáticos no que se refere à tomada de decisão do que países com baixa evitação das incertezas. A distância do poder, sua terceira di- mensão, se refere à extensão em que mem- bros de uma cultura aceitam a desigualda- de de poder e o quanto eles percebem a distância entre aqueles com poder (p. ex., chefes) e aqueles com pouco poder (p. ex., subordinados). A distância do poder reflete a base sobre a qual o líder tem poder sobre o subordinado (Smith e Bond, 1999). Em culturas com alta distância do poder, as re- gras e as normas sociais são construídas pe- los superiores e determinadas pelos líderes. Em culturas com baixa distância do poder, as regras tendem a ser consensuais, e, logo, os subordinados estão mais diretamente en- volvidos em sua elaboração. É interessan- te notar que, quanto maior a distância do poder, maior a conformidade em torno de uma norma social (Smith, Dugan, Peterson e Leung, 1998). Finalmente, o individualismo -coleti- vis mo, a outra dimensão identificada por Hofstede, reflete a extensão na qual os gru- pos enfatizam metas pessoais ou grupais. Hofstede (1983) observou que membros de culturas individualistas tendem a se fo- car “em seu próprio trabalho”, enquanto que membros de culturas coletivistas dão preferência às metas grupais. Para Singelis, Triandis, Bhawuk e Gelfand (1995), o com- portamento social em culturas coletivistas é mais bem predito por normas sociais e obrigações, enquanto que, em culturas indi- vidualistas, o comportamento social é mais bem predito por atitudes e outros proces- sos internos. Smith e Schwartz (1997) en- contraram evidências empíricas para essa afirmação. Alguns autores (p. ex., Triandis, 1995) propõem que a dimensão cultural individualismo -coletivismo é essencial para a análise de uma cultura, e um grande nú- mero de pesquisas (p. ex., Egri e Herman, 2000; Triandis e Gelfand, 1988) demonstra- ram a influência dessa dimensão no compor- tamento de membros de um grupo cultural. Outro esforço de desempacotamento da cultura foi realizado por uma série de es- tudos desenvolvidos por Shalom Schwartz e colaboradores. Esses estudos (p. ex., Schwartz, 1994) identificaram 56 valores e construíram um questionário no qual os res- pondentes devem indicar o quanto cada um desses valores age como um princípio guia de suas vidas. Até esta data, respostas indi- viduais foram obtidas em mais de 80 paí- ses, incluindo todas as regiões do mundo. Quando analisados em termos de culturas nacionais, os resultados demonstram, com notável consistência, que as relações espa- ciais das médias dos itens podem ser suma- rizadas como pertencentes a 7 domínios ou dimensões. Schwartz nomeou essas dimen- sões como: igualitarismo, conservadorismo, hierarquia, domínio, autonomia afetiva e autonomia intelectual. É importante notar, ainda, que os estudos dessas dimensões de- monstraram que sua estrutura é consistente em diferentes culturas, ou seja, que a mes- ma relação estrutural dos valores se repete nas diferentes culturas pesquisadas. Estudos como o de Hofstede e Schwartz nos dizem que as culturas podem ser entendidas em termos de significados e Neiva.indd 50 21/2/2011 15:44:45 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 51 que, por isso, é apropriado estudá -las por meio da avaliação dos valores de amostras representativas de membros de cada cultu- ra. Vale reforçar, porém, que, pelo fato de duas nações se diferirem em termos de uma dada dimensão de valores, não é lógico se inferir que, porque essas duas culturas se diferenciam dessa forma, então quaisquer dois membros dessas culturas também irão se diferenciar da mesma maneira. O nível de análise cultural não pode ser perpassa- do para o nível de análise individual. Além disso, as pesquisas de Hofstede e Schwartz também demonstraram que há significados consistentes entre culturas. As polaridades que emergiram do estudo de Schwartz (con- servadorismo versus autonomia; domínio e hierarquia versus igualitarismo) podem ser entendidas como fortes reminiscentes das dimensões de Hofstede de individualismo- -coletivismo e distância do poder, respecti- vamente. Todavia, talvez um dos pontos mais importantes a ser frisado sobre todas essas dimensões é que elas não são absolutas. Em outras palavras, nenhuma cultura pode ser classificada simplesmente como individua- lista ou hierárquica. Uma cultura tem alto grau de individualismo ou de hierarquia em relação a outra cultura. Tais manifestações culturais são, dessa forma, puramente re- lacionais. O Brasil, por exemplo, pode ser considerado como coletivista em relação aos Estados Unidos, mas, seguramente, é individualista quando comparado à nossa vizinha Colômbia (Hofstede, 1984). Já na teoria de Schwartz, quando comparado à Europa Ocidental, o Brasil tem altos es cores em hierarquia e baixos em autonomia in- telectual. Quando comparado aos Estados Unidos, o Brasil também apresenta maio- res escores em autonomia intelectual, com os EUA apresentando maiores escores em autonomia afetiva. A dimensão de domínio parece ser maior para os EUA, enquanto o Brasil apresenta maior escore para harmo- nia. Todavia, quando comparado a países da Ásia, da África e do Oriente Médio, o Brasil apresenta uma posição praticamente inversa! Esse tipo de comparação e estudo é o mote da psicologia transcultural, que, conforme citado anteriormente, é uma das abordagens da psicologia social que vem ganhando reconhecimento na comunidade acadêmica brasileira. Os psicólogos trans- culturais, tradicionalmente, trabalham com ferramentas como questionários, escalas e entrevista/observação estruturada e têm uma predominância quantitativa em suas análises e opções metodológicas, as quais, com uma orientação empírica, objetivam a testagem de diferenças entre amostras de nações e/ou grupos étnicos. Assim como outros representantes da psicologia trans- cultural no restante do mundo, os pesqui- sadores brasileiros (ou seja, Alvaro Tamayo, Valdiney Gouveia, Maria Cristina Ferreira, Cláudio Torres, dentre outros) que têm interesse nessa abordagem da psicologia social, procuram tipicamente o estabeleci- mento da variância explicada por valores culturais. Também como seus colegas de outros países, esses pesquisadores tendem a publicar em revistas como o Journal of Cross ‑Cultural Psychology da International Association for Cross ‑Cultural Psychology, embora revistas nacionais (p. ex., Brazilian Administration Review – ANPAD; Revista Psicologia: Organizações e Trabalho, da SBPOT)também têm publicado artigos com essa ênfase. Vale notar que os pesquisadores representantes da psicologia transcultural se diferenciam daqueles da psicologia inter- cultural, uma vez que os representantes do segundo grupo estão mais preocupados com a relação interpessoal entre membros de di- ferentes grupos culturais. Já os pesquisado- res voltados para a psicologia cultural têm uma preocupação maior com os processos por meio dos quais a cultura é transmitida entre os membros do grupo. Finalmente, vale uma nota de alerta: conforme destacado, grande parte da psi- cologia social foi originalmente desenvol- vida principalmente nos Estados Unidos e no Reino Unido. Isso se reflete nos manuais de psicologia social utilizados em diversos cursos introdutórios em grandes centros acadêmicos no mundo. O Manual de Baron Neiva.indd 51 21/2/2011 15:44:45 52 TORRES, NEIVA & COLS. e Byrne (1994), talvez um dos livros -texto mais utilizados nos Estados Unidos, contém por volta de 1.700 citações. Todavia, ape- nas um pouco mais de 100 delas se referem a estudos desenvolvidos fora dos Estados Unidos. Já o livro -texto de Hogg e Vaughan (1995), um dos mais conhecidos e utiliza- dos na Europa, contém mais de 500 citações de estudos feitos fora dos Estados Unidos, de um total de 2 mil referências utilizadas na obra. Contudo, a maioria dessas 500 citações se refere a estudos conduzidos na Europa Ocidental, na Austrália e na Nova Zelândia, ou seja, todos países individua- listas, pelo menos quando comparados à América Latina! Esses dados demonstram a urgente necessidade de que o leitor, ao bus- car os conhecimentos da psicologia social, também exercite a habilidade da tradução. Mas não a tradução da língua inglesa, que, afinal de contas, pode ser considerada como a Língua Franca da área, ou o Latim dos nossos tempos. O que é necessário é uma tradução cultural. Nem tudo o que lemos e estudamos pode ser diretamente aplicado a nossa realidade. Nem tudo que é produzido no, aproximadamente, um quinto do mundo que é individualista é diretamente aplicável aos quatro quintos restantes do mundo, que é coletivista. Além da perspectiva da psicologia transcultural, a perspectiva sociológica e antropológica e dos estudos que se funda- mentam sobre a teoria das representações sociais serão abordados neste livro, pois são objeto de atenção de vários pesquisadores sociais brasileiros, principalmente com uma interface grande com a psicologia escolar e educacional. Conforme retratado pelo levantamento de temas, os temas história, representações sociais e cultura (abordados por 33 pesquisadores), estudos sobre vio- lência (23 pesquisadores), construção social da subjetividade (49 pesquisadores) e ativi- dade, consciência, identidade, afetividade, emoções, linguagem e pensamento sob a perspectiva antropológica e sócio -histórica (37 pesquisadores) são preponderantes no contexto brasileiro. Enfim, o objetivo deste livro é mostrar as diversas tendências e temas presentes na psicologia social no Brasil, alguns bastante explorados, outros com possibilidades de exploração ainda não tomadas por psicólo- gos da área. Outra vocação do livro está na apresentação das várias formas de estudo da influência recíproca dos indivíduos e dos ambientes sociais. Tal estudo muitas vezes requer abordagens diferenciadas e respeito ao conhecimento produzido pelo outro di- ferente. Esperamos que os leitores aprovei- tem! referêncIas ADORNO, T.; FRENKEL-BRUNSWICK, K.; LEVIN- SON, D.; SANDFORD, R. The Authoritarian Perso‑ nality. New York: Harper & Row, 1950. AGUILAR, M. A.; REID, A. (Org.). Tratado de psicologia social: Perspectivas socioculturales. Barcelona: Anthropos, 2007. ALLPORT, F. Social psychology. Psychological Bul‑ letin, v. 17, p. 85–94, 1920. ALLPORT, F. Social psychology. Boston: Houghton Mifflin, 1924. ALLPORT, G. Personality: a psychological interpre- tation. Oxford: Holt, 1937. 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Por outro, estuda a maneira como cada um de nos é influencia- do pelos outros no que diz respeito a nossos sentimentos, experiências e comportamen- tos. Essa relação recíproca entre o indivíduo e um dado meio social sempre diz respeito a algum objeto, espaço, ideia, pessoa (a si próprio, ao meio social ou a terceiros) so- bre os quais se tem atitudes, experiências ou disposiçõescomportamentais. Este capítulo trata de algumas das maneiras de se estudar esse triângulo e de se chegar a explicações e compreensões dos fenômenos da interação social. Como o conteúdo deste livro sugere, a psicologia social estuda um grande nú- mero de assuntos e envolve um número di- versificado de abordagens metodológicas. Entretanto, podemos afirmar que são três os caminhos principais para se estudar e se compreender o comportamento humano3 no contexto da psicologia social empírica: 1. observar o comportamento que ocorre naturalmente no âmbito da vida real; 2. criar situações artificiais e registrar o com- portamento diante de tarefas definidas para estas situações; 3. perguntar às pessoas sobre o que fazem, pensam ou experienciam acerca de algo no passado, no presente ou no futuro. Cada uma dessas três famílias de téc- nicas para conduzir estudos empíricos – ob- servação, experimento e levantamento de dados – apresenta vantagens e desvantagens distintas (Kish, 1987). Tais vantagens estão ligadas à qualidade e à utilização dos dados obtidos e devem ser consideradas pelo pes- quisador quando este for escolher o método mais apropriado para um determinado obje- tivo de pesquisa. Não obstante as variações dentro de cada uma dessas três grandes áreas, podemos afirmar que o ponto forte da observação é o realismo da situação estu- dada; que o experimento possibilita tanto a randomização de características das pessoas estudadas quanto inferências causais; e que o levantamento de dados, especialmente por amostragem, isto é survey, assegura melhor representatividade e permite generalização para uma população além da estudada. No presente capítulo, apresentamos um tour d’horizon dessas principais manei- ras de estudar a relação recíproca entre o in- divíduo e o meio social. Como fio condutor, consideramos uma série de pesquisas sobre um mesmo tema – comportamento pró ‑social – para demonstrar o uso de diferentes mé- todos dentro da psicologia social, bem como 3 Métodos de pesquisa em psicologia social1 HARTMuT GüNTHER Não é distante, somente parece como se fosse.” (Berra, 1998, p. 100)2 Neiva.indd 56 21/2/2011 15:44:46 Noah gabriel Realce PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 57 seus pontos fortes e fracos. Após delimitar o fio -condutor, comportamento pró -social, ini- ciamos com observações gerais sobre pesqui- sa social e tecemos algumas considerações sobre procedimentos qualitativos e quanti- tativos. A seguir, trataremos de análise de conteúdo, de observações, de experimentos e de levantamento de dados. Concluímos o capítulo com algumas considerações sobre a divulgação dos resultados de pesquisa. o fIo condutor: comportamento pró ‑socIal enquanto oBjeto de estudo – “O que faria se encontrasse um milhão de dólares?” – “Procurava encontrar a pessoa que perdeu o dinheiro e, caso fosse pobre, devolveria.” (Berra, 1998, p. 59) O comportamento pró -social assume muitas variantes. Pode ser material ou es- piritual, pode basear -se em altruísmo, ego- ísmo, reciprocidade ou aprendizagem de normas sociais (Aronson, Wilson e Akert, 2002). É fácil verificar que as pessoas va- riam quanto a sua disposição para ajudar o outro. A variação está no ato em si: pas- sar o sal na mesa fora do alcance do outro, entregar um objeto que caiu despercebido, oferecer o assento no ônibus lotado, deixar um pedestre passar, desviar o caminho para dar carona a alguém, doar sangue, dar con- forto ao próximo, interferir em uma briga para proteger aquele que parece ser o mais fraco, para citar apenas alguns atos de aju- da. Mas a variabilidade também está na ra- pidez da resposta, na disposição de ajudar a “qualquer” pessoa, ou somente determi- nados indivíduos, na disposição de ajudar sob “qualquer” circunstância, ou somente em determinadas situações. Além do mais, a decisão de ajudar dependerá 1. de fatores individuais: gênero, idade, educação; 2. de fatores circunstanciais: hora, local, tempo disponível; 3. de fatores sociais: a presença de outras pessoas, isto é, alternativas de ajuda; 4. da avaliação do custo pessoal, por exem- plo, no caso da interferência em uma briga, qual a chance de ser bem -sucedido ou de apanhar por sua vez, ou, até a ex- pectativa de retribuição futura? Até este ponto, fizemos uma reflexão em nível de senso comum a respeito do tópico em questão. Podemos prosseguir discutindo o assunto com amigos ou colegas sem che- garmos a conclusões que possam nos permi- tir entender, predizer e controlar o compor- tamento em questão. Para realizar pesquisa de maneira sistemática na psicologia social, devemos delimitar nosso assunto e chegar a perguntas mais específicas. O processo de delimitação implica que escolhemos entre as possíveis razões mencionadas anteriormen- te para realizar uma pesquisa sistemática. Por exemplo, qual a relação entre gênero e ajuda, levando em conta o esforço neces- sário, as circunstâncias e o esforço exigido? Importante, como primeiro passo, será uma revisão da literatura sobre o tema. Uma busca realizada em janeiro de 2008, usando somente a palavra -chave helping behavior, produziu 2.286 referên- cias a artigos em revistas científicas no site www.scirus.com; aproximadamente 11 mil referências diversas no site Google scholar; 934 referências a artigos no PsychInfo da American Psychological Association e 16 no site www.scielo.org, neste caso, com o ter- mo equivalente em Português. Esse exemplo aponta que o uso do termo -chave relacio- nado ao conceito global de comportamento pró -social já nos rende muitas indicações. Repetir a busca com outros termos, tais como pro ‑social behavior ou altruism, deverá resultar em mais referências, além de dupli- catas. Antes e além de delimitar as referên- cias assim obtidas, seja em termos do tipo de ajuda, do contexto, das pessoas envolvidas, entre outros aspectos, é importante escolher os termos -chave com cuidado: embora, nes- te exemplo, ajuda, caridade, cortesia, apoio Neiva.indd 57 21/2/2011 15:44:46 58 TORRES, NEIVA & COLS. e seus correspondentes em outras línguas façam parte do conceito mais amplo chama- do comportamento pró ‑social, começar com um termo em vez de outro pode nos enca- minhar em direções bastante distintas. Cabe salientar que não é aconselhável limitar a busca a estudos em um determinado inter- valo de tempo (p. ex., os últimos 10 anos) e rotular o que foi publicado antes de uma de- terminada data de “velho” ou superado. No caso concreto, ao usar o limite de 10 anos estar -se -ia ignorando estudos importantes realizados na década de 1960, como, por exemplo, os estudos de Berkowitz e Daniels (1964), Bryan e Test (1967), Darley e Latané (1968), Epstein e Hornstein (1969) ou Latané e Darley (1968). algumas oBservações geraIs soBre pesquIsa socIal “Você deve ter cuidado quando não sabe para onde vai, porque pode ser que não chegue lá.” 3(Berra, 1998, p. 102) Fenômenos sociais podem ser estuda- dos a partir do referencial teórico e com mé- todos de diferentes áreas do conhecimento. A pesquisa social baseada em múltiplos mé- todos tem uma longa tradição nas ciências sociais. Em 1933, Lazarsfeld, Jahoda e Zeisel publicaram um estudo sobre os desempre- gados de Marienthal, um vilarejo perto de Viena, Áustria. Os autores, respectivamente, sociólogo com doutorado em matemática aplicada, psicóloga social com doutorado em psicologia geral e cientista social com um doutorado em ciências sociais e outro em direito, faziam parte do centro de pes- quisa em psicologia econômica. Neurath (1983) observa que o que tornou esse tra- balho um clássico “foi a então relativamente nova combinação entre observação quali- tativa e análise de dados qualitativos” (p. 124). Enquanto Mayring (2002) cita partes do estudo de Lazarsfeld e colaboradores como exemplos de diferentes vertentes da abordagem qualitativa, o próprio Lazarsfeld insistiu na combinação de vários métodos(vide Lazarsfeld, 1944, p. 60). O conceito exemplar deste capítulo, comportamento pró ‑social, interessa tanto à psicologia, pelo viés do comportamento em nível individual, quanto, por exemplo, à sociologia, no que se refere ao comporta- mento cooperativo entre grupos, ou, ainda, à ciência política no contexto de assistên- cia internacional. Entretanto, não apenas resultados encontrados em áreas de conhe- cimentos correlatos acerca de um mesmo tema contribuem para uma compreensão mais aprofundada. Igualmente importan- te é estar aberto para abordagens teóricas e metodológicas diversas de uma mesma área. Duas palavras -chave caracterizam a abordagem metodológica implícita no es- tudo de Lazarsfeld e colaboradores: multi- método e triangulação. O primeiro termo dispensa definição, e o segundo é definido por Vogt como “usando mais do que um mé- todo para estudar a mesma coisa” (1993, p. 234). Podemos acrescentar, com Sommer e Sommer (2002, p. 6), que usar procedimen- tos múltiplos é melhor do que usar apenas um, que múltiplos olhares dentro de uma área como a psicologia social não somente são desejáveis, mas se fazem necessários, vez que constituem operações convergen- tes (Webb, Campbell, Schwartz e Sechrest, 2000). Começamos o capítulo com uma refe- rência a Kish (1987) e a seu alerta de que, ao escolher um ou outro método de pesqui- sa, o pesquisador estará, necessariamente, fazendo um compromisso em relação ao re- sultado final de seu trabalho: aceita as van- tagens e as desvantagens de um método em vez destas de outro método. Implícito nessa constatação é a recomendação de se utili- zar mais de um método ao estudar um tema qualquer, visto que, por si só, cada uma das abordagens se mostra incompleta. Brewer e Hunter (1989) afirmam que pesquisa de campo, levantamento de dados, experimen- tação e pesquisa não reativa constituem os principais métodos das ciências sociais. Indicando a possibilidade de, sempre que Neiva.indd 58 21/2/2011 15:44:46 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 59 possível, adotar -se uma estratégia de pes- quisa multimétodos, estes autores – como Kish – apontam que: interpretar os resultados de qualquer um desses métodos é tarefa incerta na melhor das hipóteses. A maior fonte de incerteza é que qualquer estudo que utiliza apenas um único tipo de método de pesquisa [...] deixa de lado hipóteses rivais não testadas [...] que colocam em questão a validade dos achados do estudo. (p. 14) Sommer e Sommer resumem diferen- tes abordagens (veja Quadro 3.1) e apon- tam, ainda, as seguintes vantagens de se utilizar de mais de um método como pesqui- sador: quando um procedimento não pode ser utilizado por razões fora do controle do pesquisador, ou por falta de recursos, em termos de tempo, dinheiro ou número de pessoas para realizar um determinado estu- do, a utilização de mais de um método ofe- rece flexibilidade ao lidar com dificuldades. Mesmo havendo diferentes maneiras de se usar os métodos para pesquisar fenô- menos sociais, há alguns pontos em comum que precisam ser levados em conta para se aumentar a probabilidade de se chegar a re- sultados úteis. Agregando as considerações de Grunenberg (2001), de Mayring (2002), de Miles e Huberman (1994), bem como as de Steinke (2000) acerca de critérios de qualidade de pesquisa social, seguem algu- mas exigências – formuladas em termos de perguntas – para uma análise sobre até que ponto uma pesquisa pode ser considerada de boa qualidade (Günther, 2006). As perguntas da pesquisa são claramente formuladas? O primeiro passo para conduzir uma pes- quisa é definir e delimitar a pergunta de pesquisa. Quanto maior a clareza sobre o que se quer saber, maior a chance de se QuADRO 3.1 OPçõES DE PESQUISA SOCIAL Problema Abordagem Técnica de pesquisa Obter informação confiável sob condições Estudar pessoas em Experimento laboratorial, controladas um laboratório simulação Descobrir como as pessoas se comportam Observá ‑las Observação sistemática em público Descobrir como as pessoas se comportam Solicitar que Documentos pessoas na sua vida privada mantenham um diário Descobrir o que as pessoas pensam Perguntar às pessoas Entrevista, questionário, escalas de atitudes Identificar traços de personalidade ou Administrar um teste Testes psicológicos habilidades mentais estandardizado Identificar padrões em material escrito Tabulação sistemática Análise de conteúdo ou visual Compreender um evento não usual Investigação detalhada Estudo de caso e demorada Descobrir o que as pessoas fizeram Avaliar documentos Pesquisa de arquivos no passado públicos Referência: Sommer e Sommer (2002, p. 6) Neiva.indd 59 21/2/2011 15:44:46 60 TORRES, NEIVA & COLS. obter êxito em uma pesquisa. Uma revi- são de literatura sobre o assunto em ques- tão ajuda no início de qualquer pesquisa. Considerando -se nosso exemplo de com- portamento pró -social, uma pergunta ge- ral poderia ser: quem ajuda quem, como e sob quais circunstâncias? Para chegar a perguntas mais específicas, pesquisáveis, é necessário operacionalizar as quatro partes dessa pergunta geral: o quem ajuda pode se referir a pessoas de determinado gênero, idade, educação ou nível sócio -econômico. O quem recebe ajuda, idem. O como pode variar em termos de prontidão, isto é, aju- dar de maneira espontânea versus solicita- do, generosa versus de forma avarenta. Já as circunstâncias podem variar em termos de ambiente ou do tipo de ajuda necessá- ria. Desta maneira, podemos chegar a per- guntas do tipo: “Os jovens ajudam mais aos jovens do que aos idosos em situações de emergência de rua?”, “Sob quais condições, desconhecidos intervêm em um assalto?”, “Os motoristas com carros com adesivos re- ligiosos se mostram mais cordiais no trân- sito?” Operacionalizar variáveis Após ter -se delimitado a pergunta, será ne- cessário operacionalizar as variáveis por meio das quais os conceitos serão pesqui- sados. No exemplo anterior, os termos jo- vens e idosos se referem a faixas etárias, e podem ser operacionalizadas em termos de idade em anos. O conceito ajudar é que pre- cisa de uma definição e operacionalização mais detalhada. O nível de ajuda, no caso de um assalto, pode variar, por exemplo, en- tre: gritar para chamar atenção de qualquer um por perto, chamar alguém competente, como a polícia, intervir pessoalmente. Outra variável a definir seria a rapidez, isto é, o tempo em segundos após a verificação da existência de uma emergência. Outras variá- veis que precisam ser operacionalizadas são “situação de emergência!”: estamos falando de quais emergências – agressão física, aci- dente, desorientação, agressão verbal? No caso de adesivos religiosos, que forma de cordialidade seria esperada? Explicitou ‑se a teoria que pode ser derivada dos dados e utilizada em outros contextos? Uma distinção importante entre pesquisa de natureza qualitativa e exploratória ver‑ sus pesquisa quantitativa e inferencial é que um objetivo central da primeira consiste na tentativa de se chegar a uma teoria por meio de um processo indutivo. Uma pesquisa de cunho quantitativo e inferencial visa confir- mar uma teoria já existente, representando, assim, um processo dedutivo. Seja qual for a natureza da pesquisa, é importante espe- cificar qual a teoria que orienta nossa pes- quisa, no caso de investigação quantitativa. No caso de pesquisa qualitativa, é mais im- portante, ainda, deixar explícito para o lei- tor onde esperamos chegar ao realizar uma pesquisa exploratória. O delineamento da pesquisa é consistente com o objetivo e as perguntas? Como apontado acima, a escolha do delinea- mento de pesquisa, isto é, a opção por uma abordagem observacional, experimental, de levantamento de dados ou uma análise de conteúdo deve ser consequência da pergun- ta de pesquisa a ser respondida. Não cabe modificar uma pergunta para que esta se adapte a um método preferido. Os construtos analíticosforam bem explicitados? Conceitos como altruísmo ou disposição para ajudar são chamados construtos hipotéticos, isto é, algo que existe teoricamente, mas não é observável diretamente. Que alguém pode Neiva.indd 60 21/2/2011 15:44:46 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 61 ser considerado altruísta ou ter disposição para ajudar é inferido a partir de observa- ções de comportamento diretos – no caso, vendo este alguém concretamente ajudando alguém, ou indiretos – analisando as respos- tas numa escala de atitudes, por exemplo. Assim, a questão que se coloca é: o compor- tamento observado ou as atitudes expressas permitem inferências acerca do altruísmo ou da disposição de ajudar? Os procedimentos metodológicos são bem documentados? Todos os passos de uma pesquisa precisam ser descritos e explicitados. Quem foram as pessoas observadas, entrevistadas, partici- pantes dos experimentos? Quais foram os instrumentos e equipamentos utilizados? Quais foram os procedimentos para a cole- ta de dados? A descrição dos participantes precisa ser suficientemente completa para que se possa saber como foram recrutadas e quais suas características. O detalhamento dos instrumentos e dos procedimentos deve permitir que outros pesquisadores possam replicar o estudo. Há de se observar, en- tretanto, que estudos fora do laboratório sempre sofrerão do fator “circunstâncias sócio -históricas”, razão pela qual não são to- talmente replicáveis (Gergen, 1973). Ainda assim, descrever o método usado em uma pesquisa permite ao leitor avaliar as inter- pretações dos dados oferecidas pelo autor e considerar possíveis explicações alternativas – veja “A discussão dos resultados” a seguir. Os instrumentos são fidedignos e válidos? Há várias maneiras de registrar comporta- mento: ficha de observação, check ‑list, esca- la de atitudes, testes de competência, para mencionar as mais importantes. Esses ins- trumentos têm em comum o objetivo de re- gistrar e, assim, refletir de maneira mais fiel o comportamento sob investigação. Nesse sentido, precisam satisfazer dois critérios de qualidade: fidedignidade e validade, sendo que o segundo não existe sem o primeiro. Fidedignidade Fidedignidade diz respeito à consistência da medição repetida de um mesmo objeto sob circunstâncias semelhantes (Vogt, 1993; Yarenko, Harari, Harrison e Lynn, 1986). Uma balança poderia ser considerada fide- digna se, pesando um mesmo objeto várias vezes, indicasse o mesmo peso. Medidas psicológicas, que, por parte do medidor, exi- gem interpretação de eventos, como seria o caso de uma observação, ou que, por parte da pessoa avaliada, permitem um processo de aprendizagem, como seria o caso de um teste de conhecimento, correm o risco de ser menos fidedignas. Medidas psicológicas cuja aplicação e interpretação não dependem da competência do aplicador e que contêm re- gistros (perguntas, itens, observações) es- tandardizados tendem a ser mais fidedignas – veja Pasquali (1999) para maiores deta- lhes, inclusive maneiras de como calcular o índex de fidedignidade que varia entre zero e um. Validade Mesmo sendo fidedigno, um instrumento não é, necessariamente, válido. Validade trata da correspondência entre o que um instrumento pretende medir e do constru- to hipotético que está sendo investigado. Mesmo se o balanço mencionado registre de maneira fidedigna o peso em libra, não seria um instrumento válido se o objetivo fosse verificar o peso em quilogramas. Um teste de conhecimento não seria válido como instrumento para averiguar inteligên- cia – (Campbell e Stanley, 1963). Há de se salientar que, enquanto existem medidas quantitativas e genéricas do grau de fide- dignidade de um instrumento, a validade de um instrumento representa um julgamento Neiva.indd 61 21/2/2011 15:44:46 62 TORRES, NEIVA & COLS. essencialmente qualitativo e específico para cada situação estudada. Adotaram ‑se regras explícitas nos procedimentos analíticos? Os procedimentos analíticos são bem documentados? Os procedimentos de análise de dados preci- sam ser, igualmente, explícitos e explicitados. No caso de procedimentos quantitativos, tal detalhamento frequentemente está implí- cito no procedimento estatístico escolhido. Entretanto, especialmente no caso de proce- dimentos qualitativos, como, por exemplo, uma análise de conteúdo, a explicitação e a documentação de procedimentos analíticos são indispensáveis. Novamente, tais explica- ções fazem -se necessárias para que o leitor possa acompanhar, compreender e, se for o caso, replicar os passos analíticos. Os dados foram coletados em todos os contextos e tempos e com todas as pessoas sugeridas pelo delineamento? A preocupação subjacente é a randomiza- ção de contextos, tempos e pessoas. Espe- cialmente no caso de pesquisa “exemplar”, a partir da qual queremos realizar inferên- cias acerca de outros ou “todos” os demais contextos ou pessoas, devemos selecionar alguns eventos ou pessoas que podem ser considerados representativos. Como foi feita tal seleção – randomicamente, sistematica- mente, aleatoriamente, “a dedo”? Somente quando tal seleção é feita randomicamente podemos argumentar que nossos resultados podem permitir inferências para outros con- textos, tempos, pessoas além dos estudados. Caso contrário, sempre fica a pergunta, “será que o que foi encontrado não é um simples reflexo daquela situação, daquele tempo, daqueles participantes?” Se o procedimen- to que tivermos selecionado der margem a essa pergunta, a utilidade de nossos resulta- dos de pesquisa estará comprometida. Randomização Assim sendo, uma questão fundamental de qualquer pesquisa em pírica é se os resulta- dos poderiam ter sido alcançados por acaso ou se são consequência de algum artefato de seleção. O livro clássico de Campbell e Stanley (1963) continua sendo a referência para verificar até que ponto um determina- do delineamento, especialmente experimen‑ tal, pode ser considerado verdadeiramente randômico ou não, e quais as implicações de violar as pressuposições da randomização. No caso de levantamento de dados, diferen- tes planos de amostragem (Kish, 1965) po- dem ajudar a tratar o problema da rando- mização. No caso de estudos de observação, bem como que utilizar técnicas de análise de conteúdo, existem possibilidades de rando- mizar situações, segmentos de observações ou de textos. O detalhamento da análise leva em conta resultados não esperados e contrários ao esperado? A vantagem da abordagem experimental é a de permitir maior controle sobre os pro- cedimentos e as circunstâncias da pesqui- sa, excluindo, assim, variáveis estranhas e indesejáveis. Uma vez que tal delimitação frequentemente resulta em pesquisa “artifi- cial”, faz -se um contraste com a abordagem observacional, que inclui explicitamente “to- das” as variáveis de uma pesquisa (Günther, 2006). Mas, mesmo no caso de experimen- tos, é necessário mostrar flexibilidade e re- gistrar eventos inesperados. O exemplo pri- mordial para tal flexibilidade é a pesquisa de Pavlov, pesquisador de fisiologia que es- tudou a salivação em cachorros. Quando se deparou com reações inesperadas nos ani- mais, mudou o rumo de suas investigações Neiva.indd 62 21/2/2011 15:44:46 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 63 e chegou a estudar o condicionamento con- dicional, que seria chamado, posteriormen- te, de condicionamento clássico (Boring, 1957). A discussão dos resultados considera possíveis alternativas de interpretação? Foi afirmado anteriormente que, quanto mais específica a pergunta, quanto mais detalhada a hipótese sob estudo, mais ex- pectativas para uma determinada classe de resultados. Mesmo assim, é importante não fechar os olhos para explicações alternati- vas, especialmente quando os resultados encontrados não correspondem ao espera- do. Por outro lado, é importante precaver -se contra resultados incongruentesem termos das teorias conhecidas. Não vale argumen- tar que a ciência “tradicional” ou os méto- dos positivistas não conseguem dar conta dos resultados não usuais encontrados. Os resultados estimulam ações – básicas e aplicadas – futuras? Existe uma longa discussão acadêmica sobre a importância relativa da pesquisa dita apli- cada versus a pesquisa básica. Sem querer alongar essa temática neste momento, cabe citar a observação de Lewin acerca do as- sunto: O maior calcanhar -de -aquiles da psico- logia aplicada tem sido o fato de que, sem ajuda teórica apropriada, ela teve de seguir o método dispendioso, inefi- ciente e limitado de ensaio e erro. Muitos psicólogos que trabalham hoje em dia em um campo aplicado têm consciência aguçada de uma cooperação estreita entre a psicologia teórica e a aplicada. Isto pode ser conseguido na psicologia, como acon- teceu na física, se o teórico não trata dos problemas aplicados com pretensiosa an- tipatia ou com medo de problemas sociais; e se o psicólogo aplicado se der conta de que não existe nada mais prático do que uma boa teoria. (1997, p. 288). Participantes da pesquisa Definida a pergunta da pesquisa e especi- ficadas as características dos participantes, precisa -se refletir sobre o acesso à amostra de pessoas. Onde e como serão recrutados? No caso de observação do comportamento, em que locais serão feitas as observações? As pessoas vão saber que estão sendo obser- vadas? No caso de um experimento, onde serão recrutados os participantes? No caso de entrevistas, questionários ou aplicação de escalas e testes, onde e como as pessoas serão abordadas ou recrutadas: na rua, em locais como shoppings, escolas, rodoviárias, em seus locais de trabalho ou em suas ca- sas? Caso as características pessoais – como gênero, idade, educação, natureza do traba- lho – sejam parte da pergunta de pesquisa, é necessário ter acesso a participantes com determinadas características. Procedimentos, instrumentos e análise de dados Mais do que simplesmente os participantes, são os procedimentos e os instrumentos que diferenciam as técnicas de pesquisa que se- rão apresentadas a seguir. Não somente pre- cisam ser escolhidas em função da pergunta específica de uma pesquisa, mas também do que é factível, e do tipo de inferência que almejamos. O tipo de análise de dados, por sua vez, é consequência direta da pergunta, dos participantes e dos procedimentos. Análise dos resultados O escopo deste capítulo não permite abor- dar, em qualquer nível de profundidade, a análise dos dados coletados durante a pes- Neiva.indd 63 21/2/2011 15:44:46 64 TORRES, NEIVA & COLS. quisa. Cabe fazer, inicialmente, uma distin- ção entre estatística descritiva e inferencial. A estatística descritiva relata a distribuição dos dados por meio de tabelas e gráficos. Tabelas apresentam frequências e percen- tagens em termos numéricos, enquanto gráficos permitem visualizar a distribuição dos dados (Nicol e Pexman, 1999, 2003). Entretanto, a distribuição de frequências, as aparentes diferenças entre grupos ou even- tuais relações estabelecidas por meio de ta- belas e gráficos necessitam de uma resposta à seguinte pergunta: aqueles resultados são sistemáticos ou se chegou a eles por acaso? Realizando poucas observações em um úni- co local, dificilmente será possível fazer afir- mações sobre o comportamento das pessoas em geral. O mesmo Ocorre se entrevistamos apenas nossos amigos ou pessoas que estão convenientemente disponíveis. É por meio de estatísticas inferenciais que podemos sa- ber até que ponto os resultados são sistemá- ticos ou foram obtidos por acaso (Bisquerra, Sarriera e Martínez, 2004; Dancy e Reidy, 2006; Siegel e Castellan, 2006). aBordagem quantItatIva versus qualItatIva “Noventa por cento do jogo é 50% men- tal.” (Berra, 1998, p. 69) Apontamos acima três caminhos prin- cipais para realizar pesquisa no contexto das ciências sociais: observação, experimen- tos e levantamento de dados. Antes de tra- tar cada um deles individualmente, convém ressaltar o que eles têm em comum. O que une os mais diversos métodos e técnicas de pesquisa incluídos nessas três grandes famí- lias de abordagem é o fato de todos partirem de perguntas essencialmente qualitativas (Günther, 2006). Qualquer pesquisa parte da constatação de que as pessoas variam, se comportam de maneira diferente. Isso traz à tona a pergunta a respeito da razão pela qual existe esta variabilidade. Como lidar com ela? Quais as suas implicações? Estas perguntas exigem, por sua vez, respostas qualitativas. A variabilidade existe por essa ou aquela razão. Tem essas ou aquelas im- plicações. Na tentativa de se partir de uma pergunta qualitativa e de se chegar a uma resposta qualitativa, há dois caminhos, não necessária e mutuamente excludentes: o de procedimentos qualitativos e o de procedi- mentos quantitativos. Procedimentos qualitativos Procedimentos qualitativos tendem a ser in- dutivos e exploratórios: sem partir de hipó- teses formais e explícitas, tenta -se construir um referencial teórico a partir de dados coletados essencialmente por meio de ob- servações, incluindo, aqui, registros de com- portamento, tais como documentos, diários, filmes e gravações que registrem manifes- tações humanas observáveis. Em segundo lugar, a análise desses dados costuma ser interpretativa, usando -se técnicas de análise de discurso e de análise de conteúdo (Bauer e Gaskell, 2002). Os pesquisadores que usam métodos qualitativos recorrem, frequentemente, à clássica afirmação de Dilthey (1894) “expli- camos a natureza, compreendemos a vida mental” (Hofstätter, 1957, p. 315). Querem salientar que visam compreender a vida mental e, portanto, utilizam métodos – qua- litativos – apropriados para a psicologia. Já os pesquisadores que usam métodos quan- titativos, argumentam que explicar e com- preender não são processos antagônicos, e que a vida mental faz parte dos fenômenos naturais. Procedimentos quantitativos Para explicar o comportamento humano no contexto da psicologia social, a abordagem quantitativa tende a ser dedutiva e confir- matória, partindo de uma teoria. Parte de expectativas explícitas ou hipóteses formais para verificar a existência de diferenças ou relações nos fenômenos sociais, para testá- Neiva.indd 64 21/2/2011 15:44:46 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 65 -las desta maneira. Em segundo lugar, não se restringe a métodos observacionais, mas tenta, sempre que possível, realizar a coleta de dados, em qualquer dado contexto, de maneira sistemática, e de tal forma que seja possível recorrer a técnicas da estatística in‑ ferencial para questionar se os dados cole- tados e analisados, bem como os resultados aos quais se chegou dessa maneira são, de fato, sistemáticos ou se poderiam ter sido encontrados por acaso. Para chegarmos a conclusões científicas, é desejável, se não necessário, que possamos apontar a contri- buição dos diferentes antecedentes ao com- portamento de nosso interesse e eliminar os acontecimentos randômicos e os obtidos por acaso como possíveis explicações. A seguir, apresentam -se quatro abor- dagens de pesquisa, sendo duas de nature- za mais descritiva – a análise de conteúdo e a observação – e duas de natureza mais inferencial – experimento e levantamento de dados. análIse de conteúdo “Na realidade, não falei tudo aquilo que eu disse.” (Berra, 1998, p. 9) A análise de conteúdo é uma entre vá- rias técnicas de pesquisa usadas para des- crever e sistematizar o conteúdo de comuni- cações pictóricas, escritas ou verbais (Vogt, 1993). A técnica pode ser utilizada com material visual (filme, vídeo, desenhos, ilus- trações, obras de artes plásticas), com ma- terial impresso (jornais, revistas, livros, do- cumentos pessoais) e com registros verbais (entrevistas e questionários). Idealmente, nos dois primeiros casos, a seleção do ma- terial é randômica, emborafrequentemente sejam usadas amostras de conveniência, isto é, material ao alcance do pesquisador. No caso de nosso projeto hipotético/ ilustrativo sobre comportamento de aju- da, imagine que colecionamos relatos de ocorrências de ajuda nos jornais desde que começamos a pensar em um estudo sobre esse assunto, mesmo antes de efetuar uma revisão sistemática da literatura especia- lizada. Recortamos artigos sobre pessoas que prestaram ajuda, avisamos a nossos amigos que estávamos interessados no as- sunto. Pedimos a eles que, sempre que en- contrassem algo interessante, recortassem tal notícia. Colecionamos não somente ar- tigos sobre ajuda prestada, mas também sobre ajuda negada. Quando chegamos a um número razoável de artigos, decidimos começar com a análise do conteúdo desses artigos. Ressaltamos anteriormente que, quanto maior clareza sobre o que queremos saber, mais chance de êxito obteremos em uma pesquisa. Entretanto, em um primeiro momento de coleta de material documen- tal, podemos coletar “qualquer” material que encontramos, o que nos encaminharia para procedimentos mais qualitativos, ou, pelo menos, sem formular hipóteses especí- ficas. Já em um segundo momento, quando sabemos de fontes confiáveis para material documental, é possível formular hipóteses e buscar trechos de textos, desenhos ou ima- gens de maneira sistemática. Procedimentos Os sujeitos nesta modalidade de pesquisa não são pessoas propriamente ditas, mas material produzido por ou sobre elas. Por exemplo, no caso de relatos na imprensa es- crita sobre eventos de ajuda prestada ou ne- gada, os recortes constituem as unidades de análise. Cada recorte descreve uma situação e fala das pessoas envolvidas, do local, das circunstâncias do evento. Assim, cada relato pode ser classificado em termos de atribu- tos, tais como fonte (nome do jornal), data, confiabilidade da fonte e detalhamentos do conteúdo. O procedimento em si consiste na análi- se do conteúdo dos artigos. Günther (2006) apresenta uma sistematização dos procedi- mentos de uma pesquisa qualitativa. O instrumento para uma análise de conteúdo pode ser um programa de com- putação por meio do qual se sistematize e Neiva.indd 65 21/2/2011 15:44:47 66 TORRES, NEIVA & COLS. analise o material coletado (p. ex., AtlasTI ou MAXqda). Vantagens desse método Observamos anteriormente que, “quanto maior clareza sobre o que queremos saber, mais chance de êxito em uma pesquisa”. Entretanto, e especialmente no início de um conjunto de pesquisas, existe menos clareza sobre o que pode ser investigado no decor- rer do projeto. Assim, nesse momento ini- cial, uma abordagem mais aberta, especu- lativa, pode ser mais útil para se começar a entender um dado assunto. Cabe aqui uma distinção feita por Kidder e Fine (1987) en- tre a pesquisa qualitativa com a letra Q mai- úscula, que envolve observação participante e pesquisa de campo etnográfica. Pesquisa qualitativa com a letra q minúscula, por ou- tro lado, refere -se à coleta de dados aberta, mas que faz parte de uma pesquisa estrutu- rada em termos de objetivo e procedimento. Em outras palavras, a vantagem da pesqui- sa inicial, aberta, é a de dar apoio inicial a ideias para pesquisas subsequentes. Desvantagens Como frisamos anteriormente, ao tentar chegar a explicações sobre fenômenos so- ciais, deve -se atentar à pergunta “mas será que os resultados foram obtidos na base de eventos não randômicos?” Quanto maior o número de eventos arquivais usados para a análise de conteúdo, maior será a dificulda- de de responder a essa pergunta de maneira convincente. oBservação “Você pode observar muito coisa só olhan- do.” (Berra, 1998, p. 95) A vantagem da observação é estar diante do comportamento que interessa, não precisando falar com as pessoas sobre seus pensamentos ou intenções. Além do mais, não sendo um intruso, você não interfere no comportamento, nem provoca reatância nas pessoas observadas (Webb, Campbell, Schwartz, Sechrest e Grove, 1981). Em ge- ral, os estudos de observação não exigem muito equipamento, mas sim tempo, já que pode demorar até que surja o comportamen- to de interesse. A seguir, comentaremos três tipos de observação: informal, sistemática e participante. É por meio de observações informais que registramos o que acontece em torno de nosso meio social e ambiental. Sem catego- rias preestabelecidas nem hipóteses formais, esse tipo de observação se aproxima mais dos estudos qualitativos. Tais observações são importantes na fase inicial de qualquer pesquisa e constituem a base para formular perguntas sistemáticas acerca de determina- do comportamento. Em estudos de observação sistemática, utiliza -se algum esquema de categorias para classificar os comportamentos de interesse. Os comportamentos podem ser enumerados em termos de frequência, de intensidade, de pessoas envolvidas (só, em díade ou grupo), das características das pessoas, etc. Os re- gistros podem ser realizados em planilhas, check ‑lists, gravados ou filmados. Havendo dois observadores, é possível verificar até que ponto há concordância entre ambos. Enquanto que em estudos de obser- vações informais e sistemáticas as pessoas observadas podem nem saber que são ob- jetos de estudo, a observação participante explicita que os sujeitos fazem parte de um estudo e que estão sendo observados. O pes- quisador torna -se parte da vida dos obser- vados. Quando tal delineamento é factível, o estudo se torna mais ético, à medida que as pessoas do estudo sabem que estão sendo observadas e por quem estão sendo observa- das. Entretanto, a presença explícita de um observador pode provocar reatância entre os sujeitos da pesquisa, ficando a dúvida de até que ponto as pessoas observadas estão se comportando de maneira autêntica e não encenando algum comportamento que acre- Neiva.indd 66 21/2/2011 15:44:47 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 67 ditam ser o esperado por parte do pesquisa- dor. Especialmente no caso de uma observa- ção de duração mais longa, recomenda -se a observação participante, já que a presença demorada de um estranho desconhecido pode provocar desconfiança e reatância, pois os observados tendem a se acostumar com o a presença do pesquisador conhecido e o ignorarem mais facilmente. Exemplos de estudos observacionais Conforme comentado anteriormente, os estudos observacionais são custosos em termos de tempo, já que podem demorar até que o comportamento de interesse pos- sa surgir. Diante desse problema, Silva e Günther (2001) criaram “oportunidades de ajudar” em um ônibus lotado, no sentido de verificar quem entre os passageiros sen- tados se ofereceria para segurar um pacote de um passageiro em pé. Outros estudos que criaram “oportunidades de ajudar” para poder observar mais sistematicamen- te eventuais comportamentos pró -sociais são os de Levine e colaboradores (Levine e Norenzayan, 1999; Levine, Norenzayan e Philbrick, 2001). um estudo hipotético No caso de um estudo hipotético sobre com- portamento pró -social, podemos pensar em observar o comportamento dos pedestres em um determinado trecho que apresenta irregularidades, talvez buracos, impedi- mentos por causa de uma construção ou de carros mal estacionados. Qual seria o comportamento de ajuda no sentido de dar preferência a pessoas com problemas de lo- comoção, ajudar mães com carinho de bebê e situações semelhantes? Será que existem alguns padrões de cortesia ou ajuda? Procedimentos. Os sujeitos desta pesqui- sa seriam as situações de encontro e de inte- ração de pessoas estranhas entre si no ponto problemático. O registro consiste em anotar o número de pessoas, suas características (sexo, idade aproximada) e seu comporta- mento na situação. Para tanto, uma ficha de observação que permita anotar os dados relevantes de uma maneira que não chame atenção será preparada. Preferencialmente, haverá dois observadores independentes,o que permitirá estabelecer a fidedignidade das observações pelo estabelecimento do grau de concordância entre as observações dos dois pesquisadores. Vantagens e desvantagens Como apontado acima, a vantagem de estu- dos observacionais é o realismo da situação estudada, algo não alcançável em estudos experimentais, de levantamento de dados ou aqueles que utilizam material arquival. Há de se destacar, ainda, que comporta- mento não acontece em um vazio, isto é, depende não somente de fatores internos, subjetivos, mas do contexto social e físico, o que Barker e colaboradores (Barker, 1968; Schoggen, 1989; Sommer e Wicker, 1991) chamaram de behavior setting. Entre as des‑ vantagens, deve -se mencionar o alto custo de tempo, especialmente, em se tratando de comportamentos de pouca frequência. Em segundo lugar, a falta de controle sobre o surgimento da situação de interesse signifi- ca ausência de randomização e generaliza- ção. Além do mais, quanto mais complexo o comporta mento e/ou a situação dentro da qual o comportamento acontece, mais trabalhoso serão o registro e a análise dos dados (Scott, 2005). Cabe ainda mencionar alguns livros que tratam especificamente de técnicas ob- servacionais. Fagundes (1993) apresenta um texto didático de observação sistemática, en- quanto Danna e Matos (1996) se propõem a ensinar, de maneira básica, como observar o comportamento humano. Esses dois livros concentram sua atenção no comportamento imediato das pessoas sendo observadas, já o artigo de Pinheiro, Elali e Fernandes (2008), considera a interação entre as pessoas e o ambiente, inclusive os resquícios do com- portamento das pessoas no ambiente. Neiva.indd 67 21/2/2011 15:44:47 68 TORRES, NEIVA & COLS. experImento “Não sei qual o melhor jeito, mas nenhum é ruim.” (Berra, 1998, p. 84) O experimento, especialmente em sua modalidade laboratorial, é um delineamen- to no qual o pesquisador tem controle so- bre algumas das condições sob as quais a pesquisa está sendo realizada, bem como controle sobre algumas das variáveis que acredita que possam causar o fenômeno estudado. As variáveis sob controle do ex- perimentador são chamadas variáveis inde- pendentes (VI). O fenômeno sob estudo é definido como variável dependente (VD).4 Uma distribuição randômica dos sujeitos da pesquisa entre as condições experimentais e de controle de uma pesquisa é o requisito mínimo para uma pesquisa ser considera- da um experimento verdadeiro (Campbell e Stanley, 1963). Uma importante variante é o experimento natural, situação na qual as condições experimentais e de controle não foram preparadas pelo experimentador, mas por condições alheias e, desta manei- ra, não estão sob o controle do pesquisador. Silbereisen (2005) relata uma série de ex- perimentos naturais sobre mudanças sociais e desenvolvimento humano em decorrência da reunificação alemã. Este acontecimento permitiu aos psicólogos comparar, em for- ma de experimento natural, comportamen- tos e expectativas de vida entre os cidadãos de um mesmo país após ter vivido sob dois regimes políticos distintos durante 40 anos. Campbell e Stanley apontam uma série de aspectos que afetam a qualidade de um ex- perimento. Entre eles, cabe mencionar aqui os seguintes. Randomizar sujeitos O controle sobre a distribuição aleatória de participantes da pesquisa entre as diferentes condições experimentais é crucial para que se possa atribuir a essas eventuais causas o fenômeno sob estudo. Sem essa distribuição aleatória, não há como assegurar que foi a exposição à situação experimental que cau- sou determinado comportamento, e não al- guma circunstância alheia a ele. Reduzir variabilidade externa À medida que o experimentador tem con- trole sobre as condições experimentais, cabe tentar reduzir a variabilidade externa e in- desejada. Em outras palavras, se o objetivo de uma pesquisa for verificar a diferença entre jovens de sexo masculino e feminino no que diz respeito a determinado compor- tamento, convém manter outras variáveis, como, por exemplo, classe social, nível edu- cacional ou idade, o mais homogêneo possí- vel. Isto quer dizer, dever -se -ia chamar para participar do experimento apenas jovens de uma mesma classe social, de um mesmo nível educacional e de uma mesma idade, já que uma variabilidade não controlada em tais fatores poderia influenciar o comportamento em questão. Especificar/limitar o comportamento Da mesma maneira como a variabilidade entre os fatores antecedentes deve ser con- trolada, é importante especificar e delimi- tar bem o comportamento sob estudo. Por exemplo, em vez de falar simplesmente em “comportamento de ajuda”, convém opera- cionalizar tal comportamento: comporta- mento de abrir a porta para uma senhora (Moser e Corroyer, 2001), levantar -se e ofe- recer um assento em um ônibus, etc. Reatância à situação experimental e ética de pesquisa Uma diferença importante entre observação e levantamento de dados por questionário ou entrevista é que a observação garante maior validade ecológica do comportamen- to, enquanto entrevistas e questionários Neiva.indd 68 21/2/2011 15:44:47 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 69 permitem explorar melhor as razões para determinadas ações. Qual a situação do experimento nessa distinção? Muitos ex- perimentos constituem uma oportunidade para se observar comportamento, mesmo que a situação não tenha validade ecoló- gica. Por outro lado, sendo uma situação artificial, os experimentos provocam re- atância semelhante a dos levantamentos de dados nos participantes, que se per- guntam: “o que é que o experimentador quer de mim, realmente?” Dependendo da questão de pesquisa, o experimento pode incluir o engano do participante. Embora o exemplo mais famoso para iludir os par- ticipantes seja o experimento de Milgram (1963), muitos estudos experimentais im- plicam em alguma forma de encenação para esconder o verdadeiro objetivo do estudo. Adair, Dushenko e Lindsay (1985) relatam que 81% dos autores de estudos publicados em 1979 na mais prestigiosa revista da psi- cologia social, o Journal of Personality and Social Psychology, relataram alguma forma de esclarecimento pós -experimental para os participantes de um estudo envolvendo alguma forma de encenação e engano. O argumento principal em favor de tal proce- dimento é que os experimentos tratam de comportamentos socialmente normatizados (seja positivamente, por exemplo, de ajuda, ou negativamente, por exemplo, de agres- são). Assim, não seriam viáveis se o parti- cipante soubesse o verdadeiro objetivo da pesquisa. Neste sentido, os estudos experi- mentais de ajuda de Darley e Latané (1968; Latané; Darley, 1968) ou de Silva e Günther (1999) somente puderam ser realizados por meio de encenação. Por outro lado, há de se tomar cuidado em respeitar a dignidade e a integridade física e psicológica dos par- ticipantes de qualquer pesquisa: na medida do possível, deve -se fornecer explicações aos participantes sobre a pesquisa, se não antes do início, sem dúvida, após sua con- clusão, além de não expor os participantes a qualquer desconforto desnecessário – o fim científico não justiça os meios – veja Artigo 16 do Código de Ética do Conselho Federal de Psicologia (2005). um estudo hipotético No caso de nosso estudo imaginário de ajuda, idealizamos uma réplica de experi- mentos clássicos de Darley e Latané (1968; Latané e Darley, 1968). A questão em ambos os estudos foi a potencial interferência da presença de outras pessoas na decisão indi- vidual de prestar ajuda, sendo a hipótese de que, quanto maior o número de transeun- tes, menor a probabilidade de ajuda por parte de qualquer pessoa. A variável inde- pendente em ambos os estudos foi o número de pessoas presentes além do sujeito da pes- quisa. No caso do estudo de Darley e Latané, uma pessoa invisível precisava de ajuda, e o sujeito fez parte de um grupo formadoentre 1 e 4 outras pessoas. Já no experimento de Latané e Darley, a emergência estava visível, e o sujeito estava ou sozinho ou na presença de 2 outras pessoas. Pergunta/hipótese da pesquisa O número e as características de outras pes- soas influenciam a probabilidade de prestar ajuda por parte de uma pessoa do sexo femi- nino versus do sexo masculino? Procedimentos Os sujeitos dessa pesquisa imaginária serão convidados para uma entrevista sobre a vida no campus da universidade. A entrevista será realizada ou de forma individual ou em forma de grupo focal, isto é, na presença de mais 2 ou 4 confederados. Os sujeitos va- riam de gênero. No caso de grupo focal, os membros variam igualmente, de tal maneira a ter grupos do mesmo sexo e grupos nos quais o sujeito é homem (ou mulher) e os confederados são mulheres (ou homens). Quanto ao procedimento. A entrevista será realizada ao ar livre e a certa distância dos prédios da universidade para se asse- gurar um ambiente tranquilo. No decorrer da entrevista, acontecerá uma emergência a poucos metros dali. Neiva.indd 69 21/2/2011 15:44:47 70 TORRES, NEIVA & COLS. O registro da variável dependente será feito por um observador alheio e aparen- temente desassociado da entrevista, ano- tando o tempo que levou para o sujeito notar a emergência, bem como seu compor- tamento. Vantagens desse método O procedimento nesta pesquisa supõe cin- co condições randômicas: sujeito sozinho, sujeito com dois confederados do mesmo sexo, com dois confederados do sexo opos- to, com quatro confederados do mesmo sexo e com quatro confederados do sexo aposto. À medida que os sujeitos são distribuídos randomicamente entre as cinco condições, será possível estabelecer uma relação causal entre a condição da entrevista e a proporção de sujeitos em cada condição de ter presta- do ajuda. Desvantagens Bons experimentos em psicologia social de- pendem do grau em que os cenários experi- mentais controlados são plausíveis para os sujeitos, especialmente a medida que preci- sam de certo grau de engano. No caso desse exemplo, o engano consistirá de fazer o su- jeito acreditar que faz parte de uma entre- vista e que a emergência foi suficientemente crítica para merecer uma possível interven- ção de sua parte. levantamento de dados “Nunca responda a uma carta anônima.” (Berra, 1998, p. 93) Entrevistas (Günther, I., 2008) e ques- tionários (Günther, H., 2008) constituem maneiras de perguntar às pessoas sobre o que elas fazem, pensam, sentem, tanto no momento, quanto no passado e no futuro. A entrevista foi caracterizada por Bingham e Moore (1959) como uma conversa com objetivo. Essa consideração aplica -se, igualmente, ao questionário, definido com “um conjunto de perguntas sobre um de- terminado tópico que não testa a habilida- de do respondente, mas mede sua opinião, seus interesses, aspectos de personalidade e informação biográfica” (Yaremko, Harari, Harrison e Lynn, 1986, p. 186). A definição do questionário deixa aberta a forma da interação entre pesquisador e participante – pode ser individual ou em grupo, face a face, via correio ou via internet, sendo que a aplicação individual e face a face de um questionário pode se tornar uma entrevis- ta estruturada. Entretanto, a observação de Bingham e Moore é fundamental – seja qual for a forma da interação, o pesquisa- dor deve lembrar que está conversando com outro ser humano, ele não está “extraindo” informação de maneira impessoal. Uma vez que não há muito controle sobre os par- ticipantes de um experimento ou de uma situação de observação, técnicas de amos- tragem podem ser utilizadas de tal manei- ra a se obter amostras de participantes de uma população determinada. Por exemplo, em um estudo observacional, a pesquisa se limita às pessoas que circulam em um determinado local; em um estudo experi- mental, a pesquisa se limita às pessoas que concordam em participar do experimento. Tendo informação sobre as características de uma população (p. ex., todas as matrí- culas de alunos ou todos os endereços de um bairro), é possível obter uma amostra randômica de participantes a serem en- trevistados ou para os quais se envia um questionário. Além do mais, por meio de questionários e entrevistas, é possível saber dos estados subjetivos, das atitudes, das opiniões, das justificativas das ações toma- das por parte dos participantes de uma pes- quisa. Entretanto, da mesma maneira que a reatância ao processo de pesquisa cons- titui um problema no caso do experimen- to, perguntas, especialmente a respeito de assuntos sensíveis, nem sempre produzem respostas autênticas. Neiva.indd 70 21/2/2011 15:44:47 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 71 um estudo hipotético Pergunta/hipótese da pesquisa. No caso de nosso estudo imaginário de ajuda, con- sideramos um estudo sobre a participação em organizações voluntárias. Quais são as características, quais são as motivações para que uma pessoa se engaje em uma ação de solidariedade? Além do mais, será que a oportunidade de ajudar aumenta a atitude favorável de se engajar em uma ação de aju- da voluntária? Procedimentos. Os sujeitos dessa pes- quisa, alunos universitários de ambos os sexos e de cursos humanistas (psicologia e serviço social), técnico (engenharia mecâ- nica e matemática) e da saúde (médicos, enfermeiras) serão convidados para uma entrevista sobre a vida no campus da uni- versidade. Procedimentos A entrevista será realizada de forma indivi- dual, em um espaço reservado para tal ati- vidade. No caminho para sala de entrevista, parte dos alunos passa por uma situação que implica em ajuda, por exemplo, uma pessoa deixa cair um objeto. Desta maneira, criam- -se três grupos de sujeitos: a) encontrar uma oportunidade para ajudar, sendo que o participante da pesquisa, de fato, ajuda; b) encontrar uma oportunidade para ajudar, sendo que o participante da pesquisa, de fato, não ajuda; c) não encontrar uma situação de ajuda. Os grupos (a) e (b) constituem uma mani- pulação experimental, o grupo (c) constitui um grupo de controle. O instrumento de pesquisa consiste em um questionário com perguntas sobre a qua- lidade de vida em geral, a qualidade de vida no campus da universidade e a disposição da pessoa de se engajar em uma atividade vo- luntária na universidade, por exemplo, doar sangue durante a semana universitária. Vantagens e desvantagens do levantamento de dados A principal vantagem do uso de questioná- rios e entrevistas consiste na possibilidade de explorar atitudes, opiniões, razões para fazer ou não fazer determinadas coisas, algo impossível no caso de observação ou méto- dos não intrusivos, já que estes, por defini- ção, excluem o contato com os participantes da pesquisa. consIderações fInaIs “O jogo não terminou até que tanha ter- minado.” (Berra, 1998, p. 121) Há de se enfatizar que pesquisar e pu- blicar na ciência são as duas faces da mes- ma moeda; uma não vale sem a outra. Cabe lembrar que publicar uma pesquisa quer dizer “torná -la pública”. Uma pesquisa que não for publicada, não contribuirá para a ciência, sequer existirá. A pesquisa e a pu- blicação são interdependentes da concep- ção da pesquisa como processo cíclico, que passa pelas seguintes fases (Tavares e Diniz, 1993): 1. Selecionar um objeto de pesquisa e definir a problemática, considerando -se resulta- dos de pesquisas anteriores. 2. Relacionar a problemática a teorias e a pesquisas anteriores. 3. Formular hipóteses. 4. Identificar os elementos do método (vari- áveis, relações, medidas, procedimentos, população, critérios, estatística a utili- zar). 5. Implementar o estudo e coletar os da- dos. 6. Analisar os dados. 7. Interpretar e relacionar os resultados à problemática original, às teorias e às pesquisas referidas. 8. Apresentar resultados, sugerir estudos, receber retroalimentação da comunidade científica. Neiva.indd 71 21/2/2011 15:44:4772 TORRES, NEIVA & COLS. 9. Selecionar um objeto de pesquisa e definir a problemática, levando em consideração resultados de pesquisas anteriores (fecha- mento do ciclo). Sendo a publicação o outro lado da pesquisa, em um relato, explicitam -se os passos desse processo cíclico da pesquisa, e o próprio relato tem caráter cíclico. O ter- mo relato de pesquisa está sendo utilizado genericamente para incluir desde trabalhos em nível de graduação até teses de doutora- do e publicações em revistas especializadas; aplica -se a trabalhos baseados em dados em- píricos, em dados secundários, bem como a resenhas de literatura. Não cabe entrar em detalhes sobre como preparar um relato de pesquisa, entre as muitas publicações sobre o assunto, apontamos apenas duas: algu- mas dicas preparadas por Günther (no pre- lo) e o Manual de Publicação preparado pela American Psychological Association (2001; 2010). notas 1. A elaboração deste trabalho teve apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien- tífico e Tecnológico (CNPq). 2. As citações ilustrativas no início das seções deste capítulo são oriundas de um livro de Yogi Berra, jogador de beisebol conhecido por suas observações pouco convencionais. 3. Usamos o termo comportamento de maneira genérica para nos referir tanto a comporta- mentos quanto a experiências subjetivas, tais como atitudes, sentimentos e emoções. 4. Esta nomenclatura – VI e VD – persiste mesmo no contexto de experimentos naturais e de levantamento de dados, mesmo considerando- -se que estas são situações em que o pesqui- sador não tem controle sobre as variáveis. referêncIas ADAIR, J. G.; DUSHENKO, T. W.; LINDSAY, R. C. Ethical regulations and their impact on research practice. American Psychologist, v. 40, p. 59-72, 1985. AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION. Manual de publicação da American Psychological Association. 4. ed. Porto Alegre: ArtMed, 2001a. 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Essa rapidez de julgamento tem seu preço: embora sejamos bons avaliadores em geral, também comete- mos inúmeros erros quando julgamos o que são os outros e o que somos nós. Talvez o estudo da cognição social possa ajudar -nos a diminuir esses erros melhorando nosso autoconhecimento e nossa capacidade per- ceptiva e interpretativa dos outros. plano do capítulo Este capítulo começa pela definição e evo- lução da inteligência social humana e intro- dução aos componentes básicos (schemas e atribuições) dos processos da cognição social. A inteligência social humana surgiu junto com o aumento do número de mem- bros dos primeiros grupos de hominídeos. Os humanos desenvolveram “teorias da mente” para que pudessem julgar os com- portamentos dos outros, especialmente os comportamentos de reciprocidade. Os schemas dizem respeito aos conteúdos (es- truturas de conhecimentos armazenados na memória) de nossa cognição social. As atri- buições são respostas às indagações das cau- sas dos comportamentos que observamos e tentamos compreender. Na segunda parte do capítulo, analisa- remos os diferentes processos da cognição social: atenção, memória e inferência. Cada um desses componentes é analisado em ou- tras áreas da psicologia, tais como a psicolo- gia cognitiva, mas também são, com ajustes e adaptações, fundamentais para nossa au- tocompreensão e para nossa compreensão dos outros. cognIção socIal: compreenden do os outros De uma forma direta e simples, a cognição social pode ser definida como o pensar do indivíduo a respeito de si próprio e dos ou- tros. Entretanto, embora a ênfase inicial tenha sido no pensar (cognição), os psicó- logos sociais também procuram associar sentimentos e comportamentos à cognição social. O estudo das relações entre nossos pensamentos a respeito dos outros e de nos- sos sentimentos, avaliações, emoções e com- portamentos deu origem à distinção entre a “cognição quente” versus “cognição fria”, bem como à visão pragmática que relaciona a cognição ao comportamento: as ações são causadas pelos processos mentais envolvi- dos no pensamento. 4 Cognição social BARTHOLOMEu T. TRóCCOLi Neiva.indd 77 21/2/2011 15:44:47 78 TORRES, NEIVA & COLS. Pensar sobre os outros é a atividade central de nossas vidas. Todos nós somos psicólogos amadores, pois estamos constan- temente explicando nossas ações e as ações dos outros. Quando, por exemplo, alguém nos agride verbalmente em resposta a uma observação qualquer que acabamos de fazer, entendemos imediatamente que essa pessoa “pode ter se sentido ofendida ou ameaçada pela minha posição”. Estamos apenas reco- nhecendo que o outro possui uma crença (acredita que tenho alguma intenção) e um desejo (quer evitar algo que considera nega- tivo). A explicação das ações como resulta- dos das crenças e desejos é o que define a chamada “psicologia senso comum” ou “psi- cologia leiga”. A psicologia leiga é produto do perío- do formativo da espécie humana, período que começou depois da separação da linha- gem humana da linhagem dos chipanzés há cerca de 6 milhões de anos1. Ambientes diferentes colocam problemas adaptativos diferentes, exigindo diferentes adaptações. Para compreender a evolução da mente hu- mana, o ambiente social da espécie é mais importante do que o ambiente físico. Como os outros primatas, nossos ancestrais viviam inicialmente em pequenos grupos – mas que foram ficando maiores com as consequentes estruturas sociais cada vez mais complexas –, nos quais as questões colocadas pelas interações eram tão importantes quanto a sobrevivência aos predadores. Quais os pro- blemas adaptativos enfrentados por nossos ancestrais? Vários autores (p. ex., Evans e Zarate, 1999; Buss, 2005) sugerem os se- guintes: • Evitar predadores • Achar a comida certa • Formar alianças e amizades • Ajudar crianças e parentes • Entender a mente dos outros • Comunicar ‑se com os outros • Selecionar parceiros sexuais Todos esses problemas colocaram obstáculos cruciais para a sobrevivência de nossa espécie, e o modelo predominante na psicologia evolucionista atual defende que a seleção natural provocou o surgimento de módulos mentaisresponsáveis pela supera- ção desses obstáculos (Cosmides e Tooby, 1992; Buss, 2005). O modelo da mente modular propõe que a mente é composta de vários módulos que se comunicam e in- teragem como uma estrutura inata que se desenvolveu naturalmente e de forma se- melhante aos órgãos biológicos. Para a psi- cologia evolucionista, os diversos módulos mentais são adaptações que surgiram para resolver problemas adaptativos, permitindo a sobrevivência e a reprodução de nossa es- pécie. Alguns módulos surgiram já nos an- cestrais de nossos ancestrais e são comparti- lhados com outros animais; outros são bem mais recentes e resultaram de adaptações a ambientes radicalmente diferentes dos ambientes de outras espécies. De qualquer maneira, os módulos não param de evoluir e todos foram se modificando durante o pe- ríodo formativo da espécie humana. Os problemas colocados pelo ambien- te social foram inicialmente compartilhados pelos humanos assim como por todos os ou- tros primatas. A luta por recursos escassos poderia ser enfrentada com o surgimento de coalizões formadas por dois ou três mem- bros da espécie. No entanto, após a sepa- ração de nossa linhagem da linhagem dos chipanzés, o tamanho dos grupos humanos foi aumentando cada vez mais, criando um valor também cada vez maior para a estra- tégia de formação de alianças e coalizões. A associação com outros em busca de for- mação de amizades passou a ser tão im- portante quanto saber escolher a comida certa ou possuir a habilidade para detectar predadores. Mas a formação de alianças é uma tarefa difícil, porque envolve questões de altruísmo recíproco: a troca de favores só funciona se forem observadas regras do tipo “ajudo você agora e você me ajuda depois”. Existe sempre o risco de que um membro da aliança fique com os benefícios sem contri- buir com nenhum dos custos envolvidos. O problema da não reciprocidade é tão grave que a espécie que não desenvolver mecanismos para enfrentá -lo não sobrevive. Neiva.indd 78 21/2/2011 15:44:47 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 79 A questão é simples: o membro da espécie que não colabora com o pacto do altruísmo recíproco tem mais chances de sobreviver e reproduzir do que os que são facilmente enganados. Genes que favorecem esse tipo de comportamento vão ficar cada vez mais frequentes no pool genético da espécie e, eventualmente, todos serão egoístas e não altruístas. Como ninguém mais vai ajudar ninguém, as alianças se desfazem, ficando impossível viver em grupos. Não surpreende, portanto, que todas as espécies que vivem em grupos descobri- ram mecanismos para enfrentar a questão dos membros egoístas e aproveitadores. Ao analisar as soluções encontradas por diver- sas espécies, Axelrod propôs, na década de 1980 (p. ex., Axelrod, 1984), a existência de três condições, que, quando implemen- tadas, neutralizam o problema dos apro- veitadores: (1) organismos encontram os mesmos organismos repetidas vezes; (2) organismos podem reconhecer aqueles que já encontraram antes, diferenciando -os dos que são totalmente estranhos; e (3) orga- nismos possuem memória suficiente para lembrar de como aqueles que já encontra- ram os trataram nesses encontros prévios. Por que a existência dessas três condições elimina o risco do altruísmo não correspon- dido? Porque os aproveitadores podem ser punidos e os cooperadores podem ser re- compensados. Quem se recusou a retornar os favores pode ser punido com a expulsão do grupo ou com a recusa de qualquer ajuda posterior. Quem cooperou e retribuiu pode ser recompensado com ajuda contínua na hora da necessidade. Todas as três condições foram surgindo em nossos ancestrais hominídeos ao longo de seu período formativo. A interação contí- nua entre eles demonstrava que a existência desses grupos só era possível porque a evo- lução tinha projetado tanto módulos sofisti- cados de reconhecimento facial quanto uma boa memória para interações sociais. Todos nós somos extremamente sensíveis ao altru- ísmo recíproco e mantemos uma espécie de “contabilidade social” para cada conhecido ou amigo. Se nossos registros indicam que alguém tem feito menos bem por nós (ou nossos amigos de alianças cooperativas) do que o fazemos por ele, então, na próxima vez que houver uma solicitação de ajuda, nos sentiremos bem menos inclinados – ou mesmo nos recusaremos – a ajudar. Essa contabilidade social também envolve me- canismos mentais complexos, porque exige que, de alguma maneira, sejam atribuídos diferentes valores para diferentes ações. Quando uma pessoa doa seu bem para outra que está necessitada, os valores associados a essa ação de cooperação e a consequente retribuição vão depender de outros fatores contextuais. Neste caso, a contabilidade so- cial levará em conta, por exemplo, a situ- ação econômica de quem fez a doação ou empréstimo: a bondade de uma pessoa rica é valorizada de uma forma bem diferente da bondade de quem tem muito pouco e faz um grande sacrifício em favor do outro. O valor da ação também vai depender do custo para o doador e do benefício para o receptor da ação, mas os custos e benefícios de qualquer ato de bondade não podem ser fixados pre- viamente, pois dependem do contexto no qual ocorrem2. Esse é o ponto principal para a apre- sentação da cognição social. Nós humanos desenvolvemos sistemas sociais complexos que só podem funcionar – no sentido do sucesso reprodutivo e da sobrevivência da espécie – se alicerçados em sistemas cogni- tivos igualmente complexos que se manifes- tam em nossa inteligência social. crescImento dos grupos humanos e o surgImento da IntelIgêncIa socIal No período entre 6 milhões a 150 mil anos atrás, o tamanho médio dos grupos hominí- deos saltou de cerca de 50 para 150 mem- bros. Como já abordamos anteriormente, à medida que os grupos foram aumentando, vários módulos dedicados às trocas sociais foram evoluindo, favorecendo a formação de alianças estáveis que mantiveram os gru- Neiva.indd 79 21/2/2011 15:44:48 80 TORRES, NEIVA & COLS. pos sociais coesos (o que também pode ser observado nos vários tipos de primatas). No caso dos humanos, entretanto, a evolução fez surgir um módulo bastante complexo e sofisticado: o “módulo de leitura da mente”, isto é, o módulo mental que permitiu que fizéssemos suposições ou inferências sobre o que as outras pessoas estão pensando, tendo por base suas ações, palavras e comporta- mentos3. Grupos maiores exigem mais capa- cidade de memória para acompanhar os comportamentos dos outros, bem como capacidades de raciocínio social bem mais sofisticadas, que possibilitem manter equi- líbrios delicados entre lealdades e amiza- des conflitantes. Nesse ponto, já estamos considerando estratégias e jogos políticos bastante sofisticados, nos quais mentiras, promessas, jogos de cena e até mesmo sin- ceridade e franqueza, ajudam -nos a manter nossos amigos e a enganar nossos inimigos. Aos poucos, surgem os psicólogos amadores armados com uma “teoria da mente”: uma teoria sobre como a mente humana funcio- na. O principal axioma dessa teoria afirma que as ações são causadas por processos mentais, tais como crenças e desejos. A explicação do surgimento da teoria da mente dentro de uma perspectiva evo- lucionista de adaptação à seleção natural e sexual implica que a psicologia leiga não é uma invenção cultural. Ela é uma parte inata, herdada, da mente humana, que se desenvolve nos primeiros anos de vida até estar completa por volta dos 4 anos e meio. Nessa idade, a criança já consegue passar nos “testes de falsa crença”: Uma psicóloga apresenta dois bonecos à criança. Os bonecos, chamados Sally e Ana, estão em um quarto de uma casa de brinquedo, junto de uma cama onde há almofadas. Primeiro, a criança observa Sally colocar alguns doces debaixo de uma almofada para logo em seguida sair do quarto. Enquanto Sally está fora, Ana tira os doces debaixo da almofada eos coloca em seu bolso. Quando Sally volta ao quarto, a psicóloga pergunta à criança “Onde Sally pensa que os doces estão?”. Antes dos 4 anos e meio, a criança respon- de “no bolso da Ana” o que é uma resposta típica de quem ainda não desenvolveu uma teoria da mente. A criança não tem a noção de que os outros podem ter crenças diferentes de suas próprias crenças. Ela acha que todas as outras pessoas acredi- tam no que ela acredita. E ela acredita no que ela viu: Ana colocou os doces no bol- so. Portanto, Sally também tem a mesma crença. Após os 4 anos e meio, a resposta muda radicalmente: “Sally acredita que os doces estão debaixo da almofada”. Com o surgimento da teoria da mente, a criança já compreende que outras pesso- as podem manter crenças que são diferen- tes das suas e que também podem manter crenças que são falsas. Só então a criança pode tentar manipular outras pessoas por meio da indução de falsas crenças, isto é, só então a criança aprende a mentir. E sem a capacidade para mentir, não é possível jogar os jogos políticos necessários para a vida em grupos sociais. lInguagem e altruísmo recíproco Nossos ancestrais adquiriram a capacidade para usar linguagens complexas e sofisti- cadas antes de deixar a África há cerca de 100 mil anos. Na década de 1950, Noam Chomsky demonstrou que seria impossível para as crianças aprenderem uma língua de forma tão rápida apenas com os estímulos dados pelos pais e pelo ambiente cultural. A criança só aprende uma língua porque ela nasce pré -programada para este tipo de aprendizagem. Por que então nossos ances- trais desenvolveram mais essa capacidade inata? Qual o problema adaptativo supera- do com o uso da linguagem? A teoria mais comum sugeria que a lin- guagem é um sistema de comunicação que evoluiu para ajudar nossos ancestrais na caça e na defesa contra os predadores. De acordo com essa teoria, a função da linguagem era a de troca de informações sobre o ambiente Neiva.indd 80 21/2/2011 15:44:48 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 81 físico e ecológico, uma vez que sons são bem mais eficazes do que sinais visuais na escuri- dão da noite e através de longas distâncias. Essa teoria, entretanto, foi contestada por Robin Dunbar (2004), quando propôs que a função básica da linguagem é a troca de informações sobre o ambiente social. Mais uma vez, a questão do altruísmo recíproco está na raiz de uma nova proposição para um mecanismo inato. Em grandes grupos, o altruísmo recíproco só funciona quando existe informação suficiente sobre quem é ou não é de confiança. Com grupos cada vez maiores, não é possível distinguir – apenas por meio da experiência direta, pessoal – entre os aproveitadores e os que cooperam. Sem a linguagem, isto é, sem um sistema de comunicação sofisticado, os grupos não po- deriam crescer, ficando bastante limitados no número possível de membros. Existe um limite no número de pessoas que um indi- víduo pode manter relações físicas diretas e constantes para que possa estimar qual a probabilidade de cooperação futura4. Para Dunbar (2004), a linguagem evo- luiu para ajudar nossos ancestrais na ob- tenção de informações sobre quem merece ou não confiança, principalmente quando não ocorre uma reciprocidade direta. Na reciprocidade indireta, o indivíduo é altruís- ta com outra pessoa na esperança de esta- belecer sua reputação como generoso e de confiança. Esse é um bom exemplo em que a linguagem ajuda na troca de informações sociais, permitindo que os humanos usufru- am das vantagens de se viver em grandes grupos. Daí o fascínio humano pela fofoca: ela é a forma mais eficaz de comunicação para se obter informações sobre a confiabili- dade dos outros. característIcas geraIs da cognIção socIal Até agora, estabelecemos as bases evoluti- vas de algumas das características do fun- cionamento do cérebro humano, que surgi- ram como adaptações às primeiras questões colocadas pelas interações sociais de nos- sos ancestrais. Agora, descrevemos alguns dos princípios que norteiam os estudos da cognição social: (1) o indivíduo como um avarento cognitivo; (2) orientação para os processos; (3) pessoas como agentes cau- sais; (4) percepção mútua; (5) centralida- de do eu; (6) qualidade da percepção; (7) orientação pragmática (tático - motivada); e predominância dos processos automáticos (indivíduo como ator -ativado). 1. O indivíduo como um avarento cognitivo. As pessoas não gostam de pensar muito, exceto quando acham que é necessário. Elas procuram fazer render ao máximo o pouco do esforço cognitivo que conse- guem exercer. Devido a essa tendência, Fiske e Taylor (1991; 2008) definiram as pessoas como “avarentas” no uso de seus recursos cognitivos. Não que as pessoas não consigam realizar trabalhos cogniti- vos complexos. Elas o fazem quando eles são importantes e necessários. Mas o mun- do é muito complicado, especialmente as outras pessoas e, frente a essa realidade, é melhor utilizar “atalhos cognitivos”, buscar simplificações e aproximações, em vez de proceder com análises minuciosas e bem fundamentadas. Vários dos processos que serão analisados mais adiante estão relacionados com a “sovinice cognitiva” das pessoas. 2. Orientação para processos. A abordagem da cognição social sempre utilizou a abor- dagem predominante na psicologia cogni- tiva, na qual os processos cognitivos são descritos como processos computacionais: as pessoas recebem informações (input), codificam o que receberam, armazenam na memória, recuperam da memória para realizar inferências e para gerar produtos (output). A psicologia cognitiva tende a definir os processos cognitivos como for- mados por estágios sequenciais. O mesmo ocorre na cognição social. A sequência atenção → memória → julgamento, bem como outras sequências paralelas (atenção → julgamento ou atenção → memória) são alguns dos principais referenciais Neiva.indd 81 21/2/2011 15:44:48 82 TORRES, NEIVA & COLS. des critivos da psicologia cognitiva e da abordagem da cognição social. 3. Pessoas como agentes causais. Parte funda- mental da teoria da mente que recebemos por meio de nossa herança evolutiva é a percepção de que as pessoas são agentes causais. Percebemos as pessoas como sendo impulsionadas internamente em direção a suas ações e objetivos. Sentimos que os outros possuem agendas internas, não observáveis. Isso faz com que as pessoas fiquem bem mais interessantes e complexas como alvos de percepção e julgamento. 4. Percepção mútua. Outra característica que torna as pessoas interessantes e nossa percepção sobre elas em algo bem mais complexo, é que elas também retornam a percepção afetando o observador. Nossos impulsos naturais para compreender e explicar os outros se misturam com o que percebemos como a percepção e o julgamento deles a nosso respeito. A cog- nição social é uma percepção mútua, um processo de mão dupla. 5. Centralidade do eu. Uma das consequên- cias do processo de mão dupla mencio- nada no item anterior é que a percepção de outra pessoa envolve o eu de quem percebe. O observador olha para outra pessoa e termina por também perceber a si próprio. As reações que a pessoa julga per- ceber nos outros também define o que ela é: a adequação de seus comportamentos, opiniões e crenças, da maneira de vestir, etc. A centralidade do eu do observador é inevitável. 6. Qualidade da percepção. Todas as carac- terísticas mencionadas até o momento chamam a atenção para a questão da exatidão e da qualidade do processo de observação de fenômenos não observá- veis. Traços não observados são difíceis de comprovar, e este é também um grande problema em áreas como a psicologia da personalidade, por exemplo. Nas áreas da avaliação psicológica, são utilizados modelos e análises estatísticas comple- xas em busca de algum tipo de validação dos traços não observados que possam descrever as pessoas. Qual a qualidade da psicologialeiga? Embora cometamos muitos erros, é evidente que, em média, chegamos a interpretações razoáveis, uma vez que conseguimos conviver razoavel- mente bem. Uma das razões está no uso de opiniões alheias como técnica de va- lidação de nossos julgamentos. É sempre possível confrontar nossa percepção com a percepção de um amigo em comum em busca de algum respaldo coletivo. 7. Orientação pragmática (tático ‑motivada). Seguindo William James, um dos lemas enfatizados na cognição social é que o “pensamento tem por objetivo a ação” (Fiske e Taylor, 1991, 2008). Como ana- lisamos anteriormente, esta característica está profundamente alicerçada em nossa história evolutiva. O pensamento social das pessoas surgiu em função do planeja- mento, da preparação e do ensaio prévio para as interações do indivíduo com seu grupo social de alianças e amizades. O indivíduo é um tático -motivado ao pensar para agir, escolhendo entre várias estraté- gias políticas e sociais que garantam suas alianças e reciprocidade mútua. Para Fiske e Taylor (1991): O contexto pragmático social do pensar sobre os outros significa que a cognição social tanto é causa quanto efeito da in- teração social. A ligação com a interação social significa que (a) a qualidade e a exatidão das percepções das pessoas são suficientes para os propósitos do dia a dia; (b) elas constroem significados baseados nos traços, estereótipos e histórias mais úteis (convenientes e coerentes); e (c) seus objetivos determinam como pensam (Fiske, 1995, p. 157). 8. Predominância dos processos automáticos (indivíduo como ator ‑ativado). Nos últimos anos, outro modelo do ser humano tem surgido na cognição social. O modelo indivíduo como ator -ativado considera que há uma predominância de processos afetivos e comportamentais automáticos, isto é, não acessíveis à consciência. A qua- Neiva.indd 82 21/2/2011 15:44:48 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 83 se maioria das ações do tático -motivado não acontece como fruto de deliberações conscientes. Pelo contrário: associações inconscientes, ativadas em milésimos de segundos, ativam/preparam (priming effects) cognições, avaliações, afetos, mo- tivações e comportamentos (Dijksterhuis e Bargh, 2001; Fazio e Olson, 2003). elementos da cognIção socIal As pessoas usam suas estruturas cognitivas para chegar a uma compreensão rápida e bastante satisfatória a respeito dos outros e de si mesmas. Quais são os elementos que formam os conteúdos das estruturas cogni- tivas? São dois os elementos principais que preenchem nossas estruturas cognitivas: schemas e atribuições. Schemas Os schemas são estruturas cognitivas com- postas de conhecimentos sobre conceitos, objetos ou eventos, representados por seus atributos e pelas relações entre esses atri- butos (Fiske, 1982; Fiske e Neuberg, 1990), os quais expressam pré -concepções ou teo- rias sobre conceitos, objetos ou eventos. No nosso caso, os schemas que nos interessam são pré -concepções ou teorias a respeito das outras pessoas e de nós mesmos. Você, por exemplo, provavelmente tem um sche‑ ma sobre o que é uma pessoa extrovertida: quais são suas principais características? O que ela faria em uma situação tensa? É uma pessoa confiável? Amiga? Prestativa? Emo- cionalmente Instável? Barulhenta? Por pos- suir um schema “pessoa extrovertida”, você responde facilmente a estas perguntas por- que você tem uma série de pré -concepções sobre ela. Para os psicólogos cognitivistas, um schema não passa de um termo com- plicado para representar esse conjunto de conhecimentos ou pré -concepções. Pré- -concepções possuem muitos elementos, informações conectadas entre si, formando uma teoria sobre “pessoa extrovertida” ou sobre quaisquer outros conceitos, objetos ou eventos. Uma implicação é que você pode não ter um schema sobre um conceito ou algo em particular. Quais são os tipos de schemas? No exemplo acima, temos um schema de pessoa extrovertida. Mas as pessoas também pos- suem todo tipo de schemas sobre traços de personalidade (estável, agressivo, cordial), ou de pessoas em uma determinada situa- ção (comportamento em um restaurante, na sala de aula, no cinema). Neste caso, te- mos o equivalente a scripts que descrevem ou prescrevem como a pessoa deve se com- portar em certas situações. Outros tipos são os schemas sobre objetivos sociais (vingança, sedução, ajuda) e os schemas sobre papéis sociais que contêm os comportamentos e os atributos que esperamos de determinadas pessoas que ocupam posições sociais (che- fes, líderes, administradores, professores, estudantes de graduação, estudantes de pós -graduação, membros de uma quadrilha, políticos, etc). Os schemas sobre papéis são schemas equivalentes a estereótipos. Schemas sobre o próprio eu (self ‑sche‑ mas) constituem a base de nosso autoconcei- to, mas também pode ser que não tenhamos nenhum schema sobre uma determinada di- mensão de nosso eu. Se você nunca foi do tipo esportivo, por exemplo, não há como ter uma rede de conhecimentos e de pré- -concepções sobre esse componente de seu eu. Como os self ‑schemas são bastante elabo- rados, tendemos, entre outras coisas, a nos lembrar mais de informações que nos dizem respeito do que de informações que nos são indiferentes. (Kihlstrom, Cantor, Albright, Chew, Klein e Niedenthal, 1988). Qual, então, são as funções dos sche‑ mas? Schemas influenciam a maneira como codificamos, relembramos e julgamos as informações que temos acesso sobre con- ceitos ou eventos. Os schemas também di- rigem nossa atenção para determinados as- pectos das informações a que temos acesso. Um exemplo retirado de uma pesquisa de Owens, Bower e Black (1979) serve para ilustrar as funções dos schemas. Nessa pes- Neiva.indd 83 21/2/2011 15:44:48 84 TORRES, NEIVA & COLS. quisa, três grupos de participantes leram cada um uma versão do seguinte relato: Cris(tina) acordou sentindo -se enjoada novamente e ficou pensando se poderia estar grávida. Como iria dizer ao professor que ela estava namorando? E a questão do dinheiro ainda era outro problema... Cris foi para a cozinha, tirou a chaleira do armário, fez café, olhou o café e decidiu adicionar um pouco de leite e açúcar. Depois, vestiu -se e foi ao médico. Quando chegou ao consultório do médico, Cris foi examinada inicialmente pela enfermeira, que procedeu com os exames prelimina- res rotineiros. Cris subiu na balança, e a enfermeira registrou seu peso. O doutor entrou na sala, examinou os resultados desses procedimentos, sorriu e disse “Bom, parece que todas as minhas expec- tativas foram confirmadas.” Cris foi embo- ra e, quando foi chegando à sala de aula, decidiu sentar -se na primeira fila. Cris entrou na sala e sentou -se. O professor foi para frente da sala e começou sua aula. Durante toda a aula, Cris não conseguiu se concentrar no que estava sendo dito. A aula parecia não terminar nunca. Mas, finalmente, terminou. Como o professor foi cercado pelos alunos logo após a aula, Cris saiu rapidamente da sala. No final daquela tarde, Cris foi a uma recepção no departamento e ficou olhando para ver quem estava lá. Cris foi até o professor, querendo conversar com ele, sentindo -se um pouco nervosa sobre o que dizer. Um grupo de pessoas começou a jogar alguns jogos. Cris foi até uma mesa onde estavam refrigerantes e salgadinhos. O lanche es- tava bom, mas Cris não se interessou por conversar com as outras pessoas presen- tes. Depois de certo tempo, Cris decidiu ir embora (Owens, Bower e Black, 1979 apud Fiske, 1995, p. 163). Um dos três grupos da pesquisa de Owen e colaboradores (1979) leu esta ver- são da história. Agora, considere a mesma história com uma introdução diferente, substituindo as primeiras linhas até os três pontinhos (...): “Cris(tiano) acordou se per- guntando quanto peso tinha ganho até o momento. O treinador de seu time de fute- bol tinha dito que ele só seria escalado parao próximo jogo se ganhasse bastante peso e passasse no teste antidoping. A pressão era muito grande...” Continue com a mesma história já transcrita acima. Para o terceiro grupo, grupo controle, não foi fornecida nenhuma introdução, e a história se inicia depois dos três pontos (...) Entre a primeira e a segunda versão da história, o significado muda radicalmente por conta dos schemas ativados. Na primei- ra, temos o schema “gravidez indesejada” e, na segunda o schema “candidato a atleta”. Essa mudança radical ocorre porque nossos schemas para as duas situações levam a dife- rentes codificações e à ativação de conheci- mentos e reações emocionais adicionais que trazem para o que está escrito. Por exem- plo, para entender melhor a influência do schema “gravidez indesejada” da primeira história, imaginemos que nossa persona- gem tivesse tido oportunidade de conversar com o professor. Como ela estaria se sen- tindo em uma situação dessas? Ansiosa? Desconfortável? Você não acha que teria sido melhor ter combinado um encontro com o professor em outro momento em vez de tentar conversar na recepção? Cristina ficou feliz quando descobriu que aumen- tou de peso desde a última consulta? E na segunda versão da história, como Cristiano estava se sentindo com relação a seu pro- fessor? Por que queria falar com o professor na recepção? Como ele estava se sentindo em relação a seu peso? Qualquer pessoa que tenha schemas ativados por essas histórias é capaz de compreendê -las, preenchê -las, imaginar caminhos e cenários alternativos, e assim por diante. Para analisar mais ainda o papel dos schemas, Owen e colaboradores (1979) so- licitaram, meia hora depois da leitura, que os participantes relatassem de memória tudo que tinham lido nas histórias, pro- curando ser o mais fiel possível ao relato original. Os resultados mostraram que os dois grupos, cujas histórias ativaram sche‑ mas distintos, relembraram mais detalhes Neiva.indd 84 21/2/2011 15:44:48 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 85 na ordem correta e com menos erros e acréscimos de informações extras do que o grupo de controle. Os schemas ativados di- rigem a atenção das pessoas para detalhes cruciais, guiam a memória e influenciam o julgamento. A rapidez com a qual as pessoas jul- gam as outras acontece porque o julga- mento é feito automaticamente on ‑line. Os schemas permitem que façamos julgamentos e avaliações simplificadas, polarizadas e au- tomáticas. Somos apresentados a alguém que nunca vimos antes e, imediatamente, temos reações positivas ou negativas já a partir do momento que começamos a re- ceber informações (tom de voz, aparência, postura, conteúdo do que diz). Acontece que, quando encontramos alguém que ati- va algum schema ligado a outra pessoa ou evento, ocorre uma reação ou transferência das mesmas reações de julgamento para a pessoa que acabamos de conhecer – sem que tenhamos nenhuma consciência disso. Pode ser até que o novo conhecido não nos lem- bre ninguém em particular, mas venha de categorias de pessoas (ocupação, etnia, lo- cal de nascimento) sobre as quais temos for- tes reações afetivas ou de opinião (Andersen e Cole, 1990; Fiske, 1982; Devine, 1995). A categoria mais forte que existe é “nós” versus “eles”, uma divisão inter -grupos que sempre desencadeia julgamentos positivos para o nosso grupo e negativos para os de fora (Brewer, 1979; Mullen, Brown e Smith, 1992). Não é de surpreender, portanto, que cada um de nós provoque reações tão diver- sas nas outras pessoas. Os schemas afetam nossa atenção, me- mória e julgamentos, mas não são as úni- cas influências em nossos pensamentos a respeito dos outros. Afinal, também temos outras evidências e informações que perce- bemos ou recebemos de outras fontes. Os schemas atuam em confronto com as evidên- cias; e o equilíbrio que surge dependerá de vários fatores. Em algumas situações, nossa motivação – quando temos pouco tempo, sobrecarga cognitiva, cansaço, por exemplo – nos leva a uma predominância de nossos schemas sobre as evidências (Brewer, 1988; Fiske e Neuberg, 1990; Gollwitzer, 1990; Hilton e Darley, 1991). Em outras situações, os fatores que influenciam esta relação são a congruência entre schemas e dados (Fiske, Neuberg, Beattie e Milberg, 1987) e o valor diagnóstico dos dados (Hilton e Fein, 1989; Leyens, Yzerbyt e Schadron, 1992). Trata- -se, de fato, de uma questão de superação de nossos schemas e estereótipos em função dos dados e informações a respeito de uma determinada pessoa em particular. Os fa- tores que podem diminuir a influência dos schemas e estereótipos são mais atenção e mais motivação para que possamos ir além das reações automáticas altamente influen- ciadas por nossos schemas. Atribuições Os schemas são definidos como um dos dois elementos básicos da cognição social. O ou- tro são as atribuições. As pessoas são perce- bidas como agentes causais e é importante saber como elas atribuem causas aos com- portamentos dos outros e a seus compor- tamentos. Não só atribuímos causas, como essas atribuições têm profundas influências sobre nossas reações afetivas e comporta- mentos futuros. Esta é a razão pela qual as atribuições são parte fundamental de nossos pensamentos a respeito dos outros e de nós mesmos. Quando atribuímos disposições ou traços como causas de comportamentos ob- servados, fornecemos toda informação ne- cessária para ficar armazenada no schema relativo aos traços, comportamentos e rea- ções afetivas em questão. Weiner (2000; 2005) propõe duas te- orias para explicar as atribuições de causas a que o indivíduo recorre para explicar os próprios comportamentos (teoria da atribui‑ ção intrapessoal) e os comportamentos dos outros (teoria da atribuição interpessoal). Embora os modelos atribucionais de Weiner tenham sido desenvolvidos para explicar questões motivacionais nos comportamen- tos de desempenho, vamos utilizar suas pro- posições para descrever como as atribuições de causalidade são realizadas pelas pessoas Neiva.indd 85 21/2/2011 15:44:48 86 TORRES, NEIVA & COLS. quando tentam entender a si próprias e/ou entender os outros. Teoria da atribuição intrapessoal O processo de atribuição de causas que o in- divíduo realiza para explicar e compreender seu comportamento é desencadeado a partir de eventos considerados negativos, inespe- rados ou importantes. A Figura 4.1, a seguir, apresenta uma adaptação do modelo da Teoria da Atribuição Intrapessoal de Weiner (2000, 2005). Nesse modelo, eventos que significam a obtenção ou não de algum ob- jetivo provocam automaticamente reações afetivas positivas (alegria, felicidade) ou negativas (tristeza, frustração). Essas emo- Figura 4.1 Teoria de Atribuição Intrapessoal (Baseado em Weiner, 2005). Tipos de causas e suas consequências Aptidão: expectativa alta de sucesso; emoções positivas. Esforço: boas expectativas de sucesso; emoções positivas + determinação + precaução. Habilidade: boas expectativas de sucesso; emoções positivas + incerteza quanto à habilidade. Sorte, acaso, ajuda: baixa expec‑ tativa de sucesso; emoções ime‑ diatas positivas, mas passageiras. Tipos de causas e suas consequências Falta de aptidão: expectativa muito baixa de sucesso; emoções negativas (vergonha, humilhação, embaraço). Baixo esforço: boas expectativas de sucesso; emoções negativas passageiras (baixa autoestima, culpa). Falta de habilidade: expectativas moderada de sucesso; emo‑ ções negativas substituídas por apreensão. Falta de sorte, acaso ruim, falta de ajuda: expectativa positiva cautelosa de sucesso; emoções negativas, mas passageiras. Evento Positivo Evento Negativo Se o evento foi inesperado, negativo ou importante, então ocorre uma busca por causas que podem ser descri‑ tas em um espaço tridimensional: • Locus • Estabilidade • Controlabilidade Se positivo: • Feliz Se negativo: • Tristeza • Frustração Alcançouobjetivo Não alcançou objetivo Neiva.indd 86 21/2/2011 15:44:48 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 87 ções ocorrem sem interferência cognitiva. Só a partir dessas reações emocionais é que o processo de atribuição é desencadeado se o evento ocorrido for considerado pelo indivíduo como negativo, inesperado ou muito importante. De acordo com Weiner, as causas atribuídas ao comportamento que resultou no alcance ou não dos objetivos do indivíduo (aptidão inata, sorte, ajuda dos outros, etc.) podem ser enquadradas em um espaço tridimensional composto pelas di- mensões locus (interno ou externo), estabili‑ dade (estável ou instável) e controlabilidade (controlável ou incontrolável). Vamos supor, por exemplo, que o indi- víduo acaba de ser aprovado em um concur- so público. Devido à importância do evento, desencadeia -se um processo atribucional no qual a questão é atribuir uma causa ao evento “fui aprovado no concurso”. Por uma série de fatores, que não discutiremos aqui, o indivíduo termina considerando que sua aprovação foi consequência de sua grande competência inata. O indivíduo atribui sua aptidão à causa do que ocorreu. Nesse caso, ele fez uma atribuição que pode ser defini- da no espaço tridimensional como interna, estável e incontrolável. Interna porque é pro- priedade dele, estável porque é permanente e constante, e incontrolável porque ele já nasceu com elevada capacidade cognitiva e intelectual que são características inatas. Vamos contrastar agora esse tipo de atri- buição com a atribuição de outro candidato que, embora também tenha sido aprovado, considerou que tudo aconteceu em razão de seu esforço. Diferentemente do primeiro in- divíduo, temos uma causa interna, não está‑ vel e controlável. São as seguintes algumas das atribui- ções mais comuns com suas respectivas de- finições no espaço tridimensional: • Aptidão: interna, estável, incontrolável • Esforço: interna, instável, controlável • Habilidade: interna, instável, contro- lável • Acaso: externa, instável, incontrolável • Ajuda: externa, instável, incontrolável • Sorte: externa, instável, incontrolável Para Weiner, o enquadramento das cau- sas no espaço tridimensional (locus, estabi- lidade e controlabilidade) é de fundamental importância, porque os tipos de atribuições causais possuem diferentes consequências motivacionais que se manifestam nas expec- tativas e reações afetivas das pessoas. E são essas expectativas e emoções que Weiner considera como os principais determinantes das ações motivacionais. Um fracasso atri- buído à falta de aptidão, por exemplo, leva a sentimentos de vergonha, humilhação e embaraço, além de nenhuma expectativa de que será possível reverter a situação no futu- ro. Afinal, o fracasso decorreu de uma causa interna, estável e incontrolável. Já um fra- casso atribuído à falta de esforço, também provoca emoções negativas (baixa autoesti- ma, culpa), mas que são passageiras. Além do mais, as expectativas para um sucesso no futuro ainda permanecem: a causa do fra- casso foi interna, instável e controlável. Na Figura 4.1, estão listadas estas e outras con- sequências motivacionais que ocorrem em função das expectativas para o futuro e das reações afetivas do indivíduo. Teoria da atribuição interpessoal Os mesmos mecanismos são desencadeados quando ocorre nossa percepção em relação aos outros. O comportamento do outro nos chama a atenção e desencadeia uma busca automática por uma causa. Assim como no caso da percepção do próprio comportamen- to, as causas que atribuímos aos comporta- mentos dos outros também são classificadas dentro da mesma tridimensionalidade. Nesse ponto, ocorrem grandes dife- renças entre os dois tipos de atribuição. Primeiro, na atribuição intrapessoal, o indi- víduo sempre enquadra o evento como algo que correspondeu ou não a seus objetivos. Os eventos podem ser resumidos como su- cesso ou fracasso provocando reações afe- tivas positivas ou negativas de imediato e sem a participação de processos cognitivos. O mesmo não ocorre na atribuição interpes- soal. Os eventos podem ser os mais diversos, Neiva.indd 87 21/2/2011 15:44:48 88 TORRES, NEIVA & COLS. tais como sucesso ou fracasso em tarefas, doenças, pedidos de ajuda, etc. Mas, qual- quer que seja o evento, é desencadeada uma atribuição de causas – que, da mesma forma que na atribuição intrapessoal, podem ser descritas em função do locus, estabilidade e controlabilidade –, com a diferença que a dimensionalidade da causa é usada apenas para considerar o outro como responsável ou não pelo evento. Isto é, o observador atribui ou não a responsabilidade pelo que ocorreu ao indivíduo observado e só então sente a reação afetiva de raiva (o indivíduo é percebido como responsável) ou simpatia (o indivíduo não é percebido como respon- sável). Na Figura 4.2, encontram -se as sequên- cias envolvidas na atribuição interpessoal considerando -se algumas das causas mais comuns. Se acompanharmos as duas primei- ras linhas dos dois conjuntos da Figura 4.2 – fracasso em uma tarefa por falta de esfor- ço ou por falta de aptidão –, veremos que o modelo prevê duas reações afetivas opostas com consequências comportamentais igual- mente distintas. Para o mesmo evento, o ob- servador sente raiva ou simpatia e procede com comportamentos opostos. Comparando os dois modelos das Figuras 4.1 e 4.2, podemos observar que atribuições de falta de esforço como causa de um fracasso, por exemplo, levam a re- ações afetivas e comportamentais opostas. Quando se trata do indivíduo, a atribuição de pouco esforço – em contraste com a atri- buição de falta de aptidão –, resulta em sen- timentos moderadamente negativos e pas- sageiros, bem como em comportamentos de persistência e esperança de sucesso no futu- ro. Já para um observador, ocorre o oposto: Figura 4.2 Teoria da Atribuição Interpessoal. (Baseado em Weiner, 2005). Evento Causa Reação comportamental Fracasso em Falta de esforço uma tarefa Reprimenda Câncer do pulmão Comportamento Condenação por ser fumante irresponsável Responsável Raiva Não apareceu Alcoolismo Abandono no trabalho Retaliação Agrediu uma Intencional pessoa maldade Fracasso em Falta de aptidão Decide não uma tarefa recriminar Cego de Inata sem Nenhuma nascimento controle condenação Não Simpatia responsável Faltou a escola Resfriado forte Ajuda Agressão Esbarrou sem Nenhuma querer retaliação Neiva.indd 88 21/2/2011 15:44:48 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 89 a atribuição de falta de esforço a um fracas- so provoca raiva e comportamentos negati- vos quando contrastado com a atribuição de falta de aptidão. Esta provoca sentimentos de simpatia e comportamentos compreensi- vos ou de ajuda. processos da cognIção socIal Schemas e atribuições, objetos dos dois úl- timos tópicos, são os conteúdos sobre os quais formamos nossas impressões. Neste e nos próximos dois tópicos, considerare- mos os três principais processos que operam sobre os schemas e as atribuições: atenção, memória e inferência. Atenção A atenção é constituída por dois outros pro- cessos: codificação e consciência. Na codi- ficação, transformamos toda estimulação que nos atinge através do(s) sentido(s) que atendemos no momento, em algo que toma- mos consciência e guardamos temporaria- mente ou permanentemente em nossa me- mória. Consciência é aquilo de que temos conhecimento em um determinado momen- to. Podemos ficar quietos e estar cientes de nossas cognições, dos ruídos externos, das sensações que o ambiente provoca em nosso corpo, e assim por diante. A atenção pode então ser definida como a codificação e a consciência de estí- mulos internos ou externos a nosso organis- mo. A principal característica da atenção é que ela é limitada. Não podemos atender a todos os estímulos que nos atingem; temos que nos restringir a uma pequena parte a cada momento.Como nossa atenção é bas- tante limitada, ela tem que ser bem sele- tiva. Na cognição social, a seletividade da atenção é importante porque os objetos do pensamento social, os outros e nós mes- mos, são muito complexos e multifacetados. Nossa atenção seletiva, portanto, já esta- belece propriedades únicas aos conteúdos de nossa cognição social (schemas e atri- buições). Só podemos perceber e lidar com aquilo que percebemos e, até certo ponto, com aquilo de que temos consciência. Sendo a atenção seletiva, quais os fa- tores que a influenciam? Um dos principais é a saliência do estímulo. Se estivermos em um ambiente onde existe um excesso de es- timulação, nossa atenção será dirigida para estímulos que são salientes no ambiente. Claro que podemos ter nossa atenção to- talmente voltada para alguma preocupação premente e não prestamos mais atenção ao ambiente. Neste caso, entretanto, a saliên- cia é de nossos problemas e pensamentos internos. A saliência é determinada pelo contexto imediato do estímulo. Uma pessoa alta em uma festa tem uma saliência bem diferente de um jogador bem alto em um time de basquetebol. Dois outros fatores ajudam na captu- ra da atenção da pessoa. O primeiro são os schemas. Qualquer comportamento que vá de encontro ao conhecimento prévio que temos de papéis ou schemas de pessoas vai chamar nossa atenção. A inconsistência com o schema chama a atenção. Fiske (1995), por exemplo, descreve um professor que decide ir dar aula vestido de palhaço como um caso típico de contraste entre o compor- tamento e o schema de papel de professor. O segundo fator que provoca a saliência do estímulo são os objetivos do observador na- quele determinado momento. Esses objeti- vos ajudam a focalizar a atenção, tornando saliente aquilo que lhe está relacionado. Quais as consequências da saliência? O que está saliente assume uma importância maior do que outros estímulos não salientes, inclusive, em termos de causalidade. Isto é, as atribuições de causalidade das pessoas vão sofrer influência do que é mais saliente para elas. Os estímulos salientes passam a ter maior probabilidade de assumir o papel causal principal em um determinado con- texto. Uma determinada pessoa que chame a atenção do observador, por exemplo, vai ganhar mais crédito e parecer mais influen- te do que os outros que não chamaram tanta Neiva.indd 89 21/2/2011 15:44:48 90 TORRES, NEIVA & COLS. atenção, simplesmente porque o observador prestou mais atenção a esta pessoa. Uma maior atenção também tende a polarizar ou exagerar as avaliações do observador a res- peito da pessoa saliente. Se quem observa gosta da pessoa sendo observada, o gostar aumenta mais ainda. Se não gosta, também aumenta o não gostar. As avaliações ficam polarizadas. Finalmente, maior saliência também aumenta a probabilidade de a pes- soa ser lembrada posteriormente. Aumenta a probabilidade de ela ficar registrada na memória de quem observa. Quaisquer que sejam as razões para que prestemos mais atenção a certas pessoas ou aspectos dessas pessoas, a principal con- sequência é que a atenção vai mudar a ma- neira como julgamos e interagimos com elas. Boa parte do que pensamos sobre os outros acontece on ‑line, automaticamente, em uma velocidade muito grande. A atenção influen- cia enormemente que tipo de informação teremos para fundamentar nossa compreen- são dos outros ou de nós mesmos. Memória Pesquisas que investigaram as memórias sobre outras pessoas demonstraram que os objetivos, envolvimento do observador e a impressão geral formada pelo conjunto de informações, têm um grande impacto sobre o quanto nos relembramos posteriormen- te (Devine, Sedikides e Fuhrman, 1989; Hamilton, 1981; Hamilton, Katz e Leirer, 1980; Srull, 1983). Ao tentar memorizar in- formações sobre outra pessoa é bem mais efi- caz tentar formar uma impressão ou descri- ção geral dela do que tentar gravar pedaços isolados de informação, tais como descrições de traços de personalidade. Por exemplo, se descrevemos para você uma pessoa como ousada, convencida, distante e teimosa, a melhor estratégia é tentar formar uma im- pressão geral desse tipo de pessoa (imagine uma pessoa descrita por esses adjetivos), e não tentar memorizar cada adjetivo ou usar truques mnemônicos do tipo “memorize as primeiras letras de cada adjetivo tentando formar uma sigla”. Por que é mais fácil dessa forma? É mais fácil por causa da integração das informações, em um todo coerente, da formação de ligações entre os traços descri- tivos da pessoa (a ligação entre teimosia e ousadia reforça mais ainda a impressão ge- ral, por exemplo). Quanto mais traços e mais ligações, melhor a memorização. Além disso, quanto mais o observa- dor está envolvido com a pessoa observada e quanto mais relevante para o observador é a impressão (autorreferente) geral do ou- tro, melhor será sua memória. A criação de certa empatia (tentar se colocar no lugar do outro) ajuda mais ainda a relembrar infor- mações sobre outra pessoa. Estranhamente, tentar se colocar no lugar do outro ou, me- lhor ainda, antecipar uma interação com a pessoa (como poderíamos lidar com alguém que é ousado, convencido, distante e teimo‑ so?) é ainda melhor em termos mnemônicos do que interagir de fato com a pessoa. Em uma interação real você estaria decidindo também sobre seu comportamento, além de tentar formar uma impressão a respei- to do outro. Você estaria muito ocupado (Hastie, Ostrom, Ebbesen, Wyer, Hamilton e Carlston, 1980; Srull e Wyer, 1989; Wyer e Srull, 1984). inferência A questão da inferência na cognição social diz respeito ao que fazemos com a informa- ção que obtivemos por meio dos processos de atenção e retenção (memória). Como fa- zemos para ir além da informação de que dispomos? Qual a qualidade de nossas in- ferências? Qual a qualidade de nossos jul- gamentos? Para determinar a qualidade de nossas inferências e julgamentos precisamos nos re- ferir a questões normativas. A pergunta pas- sa a ser “Qual a qualidade de nossas inferên- cias e julgamentos quando comparadas com o que é sugerido por princípios normativos ou padrões de qualidade?” (Nisbett e Ross, 1980; Kahneman, Slovic e Tversky, 1982; Gilovich, 1991; Sutherland, 1992; Goldstein Neiva.indd 90 21/2/2011 15:44:49 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 91 e Hogarth, 1997; Baron, 2000; Gigerenzer, 2000; Gigerenzer e Selten, 2001; Gilovich, Griffin e Kahneman, 2002). As respostas obtidas nas pesquisas re- alizadas nas últimas décadas não têm sido muito boas. Diferentes pesquisadores têm demonstrado que os mesmos processos cog- nitivos, sociais e motivacionais responsáveis pelas grandes realizações da inteligência e julgamento humanos também estão envolvi- dos em falhas e distorções que vão dos sim- ples aos grandes erros de julgamento. Não se trata de falta de informação ou de educa- ção. A superutilização ou a má aplicação de nossas capacidades cognitivas é que causam os problemas. Eles constituem os custos ine- vitáveis de nossos poderes cognitivos porque os problemas de inferências e de julgamen- to ocorrem quando utilizamos nossas capa- cidades cognitivas no limite e sem o auxílio de um bom conhecimento normativo. Este último ponto tem levado vários autores a questionarem as conclusões pessimistas das últimas décadas de pesquisa. Afinal, a má qualidade de nossas inferências e julgamen- tos não tem impedido o sucesso adaptativo e reprodutivo de nossa espécie. E os proble- mas surgem quando nossas inferências são confrontadas com padrões de qualidade nem sempre explicitados de forma relevante e pertinente à linguagem cognitiva cotidia- na, adaptada ao mundo real (Gigerenzer e Selten, 2001; Gigerenzer, 2000). Temos que ter cautela quando julgamos nossas capaci- dades inferenciais. Afinal, lidamos com um mundo que se apresenta como um conjun- to de dados confusos, frequentemente ale- atórios, incompletos, não representativos,inconsistentes, secundários, de difícil com- preensão. São justamente nossos sucessos e fracassos para lidar com este tipo de dados que revelam a grande capacidade do racio- cínio juntamente com suas limitações de jul- gamento e de racionalidade. E quais são as principais limitações? Elas podem ser agrupadas em algumas ca- tegorias: interpretação de dados aleatórios, de dados incompletos e não representativos, à profecia autorrealizante de ver o que já se esperava ver. Interpretando dados aleatórios Tendemos a “ver” ordem onde não existe ne- nhuma e percebe mos um processo coerente atuando onde existe apenas a presença do acaso (os testes psicológicos projetivos se aproveitam dessa propensão). Relacionada a esta percepção de ordem, consideramos que eventos aleatórios são por definição aqueles eventos que não apresentam ordem “aparente”, isto é, são eventos que têm uma aparência “desordenada”. Uma das pesqui- sas de Tversky e Kahe man (1973) ilustra bem essa tendência. Estudantes foram soli- citados a avaliar a probabili dade relativa de três sequências de nascimentos de meninos (H) e meninas (M), considerando os primei- ros seis bebês nascidos em um determina- do dia no hospital da cidade. As sequências apresentadas aos estudantes foram as se- guintes: 1. H H H H H H 2. H H H M M M 3. M H H M M H A probabilidade de ocorrência de cada uma das três sequências é quase idêntica. No entanto, a maioria dos sujeitos da pesquisa escolheu a sequência (3) como a que apre- senta a maior probabilidade de ocorrência. Considerando o que sabem sobre a distri- buição de nascimentos e sobre o processo de geração do evento aleatório, as pessoas julgam a terceira sequência como a mais re- presentativa. A segunda sequência tem uma aparência muito “ordenada” e a primeira representa menos ainda uma sequência ale- atória: ela não reflete a aleatoriedade do processo de nascimento nem a distribuição dos sexos na população. O mesmo ocorre na chamada “falácia do jogador”. Após observar uma longa sequência de números baixos em um lançamento de dados, o jogador tende a acreditar que o próximo será um número alto porque tal resultado tornaria a sequên- cia geral dos eventos mais “representativa” de uma sequência aleatória. Para Kahneman, Slovic e Tversky (1982) é o heurístico da “representatividade” que Neiva.indd 91 21/2/2011 15:44:49 92 TORRES, NEIVA & COLS. se encontra na raiz da percepção errônea de sequências aleatórias. Esses heurísticos são atalhos cognitivos que simplificam e facili- tam a inferência e o julgamento. As pessoas recorrem a esse heurístico quando conside- ram que os efeitos devem se assemelhar a suas causas (grandes efeitos exigem grandes causas, efeitos com plexos decorrem de cau- sas complexas); que eventos que estão inter- ligados devem aparentar essa inter ligação e que exemplares devem aparentar semelhan- ça com a categoria da qual fazem parte (p. ex., um psicólogo deve ter a “aparência” do protótipo representativo do psicólogo). Muitas vezes o julgamento baseado na representatividade é um julgamento corre- to. Outras vezes, porém, o uso excessivo da representatividade leva a julgamentos errô- neos. Nem todos os psicólogos têm “cara” de psicólogos e alguns grandes efeitos (p. ex.: epidemias) possuem causas praticamente invisíveis (p. ex.: vírus). Mas, qual a relação do heurístico com a questão da aleatorieda- de? No caso do lançamento de uma moeda, por exemplo, o aspecto mais saliente é o conjunto de resultados que deve produzir – espera -se uma divisão meio a meio com 50% de caras e 50% de coroas. Ao examinar uma sequência de resultados, esse aspecto salien- te dos 50% – 50% é comparado automati- camente com a sequência que se obteve. Se a sequência estiver grosseiramente dividida em 50% – 50% perceberemos um processo aleatório – isto é, a sequência “representa” uma distribuição aleatória. Qualquer outra divisão provoca julgamentos de não aleato- riedade. O erro está em não saber que isso é o que deve ocorrer só a longo prazo. A “lei dos grandes números”, de acordo com os estatísticos, assegura a ocorrência de uma divisão 50/50 somente após um grande nú‑ mero de lançamentos da moeda. Para poucos lançamentos, sequências “desequilibradas” são perfeitamente possíveis. A “ilusão do agrupamento” manifesta- -se em várias outras formas. Pessoas que trabalham em maternidades observam uma série de nascimentos de meninos seguidos por uma série de nascimentos de meninas e terminam por atribuir tais eventos a vá- rias forças misterio sas do tipo “fases da lua”. As pessoas também “percebem” uma face na lua, São Jorge lutando contra o dra- gão, canais em Marte, ou, para as que são religiosas, todo tipo de imagens em panos, madeiras, nuvens, árvores e no campo. São simplesmente exemplos de sequências alea- tórias, mas que não possuem a “aparência” aleatória. Interpretando dados incompletos A reação mais comum das pessoas a qual- quer atitude um pouco mais cética sobre a veracidade de crenças e fenômenos consiste no relato de um testemunho próprio ou do depoimento dado por outra pessoa. Reações como “Conheço alguém que ficou bom de- pois que colocou este amuleto debaixo do travesseiro”, são as respostas favoritas das pessoas que acreditam em práticas e crenças alternativas: “Eu vi acontecer”. “Minha vizi- nha ficou completamente curada”. “Acontece o tempo todo com muita gente”. O que estas afirmações possuem em comum é a apresentação de evidência po- sitiva que justifica e explica a convicção da pessoa. Mas o problema com esse tipo de evidência é que não é suficiente para a comprovação de nenhum fenômeno. Casos de pacientes que relatam terem ficado cura- dos com a ajuda de tratamentos pela ho- meopatia ou tratamento espiritual existem aos milhares, mas não constituem evidência suficiente de que esses tratamentos interfe- riram ou promoveram a remissão de alguma doença ou condição. Ainda seria necessário levar em conta, por exemplo, o número de pacientes que apresentaram remissão sem o recurso aos tratamentos (receberam um pla- cebo acreditando que era o tratamento ver- dadeiro), os que não apresentaram melhora alguma mesmo recorrendo aos tratamentos, e os que não melhoraram, mas também não foram tratados (mas acreditavam que tinham sido tratados). A Tabela 4.1 a seguir apresenta graficamente os grupos que de- vem ser observados para que possamos tes- tar a eficácia de um tratamento. São quatro Neiva.indd 92 21/2/2011 15:44:49 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 93 as evidências necessárias e suficientes para que possamos julgar e inferir. Para verificarmos corretamente se o tratamento leva à cura, teríamos que com- parar as quatro informações das condições A, B, C e D. Mas não é isso que as pesso- as fazem (cf., Crocker, 1981). O que mais chama nossa atenção são as condições “A” e “B”, pois confirmam que “pacientes foram tratados e foram curados” e “pacientes não foram tratados e não foram curados”. Na verdade, as pessoas terminam por observar apenas a condição em que existe um bom número de casos positivos para concluir que o tratamento funciona. Infelizmente, a evidência da condição A é necessária, mas não é suficiente. Cognitivamente, é bem mais fácil lidar com a confirmação positi- va, já que encerra toda evidência necessária para a ocorrência de um julgamento. Já as informações das celas B e C, isoladamente, não dizem lá muita coisa – exceto quando fazemos um grande esforço de análise e as consideramos juntas com as outras duas ce- las. Como conciliar esses fatos com o “avaro cognitivo” que somos? Finalmente, outras pesquisas indicam igualmente que a excessiva suscetibilidade das pessoas à confirmação positiva é apenas um dos aspectos da questão. As pessoas não gostam do papel de “advogado do diabo” e procuram ativa e deliberadamente apenas os dados que confirmem suas crenças e julga- mentos (cf. Skov e Sherman, 1986; Snydere Swann, 1978; Trope e Bassok, 1982). Profecia autorrealizante A profecia autorrealizante ocorre quando nossa expectativa termina por provocar o próprio comportamento que originalmente antecipamos. Imagine uma situação em que acreditamos que alguém é antipático e hos- til. Nosso comportamento em direção a essa pessoa vai com certeza refletir nossa expec- tativa, podendo então provocar respostas que comprovam o que é esperado. Pesquisas indicam que profecias dessa natureza são muito comuns em situação de aprendiza- do, nas quais o professor não acredita na capacidade do aprendiz. Por não acreditar, termina agindo de uma forma que provoca, induz a não aprendizagem do aluno. Nesse caso, ocorreu uma profecia autorrealizante porque existiu algum mecanismo que trans- formou a expectativa em ação confirmató- ria (muitas vezes inconsciente por parte de quem tem a expectativa inicial). Sem esse mecanismo, não existe profecia autorrea- lizante. Ao provocarmos a realização de nossas expectativas, terminamos por basear TABELA 4.1 Situações que devem ser investigadas para que se possa verificar a suposta relação entre cura de doenças e os tratamentos homeopáticos ou espirituais Pacientes curados Pacientes não curados Receberam tratamentos A B Receberam placebo C D Cada cela deve ser preenchida com o número de casos observados de acordo com as condições das marginais: A = número de pacientes que receberam os tratamentos e foram curados B = número de pacientes que receberam os tratamentos e não foram curados C = número de pacientes que não receberam os tratamentos (mas acreditavam que sim, pois receberam um placebo) e foram curados D = número de pacientes que não receberam os tratamentos (mas acreditavam que sim, pois receberam um placebo) e não foram curados Neiva.indd 93 21/2/2011 15:44:49 94 TORRES, NEIVA & COLS. nossos julgamentos sobre informações que não estariam disponíveis se não tivéssemos provocado o surgimento delas em primeiro lugar. Lidamos com o que observamos sem considerar como as coisas seriam diferentes se tivéssemos agido diferentemente. Outras profecias são apenas aparente- mente autorrealizantes e ocorrem quando nossas expectativas alteram as circunstân- cias que impedem ou limitam as ações da outra pessoa – ações que poderiam descon- firmar nossas expectativas. Suponha que al- guém ache você agressivo e se afaste evitan- do todo tipo de contato. Como você poderá mostrar que a crença e a expectativa do ou- tro em relação a você não são verdadeiras? Ele vai continuar achando você agressivo porque já achava antes e nada de novo vai desconfirmar essa crença. Problemas inferenciais: o que fazer? Embora os estudos sobre os fundamentos de nossa cognição social possam transmitir uma visão pessimista da qualidade de nos- sos julgamentos e inferências, duas obser- vações devem ser consideradas. Primeiro, a maneira como pensamos sobre os outros é boa o suficiente para que consigamos so- breviver razoavelmente bem em sociedade. Com a prática advinda da experiência e da maturidade, chegamos a um ponto em que, na maioria das vezes, conseguimos negociar de forma relativamente adequada nossos relacionamentos sociais. Apesar dos heurísticos, vieses, atenção limitada e me- mória seletiva, conseguimos nos adaptar e aprender com nossos erros e com os erros dos outros. Segundo, é esta possibilidade de apren- dizagem e de aperfeiçoamento que deve ser explorada quando se considera a qualidade de nossos julgamentos e inferências. Vários estudos demonstraram que é possível melho- rar nossos julgamentos e evitar parte dos vie- ses e erros que cometemos (Cheng, Holyoak, Nisbett e Oliver, 1986; Fong, Krantz e Nisbett, 1986; Nisbett, Krantz, Jepson e Fong, 1982; Tróccoli, 2005; ver também Gigerenzer e Selten, 2001; Gigerenzer, 2000). comentárIos fInaIs A cognição social compreende estudos sobre como percebemos, processamos, armazena- mos e usamos informações que recebemos de nosso mundo social. Nos últimos 20 anos, surgiram revistas e livros especializa- dos contendo centenas de pesquisas sobre como pensamos a respeito de nós e dos ou- tros (p. ex., Hamilton, 2005; Fiske e Taylor, 2008). Não só isso, mas novas teorias, ques- tões e metodologias (p. ex., a neurociência cognitiva social) também surgiram como consequência do estudo do fenômeno social a partir da perspectiva da cognição social. A cognição social, então, deve ser considerada não como mais um tópico da psicologia so- cial, mas como uma abordagem nova sobre seus diversos tópicos (cf., Devine, Hamilton e Ostrom, 1994). A psicologia social abran- ge uma grande variedade de tópicos, tais como atitudes, agressão, altruísmo, amor, percepção interpessoal, tomada de decisões e relações grupais, entre outros. A cognição social é uma novidade conceitual e metodo- lógica que introduz as questões cognitivas subjacentes aos tópicos tradicionais da psi- cologia social. Em todas as áreas de estudo da psicologia social, as pessoas processam informações do mundo social; a questão é compreender como a informação está sendo processada e usada quando desenvolvemos atitudes, reagimos agressiva ou altruisti- camente, como decidimos e participamos dos diversos grupos sociais. Neste capítulo, apresentamos de forma bem resumida um pouco dessa nova abordagem. Esperamos que o incentivo tenha sido suficiente para que você continue descobrindo os novos ho- rizontes da cognição social. notas 1. Considera -se que esse período formativo durou até cerca de 150 mil a 100 mil anos Neiva.indd 94 21/2/2011 15:44:49 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 95 atrás, quando nossos ancestrais saíram da África e começaram a colonizar o mundo. A partir da saída da África, o tempo tem sido muito curto (100 mil anos ou cerca de 5 mil gerações) para a evolução produzir quaisquer mudanças significativas em uma espécie. Isto implica que toda a história do surgimento da civilização e cultura humana (a agricultura só surgiu há 10 mil anos) é irrelevante quando se trata de compreender a mente humana. Como nossas mentes não evoluíram em um mundo de cidades de tecnologia avançada, temos cérebros da “idade da pedra” vivendo em um mundo de alto desenvolvimento tecnológico. Descontando todos os problemas decorrentes desse fato, não podemos deixar de reconhecer a tremenda capacidade adaptativa de nosso cérebro. 2. Embora não seja nosso objetivo discutir a questão do altruísmo e da cooperação, de- vemos acentuar que estes comportamentos não evoluíram apenas nas situações com base estritamente recíproca. O biólogo William Hamilton (1964) demonstrou que a grande ocorrência de altruísmo não recíproco em todo o reino animal (relações pais e filhos e entre outros parentes, por exemplo) só pode ser compreendida quando se considera que a unidade fundamental da evolução não é o organismo, mas o gene individual. O altruísmo não recíproco só ocorre entre organismos ge- neticamente relacionados: parentes próximos compartilham muitos genes, e os genes que predispõem o indivíduo a ajudá -los estão, na verdade, ajudando suas próprias cópias. Posteriormente, o biólogo Richard Dawkins (1989) popularizou e aperfeiçoou essa teoria em seu livro antológico O Gene Egoísta. 3. Outras espécies desenvolveram sistemas semelhantes. A separação radical entre a espécie humana e espécies não humanas de- nuncia o que Dawkins (2003, cap. 3) chama de “mente descontínua”, isto é, a crença em uma separação radical quando o que existe é uma diferenciação gradual e, às vezes, até sutil entre nós e outros animais, tais como os chipanzés. 4. Isto é o que ocorre entre os chimpanzés, que dedicam boa parte do tempo livre ao comporta- mento de grooming. No grooming, os chimpan- zés se limpam retirando parasitas e pedaços de sujeiras presos nos pelos daqueles com os quais mantêm alianças. Existem evidências indicando que, na necessidade, há maior probabilidade de ajudapor parte daqueles que são compan- heiros de grooming. O aumento dos grupos humanos para cerca de 150 membros, em mé- dia, tornou inviável a manutenção das alianças com base em cooperações diretas e mútuas. Não haveria tempo para outras atividades, além de ser extremamente cansativo manter esse tipo de relacionamento com todos os out- ros membros de grupos tão grandes. Dunbar considera que o equivalente nos hominídeos foi à evolução da linguagem para a transmis- são de informação verbal, principalmente por meio das fofocas. Uma implicação é que os meios modernos de comunicação a distância (e ‑mails, salas de bate -papo na internet, etc.) jamais substituirão inteiramente a necessidade humana de boas conversas ao pé do ouvido. referêncIas ANDERSEN, S. M.; COLE, S.W. “Do I know you?”: The role of significant others in general social perception. Journal of Personality and Social Psychology, v. 59, p. 384-399, 1990. AXELROD, R. The evolution of cooperation. New York: Basic Books, 1984. BARON, J. Thinking and deciding. 3rd ed. New York: Cambridge University Press, 2000. BREWER, M. B. In-group bias in the minimal inter- group situation: A cognitive-motivational analysis. 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Neiva.indd 97 21/2/2011 15:44:49 Introdução Este capítulo trata a respeito de como as normas sociais podem ser utilizadas para a compreensão do comportamento humano, bem como do modo como a cultura pode influenciar essa relação, apontando diver- sos exemplos de como esse conceito pode ser operacionalizado. Vale adiantar que to- dos esses temas terão como mote a cultura do Brasil, e a operacionalização das normas – como medida e conceito – será focada a nossa população, visando colaborar com uma psicologia social brasileira, para o bra- sileiro. Com isso em mente, podemos come- çar com a metáfora sugerida por Candido (1972) para discutir a cultura nacional do brasileiro. Para ele, o Brasil pode ser repre- sentado pela figura de uma grande família, na qual existem algumas regras formais mais um consenso com relação a autorida- de paterna. Essa interpretação do Brasil tem evidências em alguns estudos empíricos. Schwartz (1994) observou que brasileiros apresentam baixo escores em autonomia intelectual e emocional (relacionadas com a dimensão individualismo de Hofstede, 1980), e altos escores em conservação e hierarquia (correlacionados com a noção de distância de poder proposta pelo mes- mo autor). De modo similar, Friedlmeier (1995), comparando teorias implícitas de educadores, encontrou que brasileiros en- fatizam a conformidade e a adaptação. Em seu estudo, Strohschneider e Güss (1998) encontraram que estudantes colegiais bra- sileiros têm uma alta tendência em aceitar qualquer situação como dada e não ques- tionar sobre suas causas quando uma situ- ação mal definida e ambígua é apresentada para eles. Relacionadas com os resultados de Friedlmeier (1995) e de Strohschneider e Güss (1998), diversos pesquisadores (p. ex., Droogers, 1988) sugeriram que um im- portante conceito para entender o modo de ver o mundo do brasileiro está associado ao termo jeitinho. Podemos entender o jeitinho como uma forma “especial” de se resolver algum problema ou situação difícil, ou como uma solução criativa para alguma emergên- cia, seja sob a forma de conciliação, de es- perteza ou de habilidade. Quando se julga que está tudo irremediavelmente perdido, que daquela vez não tinha realmente saída, tudo magicamente se resolve, por meio do jeitinho. É uma maneira especial de se resol- ver o problema, eficiente e rápida. Espera- -se que essa forma possa produzir resulta- dos em curto prazo, não importando que a solução seja definitiva ou não, ideal ou provisória. Juntos, esses resultados sugerem que, no contexto do brasileiro, existe muito pouco espaço para a participação na reso- 5 Normas sociais: conceito, mensuração e implicações para o Brasil CLáuDiO VAZ TORRES HuGO RODRiGuES Neiva.indd 98 21/2/2011 15:44:49 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 99 lução de problemas e que a participação na tomada de decisão não é muito encorajada. Para Ettorre (1998), pouca participação nas decisões organizacionais pode ser devida ao fato de as organizações brasileiras terem uma política de gerentes paternalistas, que devem fornecer uma cultura protetora. Ele sugere que “gerentes brasileiros confundem responsabilidade com os negócios da com- panhia” (Ettorre, 1998, p. 12). Ettorre (1998) também notou que existe uma grande quantidade de improvi- sação e criatividade empresarial no Brasil. Contudo, ele sugere que essas práticas ge- renciais podem mudar em um futuro próxi- mo devido à grande onda de privatizações que ocorreram nos anos de 1990 e 2000 nas indústrias brasileiras. Pois, como já observa- do (Droogers, 1988), as estruturas político- -sociais do Brasil ainda estão se formando. E é esperado que as organizações privatizadas possam requerer uma nova classe de execu- tivos que sejam habilidosos em mudanças organizacionais (Santos, 1998), especial- mente para reduzir problemas organiza- cionais, tais como aqueles encontrados em companhias brasileiras que operavam com 27% de produtividade quando comparadas com suas semelhantes norte -americanas (Ettorre, 1998). Isso sem falar do impacto da globalização e da maior conscientização do consumidor nacional, que é diferente dos outros consumidores e exige de modo dife- rente. É importante que qualquer mudan- ça ou manutenção das práticas gerenciais sejam sensíveis à cultura. Ettorre (1998) observou que qualquer pessoa que faz ne- gócios no Brasil precisa aprender a cultura brasileira. Da mesma maneira, qualquer prática organizacional deve levar em con- sideração a cultura em questão, no caso, a brasileira. Modelos organizacionais ou de predição/controle de comportamento norte- -americanos e/ou europeus não podem ser aplicados diretamente no contexto brasilei- ro sem se levar em consideração as diferen- ças culturais que, no caso do brasileiro, são fortemente influenciadas por normas sociais (Rodrigues, 2007). O uso de práticas organizacionais com uma forte influência individualista e, por isso, com pouco suporte das normas so- ciais, pode ativar sentimentos antagonistas nos brasileiros. Por exemplo, os brasileiros tendem a considerar que os líderes devem ocupar uma alta posição de poder na hierar- quia da sociedade. Desse modo, eles podem entender que o interesse da gerência em incentivar a participação dos funcionários na tomada de decisão como uma mensa- gem indireta, que comunica a ideia de que o líder deseja compartilhar o poder. Nesse caso, compartilhar a tomada de decisão pode fazer com que um brasileiro conside- re que o líder não tem poder legítimo (ou competência), e que, por isso, não é mere- cedor de ser um líder. (Nogueira, Torres e Guimarães, 2001; Torres, 2009). Esse pode não ser o caso em outro país, especialmente um país individualista, onde a maioria dos estudos sobre liderança são desenvolvidos. Mesmo a utilização de achados em outras culturas coletivistas como uma aproximação para a cultura brasileira pode ser um erro. Pois, como Pearson e Stephan (1998) no- tam, os brasileiros tendem aser passionais e emocionais, uma característica que não é compartilhada pela maioria das culturas co- letivistas da Ásia. Desse modo, não apenas pessoas de culturas individualistas podem ter dificuldades em compreender as reações emocionais de brasileiros, mas também pes- soas de diferentes culturas coletivistas (p. ex., asiáticas). Alguns pesquisadores (p. ex., Graham, 1985; Smith et al., 1998) consideram que, quando se discute coletivismo, os estudos vêm superenfatizando os dados de culturas asiáticas. Esses mesmos pesquisadores vêm alegando que esses dados podem não refletir a estrutura das culturas latino -americanas, apesar de ambos serem considerados como culturas coletivistas (Hofstede, 1980). Por exemplo, Graham (1985) encontrou uma larga diferença em vigor e franqueza em ne- gociações na América Latina, quando com- paradas com as japonesas. Essas diferenças culturais refletem di- ferentes sistemas sociais, que, por sua vez, Neiva.indd 99 21/2/2011 15:44:49 100 TORRES, NEIVA & COLS. podem ser explicados e entendidos devido à natureza regulatória das normas sociais. Compreender melhor o funcionamento das normas sociais pode contribuir para a cons- trução de um corpo teórico mais adequado para entender o comportamento social do brasileiro, bem como para fornecer uma li- nha de guia para adequar modelos vindos de outras culturas. normas socIaIs Na psicologia social, existe uma longa dis- cussão sobre o poder preditivo e explicativo das normas sociais, bem como sobre qual seria sua estrutura e definição. Alguns au- tores (p. ex., Krebs e Miller, 1985; Marini, 1984; Darley e Latané, 1970 apud Kallgren, Reno e Cialdini, 2000) consideram o con- QuADRO 5.1 POKER FACE: UMA EXIGÊNCIA CULTURAL A universalidade das expressões facial das emoções foi indicada pela primeira vez por Darwin (1998) na emblemática obra: “A expressão das emoções no homem e nos animais”. Contudo, Ekman (2003) ressalta que, na época, sua argumentação foi desconsiderada, bem como durante os anos seguintes, em função dos paradigmas predominantes, que enfatizavam explicações em função da socialização e desprestigiavam as que utilizassem de padrões inatos da espécie. Ou seja, as normas sociais vigentes no meio acadêmico da época não facilitaram a disseminação desse conhecimento. Contudo, hoje, autores como: Ekman e Friesen (2003); Elfenbein e Ambady (2003); Matsumoto (1990); Smith, Bond e Kagitçibasi (2006) – dentre outros – colocam que a demonstração de deter‑ minadas emoções através do uso de uma mesma estrutura muscular para cada tipo de emoção é um fenômeno universal, capaz de fornecer um mapa reconhecível por todos da reação emocional que os indivíduos têm a diferentes estímulos do dia a dia, indicando o modo adequado – em fun‑ ção de respostas evolutivamente construídas – de reagir. Por exemplo, simplificadamente, é mais seguro aproximar ‑se de uma pessoa que reagiu à sua presença contraindo o zygmaticus maior do que quando esta mesma pessoa está com esse músculo relaxado, mas com o levator labii superioris contraído. Ekman (2003, 2006, 2009) coloca que no primeiro caso a pessoa estaria demonstrando alegria, felicidade; mas expressaria ódio, nojo no segundo. Algumas culturas exigem que determinadas emoções não sejam demonstradas, pelo menos não o tempo todo ou em todos os contextos. Friesen (1972 apud Smith, Bond eKağitçibaşi, 2006) – em sua tese de doutorado – demonstrou que, durante a exposição de um vídeo que mostrava uma amputação, quando sozinhos, japoneses (analisados como coletivistas) demonstravam o seu des‑ conforto com a cena do mesmo modo que estadunidenses (individualistas). Entretanto, quando acompanhados por um experimentador a reação ao vídeo muda‑ va. Americanos continuavam expressando‑se do mesmo modo, mas os japoneses evita‑ vam demonstrar o desconforto através da não demonstração de emoções ou com risos. Tal autor ressalta que existe uma norma cultural, no Japão, que recomenda que afetos negativos não devam ser demonstrados em público e que nos Estados Unidos haveria outra, que enfa‑ tizaria a sua demonstração real, sem – neste caso – maximizar. Cabe colocar que as estraté‑ gias utilizadas são definidas por Matsumoto (1990, 1992) e Gross (1998 e 2002) como de regulação de emoção. Acrescentando que, de acordo com o primeiro, tal regulação ocorre em função da obrigação em conforma‑se a uma norma social específica – a regra de expressão. Pesquisas recentes indicam um padrão específico sobre o que deve ser demonstrado, maximiza‑ do ou suprimido em cada cultura e que tal fato é determinado por normas sociais. Indicando que a poker face, o ato de não demonstrar uma emoção, mesmo quando ela é intensa, não é apenas uma estratégia para ganhar num jogo de azar, mas – muitas vezes – uma necessidade cultura. Neiva.indd 100 21/2/2011 15:44:49 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 101 ceito vago, muito geral e inadequado para a verificação empírica. Outros autores (p. ex., Berkowitz, 2004; Prentice e Miller, 1993, 1996; Cialdini, Reno e Kallgren, 1991; Lapinski e Rimal, 2005) consideram normas um conceito central para o entendimento do comportamento social humano (Kallgren et al., 2000). Os principais aspectos dessa discussão se referem à definição desse cons- truto e de sua capacidade de predizer com- portamentos e intenções. Com relação ao primeiro ponto (de- finição do conceito), a literatura está cada vez mais próxima do consenso de que a nor- ma se refere a aspectos descritivos (isto é, o que é feito, o comportamento mais popular) e a aspectos injuntivos (isto é, o que todos deveriam fazer). Essa distinção, feita há mais de 50 anos, foi recuperada por Cialdini (Cialdini e Goldstein, 2004; Cialdini e Trost, 1998; Cialdini et al., 1991; Reno et al., 1993; Kalgreen et al., 2000) e vem sendo amplamente utilizada por diversos pesquisa- dores (p. ex., Ajzen, 2002; Lapinski e Rimal, 2005). Um outro aspecto relevante dessa discussão é o de se normas são capazes de predizer comportamento, ou pelo menos in- tenção em se comportar. Com relação à capacidade preditiva, esse ponto parece estar relacionado a fato- res culturais (Trafimow e Fishbein, 1994), ao comportamento em si e ao setting onde ele ocorre (Lapinski e Rimal, 2005; Wallace et al., 2005). Esses fatores podem predizer quais comportamentos são mais influen- ciados por normas sociais. Neste caso, pa- rece haver uma espécie de tradeoff entre normas sociais e atitudes na explicação do comportamento humano (Rodrigues, 2007; Bomtempo e Rivero, 1992; Wallace et al., 2005), sendo a relação desses dois constru- tos vital para a compreensão do comporta- mento humano (Ajzen, 1991). A literatura tem buscado cada vez mais descobrir que (ou quais) tipo(s) de comportamento é(são) mais influenciado(s) por atitudes ou normas sociais (Fekadu e Kraft, 2002), curiosamen- te tentando predizer quais fatores serão os melhores preditores para escolher norma ou atitude como o melhor preditor, devido a um viés cultural que será mais bem discuti- do adiante. Como exemplos, temos Wallace e colaboradores (2005), que, em uma re- cente metanálise, verificaram que a existên- cia de pressão social de algum tipo (isto é, presença de outros importantes, ambientes com fortes normas) diminuía bastante o poder preditivo de atitudes, e Bontempo e Rivera (1992), que realizaram uma metaná- lise indicando que, em países coletivistas, as normas subjetivas tinham mais peso do que as atitudes na equação da teoria do compor- tamento racional. A despeito dessas discussões, as normas sociais têm sido bem -sucedidas em interven- ções e estudos, tais como: redução da quan- tidade de lixo jogado no chão em lugares públicos (p. ex., Cialdini, 2003), prevenção e diminuição da ocorrência de alcoolismo em colégios e universidades (Borsari e Carey, 2003), medição da aceitação de comporta- mento agressivo (Henry, Cartland, Ruchross e Monahan, 2004), redução da quantidadede fumo consumido (Linkenbach e Perkins, 2003 apud Berkowitz, 2004), agressão se- xual (Bruce, 2002, apud Berkowitz, 2004), preferência por diferentes marcas de cerve- ja (Yang, Allenby e Fennel, 2002), atrações que devem estar presente em um parque ecológico (Manning e Kamp, 1996), estilos de liderança (Torres, 2009), para citar ape- nas alguns. Neste capítulo, discutiremos o con- ceito de normas sociais, bem como as par- ticularidades associadas a esse conceito. Serão apresentadas diferentes definições e modelos de normas sociais, como elas são construídas e como interagem com outros processos sociais, contribuindo para a expli- cação do comportamento humano. Entretanto, antes de apresentar a defi- nição de normas sociais, é importante notar que (de modo similar ao que acontece com o conceito de cultura) diferentes autores vêm enfatizando diferentes aspectos des- se construto em suas definições e modelos Neiva.indd 101 21/2/2011 15:44:49 102 TORRES, NEIVA & COLS. de normas sociais. Lautmann (Feldman, 1991) realizou uma extensa análise de mais de cem definições de normas e valores e observou que todas explicavam as normas como uma obrigação coletiva ou algum tipo de dever. Jackson (1966, 1975) consi- dera as normas sociais como um contínuo de comportamentos e as respectivas sanções e recompensas associadas a sua realização. Emmerich, Goldman e Shore (1971) defi- nem norma como crença compartilhada de como o indivíduo necessita agir com relação aos outros. Essa pode ser a maior diferença entre as normas e os valores: valores não se referem apenas a comportamento, mas tam- bém a uma grande gama de outros objetos (tais como opiniões e objetivos) e não indi- cam o que é obrigatório, mas sim o que é desejável. defInIções e estudos soBre normas socIaIs Feldman (1991) considera que normas se- riam regras estabelecidas pelos grupos pra regularizar o comportamento de seus mem- bros. Para Porras e Robertson (1992), nor- mas são padrões de condutas, aplicáveis aos membros do grupo. Já Cialdini e Troost (1998) consideram o construto como fon- tes de informação prescritivas (isto é, como deveria ser) e descritivas (isto é, como está sendo) sobre qual comportamento realizar em determinadas situações. Gold (1997) notou que Durkheim distingue entre o ter- mo coletivo “norma social” e sua contra- parte psicológica, a “representação social”. Para Gold, existe uma necessidade urgente de mecanismos que permitam a tradução do conceito de normas sociais do ponto de vista sociológico para o psicológico. É possí- vel que o estudo de normas pela perspectiva da psicologia social possa fornecer tais me- canismos. Nessa área da psicologia, regras e papéis fornecem a regulamentação nor- mativa das organizações sociais, que, por sua vez, fazem contato com indivíduos por meio de componentes de regulamentação normativa da personalidade. Desse modo, regras e papéis provêm meios para a cone- xão entre organizações sociais e indivídu- os. Considerando que uma regra, ou papel, podem ser definidos como um conjunto de normas de conduta (Gold, 1997), podemos observar como as normas interagem na di- nâmica da psicologia social. Mais adiante será discutida a importância das normas so- ciais para a psicologia e o quanto essa área carece de maiores estudos e atenção. Gold (1997) defende que normas va- riam em sua generabilidade, e que nem todo valor social pode ser entendido como uma norma social. Apenas quando as normas fo- rem universais, elas poderão ser entendidas como valores. Gold diferencia entre papéis sociais e normas. Um papel social consiste em um conjunto de normas, ou “um conjunto de obrigações e privilégios que se aplicam aos ocupantes de determinadas posições sociais”1 (Gold, 1997, p. 72). Desse modo, quando normas relacionadas entre si são agrupadas, um papel social é criado. Normas, por outro lado, prescrevem como determinadas pesso- as de um certo grupo (p. ex., pessoas ocu- pando um determinado papel na sociedade) se comportam para receber aprovação de seus colegas, ou para evitar sanções sociais. Outros pesquisadores encontraram suporte para a diferenciação entre normas e papéis (p. ex., Bond, 1991). Além do mais, normas são parte do sistema de crenças de qualquer grupo. Uma norma é apenas social quando é compartilhada por dois ou mais indivíduos; e eles concordam (sendo conscientes dessa concordância) que alguém, em uma posição social particular, precisa agir e sentir de uma determinada maneira. As normas sociais são usadas para prescrever e descrever padrões de comportamento, sendo caracterizadas por imperativos morais. Para Miler e Prentice (1996), uma nor ma social é um atributo de um grupo, po dendo ser considerada tanto descritiva ou prescritiva para os membros. Indivíduos podem se comparar com relação às normas. Esses autores diferenciam entre normas lo- cais e globais. Para eles, normas locais são “padrões relativos” construídos de acordo Neiva.indd 102 21/2/2011 15:44:50 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 103 com as necessidades de pequenos grupos em situações específicas (p. ex., inferidos da situação) em vez de recuperados da me- mória. Por outro lado, os indivíduos trazem normas globais (ou “padrões absolutos”) para qualquer contexto social, sendo que es- sas normas influenciam a avaliação de suas experiências. Quando Milles e Prentice discutem normas locais, sua ênfase é a autoavaliação do indivíduo. Eles acreditam que as nor- mas locais “simplesmente influênciam a ex‑ periência psicológica do indivíduo”2 (Miller e Prentice, 1996, p. 803). Segundo essa pers- pectiva, normas locais são estudadas, em sua maioria, a partir de um nível individual de análise. Aqui, a ênfase é no indivíduo que está comparando alguém – ou ele mesmo – com o grupo. Embora quando falamos sobre normas locais, continuamos falando sobre (pequenos) grupos, o foco de investigação parece estar direcionado para as razões in- dividuais para a autoavaliação. Nesse caso, a norma se torna uma das ferramentas dis- poníveis que os indivíduos utilizam para comparar e avaliar sua posição relativa a um grupo. Entretanto, quando normas globais são discutidas, o nível de análise muda para o que Gold (1997) chamou de “fronteira” en- tre o indivíduo e o ambiente da organização social e cultural. A ênfase não é mais apenas no nível individual. Normas globais devem chamar a atenção do pesquisador para um sistema mais amplo, no qual as necessidades do indivíduo estão em constante interação com a dinâmica da sociedade e da cultura. Algum suporte para a diferenciação entre normas locais e globais propostas por Miller e Prentice (1996) é encontrado na li- teratura. Por exemplo, Nisan (1987) exami- nou a construção de normas morais em 60 garotos e garotas de 1a e 4a séries em Israel. Ele observou a existência de duas orienta- ções distintas para as normas sociais: uma na qual o critério para o julgamento social dos comportamentos era a consequên cia destes para os outros envolvidos (isto é, em um nível “micro”, envolvendo apenas os membros de um pequeno grupo); e outra nas quais as normas parecem ter uma vali- dade absoluta (isto é, em um nível “macro”, incluindo todos os membros da sociedade). A distinção entre essas duas orientações é congruente com a diferenciação proposta na teoria de Miller e Prentice (1996). Para Jackson (1966a), a cultura não é apenas concreta, mas um sistema de ideias padronizadas, mesmo se parcialmente ma- nifestas em termos concretos. Esse autor ob- servou que uma maneira de entender a cul- tura de um povo é por meio de suas normas. QuADRO 5.2 A ESPECIFICIDADE DAS NORMAS SOCIAIS Tendemos a considerar as normas de nossa cultura como algo universal, sendo que muitas vezes isso simplesmente não condiz com a realidade. Por exemplo, durante a socialização do brasileiro, este aprende que arrotar à mesa é considerado com um gesto de má educação. No entanto,para alguns grupos culturais mais exóticos (no sentido antropológico do termo), arrotar é um sinal de que a comida estava boa. Em algumas culturas, o luto é demonstrado com o azul, ou mesmo com o branco, e não com o preto. Durante o período do Império, no Brasil, as casas possuíam uma grande bacia na qual se despejava uma solução antisséptica no interior, para servir de alvo e pontaria ao exercício de escarrar em público. Eram as escarradeiras, populares em toda sala de visita das casas mais abastadas, onde o dono da casa e seus convidados podiam “escarrar” durante as festividades (Antunes, Waldman e Moraes, 2000). Essas são apenas algumas especificidades culturais, que podem ser descritas em termos de nor‑ mas sociais. São comportamentos específicos que, devido a seu significado em cada cultura (a cada tempo), podem ou não ser passíveis de uma sanção por parte da sociedade. Neiva.indd 103 21/2/2011 15:44:50 104 TORRES, NEIVA & COLS. Sarbin (em Jackson, 1966a) define normas como uma unidade de cultura, significando que as normas podem ser entendidas como um componente de cultura. Assim, uma vez que as normas podem ser compreendidas como uma unidade de cultura, então po- dem ser conceitualizadas como um padrão abstrato de ideias que são aprendidas pelos membros de um sistema social (Jackson, 1966a). Nessa óptica, a definição de cultura leva à definição de norma. Jackson (1966a) também considera como requerimento para a definição de nor- ma social que esta seja considerada um con- ceito interacional ou suprapessoal, e não um conceito de ordem individual, tal como a ati- tude. Esse requerimento é necessário, pois a norma – como qualquer atividade grupal or- ganizada – requer um mínimo de consenso e um processo para alcançar a objetividade. Desse modo, o autor define normas sociais como “a distribuição de prescrições pelos ou‑ tros, para a gama de comportamentos que os atores podem realizar em uma determinada situação3” (Jackson, 1966a, p. 35). Desse modo, percebe -se que não é possível utilizar a concepção de normas em um nível indi- vidual de análise, sendo preferível o nível cultural ou grupal. Sherif (1968, apud DeRidder, Schrui- jer e Tripathi, 1992) define “grupo” co mo uma unidade social que consiste de um nú- mero de indivíduos que a) em um dado momento do tempo, têm papéis e relacionamentos com status entre si, b) e que possui um conjunto de valores ou normas (compartilhados) que regulam a atitude e o comportamento dos membros individuais, pelo menos no que se refere à consequência destes. Atitudes, sentimentos, aspirações e ob- jetivos compartilhados que caracterizem as identidades dos membros são relacionados a essas propriedades, especialmente às nor- mas e aos valores comuns para o grupo. Quando se pretende estudar o com- portamento humano, é importante obser- var que aquilo que as pessoas fazem é fre- quentemente mais importante do que o que elas dizem. Como notado por Hall (1973), se uma pessoa recebe informações sobre as normas de diferentes culturas, ela pode ajustar seu comportamento para agir de acordo. Contudo, Hall (1977) sugere que, quando ocorre o contato entre duas cultu- ras, entender e aceitar a realidade da cultu- ra local (p. ex., normas sociais) não é uma tarefa fácil, é algo que precisa ser vivido, e não lido ou planejado. Uma pessoa pode re- latar conhecer e respeitar as normas de uma certa cultura e, mesmo assim, nem sempre conseguir agir de acordo com esse conheci- mento. Entretanto, quando é necessário agir de acordo com ele, a tarefa se torna mais plausível de ser realizada. Uma outra maneira de entender as nor- mas sociais é por meio da conceitualização de Fishbein e Ajzen (1974; Ajzen e Fishbein, 1980) de normas subjetivas. Apesar desses autores afirmarem que as normas subjetivas não são iguais às normas sociais, mas sim uma pressão social percebida, esse constru- to é capaz de captar a influência das normas na atitude que as pessoas mantêm com rela- ção a um determinado comportamento e à realização do comportamento em si. Apesar de a concepção de normas sociais ser mais adequada se considerada como um contí- nuo de comportamentos com as respectivas sanções e recompensas associadas a sua realização (Jackson, 1966, 1975; Torres, 2009), podendo ser de natureza descritiva e prescritiva (Hagger e Chatziarantis, 2005; Fekadu e Kraft, 2002), a utilização desse conceito pode trazer uma nova luz a ques- tões associadas ao entendimento e à previ- são do comportamento humano. Contudo, apesar de não serem o mes- mo construto, a semelhança entre as nor- mas sociais e a norma subjetiva extrapola a semelhança de nomes. Como a norma sub- jetiva é relativa à realização de um único comportamento, pode -se dizer que a nor- ma social é constituída de diversas peque- nas normas subjetivas. Diferentemente das normas sociais, a norma subjetiva assume um aspecto muito mais prescritivo do que Neiva.indd 104 21/2/2011 15:44:50 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 105 descritivo, uma vez que – como já colocado – a norma subjetiva se refere à percepção do indivíduo com relação à aprovação/re- provação de se realizar um comportamento, ao passo que a norma social também serve como um padrão de comparação para deci- dir se algo é ou não adequado, ou perten- cente a um determinado grupo ou categoria (Prentice e Miller, 1996). A operacionalização originalmente proposta por Fishbein e Ajzen (1974; Ajzen e Fishbein, 1980) reflete principalmente o aspecto prescritivo da norma, mais co- nhecido como norma injuntiva (Hagger e Chatziarantis, 2005). Conforme menciona- do anteriormente, a norma não depende apenas de aspectos injuntivos, pois, como apontado por Cialdini e Goldstein (2004) e Cialdini e Trost (1998), principalmente em situações de ambiguidade, o indivíduo bus- ca realizar o comportamento mais realizado (popular) com base na crença de que este seria o comportamento mais socialmente aceito. Esse fenômeno também é conheci- do como heurística de maioria (Anderson, 1996), ou norma descritiva. QuADRO 5.3 COMPONENTES DAS NORMAS SOCIAIS E ae, vamos nessa? O que faria com que pessoas “normais” saíssem do conforto de suas casas para correrem riscos e muitas vezes serem submetidas a situações de desconforto? E ainda por cima pagando caro por isso? Será que o praticante de turismo de aventura não pensa em nada disso quando planeja suas férias? Um estudo realizado por Rodrigues (2007) pode fornecer algumas respostas a essas perguntas. Esse autor pesquisou os determinantes da intenção de se praticar turismo de aventura em duas culturas distintas, mais especificamente, a brasileira e a norte ‑americana. Em primeiro lugar, foi identificado que o praticante de turismo de aventura – nessas duas cul‑ turas – está consciente desses aspectos e pensa quando está planejando suas férias. Em suma, são crenças que fazem parte da atitude que eles possuem com relação a essa modalidade. Esse fato não é novidade, sendo, inclusive, bastante óbvio. Pessoas com uma alta atitude podem dar pouco valor a aspectos ditos negativos (p. ex., desconforto e insetos) ou valorizar aquilo que a maioria das pessoas consideraria negativo (p. ex., perigo). Logo, a resposta àquelas perguntas deve estar associada à atitude que mantemos com relação à realização do comportamento, já que reflete a intensidade e a valência de avaliações afetivas que mantemos com relação aos comportamentos que realizamos. Contudo, quando se analisou a relação da atitude com a intenção de praticar turismo de aven‑ tura na população brasileira, a correlação é, no máximo, desanimadora, diferentemente do que acontece na amostra norte ‑americana, na qual a atitude pôde ser considerada como um dos deter‑ minantes da formação da intenção de se praticar essa modalidade de turismo. Para os brasileiros, a melhor preditora de intenção foi justamente as normas subjetivas, so‑ bretudo o componente injuntivo dasnormas (versus o componente descritivo). Isso significa que, tendo uma alta ou baixa atitude, para o brasileiro, a pressão social para realizar algo ou não é um determinante muito mais forte do que a avaliação afetiva individual. Resumindo, enquanto na população norte ‑americana as respostas àquelas perguntas no início deste texto estão mais ligadas a aspectos atitudinais, na população brasileira o mesmo não é verda‑ de. Para os brasileiros, a realização desse tipo de comportamento se deve muito mais a aspectos normativos do que atitudinais. Pesquisas como essa apontam para a necessidade de se analisar os determinantes da realização dos comportamentos específicos em cada grupo cultural. A não realização desse fato pode levar a erros de compreensão, tais como atribuir explicações atitudinais para a realização de um compor‑ tamento como a escolha da modalidade de férias do brasileiro. Neiva.indd 105 21/2/2011 15:44:50 106 TORRES, NEIVA & COLS. Devido a essa confusão sobre os di- ferentes tipos de normas, a norma subjeti- va merece uma discussão mais profunda. Inicialmente definida como a percepção da pressão percebida em realizar ou não um de- terminado comportamento (Fishbein e Ajzen, 1974), Cialdini e Trost (1998) acrescentam que são cognições compartilhadas que po- dem afetar o comportamento de um indiví- duo, dependendo de características pessoais (isto é, automonitoramento, locus de contro- le), situacionais (Ehrhart e Naumann, 2004) e da cultura (Bomtempo e Rivero, 1992). Entretanto, conforme apontado por outros autores (p. ex., Lapinsky e Rimal, 2005; Fekadu e Kraft, 2002), o conceito, como pensado originalmente, não é capaz de lidar com todos os aspectos da influência normativa. Ajzen (1991, 2002) afirma que a norma subjetiva é o somatório do produto entre a percepção das crenças mais salientes da probabilidade de que um certo compor- tamento seja aprovado ou desaprovado por uma pessoa ou grupo referente com a mo- tivação que o indivíduo tem em se confor- mar nesse referido comportamento. Apesar de essa definição ser realmente mais seme- lhante à definição de normas injuntivas, Ajzen (2002) considera que a norma sub- jetiva deva incluir os aspectos das normas sociais propostos por Cialdini e colaborado- res (Cialdini e Goldstein, 2004; Cialdini e Trost, 1998; Cialdini et al., 1991; Reno et al., 1993; Kalgreen et al., 2000), que suge- rem que estas são baseadas tanto no aspecto injuntivo (isto é, o que deve ser feito) quan- to no aspecto descritivo (isto é, o que todos estão fazendo), sendo que pode haver uma maior prevalência de uma sobre a outra. Estudos sobre normas Normas sociais vêm sendo estudadas por ou- tras disciplinas além da psicologia social. Por exemplo, Monteil (1994) notou que o estu- do da aquisição e da construção das normas sociais é uma área de convergência entre a psicologia social e a do desenvolvimento. Além do mais, normas vêm sendo estudadas por outras ciências sociais além da psicolo- gia, tais como a antropologia e a sociologia (p. ex., Komarovsky, 1973). Contudo, neste capítulo enfatizaremos como as normas po- dem ser utilizadas para entendermos como diferentes comportamentos se manifestam em diferentes culturas. Para DeRidder, Schruijer a Tripathi (1992), as normas devem ter uma impor- tância primária para a psicologia, pois, da existência de normas sociais, provém a base para a comunicação intra e entre grupos. Essa importância é ainda mais marcante em culturas como a brasileira, que tem as normas sociais como um importante fator de determinação de pensamento e compor- tamento, podendo, inclusive, ter uma influ- ência maior do que as atitudes (Rodrigues, 2007). Dentre os estudos que vêm utilizando o conceito ou testando teorias psicológicas que utilizam o conceito de normas sociais, pode -se destacar, por exemplo, a investiga- ção feita por Wellen, Hogg e Terry (1998) sobre quais seriam os efeitos das normas sociais dos membros de um determinado endo grupo4 na relação entre a atitude e o comportamento. Esses autores encontraram que essa relação varia em função da saliên- cia do pertencimento ao grupo. Seu objeti- vo era testar a teoria da Identidade Social (Tajfel e Turner, 1978), e seus achados suge- rem que as normas do endogrupo influen- ciam a tomada de decisão, fazendo com que indivíduos que tenham o pertencimento ao grupo como mais saliente tomem a decisão com base mais em normas sociais do que os que têm um pertencimento menos saliente. A despeito de diversos estudos bem enco- rajadores, que sugerem o uso de normas sociais para o teste de teorias psicológicas (isto é, Smith e Bond, 1999; Smith, Bond e Kagitçibasi, 2006), observa -se que diver- sas teorias são desenvolvidas na parte “oci- dental”5 do mundo (isto é, principalmente Estados Unidos e Europa), onde as pesqui- sas apontam uma menor influência das nor- mas sociais. Em determinadas situações, essa influência pode ser até bem marcante, podendo obscurecer a influência de outros construtos, tais como a atitude (Wallace, Neiva.indd 106 21/2/2011 15:44:50 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 107 Paulson, Lord e Bond Jr., 2005; Bomtempo, Lobel e Triandis, 1995). Contudo, poucos modelos ou teorias são testados – ou desen- volvidos – em outras culturas. Desse modo, a norma social tende a não receber muita atenção, mesmo em outras culturas. Para Smith, Bond e Kagitçibasi (2006), essa li- mitação da psicologia social não ameaça apenas a generalização de nossas teorias, mas também os estudos planejados para testá -las, mesmo utilizando, ou não, o con- ceito de normas sociais. Além disso, Walker e Gibbins (1996) afirmam que o estudo de normas sociais é essencial para a psicologia. Eles sugerem que esse construto pode ser mais importante do que outros construtos relacionados às ciências sociais. Além do mais, quando DeRidder e colaboradores (1992) observaram que pouca atenção foi dada para o conceito de normas sociais, eles também notaram que poucos estudos relataram a importância das normas sociais em diferentes culturas. Suh, Diener, Oishi e Triandis (1998), por exemplo, compararam a importância da emoção versus normas no que se refere à satisfação com a vida entre 61 países individualistas e coletivistas. Eles encontraram que, em culturas coletivistas, normas sociais e emoções são fortes pre- ditoras de satisfação, enquanto que, para países individualistas, as emoções foram preditores muito mais fortes do que as nor- mas. Infelizmente, estudos que levam em consideração as normas sociais de culturas diferentes da norte -americana não são mui- to comuns na literatura de psicologia (ou outras ciências sociais). Construção das normas Diferentes perspectivas argumentam como as normas sociais surgem nos sistemas so- ciais de cada cultura. Todas fornecem expli- cações para o comportamento normativo, sendo que a maior diferença está no tipo de comportamento que é suscetível às pressões normativas arbitrárias. Em uma perspectiva societal, as nor- mas são culturalmente específicas e capri- chosas, e o poder de cada norma é derivado somente do valor que ela tem para aquela cultura na qual ela opera. Sanções como leis surgem para manter tais normas. Os defen- sores dessa perspectiva argumentam que o estabelecimento da norma vem do reforça- mento e da punição dos comportamentos que são repetidamente realizados no dia a dia (Cialdini e Trost, 1998). Entretanto, ela não explica o surgimento das normas que aparentemente são aleatórias, tais como o vestiário. É uma norma social a utilização, pela parte dos homens, de ternos e gravatas, mesmo em países tropicais como o nosso, e essa prática era comum mesmo em uma época em que não havia ar -condicionado. Em uma perspectiva funcional, as normas se desenvolvem para encorajar ou restringir comportamentos relacionados ao desenvolvimento do grupo (Sherif, 1936 apud Cialdini e Trost, 1998). Schaller e Latané(1996) argumentam que sistemas de crenças culturalmente compartilhados, tais como estereótipos e normas, se desen- volvem de um modo muito similar à seleção natural: em que, por meio de processos de comunicações, indivíduos indicam padrões de comportamentos que são efetivos, rele- vantes e informativos, para determinadas situações. Normas bem -sucedidas seriam adaptativas à “sobrevivência” nesses contex- tos. Elas comunicam como adquirir status, se afiliar com outros, adquirir comida, etc. Para Gold (1997), as organizações sociais influenciam os indivíduos, por meio do processo da socialização. A função da socialização seria a de implantar motivos (isto é, razões pelas quais os indivíduos mudariam suas ações) e recursos (isto é, expectativas) apropriados para os indivídu- os em seu ambiente social. A socialização é um conceito -chave quando se estuda a cons- trução de normas nas ciências sociais. Pode- -se afirmar que a socialização é a matéria- -prima para o aspecto regulatório de regras e papéis, e a conformidade para com as normas é o aspecto central do processo de socialização. A construção de normas so- ciais é uma operação inerente ao processo de socialização. Neiva.indd 107 21/2/2011 15:44:50 108 TORRES, NEIVA & COLS. Um dos modos pelos quais grupos e pessoas constroem suas normas é por meio da observação do comportamento de ou- tros que pertencem à mesma categoria so- cial com a qual estes se identificam – ou gostariam de pertencer –, realizando um certo discernimento com relação as conse- quências reforçadoras de se comportar ou não de acordo com o esperado (Prentice e Miller, 1996; Cialdini e Trost, 1998; Gold, 1997). Deste modo, Gold (1997) coloca que a conformidade depende, em grande par- te, da aprovação social, esteja ela presente ou seja ela apenas imaginária. Cialdini e Goldstein (2004) e Cialdini e Trost (1998) destrincham a necessidade de aprovação social e defendem que a conformidade às normas sociais obedeceria a três motivações diferentes. A primeira seria o interesse em acertar, em realizar o comportamento cor- reto. Geralmente essa motivação ocorre em indivíduos em situações de ambiguidade, mas com interesse em emitir o comporta- mento mais adequado. Nessa situação, eles seguiriam o comportamento realizado (o que acreditam ser realizado) pela maioria. Staub (1972) observou que, em situações de emergência, não apenas as expectativas nor- mativas, mas também a percepção de como as outras pessoas entendem a aplicação da norma naquela situação específica, parecem afetar fortemente o comportamento dos en- volvidos. Outra motivação seria a de construir e manter relações sociais. Em situações em que os indivíduos buscam pertencer a um novo grupo, ou permanecer em seus gru- pos, eles buscam padrões compartilhados de comportamento. Esses padrões são mui- tas vezes transmitidos oralmente, mas tam- bém por meio da observação e inferência dos comportamentos dos outros membros dos grupos. Como exemplo, podemos citar Buffalo e Rodgers (1971), que observaram que o comportamento de delinquentes ju- venis é contra suas próprias normas morais (que seriam surpreendentemente social- mente aceitáveis e desejáveis) e se compor- tam com base em sua percepção de quais seriam as normas de seus colegas. Nesse exemplo, o interesse em pertencer/perma- necer no grupo faz com que eles se compor- tem de maneiras muitas vezes diferente do que todos no grupo acreditam. Isso ilustra o quanto, não apenas as normas sociais, mas a percepção das normas comportamentais dos outros e de grupos relevantes, é igualmente importante, pois o modo como as pessoas pensam sobre os outros é um processo im- portante da construção da norma. Torres (2009) defende que, uma vez que o concei- to de cultura se refere – também – ao modo como as pessoas “vêm” o mundo, ou à per- cepção compartilhada da realidade, pessoas do mesmo grupo cultural podem não endos- sar as mesmas normas sociais, mas prova- velmente percebem e entendem o compor- tamento dos outros de modo similar. A terceira motivação seria a de manter um autoconceito positivo. Muitas vezes as pessoas precisam manter certas caracterís- ticas para poder construir socialmente sua autoimagem (isto é, “macho”, advogado, adulto). Arndt e colaboradores (2002) rea- lizaram um estudo indicando que pessoas com a autoestima mais instável e mais fo- cada em atributos extrínsecos tendem a se conformar mais à opinião da maioria e, muitas vezes, chegam a se desvalorizar para se adequarem à norma. O ser humano em- prega uma grande variedade de estratégias para se proteger, como, por exemplo, o falso consenso, que é uma maneira de proteger o self (Berkowitz, 2004). Prentice e Miller (1996) afirmam também que existem situ- ações em que o indivíduo diminui as rea- lizações de um objeto de comparação para poder manter sua autoestima. Nessa divisão da necessidade de apro- vação social – como outros conceitos na psi- cologia e nas ciências sociais –, é esperada uma elevada covariância. Contudo, a divi- são não é meramente um recurso didático, apresentando uma considerável validade empírica (Cialdini e Trost, 1998; Cialdini e Goldstein, 2002). É obvio – e esperado – que todas essas motivações estejam presen- tes na situação real em que o comportamen- to ocorre. Muitas vezes é possível inclusive o conflito dessas motivações (isto é, acertar Neiva.indd 108 21/2/2011 15:44:50 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 109 versus pertencer), pois muitas vezes o am- biente pode suportar motivações opostas. Nessas situações, o comportamento baseado em normas é baseado em diferentes pistas situacionais que ativam diferentes tipos de normas (Cialdini et al, 1991). Staub (1972) afirma que toda situação tem uma multiplicidade de normas gerais e de pistas situacionais que podem acionar os comportamentos apropriados. Esse ponto de vista é defendido também por Cialdini e colaboradores (Cialdini et al., 1991; Reno et al., 1993; Kalgreen et al., 2000) em uma série de estudos de campo envolvendo jogar lixo no chão. Sua hipótese central era a de que a norma (não importa o tipo) não iria afetar o comportamento, a não ser que ela fosse feita saliente na situação, ou seja, ela seria dependente da ativação no ambien- te. Esses pesquisadores encontraram que, tornando a norma injuntiva saliente (por meio da manipulação de placas e cartazes), a quantidade de lixo jogada no chão dimi- nuiu, não importando a quantidade de lixo no ambiente. Entretanto, tornando a norma descritiva mais saliente (por meio da mani- pulação da quantidade de lixo no ambien- te), só conseguiram diminuir a ocorrência desse comportamento em ambientes limpos quando um assistente de pesquisa jogava lixo no chão, pois, em situações em que o ambiente estava sujo, jogar lixo no chão aumentava a quantidade de lixo jogado no chão, o que não chamava atenção (e, logo, não tornava a norma saliente). Esses autores também observaram que a ativação das nor- mas tinha um certo caráter transituacional, pois a norma ativada em um cenário conti- nuava efetiva em um outro. Esses dados são semelhantes aos encontrados por Solomon Ash (1991 apud Cialdini e Goldstein, 2004; Bond e Smith, 1996) em seus estudos sobre conformidade. É importante ressaltar que compor- tamentos como a contrução e o estabeleci- mento de normas só podem acontecer pelo encontro de duas ou mais pessoas (Gold, 1997). Para a contrução de normas, Miller e Prentice (1996) notaram que os indiví- duos começam com alguma representação de pensamentos, emoções e comportamen- tos de outros em seu ambiente. Prentice e Miller (1996), propõem que os indivíduos, quando constroem normas sociais, levam em consideração as causas de seus próprios comportamentos quando analisam o quanto o comportamento dos outros reflete as es- colhas que estes fazem. Além deste aspecto inferencial da construção das normas, esses autores observaram que,durante seu estabe- lecimento, estas podem às vezes ser formal- mente codificadas. Contudo, é mais comum que sua comunicação e reforçamento ocor- ra de modo menos explícito. Por exemplo, Gold (1997) argumenta que a linguagem é adquirida e mantida substancialmente pelos mesmos processos que as normas sociais. Indivíduos são socializados a agir de acordo com seu grupo linguístico, e o reforçamen- to de seu grupo social é frequentemente um processo sutil (Hall, 1973). Feldman (1991) sugere quatro dife- rentes maneiras para a construção das nor- mas. Para esse autor, elas podem ser desen- volvidas: a) por um líder de um grupo social, para garantir a sobrevivência do grupo; b) por um acontecimento crítico na história do grupo, clarificando quais compor- tamentos seriam consistentes com os valores do grupo; c) pelos primeiros comportamentos exibidos no grupo, indicando rotina; d) e por comportamentos que já ocorriam antes da formação do grupo, mas que são considerados como padrões de um determinado tipo de indivíduo (isto é, auto categorização). Existe uma considerável concordância na literatura no que concerne ao período da vida em que as principais normas sociais de uma cultura são construídas. Wardle (1992) propôs um modelo para explicar o desen- volvimento de uma identidade birracial saudável entre crianças. De acordo com seu modelo, o desenvolvimento das normas so- ciais e valores ocorria no “Estágio 1” de seu modelo, que compreende as idades de 3 a Neiva.indd 109 21/2/2011 15:44:50 110 TORRES, NEIVA & COLS. 7 anos. De mesma forma, Pataki e Painter (1994) notaram que a construção de nor- mas sociais para a amizade e o pertenci- mento ocorre quando a criança está na 3a série, com idades entre 7 e 8 anos. Esses e outros estudos aparentemente indicam que as normas e valores que são moldados e en- dossados nessa primeira infância tendem a acompanhar os indivíduos pelo resto de suas vidas. Desse modo, normas relativas a diferentes comportamentos podem vir a ser desenvolvidas também nos primeiros rela- cionamentos das crianças com seus pais. É importante citar que o desenvolvimento de normas sociais só ocorre em um determi- nado contexto cultural. Como mencionado anteriormente, um indivíduo sozinho não pode construir uma norma. Ele (ou ela) precisa de contato com outros indivíduos, precisa saber (ou imaginar) quais são as ex- pectativas do outro naquela situação espe- cífica e precisa perceber como este entende como as normas se aplicam nessa situação específica. É importante ressaltar que a norma é um construto com uma essência pre- dominantemente regulatória na realiza- ção de dife rentes comportamentos. In de- pendentemente do modo como é construí- da, sua formação sempre vai depender de uma considerável da influência da cultura no desenvolvimento da cultura no grupo (Triandis, 1994). Normas versus cultura Diversos autores (p. ex., Gold, 1997; Bomtempo e Rivera, 1992; Wallace et al., 2005; Triandis e Suh, 2002) consideram que há uma relação entre normas sociais e cul- tura. Vários autores consideram que a defi- nição de cultura inclui a noção de crenças e normas compartilhadas (Lehman, Chiu e Schaller, 2004; Wan, Chiu, Peng e Tam, 2007; Smith, Bond e Kağitçibaşi, 2006). Gold (1997) afirma que, quando indivíduos compartilham as mesmas crenças e possuem uma “consciência de consenso” (p. 120), uma cultura pode ser observada. Esse autor nota que uma forte definição de cultura é aquela que tem aspectos normativos para os diferentes papéis, e que implica em uma condição na qual “todos devem” (p. 123), significando que a definição de normas seria intrínsica à definição de cultura. Rohner (1984 apud Smith e Bond, 1999) propõe que não devemos distinguir entre os conceitos de cultura e sistema so- cial. Ele define um sistema social em termos de “os comportamentos de diversos indiví- duos dentro de uma população culturalmen- te organizada, incluindo seus padrões de in- terações social e redes de relacio namentos sociais” (p. 127). Como discutido anterior- mente, a maioria das definições de cultura se baseia na análise dos compor tamentos e ações de seus membros. Uma vez que a definição de normas se refere a quais com- portamentos “devem” ser feitos em uma si- tuação, pode -se entender com clareza como as normas sociais estão claramente inseri- das na definição de cultura. Deste modo, estudando -se o mesmo sistema social, em diferentes culturas, podermos inferir como as diferentes culturas entendem esses com- portamentos, e o que significa o comporta- mento ideal em cada cultura. Em culturas diferentes, Smith e Bond (1999) observaram que indivíduos (de dois países diferentes) podem desempenhar papéis sociais idênticos em suas culturas. Entretanto, eles frequentemente têm dife- rentes históricos em cada grupo de culturas, o que irá afetar o modo como eles desem- penham seus papéis em cada cultura. Desse modo, o mesmo papel pode ser definido de modo similar em cada cultura, mas as nor- mas que guiam o comportamento dos atores sociais podem ser diferentes. Por exemplo, dois indivíduos podem ter exatamente o mes- mo cargo (p. ex., analista de produção) com as mesmas atribuições (isto é, mesma descri- ção de cargo) em duas culturas, mas Payett e Morris (1995) observaram que o modo como esses indivíduos executam suas tarefas está atrelado à cultura. É necessário estudar os diferentes contextos culturais desses indiví- Neiva.indd 110 21/2/2011 15:44:50 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 111 dios para poder entender o que cada norma social implica em cada contexto. Smith e Bond (1999) consideram, ainda, que o conceito de cultura é muito abrangente para o uso científico. Cultura é um conceito capaz de lidar com uma grande gama de variação do comportamento e pen- samento humano. No entanto, qual aspecto da cultura é responsável pela variação em uma parte específica do comportamento hu- mano? Afirmar que qualquer diferença entre dois grupos específicos é devido à cultura é de pouca utilidade prática e científica, pois, ao final, não se sabe o que realmente cau- sou a diferença (Smith, Bond e Kağitçibaşi, 2006; Dimaggio, 1997). Além disso, considerando que a cultura só pode ser medida indiretamente, por meio das crenças, valores e normas compartilha- das que a constitui (entre outros construtos), e que existe uma considerável dificuldade em mensurar (indiretamente) essas crenças, valores e normas em sua completude, uma solução para o estudo de culturas pode ser da escolha de um dos componentes, como a norma. O uso do conceito de norma pode nos ajudar a especificar os estudos de cul- tura. Uma outra vantagem é que se trata de um conceito que é diretamente relacionado a um comportamento observável. Normas e dimensões culturais Revisando os estudos relativos à noção de self, Smith, Bond e Kagitçibasi (2006) en- contraram que estudos realizados em cultu- ras mais coletivistas apresentam resultados diferentes daqueles realizados em culturas mais individualistas. Participantes de cultu- ras mais coletivistas (p. ex., Brasil) tendem a perceber os outros e a si mesmos em ter- mos mais situacionais. Uma vez que as nor- mas se relacionam com o comportamento apropriado para uma situação específica, e que indivíduos de uma cultura mais coleti- vista tendem a perceber a si nos termos da situação, então há uma considerável chance deles se apoiarem mais em normas sociais ao escolherem como se comportar em uma dada situação. Essa hipótese vem encontran- do algumas evidências de sua validação (p. ex., Smith et al., 1998). Então, por exem- plo, seria plausível considerar que o protó- tipo de um líder em uma cultura coletivista seria aquele que dá maior valor para suas normas sociais. Por outro lado, um líder em uma cultura individualista poderá ser mais bem identificado como aquele que fornece o que está faltando para a realização de tare- fas, ou defunções relacionadas com relacio- namentos. Também podemos observar que as normas podem ser usadas para explicar e justificar o ponto de vista da organização como superior, para reafirmar o direito da administração definir qual é o ponto de vis- ta que irá prevalecer em uma dada situação (Izraeli e Jick, 1986). A relação entre seres humanos e as dimensões culturais é uma via de “mão dupla”, na qual os indivíduos e o ambien- te moldam um ao outro. Hall (1969) afir- ma que pes soas influenciam a norma de seu grupo cultural e são influenciadas por ela. Ele também propõe que as normas, de modo similar às leis (isto é, uma forma de norma mais estruturada), são essenciais para a sobrevivência de uma cultura e para a manutenção das pes soas em uma cultura. Leis e normas podem ser criadas por várias razões. Como observado pelos autores, des- de os tempos do Código de Hamurabi (1700 a.e.c.),6 existe “a necessidade de reforçar leis que substituam os costumes tribais” (Hall, 1969, p. 167). Desse modo, pode -se notar que as normas sociais sempre fizeram parte de qualquer grupo social, podendo ser de- monstradas por suas dimensões culturais. Quando indivíduos de diferentes cul- turas entram em contato, eles vivenciam as diferentes normas que se aplicam a cada um. Contudo, diversas dificuldades podem ocor- rer, levando ao fracasso na leitura correta da norma que se aplica a cada um. Gerando di- versos mal -entendidos. Contudo, quando o contato passa a ocorrer com maior frequên- cia, elas passam a compreender melhor o comportamento do outro (Hall, 1969). Neiva.indd 111 21/2/2011 15:44:50 112 TORRES, NEIVA & COLS. Desviando das normas Um grupo social pode reforçar normas por diferentes motivos. Estes podem ser meca- nismos para aumentar a predição dos com- portamentos de seus membros, uma forma de expressar os valores do grupo (para jus- tificar as atividades do grupo para os mem- bros), ou mesmo uma forma de especificar as fronteiras do grupo, facilitando sua so- brevivência (Feldman, 1991). DeRidder, Schruijer e Tripathi (1992) forneceram um quadro integrativo para en- tender a relação entre grupos étnicos em uma sociedade e entre grupos em organiza- ções que precisam coexistir por longo perío- do de tempo: a Teoria de Violação da Norma. Essa abordagem é baseada na observação de que, através dos anos, cada grupo existente desenvolve normas implícitas e/ou explícitas que estipulam como seus membros devem agir e reagir frente a membros dos outros grupos. Membros de cada grupos conhecem essas normas. Geralmente, os membros dos grupos assumem tacitamente que as normas são respeitadas. Desse modo, a violação de uma norma por um membro de um grupo é considerada como um potente fator ativador de um negativo comportamento intergrupal. A severidade das sanções do grupo é uma função do grau de desvio e da relevân- cia da norma (Triandis, 1994). As culturas aparentemente diferem na extensão em que uma norma em particular é considerada relevante para seus membros. Por exem- plo, embora todas as culturas reconheçam o conceito de equidade, esta norma não é igualmente relevante em todas as culturas. Replicando estudos clássicos de psicologia social no Brasil, Rodrigues (1992) encon- trou que a teoria de equidade tem algumas limitações nesse país. No Brasil, o compor- tamento em si é reconhecido, não o produ- to ou o resultado do comportamento. Os brasileiros tendem a dar mais valor para os comportamentos envolvidos na tarefa do que ao processo envolvidos na execução da mesma, e a atribuir um menor valor ao produto final obtido pela tarefa. Essa prefe- rência parece ser consistente com a suges- tão de que as pessoas em países coletivistas tentam distribuir os recursos de modo que a solidariedade endogrupo possa ser manti- da, e tendem a distribuir as recompensas de modo que seja justo para todos os membros dos endogrupos (Triandis, 1994). Por outro lado, Hall (1969) sugere que normalmen- te “norte -americanos (sic) aparentemente dirigem sua atenção mais diretamente ao conteúdo do que à estrutura e à forma” (p. 183). É interessante notar que essas normas se tornam muito mais claras quando os indi- víduos se desviam delas (Derider, Schruijer e Tripathi, 1992). Desse modo, no exemplo anterior, os brasileiros podem se tornar mais conscientes do valor que dão ao comporta- mento quando interagem com alguém que não é da mesma cultura, e que dá mais va- lor ao produto da tarefa, violando a norma brasileira. QuADRO 5.4 DIFERENCIAçãO DAS NORMAS ENTRE CULTURAS Então, como vai a família? As normas tendem a ser diferentes nas diversas culturas. Por exemplo, Archer e Fitch (1994) obser‑ varam que, em diversas organizações norte ‑americanas, a norma é falar muito pouco sobre a família de alguém, pois tal exposição implica em obscurecer uma importante linha entre o que é público ou privado na vida das pessoas, ou mesmo privilegiar a família em detrimento do trabalho. Já em organiza‑ ções latino ‑americanas, pode ser considerado não educado não perguntar sobre a família de alguém. Neiva.indd 112 21/2/2011 15:44:50 PSICOLOGIA SOCIAL: PRINCIPAIS TEMAS E VERTENTES 113 normas socIaIs e o conceIto de sItuação Normas podem ser entendidas nos termos de o que uma pessoa supostamente deve fa- zer em uma determinada situação por causa de sua posição/status social. Se as normas são definidas como o comportamento ide- al de um indivíduo, determinado por sua posição ou situação, o que faz com que seu comportamento se torne independente do comportamento de outras pessoas? Como as normas se tornam recíprocas? Jackson (1966a) sinaliza que a falta de possibilida- des dedutivas dificulta o estudo sobre re- gras, normas e papéis. Para esse autor, na psicologia social, fala -se sobre “conceitos- -ideias”, como self, grupo e norma social, QuADRO 5.6 NORMAS SOCIAIS E CARACTERíSTICAS CULTURAIS Amor de mãe é sagrado? Mãe é aquela pessoa que cuida de nós desde o ventre, e, por isso, se cria com ela um vínculo “místi‑ co e mágico”, que faz com que todas as ações que esta toma com relação aos filhos seja sempre um ato de amor geralmente proposital. Contudo, uma mãe é uma pessoa como qualquer outra. E por isso é capaz de fazer tudo o que pessoas são capazes de fazer. Diversos autores, das mais diversas áreas (p. ex., Walzer, 1996; Chase; Rogers, 2001) vêm indicando que a maternidade é socialmente construída, e que não há nenhuma outra base para explicar o comportamento que não estruturas sociais. Desse ponto de vista, a maternidade é um sistema social, com todas as implicações que isso traz no que se refere a diferentes culturas. Logo, o “amor” de uma mãe de uma cultura não é maior ou menor, nem melhor ou pior. O próprio amor é um sistema social, regulado por diferentes normas em cada cultura. Entretanto, como todo sistema governado por normas, este está sujeito a pessoas que fogem à realização dos comportamentos tidos como aceitáveis. Isso significa que, dar à luz não é suficiente para ter “amor de mãe”, o que é uma escolha (que pode ou não ser realizada), moldada socialmen‑ te, regulada por normas sociais. QuADRO 5.5 NORMAS E APRENDIZAGEM DE LINGUAGENS O que você quer dizer com isso?!? Aprender uma outra língua é importante para fazer negócios em uma outra cultura. Mas, como ob‑ servado por diversos autores (p. ex., Hall, 1969; Pinker, 2007), linguagem é mais do que apenas um meio para expressar pensamentos. De fato, ela é um grande elemento na formação do pensamento. Todavia, para o entendimento ocorrer, mais importante do que a linguagem em si é a atenção para as normas e crenças que a cultura mantém com relação à linguagem (Archer e Fitch, 1994). Duas di‑ ferentes culturas (e talvez até subculturas) têm diferentes linguagens. Os indivíduos dessas culturas habitam diferentes mundos sensoriais (Hall, 1969; Best, 1992). Por isso, elas irão filtrar o mundo de modos diferentes, levando a diferentes percepções (e diferentes