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Os restos na história percepções sobre resíduos

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1953
1 Grupo de Direitos
Humanos e Saúde, Escola
Nacional de Saúde Pública,
Fundação Oswaldo Cruz.
. Av. Brasil 4036/905,
Manguinhos. 21040-361
Rio de Janeiro RJ.
marta.velloso@ensp.fiocruz.br
Os restos na história: percepções sobre resíduos
Waste over history: perceptions about residues
Resumo O artigo busca, em diferentes períodos
da história, as percepções sobre os resíduos resul-
tantes da atividade humana. Está dividido em três
partes: 1) narra o episódio da peste negra do século
XIV, mostrando como ela foi associada aos resídu-
os produzidos pelo corpo humano; 2) explicita como
as prenoções sobre resíduos, ainda hoje, remetem à
sujeira, à doença e à morte; 3) descreve as medidas
de higiene, a partir do renascimento e a saúde pú-
blica no início do século XX, que começa comba-
tendo os agentes microbianos das doenças infeccio-
sas e os seus vetores.
Palavras-chave Saúde pública, Saúde e doença,
Ambiente, Resíduos, Lixo
Abstract This article describes how Man, over
history, felt about the residues produced by hu-
man activity. The text is divided into three parts:
In the first part it tells the story of the black plague
pandemic during the XIV century, showing how
this disease was associated with the residues pro-
duced by the human body. In the second part it
explains how the first notions of waste were, and
still are, related to dirt, disease and death. Finally,
in the third part, it describes the first measures of
hygiene in the Renaissance and refers to the first
public health actions at the beginning of the XX
century, starting to combat the agents of infec-
tious diseases and their vectors.
Key words Public health, Health and disease,
Environment, Residues, Waste
Marta Pimenta Velloso 1
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Introdução
O lixo é definido pelo dicionário Aurélio¹ como
aquilo que se varre da casa, do jardim, da rua e se
joga fora; entulho. Tudo o que não presta e se joga
fora. Sujidade, sujeira, imundície. Coisa ou coisas
inúteis, velhas, sem valor. Resíduos que resultam
de atividades domésticas, comerciais, industriais e
hospitalares. Também classifica e defini o lixo, se-
gundo o risco que causa à população, como atômi-
co, espacial, radioativo e especial – os resíduos re-
sultantes de atividades industriais poluentes.
No presente artigo, o lixo é descrito como o
resíduo desprezado e temido pelo homem. Ele
representa o resto da atividade humana ou a so-
bra indesejada de um processo de produção, que
tanto pode estar associada à eliminação de micro-
organismos patogênicos veiculados pelos fluidos
e dejetos corporais como ao descarte de resíduos
atômicos, radioativos e industriais poluentes.
Na Idade Média, a maioria dos restos resul-
tantes da atividade do homem estava diretamente
relacionada aos resíduos produzidos pelo seu
corpo - fezes, urina, secreções em geral e o pró-
prio corpo humano em decomposição. Também
havia os restos provenientes da alimentação -
carcaças de animais, cascas de frutas e hortaliças.
Os restos começaram a causar medo no ho-
mem, a partir do momento em que foram sendo
associados ao seu sofrimento físico e psíquico.
Esse sofrimento ficou bem marcado na ocasião
do surto manifestado pelas epidemias e pande-
mias de algumas doenças na Idade Média, mais
precisamente pela peste negra no continente eu-
ropeu durante o século XIV.
Neste sentido, vamos observando, no decor-
rer da história, que o homem no seu processo de
elaboração do conhecimento vai associando se-
gundo sua sensibilidade e sensações, os fatos vi-
venciados. E que, através da percepção, ele vai
ordenando e dando forma a esses fatos, os quais,
por sua vez, vão sendo exteriorizados em diver-
sas e diferentes formas de expressões. Entretan-
to, cabe acrescentar que a cultura constitui fator
essencial no processo de construção do saber e,
portanto, na representação do imaginário social.
Assim, o estudo busca, em diferentes períodos
da história, as percepções do homem sobre os
resíduos resultantes das suas atividades.
Os resíduos
como veículos de impurezas e enfermidades
Com a intenção de mostrar no decurso da histó-
ria dos restos, o significado da doença no corpo,
tomamos a peste como referência na construção
do conhecimento sobre os resíduos. A relação
entre corpo, doença e resto vai originar as repre-
sentações sociais sobre enfermidade e resíduo,
uma vez que foi se tornando difícil falar de uma
sem tocar no outro.
Neste sentido, descrever os sintomas e as con-
seqüências da peste, no medievo, é pensar na pro-
dução de resíduos ou na transfiguração do cor-
po humano em restos repugnantes. A represen-
tação dos resíduos foi sendo construída pelo
imaginário social, segundo as tragédias causa-
das pelas epidemias e pandemias de “pestes”.
A elaboração da associação entre peste e pro-
dução de resíduos foi fundamentada nas obras
de Ursino2 e de Dessennius3, descritas no século
XVI e encontradas na seção de obras raras da
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra em
Portugal.
Na Idade Média, as palavras “praga”, “peste”
ou “pestilência” significavam a aparição de uma
enfermidade epidêmica, que produzia um alto
índice de mortalidade. Nem sempre o termo se
referia à peste negra ou bubônica, já que outras
epidemias como gripe, tifo, cólera e varíola, con-
tagiosas e letais, também estavam presentes. No
entanto, os sintomas da peste bubônica foram
descritos em detalhes. Houve, assim, pestes ou
pragas famigeradas que chegaram a ser denomi-
nadas com o nome do lugar onde começaram
ou onde foram mais graves. A peste do século
XIV, chamada de “morte negra ou peste negra”
foi a mais célebre pela sua mortandade2.
As “pestes” causavam temor e, no período
medievo, muitas vezes foram interpretadas como
“castigo divino”, pelos pecados que o homem
havia cometido. Além dessa crença, os homens
também acreditavam que as enfermidades po-
deriam ser transmitidas pelo ar corrompido –
teoria dos miasmas – e já percebiam que o con-
tágio da doença se dava de pessoa a pessoa. Fato
que começou a gerar medo na aproximação com
o outro, o que poderia propiciar o contato com
as secreções eliminadas pelo doente durante o
processo da enfermidade, tais como o sangue e o
pus provenientes dos bubões, no caso da peste
bubônica. O terror causado pela doença está vi-
sível na seguinte descrição do estado do enfer-
mo2: [...] alguns cuspiam sangue, outros tinham
no corpo, manchas roxas escuras e destas ninguém
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escapava. Os doentes tinham apostemas ou estru-
mas nas ínguas ou debaixo das axilas, e destes al-
guns escapavam, e temos de dizer que estes enfer-
mos eram muito contagiosos e que quase todos os
que cuidavam dos enfermos, morriam, assim como
os sacerdotes que recolhiam as confissões. O Papa
ordenou que, quando morresse um pestilento, to-
das as pessoas presentes ou próximas, dissessem:
que Deus te bendiga [...]2 .
As epidemias, como punição dos deuses, pa-
reciam constituir uma associação importante, já
presente na antiguidade. O texto da “peste”, em
Ovídio descrito por Diniz4, registra bem a associ-
ação entre “pestes” e castigo divino: o flagelo ter-
rível que atacou o povo teria sido provocado pela
ira de Juno junto à terra. Além da doença como
castigo divino, mas atribuída às condições cli-
máticas, encontramos os dizeres de Ovídio, su-
gerindo que a peste brotou com ímpeto, quando
[...] O céu cobriu a terra com uma escuridão pro-
funda e encheu essas trevas com um calor sufocan-
te. O cálido Austro soprou um vento mortal [...]
era evidente que a peçonha se espalhava pelas fon-
tes e pelos lagos, e que milhares de serpentes, erran-
do pelos campos incultos, contaminaram os rios
com o seu veneno[...]4.
O pensamento médico fundamentado na te-
oria das influências astrais ressaltava o ar como
o meio de transmissão das doenças. Eram o ar
envenenado, os miasmas e as névoas pesadas e
pegajosas, provocando todos os tipos de agentes
naturais e imaginários, desde águas estagnadas
dos lagose rios, até a conjunção negativa dos
planetas que disseminavam a doença e a morte
entre os homens. Assim, segundo a concepção
dos miasmas, o ambiente corrompido das habi-
tações e os hábitos das pessoas eram também
associados à propagação da peste.
O ambiente interno das moradias era o mes-
mo - tanto os lares mais humildes como os cas-
telos de pedra dos senhores feudais possuíam
um único cômodo grande. Situação que agrava-
va os problemas relativos à saúde de seus habi-
tantes. O principal agente insalubre era a coabi-
tação com os animais de criação; outro proble-
ma dizia respeito à falta de ventilação. A maioria
das casas tinha um piso de terra batida, sendo
aquecidas por uma lareira central. As camas ge-
ralmente eram envolvidas por cortinados, que
proporcionavam maior privacidade. Nessas ca-
mas, largas e compridas, dormiam até oito pes-
soas. As condições internas das habitações, como
a umidade, a fumaça, a ausência de privacidade e
a conseqüente promiscuidade, eram agentes efi-
cazes na transmissão de doenças. Neste ambien-
te corrompido, se um membro da família con-
traísse alguma doença, era tarefa muito difícil
evitar o contágio2.
As cidades, no medievo, eram densamente
povoadas. Os resíduos - fezes, urina e águas féti-
das - eram lançados pelas janelas. As roupas eram
lavadas raramente e, como conseqüência, elas fi-
cavam infestadas de pulgas, percevejos, piolhos e
traças. Quem mais corria risco eram os recém-
nascidos, já que as mulheres, ao dar a luz, costu-
mavam forrar as camas com lençóis usados. En-
tre um quarto e um terço das crianças morriam
antes de completar um ano e muitas outras antes
dos dez anos. De cada dois nascimentos bem-
sucedidos, somente um chegava à idade adulta.
As casas eram ninhos de ratos que disputavam os
restos de comida com os animais de criação3.
O contágio era também atribuído ao “ar cor-
rompido” respirado pelos homens. Este “ar” al-
terava o corpo, putrefazendo-o. Os banhos em
águas “fétidas” implicavam macular o corpo para
se impor a toda uma série de moléstias. O inte-
ressante é que, ainda assim, “o banho era preju-
dicial se tomado em excesso” – “banhar-se em
excesso” era fazê-lo mais de três vezes por ano –
ele dilatava os poros do corpo, aumentando a
possibilidade de “contato com os miasmas”3.
A doença também estava associada à abertu-
ra para as sensações. O homem mais sensível,
sensual ou ávido pelas sensações do corpo, i.e,
aquele que não se isolava pelo medo da enfermi-
dade, se tornava mais vulnerável ao contágio.
O contato com o “ar corrompido” deveria
ser evitado. Assim, as práticas para combater a
doença se resumiam basicamente às medidas de
isolamento, que protegiam o corpo de influênci-
as nocivas à saúde, tais como beber e comer em
exagero e ter freqüentes relacionamentos com
mulheres5.
As práticas contra a doença consistiam na
desinfecção do “ar” e das pessoas, ou seja, em
acender fogueiras nas encruzilhadas da cidade,
passar perfumes e enxofre nos corpos, nos obje-
tos, nas roupas e nas casas, a fim de purificar
tudo aquilo que pudesse estar contaminado. Mais
raramente, eram aplicados alguns tratamentos
fundamentados no conhecimento rudimentar da
“cura pelo semelhante”. Para evitar marcas, en-
volvia-se o doente de varíola em um pano verme-
lho, mantendo-o deitado em uma cama com cor-
tinas também vermelhas. Acreditava-se que os
banhos em águas fétidas protegiam o corpo con-
tra os miasmas. Os picadinhos de serpentes eram
ingeridos na forma de poções, com o intuito de
proteger os enfermos do veneno da peste. Tam-
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bém havia uma curiosa crença de que os zelado-
res de latrinas estavam imunizados, o que levava
muitas pessoas a visitarem esses estabelecimen-
tos públicos, supondo eficazes seus maus odo-
res3. As diversas idéias e prenoções associadas à
doença se organizavam na mente humana e da-
vam forma às suas representações que, por sua
vez, criavam novos conceitos, teorias e práticas.
Os sinais da doença causavam pavor ao en-
fermo e aos mais próximos a ele. Os bubões pur-
gavam pus e sangue, sendo acompanhados por
manchas escuras resultantes de hemorragias in-
ternas. Os doentes sentiam dores muito fortes e
geralmente morriam em até cinco dias após a
manifestação dos primeiros sintomas. No caso
dos pulmões, o doente tinha febre alta e cons-
tante, tosse forte, suores abundantes e escarro
sangrento, e morriam em três dias ou menos.
Em ambos os casos, tudo que saía do corpo -
hálito, suor, sangue dos bubões e pulmões, urina
sanguinolenta e excrementos enegrecidos pelo
sangue - cheirava extremamente mal. A depres-
são e o desespero acompanhavam os sintomas
físicos, o que levou alguns escrivães da época a
dizer que “a morte se estampava no rosto dos
condenados”. As pessoas dormiam com saúde e
morriam antes de acordar. Foi grande o número
de médicos e de pessoas caridosas, entre elas frei-
ras, que morreram ao tentar ajudar os doentes3.
O contágio fulminante ficou bem caracterizado,
já que uma pessoa enferma era capaz de “conta-
minar o mundo”.
O fantasma da peste rondava a vida das pes-
soas. Obter água limpa para beber e cozinhar era
um problema, pois o conteúdo das fossas infil-
trava-se no solo e contaminava os poços. Lixo,
resíduos de curtume e matadouros poluíam os
rios. No interior das casas, a transformação do
corpo do doente tornava-se visível com a proxi-
midade da morte. No ambiente externo, as águas
estavam impregnadas dos resíduos eliminados
pelos doentes e oriundos dos seus cadáveres em
decomposição.
Este cenário afirmava, mais uma vez, a “con-
cepção dos miasmas”, que se propagavam pelo
ar, transfigurando o corpo humano em restos
repugnantes. No caos, entre a vida e a morte, o
homem junto com a “peste” também sofria trans-
formações. A “peste”, quando não matava, “pu-
rificava” o homem. O enfermo que conseguia al-
cançar a cura mudava sua visão sobre o mundo.
Ele deixava de temer a doença, pois se sentia ca-
paz de vencê-la.
A doença, percebida como algo “divino” e es-
tando em um plano superior ao humano ou
“profano” tornava-se algo não palpável, coisa do
destino e, assim, fugia ao domínio do homem.
As vítimas da peste, consideradas como pecado-
ras, deviam ser condenadas ao sofrimento. As
medidas contra a peste, que eram fundamenta-
das em princípios morais, censuravam os praze-
res sexuais e gustativos do corpo, ainda perma-
necendo, durante alguns séculos, associados ao
pecado, ao profano e ao indigno do divino. A
concepção dos miasmas, como meio de contágio
das enfermidades, estando relacionada aos fenô-
menos da natureza – as estações do ano, o clima
quente ou frio, os ventos, as tempestades – per-
manecia passível a mudanças naturais.
Na antiguidade, Hipócrates (460 a.C. – 380
d.C.), médico grego considerado “pai da medici-
na”, já inaugurava a ciência baseada na observa-
ção clínica. Ele considerava como causa das do-
enças o desequilíbrio entre o que chamava de
humores: o sangue, a fleuma (estado de espíri-
to), a bílis amarela e a bílis negra. Para Hipócra-
tes, todo corpo trazia em si os elementos para
sua recuperação. Mas, o conhecimento do corpo
só seria possível a partir do conhecimento do
homem como um todo. Assim, o homem repre-
sentava o microcosmo e o universo, o macro-
cosmo. O microcosmo deveria se encontrar em
harmonia com o macrocosmo, ou seja, o corpo
humano deveria estar equilibrado com seu am-
biente externo. No seu estudo “Ares, Águas e Lu-
gares”, ele expõe as influências do ambiente na
saúde do homem, ressaltando como fatores es-
senciais para uma vida saudável, a água isenta de
impurezas e o ar puro6 .
Até o século XIX, duas formas polares de re-
presentação da doença fundamentaram o saber
médico sobre as epidemias: a concepção ontoló-
gica, presente no imaginário de praticamente to-
das as culturas desde a Antiguidade, e a concep-
ção dinâmica, formada no mundo grego, em con-
formidade com a Physis. Segundo Diniz4, as no-
ções de contágio e miasmas estiveram associadas
a essas duas concepções de doença. A primeira
compreendia a enfermidade comouma entidade
concreta que vinha do exterior, tanto do ar como
de outros indivíduos e objetos e que não fazia
parte da natureza humana. Era uma espécie de
mal que invadia o corpo, como espíritos, posses-
sões demoníacas ou flechas lançadas por deuses.
Neste caso, o homem doente seria aquele ao qual
havia se agregado um ser (a doença). A cura seria,
em oposição, um esforço para expulsar, por meio
de tratamentos mágicos, esse ser estranho.
Já na concepção dinâmica, baseada nas teo-
rias de Hipócrates, a doença surgia em conse-
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qüência do desequilíbrio ou da desarmonia en-
tre o homem e a natureza. Logo, a doença per-
tenceria ao corpo do homem e constituiria o meio
dele readquirir sua harmonia com a natureza,
i.e, ela seria uma reação natural e generalizada
do organismo, que surgia para recuperar o equi-
líbrio do corpo.
Entretanto, estas duas concepções convergi-
am para uma dimensão naturalística, ou seja, a
natureza como harmonia e equilíbrio estático
(concepção ontológica) ou dinâmico (concep-
ção dinâmica) e a ação interventora da medicina
era essencialmente passiva, contemplativa e con-
sistia em apenas potencializar as tendências na-
turais. Segundo compreendia a medicina hipo-
crática-galênica, a simples absorção do ar cor-
rupto degenerava os humores corporais que, ao
serem expelidos pelos poros ou pela respiração,
poderiam corromper o ar. A noção do contágio
envolvia não só aquilo que poderia decorrer do
contato, mas também da simples aproximação.
Não havia como distinguir, com clareza, contá-
gio e miasmas.
Contudo, ainda no século XVI, Fracastoro
(1478 – 1553), em suas observações sobre a na-
tureza e a disseminação das doenças infecciosas,
supôs que as infecções passavam de uma pessoa
a outra por meio de pequenos corpos capazes de
auto-reprodução. Ele definia o contágio como
uma corrupção ou infecção, que ocorria de for-
ma análoga entre portadores e receptores, ocasi-
onada por partículas imperceptíveis4 .
Nos dias de hoje, reconhecemos a peste como
uma doença de cadeia epidemiológica complexa,
envolvendo roedores, carnívoros domésticos
(cães e gatos) e silvestres (pequenos marsupi-
ais), pulgas e o homem. É uma doença infecciosa
e contagiosa, possuindo como agente etiológico
a bactéria Yersinia pestis, que é transmitida ao
homem pela picada da pulga infectada, encon-
trada principalmente nos ratos. As gotículas
transportadas pelo ar e as secreções bronquiais
de pacientes com peste pneumônica constituem
os meios de transmissão mais freqüentes de pes-
soa a pessoa. Tecidos de animais infectados, fezes
de pulgas e culturas de laboratórios também são
fontes de contaminação para quem os manipula
sem obedecer a normas de biossegurança. A sua
persistência em focos naturais, no Brasil e em
outros países do mundo, é uma importante ca-
racterística ecológica e epidemiológica da doen-
ça, dificultando a sua erradicação e impondo a
manutenção da sua vigilância e controle, mesmo
quando em baixas incidências7 .
A partir do século XX, a epidemiologia come-
çou a ser prejudicada pela visão monocausal das
doenças, i.e, o combate a determinada epidemia
tornou-se restrito à eliminação do agente etioló-
gico e de seus vetores. A análise epidêmica de uma
doença não deve ficar limitada ao seu aspecto
objetivo, ou seja, ao entendimento do seu ciclo
de transmissão: o agente etiológico, os vetores,
os reservatórios e as condições ambientais, em
que ela se desenvolve. Além disso, também preci-
samos conhecer a subjetividade daqueles que se
contaminaram – os traços singulares físicos e
psíquicos das pessoas infectadas; em que circuns-
tâncias elas se contaminaram; quais são suas
condições de vida e suas raízes culturais e, ainda,
como elas percebem a doença no seu corpo.
Situação semelhante pode ser observada no
caso dos resíduos que, até a década de 1950, fo-
ram associados a doenças, permanecendo restri-
tos à área médica. O lixo e os seus riscos somente
a partir da década de 1970 começaram a ser con-
siderados como questão ambiental. Foi quando
percebemos quanto o nosso planeta estava sen-
do degradado pelos resíduos gerados por subs-
tâncias de origem biológica, química e radioati-
va, que vinham deteriorando a saúde do homem
e do seu ambiente. Estas substâncias foram pro-
duzidas pelo próprio homem e, algumas vezes,
apesar de descoberta a sua toxicidade e, em cer-
tos casos, a sua letalidade, as autoridades conti-
nuaram sendo negligentes quanto à destinação
final de tais substâncias. O homem cria situações
em que, apesar de conhecer os perigos, prefere
arriscar-se. Nesse aspecto, o que está sendo pri-
orizado - a integridade das medidas de saúde
pública ou o “poder” econômico da sociedade de
consumo globalizada?
O lixo como estigma social
Conforme os acontecimentos ocorridos no sé-
culo XIV, no que se refere à epidemia da peste
negra, pudemos observar as diferentes formas
de representações dos fatos, relacionadas a pos-
síveis causas da enfermidade e seu contágio. Con-
tudo, ainda hoje, os resíduos são vistos como
algo ameaçador e são geralmente enviados para
locais bem distantes dos nossos espaços físicos
de convívio e para longe, também, dos nossos
pensamentos.
Os resíduos reconhecidos como restos, lixo
ou como tudo aquilo desprovido de uma utili-
dade óbvia e, portanto, objetiva, foram adqui-
rindo uma imagem negativa, quase sempre as-
sociada à sujeira, à doença, à morte e à miséria.
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No final da Idade Média e na Modernidade,
as pessoas que cuidavam do destino final do lixo
eram marginais à sociedade. Assim como o resto
ou a sobra, esses seres humanos também eram
escolhidos de acordo com a ocupação ou com o
papel social que desempenhavam. Neste período,
os serviços de limpeza estiveram freqüentemente
subordinados ao carrasco da cidade e eram exe-
cutados pelos seus auxiliares. As tarefas ligadas
aos restos, inclusive o destino de cadáveres, eram
delegadas a prostitutas, prisioneiros de guerra,
condenados, escravos, ajudantes de carrascos e
mendigos. Tal fato é importante para a compre-
ensão de como o trabalho com resíduos foi sen-
do socialmente desqualificado. Segundo Hösel8,
na cidade de Berlim na Alemanha, começou-se a
empregar prostitutas na limpeza das ruas, usan-
do-se como argumentação o fato de que elas “usa-
vam mais as ruas do que os outros cidadãos” 8.
Durante o período medieval, o lixo era basi-
camente originado pela necessidade fisiológica,
pela alimentação e pelo vestuário do homem. Já
existiam os catadores de lixo, que eram chama-
dos de trapeiros. Segundo Portilho9, desde aque-
la época até os dias atuais, as pessoas que traba-
lham ou vivem do lixo - catadores, coletores e até
mesmo os engenheiros sanitaristas - são estig-
matizados pela sociedade. São vistos, da mesma
maneira, os espaços destinados ao tratamento e
ao destino final dos resíduos - lixões, vazadou-
ros, depósitos, aterros sanitários, usinas de reci-
clagem e estações de tratamento de esgotos.
Ainda hoje, a exclusão dos catadores de lixo é
tão perversa, que chega à criminalidade. Por so-
breviverem daquilo que é descartado, estes seres
humanos são desconhecidos como cidadãos e
identificados como “descartáveis”. Rodríguez10
comenta o fato ocorrido no ano de 1992, na ci-
dade de Barranquilla, na Colômbia, quando onze
“descartáveis” foram assassinados e seus corpos
utilizados para experiências médicas em um cen-
tro universitário. O crime deu origem à rede de
cooperativas de recicladores da América Latina,
que foram criadas no intuito de valorizar a ocu-
pação e de reconhecer os “descartáveis” como
profissionais “recicladores de resíduos”.
No estudo realizado por Velloso11 com os
coletores de lixo da Companhia Municipal de
Limpeza Urbana no Rio de Janeiro (COMLURB),
também podemos perceber a presença de uma
hierarquia perversa entre os profissionais. Du-
rante esse estudo, a pesquisadora acompanhou
o processo de trabalho daqueles profissionais,
viajando na boléia do veículo coletor. Na oca-
sião, conversando nos barescom os motoristas
e coletores, enquanto descansavam do serviço,
ela pode entender a posição de inferioridade que
o coletor sentia em relação ao motorista. O cole-
tor viajava no estribo do veículo, ficando vulne-
rável ao movimento do trânsito, expondo-se in-
clusive a quedas. O trabalhador, mesmo enfren-
tando fortes chuvas, altas ou baixas temperatu-
ras, não viajava na boléia, pois, na lida direta
com o lixo, ele se sentia inferior ao motorista.
[...] a cabine é para o motorista, porque tem dife-
rença do motorista para o gari, tem a discrimina-
ção e muitos deles se acham donos daquela cabine.
Quando está sol ou quando está chovendo, o gari
vai atrás do caminhão para evitar conflito com o
motorista, mesmo que ele ofereça, a gente não vai,
porque nós estamos sujos e ele, por estar limpinho,
acha que não devíamos estar ali [...]11.
O coletor fala sobre os riscos presentes no
processo da coleta do lixo, dos acidentes sofri-
dos, das doenças e das condições inóspitas do
ambiente de trabalho. Contudo, o menosprezo
da população e da empresa, pelo seu serviço,
parece a principal causa da sua insatisfação: [...]
eles discriminam, eles olham para o gari como
olham um porco. Eles não sabem que o gari é um
homem ou uma mulher igual a eles. As pessoas têm
nojo da gente, acham que a gente tem uma doença
contagiosa. A gente entra no ônibus as pessoas se
afastam da gente [...]11 .
Estes profissionais não gostam de ser cha-
mados de “lixeiros”, preferem ser identificados
como “garis”. Mas nem sequer conheciam a ori-
gem desta denominação, que vem do início do
século XX, quando os serviços de limpeza urba-
na foram entregues à iniciativa privada e os ir-
mãos Garys assumiram a Companhia Industri-
al do Rio de Janeiro, com o objetivo de desempe-
nhar os serviços de coleta, transporte e destino
final do lixo. Desde então, os trabalhadores da
coleta do lixo passaram a ser chamados pelo
nome genérico dos seus patrões, “garis”11.
A nomeação não é um ato registrado em car-
tório, mas um sinal de pertença social. A inser-
ção é uma criação contínua do sujeito, ou seja,
ela é dada por um nome e por uma dignidade,
conferidos por um trabalho que não se limita ao
aspecto de uma mecânica já preestabelecida, mas,
sim, de uma mecânica criada.
O fato de o coletor de lixo preferir ser reco-
nhecido pelo nome dos seus patrões interage com
a imagem negativa que a população formou so-
bre ele e denuncia o seu desprezo pela própria
profissão, que não lhe confere a pertença social.
O uniforme, que é obrigado a vestir, o torna in-
visível aos seus “superiores”, mas também o faz
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ser reconhecido como trabalhador, ou seja, ele
passa a não ser um marginal à sociedade. No
entanto, ele não é visto como uma pessoa e, sim,
como um “lixeiro”’, que apenas cumpre sua fun-
ção social.
A experiência do psicólogo social Fernando
Braga da Costa comprova a invisibilidade que é
atribuída à profissão de coletor do lixo. Ele fin-
giu-se de gari e varreu as ruas da Universidade de
São Paulo (USP), a fim de concluir sua disserta-
ção de mestrado sobre invisibilidade pública, ou
seja, a tese abordava a percepção humana, quan-
do totalmente prejudicada e condicionada à divi-
são social do trabalho, que faz com que se enxer-
gue apenas a função e não a pessoa. Fernando,
usando o próprio corpo, ao vestir o uniforme,
tinha a intenção de sentir-se como um gari. Ele
trabalhava meio expediente e não recebia, como
os seus “colegas de vassoura”, o salário de quatro-
centos reais. Nesta condição, garante que teve a
maior lição da sua vida: “Descobri que um sim-
ples bom dia, que nunca recebi como gari, pode
significar um sopro de vida, um sinal da própria
existência”. O psicólogo sentiu, na [própria] pele,
o que é ser tratado como um objeto e não como
um ser humano: professores que me abraçavam
nos corredores da USP passavam por mim e não me
reconheciam, por causa do uniforme. Às vezes, es-
barravam no meu ombro e, sem ao menos se descul-
parem, seguiam me ignorando, como se estivessem
encostado em um poste, ou em um orelhão. Apesar
do sol forte, do trabalho pesado e das humilha-
ções diárias, Fernando constatou que os garis são
acolhedores com quem os enxergam e encontram;
no silêncio, a defesa contra quem os ignora12.
A valorização do lixo começa a surgir no pe-
ríodo industrial e amplia-se por causa da guerra.
O lixo deveria ser transformado em dinheiro.
Numa sociedade capitalista, geralmente só se atri-
bui valor a coisas que podem gerar lucro. Este
valor foi atribuído ao lixo, devido à possibilida-
de de sua transformação em matéria-prima. As-
sim, em 1896, os trapeiros iniciam suas ativida-
des, intensificando-as a partir de 1918. Existiam
dois tipos de trapeiros: o catador e o atacadista.
O primeiro fazia a separação dos materiais en-
contrados no lixo e os enfardava para serem ven-
didos como matéria-prima. Ele era o “operário”,
enquanto que o atacadista - o “atravessador” -
era o patrão. Havia uma tensão entre as indús-
trias de trapos e o Serviço Sanitário, apesar delas
terem sido toleradas até o término da Primeira
Guerra Mundial. Em várias situações, os trapos
eram importados, sobretudo da Argentina e,
mais tarde, da Europa. O Serviço Sanitário co-
meçou a exigir a desinfecção dos fardos, que apre-
sentavam um “aspecto repugnante”. Esta medi-
da foi dificultando a importação de trapos e, con-
seqüentemente, a sua comercialização13.
Assim, o interesse econômico em manter a
indústria de trapos, foi “vencido” pelas medidas
de higiene exigidas pelo Serviço Sanitário. A partir
de 1914, seguindo o relato de Miziara13, a Prefei-
tura de São Paulo foi encarregada de criar um
estatuto para o lixo, no qual, além da higiene,
estavam em questão a moral e a civilidade. Nesse
sentido, “o estado sanitário do trapeiro” trans-
formou-se em grande preocupação para a saúde
pública. O maior índice de doenças contagiosas
era transmitido pelos trapeiros, uma vez que “não
lavavam as mãos para comer”. A higiene foi com-
preendida como um “método estratégico de ex-
cluir a população da ocupação de utilização do
lixo”. Por fim, o Serviço Sanitário propõe à cidade
que adote novas carroças e quatro fornos de inci-
neração com capacidade para incinerar cinqüen-
ta toneladas de lixo por dia, sendo distribuídos
pelos bairros do Brás, Luz, Barra Funda e Liber-
dade. Cabe ressaltar que, com a instalação dos
quatro fornos em São Paulo, poderiam ser quei-
madas duzentas toneladas de lixo/dia, apesar de a
cidade produzir, no período, cento e vinte tonela-
das diárias. Seria necessária a produção de mais
lixo para justificar a aquisição dos equipamentos.
Cabe lembrar que, no século XX, na década
de 1970, houve retorno à prática de reaproveitar
o “lixo”, que se manifestou na moda de se usar
roupas velhas e desbotadas - a calça Lee e o “ca-
saco de general”. O modismo, na época, repre-
sentou uma forma de se contestar o sistema re-
pressor da ditadura militar que, muitas vezes,
marcou de forma irreparável milhares de jovens
e adultos que atuaram politicamente contra as
arbitrariedades do governo. Esta transformação
na moda, por sua vez, a partir dos anos 1960,
emergiu com o movimento hippie e de estudan-
tes, que buscavam a afirmação dos seus desejos e
direitos proibidos.
A tensão entre o valor de mercado e o valor
humano permanece, induzindo as diferentes vi-
sões sobre o lixo, que variam de acordo com os
interesses econômicos – ora o lixo é visto como
risco de vida, transmitindo doenças e causando
mortes, ora é considerado como matéria-pri-
ma, produzindo e lançando novos produtos no
mercado.
Atualmente, a visão do lixo como matéria-
prima já está incorporada no discurso do coletor
de lixo. Fato percebido quando ele se refere à
companhia de limpeza urbana, para a qual tra-
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balha, como sendo rica em matéria-prima: [...] o
lixo é muito rico, a COMLURB é uma companhia
que nunca vai entrar na falência, entra se os ou-
tros quiserem. Porque o lixo nunca acaba e a ma-
téria-prima delaé o lixo. Ainda mais agora, com
essas usinas que eles criaram e que estão reciclando
direto [...]11.
A sociedade de consumo aposta na vida breve
dos seus produtos. Ela fabrica produtos que de-
vem ser rapidamente substituídos por outros,
cada vez mais frágeis e perecíveis. Enquanto isso,
nossos resíduos saturam os depósitos e as usinas
de reciclagem. Já não há espaço físico para deposi-
tar ou reciclar os restos resultantes da quantidade
de produtos que produzimos e descartamos.
As medidas de higiene e a saúde pública
O século XVII foi o palco do Renascimento, um
dos maiores movimentos culturais da história
da humanidade, que representou uma época de
enriquecimento do pensamento, aliado a uma
transformação profunda da atitude espiritual do
homem. A ânsia da descoberta e a paixão pelo
mundo clássico puseram à disposição do homem
culto as doutrinas dos filósofos gregos e orien-
tais. Todo o século consistiu em um período de
transição, no qual o homem ocidental impulsio-
nou a ciência, fundamentada nos novos conhe-
cimentos da física, da astronomia e das ciências
naturais. O Renascimento conteve em si o germe
da destruição, mas também a promessa da re-
novação. A religiosidade e a política da Europa
foram fortemente abaladas e o mundo transfi-
gurou-se. O homem redescobre em si o potenci-
al criador, mas, em vez de criar em harmonia
com a natureza, julga-se separado e distinto dela,
sentimento que não só persistiu como foi ampli-
ado com o passar dos séculos. As viagens marí-
timas, iniciadas pelos portugueses, propiciaram
aos europeus o impulso transformador da visão
clássica em uma nova perspectiva de mundo. No
domínio da medicina, o Renascimento represen-
tou, de um lado, um retorno às raízes, ou seja, à
ciência de Hipócrates e, de outro lado, o interesse
pela observação e pela experiência14.
As experiências científicas foram evoluindo e
gerando novas descobertas. O século XVII foi
marcado pelos avanços da medicina, i.e, pelos
conhecimentos acadêmicos, que descobriram a
circulação do sangue, a química da respiração e,
através do aperfeiçoamento do microscópio sim-
ples, os agentes microbianos causadores de algu-
mas doenças. Assim, Redi, que era médico e bió-
logo de Florença, realizou as primeiras desco-
bertas que deram origem à teoria da biogênese.
Em seguida, Leewenhoek, aperfeiçoando o mi-
croscópio, descobriu as bactérias. Apenas por
volta de 1880, com as experiências de Pasteur, a
teoria da geração espontânea é posta de lado15.
Estas descobertas contribuíram para uma
outra visão de cidade, propiciando novas con-
cepções de sujeira corporal e urbana. As cidades
começam a ser planejadas, inspiradas na circula-
ção do sangue e nos movimentos da respiração.
Elas deviam ser amplas para que o ar circulasse
livremente, sendo divididas em ruas principais e
secundárias, da mesma forma que as veias e ar-
térias do corpo humano, que transportam he-
mácias e outros elementos do sangue para os
órgãos. Os resíduos, como fezes e urina, deveri-
am sair das casas através de um cano parcial,
que nas ruas se acoplariam a um cano comum
ou principal (rede de esgoto).
Contudo, na primeira década do século XIX,
as ruas de algumas cidades ainda apresentavam
sujeiras provenientes de resíduos domésticos.
Nesse período, a cidade de Lisboa é descrita por
Braga16 como detentora de espaços naturalmen-
te contaminados pelos despejos da famosa água
“vai”, do lixo doméstico e dos animais que passe-
avam pelas ruas, nomeadamente cães vadios,
vacas, cabras e outros animais utilizados no trans-
porte, tais como cavalos, burros e bois. A situa-
ção era agravada pela passagem de rebanhos de
carneiros e varas de porcos com destino a outras
regiões; pela construção de fábricas poluentes e
matadouros dentro das cidades e pela ausência
de calçamentos nas ruas.
Para contornar a caótica falta de higiene na
cidade, em 1º de abril de 1818, foi lançado um
edital onde constavam algumas medidas de higi-
ene a serem seguidas. Entre elas, foi proibido se
despejar dejetos e lixos nas ruas de Lisboa, esta-
belecendo multas para os infratores, as quais
variavam de acordo com a gravidade e o horário
do delito. O lixo deveria ser acondicionado em
recipiente e colocado na rua, depois das 22 horas,
para ser recolhido pelos carros de limpeza16.
Em 1835, segundo o relato da autora, iniciou-
se um plano que articulava a higiene com a saúde
dos habitantes de Lisboa. Este plano evidenciava,
entre outros aspectos, a necessidade de dividir a
cidade em dez zonas, cada uma delas doadora de
homens e carros de bois destinados à limpeza da
cidade e que, em contrapartida, se encarregariam
do fornecimento gratuito de estrume de boi aos
trinta e três agricultores. Era responsabilidade
destes homens: a eliminação de cães vadios; fazer
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cumprir a proibição de ensinar as bestas novas e
de matar porcos nas vias públicas; a varrição das
ruas, três vezes por semana e, por fim, a recolha
diária dos detritos. O plano estabelecia, ainda, que
os senhorios deveriam construir cloacas fora de
suas casas, nas ruas, com canos gerais. Nas cozi-
nhas de todos os andares das casas, deveriam ser
instaladas pias com ralos, destinadas ao despejo
de líquidos. Os senhorios deveriam, também, en-
canar as águas dos telhados e caiar a fachada dos
prédios, de três em três anos, de preferência na
cor rosa desvanecido.
Neste período, já verificamos uma hierarqui-
zação de objetos, que devem seguir uma norma
de organização. Assim, o lixo permanece estoca-
do, com a intenção de ser transformado. Os resí-
duos, como os estrumes de bois, são encami-
nhados aos agricultores, para serem reutilizados
como adubos. Os resíduos do corpo humano,
fezes e urina, devem seguir normas no seu desti-
no final. As ruas devem permanecer limpas, sem
resíduos e animais, que são identificados como
riscos à saúde e ao bem-estar da população.
Também surge a preocupação com a estética dos
prédios, que foram pintados de rosa pálido, bus-
cando-se na uniformização da cor, a harmonia,
a limpeza e a beleza da cidade.
Quanto à higiene pessoal ou individual, os
banhos eram escassos e de difícil acesso. As pes-
soas trocavam de roupas raramente, quando es-
sas já se encontravam muito sujas. Para alguns,
a higiene pessoal se restringia à troca de roupas,
sem submeterem-se a qualquer ablução. Como
a maioria dos lares não possuía casas de banho,
a higiene individual ficava a mercê dos hábitos e
dos conceitos de limpeza de cada um, bem como
do número de criados que se incumbia de carre-
gar a água. Contudo, as idas às termas ou aos
banhos de mar e rio começaram a tornar-se cada
vez mais freqüentes. A partir do século XVIII,
verificou-se um crescimento da população de
Caldas da Rainha, associado à grande concor-
rência termal. Segundo os estudos realizados por
Braga16, essas termas eram freqüentadas pelos
nobres da cidade e ficavam muito aquém das
suas similares européias, no que dizia respeito ao
local das nascentes e das fontes: [...] era um lugar
imundo, o cheiro era terrível e o pouco asseio que
ali havia tornava aquele lugar repugnante e vergo-
nhoso para nós, na presença de vários estrangeiros
que faziam a triste comparação dos nossos banhos
termais com outros que tinham visitado na Euro-
pa civilizada. Os banhos tomavam-se em comum,
havendo só dois, um para cada sexo[...]16.
No plano da arte, a criação de novas formas
fora da modelagem habitual começa a surgir.
Em Portugal, não havia os recursos financeiros
de países como a Itália e a França, mas eles os-
tentavam o modelo desses países, no que se re-
feria às estações termais. Por isso, elas eram des-
valorizadas e vistas como inferiores às suas si-
milares européias.
Na segunda metade do século XIX, com a
emergência da teoria microbiana das doenças,
que refutou a concepção dos miasmas, houve
uma radical mudança na visão da saúde pública
e da atenção a ser dada aos resíduos eliminados
pelo corpo humano. Segundo Eigenheer8, as tra-
dicionais concepções de tratamento do lixo pas-
sam por visíveistransformações. Neste contex-
to, a fogueira, anteriormente utilizada para puri-
ficar o ar, torna-se a fonte inspiradora do incine-
rador (construído na Inglaterra, em 1875), que
começa a ser considerado como o método ideal
para eliminar os agentes microbianos, transmis-
sores das doenças infecciosas. Os trapeiros, mes-
tres na arte da recolha e separação dos restos,
vão gerar o modelo das usinas de reciclagem em
Bucarest (1895) e em Munchen (1898).
Neste mesmo período, no Brasil, durante o
governo Campos Salles (1898-1902), foi criado
o Instituto de Manguinhos, com a função de fa-
bricar vacinas contra a peste bubônica. Para di-
rigi-lo, a prefeitura da capital federal solicitou ao
Instituto Pasteur, de Paris, para indicar um espe-
cialista. Naturalmente esperava-se um francês,
mas o célebre Emile Roux, diretor do Instituto,
indicou um “brilhante discípulo”, Oswaldo Gon-
çalves Cruz (1872-1917) que, mesmo sem alcan-
çar os trinta anos e desconhecido no Brasil, já
conquistara uma sólida reputação científica. Ele
dirigiu Manguinhos até 1902, quando Rodrigues
Alves, ao assumir a Presidência da República, foi
buscá-lo para sanear o Rio de Janeiro. Ao aceitar
o convite, Oswaldo cruz prometeu erradicar a
febre amarela, num período de três anos. Mas,
primeiro, começou resolvendo o problema da
peste. Para combatê-la, formou um esquadrão
de cinqüenta homens, todos previamente vaci-
nados, que percorriam os armazéns, becos, cor-
tiços e hospedarias, espalhando raticida e remo-
vendo o lixo. Para completar, criou um novo car-
go – o de comprador de ratos. Este funcionário
percorria as ruas da cidade, do centro aos subúr-
bios, pagando a quantia de trezentos réis por cada
rato caçado pela população. Assim, num curto
prazo, desapareceram as epidemias e os ratos.
Na verdade, a eliminação dos ratos e da peste
insere-se num contexto de transformações que
envolveram a capital do Brasil, no início do sécu-
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lo XX - com a afirmação da teoria microbiana,
as medidas de higiene começaram a ser aplicadas
no combate aos vetores e aos agentes etiológicos
das doenças infecciosas17.
O combate à febre amarela apresentou vári-
os problemas. A maior parte dos médicos e da
população ainda acreditava que a doença era
transmitida pelo contato com as roupas e as se-
creções dos doentes. Oswaldo Cruz, entretanto,
era adepto da teoria de que o agente etiológico da
doença era transmitido pelo mosquito. Assim,
ele decidiu substituir o método tradicional das
desinfecções praticadas pela polícia sanitária, pe-
las brigadas de mata-mosquitos. Essas brigadas
percorriam ruas, invadindo casas para eliminar
os focos de insetos, atuação que provocou vio-
lenta reação popular18.
Em 1904, com o agravamento dos surtos de
varíola, o sanitarista tentou impor a vacinação
em massa da população. Mas os jornais lança-
ram intensa propaganda contra a medida. O
Congresso protestou e foi organizada uma liga
contra a vacinação obrigatória. No dia 13 de no-
vembro, estourou a rebelião popular. O governo
derrotou a rebelião, mas suspendeu a obrigato-
riedade da vacina.
Este episódio da história nos remete ao auto-
ritarismo das medidas de erradicação das doen-
ças, impostas à população no início do século
XX. Tais medidas, por não terem sido acompa-
nhadas do reconhecimento da população, foram
percebidas como atos de violência e de imposi-
ção. A ansiedade do jovem Oswaldo Cruz em
erradicar as doenças não o deixou perceber a
necessidade de se trabalhar junto à população,
na produção do conhecimento sobre as doenças
infecciosas e os seus meios de transmissão.
Os riscos associados aos resíduos foram con-
siderados durante muitas décadas como questão
de higiene pública e, portanto, limitados à área
médica. Ainda nos anos cinqüenta, encontramos
capítulos destinados ao lixo quase que exclusiva-
mente em tratados de higiene, sempre extrema-
mente reduzidos quando comparados a outros
temas de saneamento, como água e esgoto8.
Somente a partir da década de 1970, o lixo
começa a ser considerado uma questão ambien-
tal. A preservação do meio ambiente foi assu-
mindo caráter global, com as conferências de
Estocolmo, em 1972, a ECO 92, no Rio de Janeiro
e a de Tibilisi, em 1997. A crescente participação
da mídia também contribuiu significativamente
para esse processo, devido à rapidez com que as
informações são transmitidas, de um lugar a
outro do mundo. O crescimento progressivo das
indústrias e conseqüentemente o lançamento de
novos produtos no mercado foram gerando di-
versos e perigosos resíduos. Atualmente, já se
compreende que as agressões ambientais que
ocorrem em determinado ponto do planeta po-
dem ter repercussão à distância, atingindo mes-
mo outros continentes, como por exemplo, os
casos de acidentes radioativos, as chuvas ácidas e
os derramamentos de petróleo nos mares.
Considerações finais
A visão dos resíduos, como veículos de enfermi-
dade, permaneceu durante alguns séculos e, atu-
almente, ainda podemos perceber os resquícios
dessa visão na gestão dos Resíduos dos Serviços
de Saúde (RSS). A classificação de cada resíduo
segundo sua origem – hospitalar, domiciliar, in-
dustrial e de logradouros públicos – dá início
aos diferentes processos de organização. As eta-
pas referentes ao acondicionamento, ao trans-
porte e ao destino final devem ser específicas para
cada tipo de resíduo. O homem, na sua ânsia de
produzir soluções, muitas vezes tende à generali-
zação, reduzindo as medidas de contenção a um
dos seus aspectos, como é o caso das normas
estabelecidas para o lixo hospitalar ou RSS, que
recomenda a esterilização de todos os resíduos,
sem exceção. Estes resíduos, com algumas exce-
ções, não necessitam passar por tratamentos es-
peciais, podendo ser tratados como lixo co-
mum19. A controvérsia existente sobre o tema, de
que todos eles, sem exceção, devam passar pelo
processo de incineração ou de desinfecção, pode
estar vinculada aos temores do passado, quando
os microorganismos transmissores de doenças
tinham sua origem desconhecida e causavam,
normalmente, a morte do enfermo.
Nos dias de hoje, apesar dos resquícios des-
tas recordações do passado, o lixo mais temido é
aquele produzido pelo homem, que é capaz de
destruir, em escala planetária, a vida humana e a
natureza. A contaminação ambiental pelas radi-
ações nucleares, pelas substâncias químicas, pe-
los agentes biológicos, bem como os atos mecâ-
nicos de violência entre os homens, têm destruí-
do milhares de vidas.
A matéria intitulada “Aterro lixo pode tor-
nar-se um cemitério” narra o indelével fim das
vítimas do atentado terrorista ocorrido em 11/
09/2001, na cidade de Nova Iorque, quando os
terroristas usaram o próprio corpo – os “ho-
mens bomba” - como arma de destruição, sacri-
ficando suas próprias vidas. No final, o país que
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sempre teve sua economia fundamentada no con-
sumo de produtos transformou um depósito de
lixo em cemitério, ou melhor, os restos resultan-
tes do atentado terrorista foram levados ao anti-
go aterro sanitário, que havia sido desativado a
pedido dos moradores locais. Assim, restos de
corpos humanos, sobras de concreto, pedaços
de aeronaves e diversos materiais de consumo
foram transportados como lixo e descartados
no mesmo depósito20.
A bem da verdade, o homem, ao criar
determinado produto, muitas vezes desconhece
seus possíveis efeitos tóxicos e letais. No entanto,
esse produto faz com que a classe hegemônica de
vários países se sinta “poderosa”, quando, por
exemplo, possui o controle de uma arma destru-
tiva e ameaçadora. Cabe lembrar o caso do físico
Bronowski, membro da equipe do Projeto Ma-
nhattan, que produziu a bomba atômica, tragi-
camente utilizada na Segunda Guerra Mundial.
Bronowski, na década de 1970, confessou seu des-
conhecimento e descontentamento pelo fato dos
seus estudos de física atômica contribuírem para
a fabricação de uma arma de capacidade letal
ainda não superada, a ser usada contra o pró-
prio homem.
O descuido e a ignorância relacionadosao
destino final de produtos que causam riscos à
população e ao ambiente são claramente eviden-
ciados no caso da contaminação pelo césio 137,
ocorrido na cidade de Goiânia, no Brasil. Um
aparelho de césio-137, que se encontrava fora do
seu uso em tratamentos médicos, foi descartado
num galpão. Dois sucateiros encontraram o apa-
relho e, não sabendo a sua função e risco, foram
seduzidos pelo brilho de um pó branco. Passa-
ram-no pelo corpo como se fosse uma purpuri-
na, disseminando aquela coisa mortífera pela ci-
dade21. A negligência no descarte do lixo radioa-
tivo por parte das autoridades responsáveis e a
ignorância da população sobre a sua periculosi-
dade conduziram à contaminação radioativa,
causando danos de repercussão mundial. O aci-
dente, além da terrível tragédia humana, foi tam-
bém um desastre para a economia de Goiânia –
ninguém queria viajar para a cidade e os seus
produtos passaram a ser evitados. Este acidente
mostra que, além da irresponsabilidade no des-
carte de resíduos radioativos, também existe o
despreparo em lidar com as tecnologias dos pa-
íses de economia central – compramos tecnolo-
gia do primeiro mundo, mas não seguimos as
normas de contenção que deveriam ser aplica-
das a essa tecnologia.
Agradecimentos
A Jorge de Campos Valadares, meu orientador,
pela contribuição valiosa para elaboração do ca-
pítulo da tese, que originou o presente artigo. A
Carlos Molinaro, doutorando da Universidade
Pablo Olavide de Sevilha, que me ajudou na com-
preensão do latim, necessário à leitura das obras
do século XVI.
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Artigo apresentado em 08/02/2006
Aprovado em 01/02/2007
Versão final apresentada em 16/02/2007
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