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MARCIO IORIO ARANHA Manual de Direito Regulatório (Fundamentos de Direito Regulatório) 6ª edição Laccademia Publishing 2021 ii Copyright © 2021 Laccademia Publishing All rights reserved. Publicado por Laccademia Publishing Limited 46 Syon Lane, Isleworth, TW7 5NQ London, United Kingdom 1ª edição (2013) 2ª edição (2014) 3ª edição (2015) 4ª edição (2018) 5ª edição (2019) 6ª edição (2021) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) A662m Aranha, Marcio Iorio, 1974- Manual de Direito Regulatório: Fundamentos de Direito Regulatório / Márcio Iorio Aranha. 6. ed. rev. ampl. – London : Laccademia Publishing, 2021. viii, 338 p. ; 22 cm. ISBN 979-84-777-8854-5 1. Direito regulatório 2. Manual de direito regulatório. 3. Fundamentos. I. Título. CDD: 341.3782 CDU: 346.5:65 Índice para catálogo sistemático: Brasil : Direito Regulatório 341.3782 TODOS OS DIREITOS RESERVADOS – É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. Impresso nos Estados Unidos/Printed in the United States iii DEDICATÓRIA O interesse pelo estudo do Direito Regulatório nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília brotou a partir de semeadura de projetos de pesquisa e de ensino implementados em iniciativas conjuntas com o saudoso professor Carlos Eduardo Vieira de Carvalho. Passadas duas décadas de tais iniciativas, dedico este estudo à memória do Professor que tão profundamente marcou a cátedra de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. iv AGRADECIMENTOS Aos alunos e professores dos cursos de pós-graduação em regulação de telecomunicações, integrantes do Centro de Políticas, Direito, Economia e Tecnologias das Comunicações da Universidade de Brasília (CCOM/UnB), onde surgiu o interesse pelo aprofundamento da temática de direito regulatório. Aos integrantes do Núcleo de Direito Setorial e Regulatório da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, que incentivaram o aprofundamento da pesquisa em Direito Regulatório, mediante institucionalização da disciplina de graduação de Direito Administrativo 3, do Ciclo de Palestras em Direito Setorial e Regulatório, das disciplinas de Mestrado e Doutorado em Direito, Estado e Constituição intituladas Metalinguagem Regulatória e Estado e Regulação e da disciplina do Mestrado Profissional em Direito, Regulação e Políticas Públicas intitulada Fundamentos da Regulação. Aos professores e alunos do Centro de Estudos em Regulação de Mercados da Universidade de Brasília (CERME/UnB), que propiciaram o espaço institucional de desenvolvimento e teorização do Direito Regulatório frente a um público especializado em diversos setores regulados. v PREFÁCIO À 6ª EDIÇÃO Esta nova edição do Manual de Direito Regulatório propõe que, a partir de março de 2021, o ordenamento jurídico brasileiro passou a contar com um novo princípio constitucional da instrumentalidade das técnicas regulatórias (Seção 2.3.1). Deu-se maior atenção ao aspecto funcional da regulação, que multiplica as aplicações das instituições de direito público e privado, quando internalizadas em estratégias regulatórias com novas funções regulatórias, inclusive reescrevendo-se o capítulo de regimes jurídicos das estatais (Seção 3.6) para maior aderência à evolução jurisprudencial e à sua caracterização como leque de técnicas regulatórias. Uma nova Seção 2.3.2 foi acrescida com o aprofundamento das formas autorregulatórias, em especial a identificação da autorregulação regulada do sistema continental europeu e sua relação com a autorregulação com constrangimento estatal de origem responsiva. Ainda, foi endereçado o problema da relação entre discricionariedade e responsividade (Seção 2.9.8), deixando-se claro que a discricionariedade e outras instituições de direito público são técnicas regulatórias que podem adquirir função responsiva, sem que possam, individualmente, significar responsividade por si mesmas. Uma margem de liberdade do regulador em planejar camadas de regimes jurídicos responsivos não significa que o fiscal ou inspetor, na ponta, terá sua discricionariedade afetada por tais medidas intrinsecamente responsivas. Também foi abordada a questão do iter processual adequado à regulação responsiva (item 2.9.9), afastando-se a preconcepção de que uma pirâmide responsiva pudesse se apresentar como um itinerário processual único para todos os perfis comportamentais de regulados. Finalmente, esta edição reservou espaço ao devido posicionamento da teoria dos jogos (item 2.9.7) – e, por decorrência, de análise econômica comportamental – na teoria da regulação responsiva para o fim de se esclarecer que o pressuposto responsivo de que os agentes não seriam essencialmente virtuosos, racionais ou irracionais não significa desprezar eventuais manifestações de posturas racionais a serem devidamente contrastadas por incentivos medidos a partir da teoria dos jogos. Esse correto posicionamento do juízo racional para se aquilatar a devida resposta regulatória não afasta a constatação de que o regulado é um combo de compromissos contraditórios que podem ser modulados rumo ao comportamento virtuoso. vi SUMÁRIO INTRODUÇÃO AO DIREITO REGULATÓRIO 1 1.1 Estado, Poder e Direito Público 3 1.2 Pressupostos teóricos do Estado Regulador 6 1.2.1 Cerne da regulação: o mercado de direito 6 1.2.2 Direitos fundamentais objetivados e Estado Regulador 10 1.2.3 O Estado Administrativo e a separação de poderes 12 1.2.4 Legitimidade no Estado Regulador 16 1.2.5 Poder regulamentar na tradição francesa 20 1.2.6 Situando o conceito de Estado Subsidiário 23 1.2.7 O Estado Empreendedor 24 1.2.8 Princípio da cooperação social 29 1.2.8.1 A Tautologia da Internet Cooperativa 30 1.2.8.2 Arbitramento e arbitragem na regulação 31 1.2.8.3 Política de PD&I e regulação 35 1.2.9 O fenômeno da regulação e seu significado 37 TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 45 2.1 Introdução 47 2.2 Método Jurídico-Regulatório: Coerção Extrínseca versus Intrínseca e os Conceitos de Governo, Governança e Conformidade 48 2.3 Teorias Jurídicas Substantivas e Procedimentais da Regulação 60 2.3 Técnica, Estratégia, Modalidade, Mecanismo e Modelo Regulatório 67 2.3.1 O Princípio da Instrumentalidade das Técnicas Regulatórias 84 2.3.2 Formas autorregulatórias 85 2.4 Comando e Controle versus Incentivos 91 vii 2.5 Legitimidade da Intervenção Regulatória, Razão Burocrática, Racionalidade Material e Incentivos 95 2.6 A Razão de Ser de uma Teoria Regulatória: descrever ou prescrever 98 2.7 Teoria Processual Administrativa da Regulação versus Escolha Pública 100 2.8 Teoria Substantiva da Regulação: Teoria Social da Regulação e Teoria Institucional da Regulação 104 2.9 Teoria da Regulação Responsiva 107 2.9.1 Justificativa e origem da teoria da regulação responsiva 108 2.9.2 Pressupostos da Teoria da Regulação Responsiva 111 2.9.3 A teoria é responsiva a quê? 118 2.9.4 Características específicas da atuação responsiva do regulador 120 2.9.5 As pirâmides regulatórias 133 2.9.6 Autorregulação Voluntária, Autorregulação Regulada e Comandos Normativos Impositivos 156 2.9.7 O Papel da Teoria dos Jogos na Teoria da Regulação Responsiva 161 2.9.8 Discricionariedade e responsividade 163 2.9.9 Responsividade exige o desenho de vários itinerários processuais 166 2.9.10 O Decálogo Responsivo 169 2.10 Teoria da Regulação Inteligente 171 2.10.1 Carta de navegação da regulação inteligente para reguladores 177 2.11 Síntese sobre a Teoria Jurídica da Regulação 181 MODERNIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO 183 3.1 Velocidade da inovaçãotecnológica, linguagem setorial e especialização regulatória 185 3.2 Globalização, conhecimento e política pública setorial 186 3.3 Regimes jurídicos de prestação de serviços 191 3.4 Regimes jurídicos de prestação de serviços regulados: divisão constitucional de titularidade 195 viii 3.5 Autorização de serviços 199 3.6 Regimes jurídicos das estatais 201 FUNDAMENTOS DE DIREITO REGULATÓRIO 227 4.1 Direito Regulatório, Estado Regulador e Regulação 229 4.2 Regulação: objeto de estudo do direito regulatório 239 4.2.1 Regulação Operacional e Normativa 239 4.2.2 Efeitos das opções regulatórias 242 4.2.3 Função normativa conjuntural do Executivo 244 2.2.3.1 Atividade normativa do Executivo e o princípio da separação de poderes 245 2.2.3.2 Atividade normativa do Executivo e o princípio da legalidade 251 2.2.3.3 Atividade normativa do Executivo e entes administrativos autônomos 255 2.2.3.4 Atividade normativa do Executivo e revisão judicial 258 4.2.4 Conceito de regulação 262 4.2.5 Regulação versus desregulação 270 4.3 Regulação no brasil 273 4.3.1 Fases da regulação no Brasil 273 4.3.2 Espécies de regulação 278 4.3.3 Estruturas de Regulação Setorial 287 4.3.3.1 Conselhos Econômicos 287 4.3.3.2 Conselhos versus Agências 292 4.3.3.3 Agências Executivas versus Agências Reguladoras 295 4.3.3.4 Autonomia das Agências Reguladoras 308 BIBLIOGRAFIA 315 INTRODUÇÃO AO DIREITO REGULATÓRIO 1 Parte I INTRODUÇÃO AO DIREITO REGULATÓRIO MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 2 ESTADO, PODER E DIREITO PÚBLICO 3 1.1 ESTADO, PODER E DIREITO PÚBLICO O conceito de direito público e sua posição relativa frente aos de Estado e poder político permitem situar didaticamente o direito regulatório como ramo partícipe da tradição de direito público, embora tributária dos ramos de direito setorial. Afora a discussão histórica sobre a relação entre Direito e Estado, partindo-se de um dualismo que visualizava no Estado uma força política primordial distinta do seu sistema jurídico, tendo por contraponto uma teoria pura do direito, que identificava Estado e sistema jurídico1, para finalmente repousar nas teorias constitucionalistas de mediação entre Estado e Sociedade2, o Estado, sob o enfoque jurídico, nada mais é do que um centro de imputação normativa dotado do especial qualificativo do exercício de poder político como uma relação de autoridade.3 Em termos jurídicos, poder significa a possibilidade de interferência unilateral na esfera jurídica alheia.4 O Estado, enquanto produto constitucional, encarna as medidas de poder – competências – delegadas pelo documento constitucional nos limites das finalidades para as quais foram criadas – funções. Desse batimento entre suas competências e 1Vide KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre. Einleitung in die rechtswissenschaftliche Problematik. Viena: Franz Deuticke, 1934. 2Evidenciando o conceito de poder constituinte francês como aquele que introduzira o Estado como fenômeno da ordem jurídica, vide: ZWEIG, Egon. Die Lehre vom “Pouvoir Constituant”: Ein Beitrag zum Staatsrecht des französischen Revolution. Tübingen: J. C. B. Mohr/Paul Siebeck, 1909. Sob o enfoque institucionalista, entendendo o Estado como ente ou instituição jurídica, vide: ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. Trad. Maria Helena Diniz, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 61. No âmbito da teoria da constituição, afirmando que o Estado só se concebe hoje como Estado Constitucional, vide: CANOTILHO, J. J. Gomes Canotilho. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 92. 3“O poder no sentido social ou político implica autoridade e uma relação entre o superior e o inferior (...) O poder do Estado é o poder organizado pelo direito positivo – é o poder da lei, ou seja, a eficácia do direito positivo.” (KELSEN, Hans. General Theory of Law and State. Trad. Anders Wedberg. Cambridge: Harvard University Press, 1945, p. 190). 4Vide OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Delegação administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p. 17. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 4 funções, têm-se sua identidade jurídica: o Estado é um centro de atributos jurídicos qualificado pela intensa incidência do direito público via manifestação de aspectos sobreviventes da soberania, tais como a possibilidade jurídica do uso da força física e sua exclusividade, e a não- oponibilidade interna e externa para afirmação do ordenamento jurídico vigente. Como tal, ao Estado é reservada a definição de pessoa jurídica de direito público, que se apresenta como uma unidade, no direito internacional público, mas como um conjunto de pessoas jurídicas de direito público para o direito interno – União, Estados-membros, Municípios e suas autarquias. O Estado, portanto, é definido a partir do direito público; não o inverso. Elevado à categoria de elemento distintivo do Estado, embora não restrito a ele, o direito público depende do constructo de poder político para ser aquilatado. Como tal, o direito público é o regramento jurídico do poder político entendido como uma posição diferenciada no ordenamento jurídico, segundo a qual um centro de imputação normativa encontra-se em posição de interferir unilateralmente na esfera jurídica de outrem. Em termos mais analíticos, o direito público é o regramento jurídico do poder político caracterizado pela estruturação do poder, pela conformação dos direitos, pelo estudo das relações envolvendo o Estado e seus delegatários e pela autolimitação do poder. Em outras palavras, ao direito público cabe a função não só de disciplinar a estrutura de poder como a de expressar a dimensão jurídica de influência sobre esferas jurídicas alheias. A regulação de atividades relevantes é manifestação preponderantemente pública, embora não exclusivamente pública. Daí dizer-se que o direito regulatório manifesta-se como um ramo de direito público, em especial quando os aspectos de interferência unilateral em determinado campo de atividades socialmente relevantes tomam a forma de órgãos ou entidades estatais com poderes específicos de redirecionamento de tais atividades. O direito regulatório, portanto, é um ramo de direito público. Ao se concluir pelo posicionamento didático do direito regulatório como ramo de direito público, entretanto, não se quer dizer que o estudo jurídico da regulação se resuma à disciplina de estruturas regulatórias e comandos regulatórios. Em grande medida, as disciplinas jurídicas setoriais abarcam a disciplina regulatória, ampliando o escopo de análise para tratar de toda a disciplina regulatória a partir de um recorte transversal. Ou seja, o direito das telecomunicações, dos recursos naturais, da saúde, do desporto, dos portos, aeroportos e fronteiras, dos transportes, dos recursos hídricos, dentre outros, afiguram-se como disciplinas jurídicas ESTADO, PODER E DIREITO PÚBLICO 5 que mesclam ramos tradicionais de conhecimento jurídico – direito constitucional, administrativo, tributário, civil, comercial, consumerista, ambiental, entre outros – com a disciplina jurídica regulatória específica de cada setor, compondo um quadro mais completo do regramento jurídico incidente sobre um setor de atividades reguladas. O diferencial do direito regulatório, enquanto direito de caráter amplo abrangente de diversos setores de atividades relevantes encontra-se fora das atividades mesmas que regula. Este livro preocupa-se com o que é onipresente às abordagens regulatórias. As disciplinas de direito setorial, por outro lado, trazem outro recorte didático ao aglutinarem características próprias de cada setor relevante da economia – saúde, educação, energia, telecomunicações, petróleo, águas, transportes – a partir de um poutporri de abordagens interdisciplinares – exemplificativamente do direito constitutional, administrativo,civil, comercial, do consumidor, ambiental e ainda do direito regulatório. Assim, a identidade do direito regulatório repousa sobre pressupostos indiferentes às peculiaridades de cada setor de atividades reguladas, tais como sobre os conceitos de direitos fundamentais objetivados, Estado Regulador, Estado Administrativo, Estado Empreendedor, legitimidade regulatória, poder regulamentar e regulação, que serão analisados no próximo capítulo. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 6 1.2 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 1.2.1 CERNE DA REGULAÇÃO: O MERCADO DE DIREITO A objetivação promovida a partir da categoria dos direitos sociais sedimentada no início do século XX explica a preocupação com a concretização de direitos, mas não responde à questão básica do porquê da regulação. Ou seja, por que dita concretização necessitaria advir de um método especial de intervenção estatal capaz de se readequar conjunturalmente de acordo com as respostas originadas do sistema controlado? Dentre os fundamentos da regulação, encontram-se, de fato, a natureza objetiva dos direitos, os conceitos de Estado Administrativo, separação de poderes, Estado Regulador, poder regulamentar, Estado Subsidiário, Estado Empreendedor, que serão tratados em seguida, mas todos eles são pressupostos insuficientes para justificarem por si sós o atual quadro regulatório. O fundamento da regulação e, por consequência, do direito regulatório, encontra-se na necessidade de proteção de um determinado objeto errático. Não se pode negar que a competição tem sido identificada como tal objeto e opera um efeito decisivo no modelo regulatório atual. Ela é, portanto, um dos fundamentos da regulação, todavia também não se apresenta como seu fundamento central. O cerne da regulação reside em outra seara qualificadora do mercado: o direito à igualdade. Trata-se do mesmo direito que, segundo leituras históricas mais aprofundadas,5 teria dado origem à Revolução Americana, quando os protestos dos colonos em Boston em 1773 dirigiam-se menos à tributação do chá holandês, do que à isenção tributária do chá inglês seu concorrente, então transportado pela Companhia das Índias Orientais, em flagrante benefício anti-isonômico ao monopólio exercido por dita empresa. A igualdade entre os atores econômicos foi a razão pela qual as corporações empresariais foram vistas com muitas ressalvas após a independência dos Estados Unidos da América. Elas somente podiam ser constituídas para propósito específico e por duração em geral limitada a 5Vide LABAREE, Benjamin Woods. The Boston Tea Party. Boston: Northeastern Classics, 1979. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 7 vinte anos.6 Somente mais tarde, via jurisprudência da Suprema Corte estadunidense, é que a personalidade jurídica das corporações empresariais passou a ser reconhecida para fins de exercício de direitos à igualdade de exação obtida quando da negativa de oitiva do caso Santa Clara County v. Southern Pacific Railroad (118 U.S. 394), de 1886, e, recentemente, a afirmação da igualdade de pessoas jurídicas e físicas para fins de direitos políticos de financiamento de campanhas no caso Citizens United v. Federal Election Commission (558 U.S. 310), de 2010. Por detrás das limitações à atuação das corporações empresariais, encontrava-se a compreensão de que a progressiva atribuição de personalidade jurídica a tais empreendimentos desequilibraria o esquema de forças dos atores econômicos em prol de pessoas jurídicas com vantagens competitivas não usufruíveis por seres humanos, por definição finitos no tempo e com capacidade de investimento limitada. Assim, o controle regulatório sobre pessoas jurídicas não surgiu, em sua origem, por razões de preservação do mercado, dos preços, ou mesmo para defesa dos consumidores, mas por um fundamento inerente à igualdade, pois a mera existência das pessoas jurídicas empresariais constitui um fator desequalizador das relações econômicas ao introduzir seres desumanizados em um ambiente de acumulação de capital e técnica impossível de ser alcançado por suas contrapartes humanas, dotadas de tempo finito de vida e fadadas à responsabilização pessoal por seus atos. O mercado existe como instituição protegida nos dias de hoje desde que referido por elementos constitutivos básicos, entre eles, a concepção de se afigurar como espaço regrado de atores econômicos em igualdade de condições. O mercado é um bem jurídico a ser protegido porque decorre do direito à igualdade, mas o inverso – o de se proteger a igualdade em virtude do mercado – não é verdadeiro. O original dessa relação repousa no lado do direito à igualdade enquanto declaração constitucional inaugural da vida política em um Estado de Direito. Nessa relação, o mercado é um produto derivado do direito, ou seja, é um mercado de direito.7 6Vide JONHSTON, David Cay. The Fine Print. New York: Penguin, 2012, p. 23. 7O termo mercado de direito aqui utilizado refere-se à ideia do mercado como um produto derivado de princípios jurídico-constitucionais à semelhança da equação de teoria da constituição, em que o Estado passa a ser uma instituição apoiada na constituição: o Estado de Direito. Do mesmo modo, o mercado é uma instituição que somente pode ser aquilatada, em termos jurídicos, quando definida a partir do tecido principiológico constitucional. Outro é o significado do termo mercado(s) de direitos usual na literatura de direito urbanístico, direito ambiental e direito de recursos naturais, que avança sobre um tipo específico de mercado claramente MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 8 Como bem anota o professor de direito civil da Università La Sapienza, de Roma, Natalino Irti, sobre o caráter político-jurídico do mercado, o ordenamento jurídico do mercado gravita em torno de três princípios: artificialidade; juridicidade; e historicidade (artificialità, giuridicità e storicità). Ao refutar o naturalismo econômico, Irti reconhece no mercado uma forma definida por vontades políticas mutáveis apresentadas em formato jurídico e, como tal, não brota do acaso, da natureza; não é um locus naturalis. Ele nasce de uma configuração institucional apoiada em normas jurídicas; ele é um locus artificialis.8 A incoerência de uma economia de mercado natural foi evidenciada, entretanto, muito antes, quando Polanyi reconhecia, em seu livro mais conhecido – A Grande Transformação –, de 1944, que o mercado auto-regulável gera efeitos perniciosos, e que não somente os seres humanos e os recursos naturais exigem proteção jurídica em tais casos, mas também a própria organização capitalista da produção.9 Assim, é inquestionável que o mercado deva ser protegido, mas, ao se afirmar isso, permanece oculto o verdadeiro protagonista do cenário regulatório: o direito à igualdade de condições concorrenciais. produzido por previsões normativas e referido aos termos de: a) direitos de desenvolvimento transferíveis (MILLS, David E. Transferable development rights markets. Journal of Urban Economics 7(1), janeiro de 1980, p. 63-74), também conhecidos como direitos de desenvolvimento comercializáveis (marketable development rights, MDR) utilizados para preservação ambiental em face da expansão urbana (THORSNES, Paul; SIMONS, Gerald P. W. Letting the market preserve land: The case for a market-driven transfer of development rights program. Contemporary Economic Policy 17(2), abril de 1999, p. 256-266); e b) mercados de direitos (marchés de droit ou rights markets), usuais na literatura de mercados de compensação criados para viabilizarem outras formas de compensação por danos ambientais (KARSENTY, Alain; WEBER, Jacques. Les marchés de droit pour la gestion de l'environnement, Introduction générale. Tiers-Monde, 2004, Tomo 45, n° 177, p. 7-28; LIMA, Gabriela Garcia Batista. La compensation en droit de l’environnement: un essai de typologie. Tese de Doutorado de Co-tutela entre o UniCEUBe a Université d’Aix-Marseille. 2014). 8Vide IRTI, Natalino. L’ordine giuridico del mercato. Roma: Gius, Laterza & Figli, 2003. 9Vide POLANYI, Karl. The Great Transformation: The Political and Economic Origins of our Time. 2ª ed., Boston: Beacon Press, 2001; DALE, Gareth. Karl Polanyi: The Limits of the Market. Cambridge, UK: Polity Press, 2010. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 9 Quando da simplificação do significado da regulação, o direito à igualdade foi encoberto pelas areias do tempo, sobrevivendo somente seu corolário: a competição e sua personificação, o mercado. Por isso, a regulação não é um método de alcance da competição onde ela não exista, mas uma demanda inafastável derivada da constatação de que o próprio direito criou seres imortais que desequilibram as relações humanas de acumulação de capital, técnica e vantagens competitivas, exigindo, portanto, a regulação por princípio; não por consequência de deficiência do meio concorrencial. Deficiente, o mercado já o é por sua natureza de produto jurídico decorrente de circunstâncias situadas e datadas. Para além dessa constatação de centralidade do direito à igualdade para o Estado regulador, o ser humano somente será livre para o exercício de sua criatividade e uso de atributos de relacionamento humano quando o meio de campo inicialmente desvirtuado – ou instrumentalizado pela própria existência das regras jurídicas – for conjunturalmente ajustado perante a mutação normativa natural a qualquer sociedade política. Sem o acompanhamento conjuntural da realidade operado pelo direito regulatório, o direito transforma-se em uma instituição indomada capaz de servir a fins não previstos em sua conformação teleológica: a sua finalidade de processo de preservação da convivência social. A regulação moderna, que será definida mais adiante, é o elemento de civilização da instituição jurídica na disciplina das condições do jogo dos atores econômicos, quando dita instituição jurídica passou a ser dirigida por forças germinadas na placa de Petri do próprio mundo jurídico: a empresa; a associação; a fundação, enfim, a pessoa jurídica com pretensão de atuação econômica. A regulação é o acompanhamento do crescimento das culturas lá germinadas. Nessa placa de Petri, que fornece o ambiente artificial de incubação de novos seres imortais, as regras competitivas são definidas por fronteiras que necessitam da dinâmica regulatória para que não estrangulem os seres que justificaram as novas criaturas: seus criadores, os titulares dos direitos fundamentais humanos, que continuam figurando como norte valorativo de todo o sistema jurídico-político. A regulação é uma necessidade decorrente do sistema jurídico moderno para preservação de sua finalidade – o criador, o ser humano – e somente mediatamente sua criatura – o ser jurídico e o mercado. Atente-se, todavia, desde já para o fato de que a centralidade do direito à igualdade de condições concorrenciais para o Estado regulador não significa que o fundamento da regulação se resuma a isso. Para além do direito à igualdade, o conjunto dos direitos fundamentais apresenta-se como a razão de ser da regulação. O direito à dignidade humana, por exemplo, justifica a eliminação de mercados, como a vedação de comercialização de tecidos e órgãos humanos experimentada na quase totalidade do mundo civilizado. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 10 Por óbvio, o direito à igualdade de condições concorrenciais não opera efeitos em tais espaços e não por isso cogita-se dizer que se trata de um ambiente desregulado. A regulação, nesse caso, justifica-se com fundamento em outro direito fundamental igualmente relevante no esquema constitucional de paridade de princípios jurídicos. Por ora, é relevante registrar que, enquanto, na Administração Pública burocrática, a garantia dos direitos sociais é remetida à contratação direta de servidores públicos atuantes nos diversos ramos das atividades econômicas, na Administração Pública gerencial do Estado Regulador, o mercado é tomado como instrumento para consecução dos direitos fundamentais mediante acompanhamento conjuntural e ponderado de custos, infraestrutura, serviços, bens públicos, tarifas, áreas de cobertura, dentre outros componentes das opções de investimento de um setor regulado. O primeiro pressuposto do Estado Regulador é o de que a regulação tem por finalidade preeminente a proteção dos direitos fundamentais. 1.2.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS OBJETIVADOS E ESTADO REGULADOR O século XX significou a afirmação dos direitos individuais como instituições jurídicas dependentes do contexto socioeconômico; significou, em outras palavras, a tentativa de solução do conflito entre a percepção dos direitos, de um lado, como entidades ideais e impalpáveis – liberdades abstratas – e, de outro lado, como configurações tangíveis resultantes de atuação direta estatal conformadora dos direitos – liberdades concretas. O século XX representou o momento teórico de afirmação das garantias constitucionais dos direitos fundamentais, desde que se vulgarizou o entendimento da insuficiência de enumeração de direitos para proteção dos seus titulares por intermédio da teoria das garantias institucionais.10 Fala-se, portanto, do século de apresentação do Estado como um componente essencial na definição do conteúdo dos direitos fundamentais mediante enraizamento do conceito de serviço público e da ampliação concreta do rol de direitos dos cidadãos. 10Vide, de nossa autoria, Interpretação constitucional e as garantias institucionais dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 1999. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 11 Em que medida tais conjecturas se relacionam com o conceito de regulação? Na medida em que o Estado Regulador se apropria, como seu pressuposto, da ideia de que o papel interventor estatal, inscrito na regulação de setores assumidos como de interesse público, legitima-se por sua essencialidade (do Estado) na concretização dos direitos a eles relacionados (aos setores regulados); apropria-se da indissociabilidade entre o enunciado abstrato de um direito subjetivo e o contexto socioeconômico e político, enfim, cultural, de sua fruição. O pressuposto do Estado Regulador, portanto, é a compreensão da intervenção estatal como garantia de preservação das prestações materiais essenciais à fruição dos direitos fundamentais, sejam elas prestações de serviços públicos ou privados, sobre as quais se aplica a insígnia da regulação, ou sejam elas outros tipos de atividades, tais como o exercício do poder de polícia, atividades de fomento e prestações positivas tradicionais de índole concreta e normativa. O direito subjetivo somente pode ser compreendido atualmente se encarado em comunhão com sua faceta objetiva, que repousa na determinação de conteúdo a partir da dinâmica do ordenamento jurídico em meio às potencialidades concretas criadas por políticas públicas, por ordens normativas, por investimento empresarial, enfim, por acompanhamento conjuntural do desenvolvimento de um setor de atividades de interesse público como, por exemplo, os setores de saúde, educação, recursos hídricos, energia, telecomunicações e transporte. A plena fruição do direito à saúde em suas diversas dimensões de devido diagnóstico, prognóstico e tratamento médico encontra-se intrinsecamente relacionada com as disposições concretas de financiamento da educação universitária médica e de áreas afins, de financiamento das pesquisas universitárias relativas ao desenvolvimento de equipamentos e métodos laboratoriais, de construção de uma rede de energia elétrica confiável para preservação dos equipamentos auxiliares, de edificação de redes nacionais e internacionais de banda larga para telemedicina, do devido equacionamento e acompanhamento da liquidez de sistemas de saúde suplementar, enfim, de uma lista abrangente de atuação estatal e não-estatal concertada segundouma batuta unificada na figura interventora, mesmo que indireta, do Estado (não do governo) como espaço público de construção de soluções. A complexidade alcançada na determinação de conteúdo jurídico dos direitos fundamentais revela que a especificação de dito conteúdo exige a análise do dispositivo normativo, como cristalização cultural que é, associado aos influxos de transformações das ideias MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 12 legislativas, jurisprudenciais, sociais, enfim, da realidade cultural circundante. A determinação de sentido normativo deixou de ser remetida, todavia, ao ambiente puramente estrutural do fenômeno jurídico11; deixou de procurar extrair de um dispositivo escrito ou doutro elemento cultural cristalizado – jurisprudência, doutrina, costumes – todo o significado regrador da realidade; deixou de crer na possibilidade de alcance de um único significado estático frente a uma realidade dinâmica e multifacetada. Em outras palavras, o conteúdo normativo encontra-se claramente remetido a decisões de normatização secundária, significando que o adensamento do conteúdo dos direitos fundamentais depende, hoje, em grande medida, de decisões estatais influentes sobre os setores tidos como essenciais ao desenvolvimento socioeconômico do país e o fenômeno da regulação ocupa posição privilegiada em tal espaço decisório. 1.2.3 O ESTADO ADMINISTRATIVO E A SEPARAÇÃO DE PODERES Mas não basta referir-se à causa que justificou o Estado Regulador, pois ela poderia ter resultado em diversas consequências, que não a de valorização da regulação, mediante reforço, por exemplo, da atividade jurisdicional, ao invés de se enfatizar a normatização e administração conjuntural de atividades de relevância social. Daí decorre que outro pressuposto do Estado Regulador encontra-se na identificação mesma do Estado Administrativo, em que as noções de profissionalismo e expertise tradicionalmente aplicadas aos negócios privados são adaptadas ao conceito de expertise na atividade de governar com a conotação de permanência, treinamento e especialização de funções. O início do século XX, mais precisamente a partir da Primeira Guerra Mundial, presenciou a transformação da Administração Pública em um substantivo, deixando de ser percebida como uma atividade periférica 11O direito não mais se restringe a ordenar situações estruturais, voltando sua atenção para a “regulação de situações conjunturais, o que impõe sejam as normas dotadas de flexibilidade e estejam sujeitas a contínua revisibilidade” (GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 3a ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 23. Conferir também: p. 86; 88-89; 136-139). PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 13 para se apresentar como uma ciência que combina e se utiliza de muitas especialidades, apresentando-se como o “negócio mestre de todos os outros”12 ao subsumir e sintetizar os demais. A teoria da separação de poderes constituiu terra fértil à formação da teoria do Estado Administrativo. Inicialmente assentada em afirmações que rechaçavam o poder absoluto do monarca, mediante a ideia de uma “monarquia limitada”13 e funcional, no sentido de que “reis são feitos para o reino, não reinos para o rei”14, a ideia da separação, desde os escritos de Bolingbroke de 1748, vem amenizada na literatura clássica pela referência ao equilíbrio de poderes – equilibrium of powers, reciprocal restrictions, reciprocal control, reciprocal delay and detention –, exigindo, com isso, a interpenetração entre os poderes. Nem mesmo é necessário remeter-se a clássicos da literatura utópica – A República, de Platão; Utopia, de Thomas Morus; Oceana, de James Harrington – para que se afirme a interpenetração de funções na divisão dos poderes. A própria classificação de Montesquieu das atividades conjunturais como próprias ao Poder Executivo demonstra como a divisão tripartite de poderes e funções não conseguia abranger todas as dimensões de atividades estatais.15 Igualmente perplexo pela insuficiência da referência aos três poderes como abrangentes de todas as atividades estatais, mas preocupado com a manifestação jurídica da normatização infralegal, Eros Grau16 diferencia normas primárias e secundárias, procurando enquadrar em um conceito mais amplo de atividade normativa as atividades conjunturais de administração das leis antecipadas há mais de um século em Goodnow.17 12WALDO, Dwight. The Administrative State: A Study of the Political Theory of American Public Administration. New Brunswick (USA): Transaction Publishers, 2007, p. 93. 13BOLINGBROKE, Henry St John, Visconde de. The Idea of a Patriot King. p. 381. In: The Works of Lord Bolingbroke. Philadelphia: Carey and Hart, 1841, p. 372- 429. 14Idem, p. 380. 15MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la Brède et de. O espírito das leis. 2a ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995. 16Vide GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2000. 17A noção de expressão primária e secundária da função política fora aprofundada por Goodnow, em 1900, quando ele identificou a presença da função política em dois graus: o primário, de decisão sobre a vontade do Estado; e secundário, de MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 14 A noção de Estado Administrativo nasce em meio à constatação de insuficiência do modelo tripartite de separação de poderes para afirmar que a Administração Pública, aí incluída a jurisdição sob o viés tradicional de separação de poderes, situa-se em um espaço de íntima relação e harmonia entre a administração e a política. Trata-se de uma teoria que se nutre da assertiva já presente em Montesquieu de que os poderes contêm várias funções para que se impeça o domínio de uns pelos outros. Da mesma forma que a atividade executiva, nos idos da institucionalização da separação de poderes pelos framers da Constituição dos Estados Unidos da América, era vista como inscrita tanto no Executivo quanto no Judiciário, quando se esperava que os juízes servissem como “brotos nascidos do terreno executivo”18, formando uma aliança defensiva contra o Congresso e participando ativamente da execução das leis19, a teoria administrativista do século XX voltou seus olhos para inscrever ao lado da jurisdição uma atividade essencialmente distinta da atividade executiva: a atividade de administração das leis, que teve sua aparição institucional a partir de 1883, nos Estados Unidos da América, com o surgimento das agências independentes – independent establishments – e, no Brasil, tanto com a absorção da concepção autárquica de origem italiana da primeira metade do século XX, quanto pelo movimento mais visível de criação dos órgãos reguladores da segunda metade da década de 1990. É bem verdade que a concepção do Estado Administrativo foi fomentada em meio ao movimento reformista estadunidense de fortalecimento do Poder Executivo em detrimento da então considerada invasão das atividades administrativas por parte do Legislativo e do Judiciário, mas isso não afasta a consideração de que o Estado Administrativo consistiu em um movimento crítico quanto à imprecisão institucional da administração das leis. execução da vontade do Estado. Vide: GOODNOW, F. J. Politics and Administration. New York: The Macmillan Co., 1900. 18MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. The Federalist Papers. New York: New American Library, 1961 (1787-1788, Federalist nº 47), p. 303. 19Vide SCIGLIANO, Robert. The Two Executives: The President and the Supreme Court. p. 277-293. In: LAWLER, Peter A.; SCHAEFER, Robert M. (org.). The American Experiment: Essays on the Theory and Practice of Liberty. Lanham, MD: Rowman and Littlefield, 1994, p. 285-286. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 15 Sob o enfoque do Estado Administrativo, a percepção de alastramento das funções entre os poderes estatais implica também a compreensãoda função administrativa como uma realidade equidistante das clássicas funções estatais. Trata-se, portanto, da progressiva institucionalização da administração como algo ligeiramente distinto das funções executivas, legislativas e jurisdicionais. A grande novidade da teoria administrativista do século XX está justamente na identificação da administração estatal como algo distinto das funções executivas presidenciais de comando supremo das forças armadas e aplicação das leis. O Estado Administrativo expressa uma função separada das demais – a administração das leis – como uma atividade intermediária entre as funções clássicas executivas, legislativas e jurisdicionais: um “reino de expertise” imune à influência política direta.20 A identidade da atividade propriamente administrativa como distinta da executiva, judicial e legislativa explica, por exemplo, a presença inafastável dos “poderes quase legislativos e quase jurisdicionais” (quasi- legislative e quasi-judicial power) na literatura estadunidense sobre as agências reguladoras, bem como a institucionalização das agências como órgãos independentes do Executivo e a consideração da administração como espécie da atividade de execução da vontade do Estado, ao lado da atividade executiva e da jurisdicional, mas em oposição à atividade de decisão da política – a legislativa. As agências reguladoras encarnam, na tradição do Estado Administrativo estadunidense, a afirmação de uma estrutura estatal responsável pela administração das leis como algo essencialmente distinto da formulação das leis e, por isso, definida por exclusão, ou seja, trata-se da regulação entendida como a administração das leis que não se confunde com a formulação da política pública correspondente, o que não significa dizer que a administração das leis estaria despida de conteúdo normativo. A teoria administrativista que cunhou o conceito de Estado Administrativo, no entanto, não vê uma diferença essencial entre política e administração. Pelo contrário, são fases de um mesmo processo administrativo, que define um Estado em que a separação entre política e 20Vide SCIGLIANO, Robert. The Two Executives: The President and the Supreme Court. p. 277-293. In: LAWLER, Peter A.; SCHAEFER, Robert M. (org.). The American Experiment: Essays on the Theory and Practice of Liberty. Lanham, MD: Rowman and Littlefield, 1994, p. 111-117. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 16 administração obedece a uma finalidade utilitária de preservação de espaço para a especialização funcional. O Estado Administrativo é assim definido como um Estado dotado de um processo administrativo único, que permeia todas as funções governamentais, abarcando a política e a administração propriamente dita. Trata-se, portanto, de um Estado que encarna como função primeira o planejamento mestre de toda a economia, presentes duas funções primordiais: a de planejamento e execução administrativa, de um lado; e a de veto político, de outro.21 Não é difícil de se enxergar a íntima conexão dessa concepção de Estado com a valorização dos órgãos reguladores de hoje, quando, em virtude da amplitude, dimensão e importância do poder regulamentar das agências reguladoras, estas são percebidas como um quarto poder, que sintetiza o governo moderno como um governo administrativo.22 1.2.4 LEGITIMIDADE NO ESTADO REGULADOR O Estado burocrático, planejador, eminentemente administrativo, enquanto subversão da clássica separação dos poderes, embora sofra com a indignação política produto do aparente menosprezo da função legislativa, detém muito maior aderência à realidade de produção do poder regulatório do que o ideal de separação tripartite de poderes, que é útil enquanto permite a preservação de uma estrutura representativa de índole formal. Teóricos do direito constitucional e administrativo têm se debatido com o tema e com a diferenciação entre política pública e regulação. Dito Estado Administrativo – mais precisamente, sua teoria – não se restringe, todavia, ao questionamento das bases filosóficas da estrutura do poder instituído, ou seja, à reestruturação dos poderes em duas funções, em que a função administrativa resta agigantada; ele também questiona as bases filosóficas da legitimidade do poder, ou seja, como ocorre a interação entre a estrutura burocrática estatal e sua justificação democrática perante o titular do poder político. 21Vide GULICK, Luther; LYNDALL, Urwick (coord.). Papers on the Science of Administration. New York: Institute of Public Administration, 1937. 22Vide CROLEY, Steven P. Regulation and Public Interests: The Possibility of Good Regulatory Government. Princeton: Princeton University Press, 2008, p. 14. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 17 Nesse aspecto, já não opera efeitos ter-se em conta a aderência entre a prática do poder político e sua teoria embasadora, pois a questão do fundamento de legitimidade precede à institucionalização do poder político no Estado. Pode-se sustentar, portanto, o Estado Administrativo como um Estado estruturado em duas funções primordiais de planejamento/execução administrativa e delimitação política, e, ao mesmo tempo, questioná-lo quanto ao seu pressuposto de exaltação da figura do administrador como seu cerne de legitimidade política. Assim, outro pressuposto do Estado Regulador está na questão do modus operandi de manifestação da legitimidade política. É certo que o Estado Regulador, ao beber da estruturação administrativa do Estado Administrativo, do engrandecimento da figura burocrática, da expertise técnica e da concentração de funções estatais na etapa de planejamento e execução das leis, amesquinha a antes dominante função legislativa de canalização da legitimidade política e, com isso, lança a questão fundamental sobre como a agora predominante função administrativa do Estado, indiferenciada da função política – ou, sob outro enfoque, tendo avançado sobre ela –, angaria legitimidade política. A resposta a essa questão foi alvo de preocupação dos clássicos e se alastra por toda a história das ideias políticas inscrita na questão de quem deve governar. Se para Bakunin23 e Kropotkin24, a resposta a essa pergunta é a de que ninguém deve governar, para uma tradição muito mais abrangente e recorrente na filosofia política, os governantes legítimos são os mais variados: para Platão, são os guardiães dotados de inteligência, capacidade e prestatividade25; para Francis Bacon, são os filósofos26; para Augusto Comte, são os homens de ciência27; para 23Vide BAKUNIN, Mikhail Aleksandrovich. Statism and Anarchy. Trad. Marshall Sharon Shatz, Cambridge: Cambridge University Press, 2002. 24Vide KROPOTKIN, Peter Alekseevich. Anarchism: a collection of revolutionary writings. Mineola (N.Y.): Dover Publications, 2002. 25“Devemos selecionar dentre aqueles homens [guardiães e auxiliares] uns poucos para serem governantes (...)” (GROTE, George (org.). Plato and the other companions of Socrates. Vol. III, London: John Murray, 1865, p. 56). 26Vide ANDERSON, Fulton H. (org.). Francis Bacon: The New Organon and Related Writings. Indianapolis: The Boobs-Merrill Company, 1960. 27“(...) o poder arbitrário, sendo exercido pela própria sociedade, geraria as maiores inconveniências (...) [A lei suprema da razão] exclui igualmente a arbitrariedade da teologia, os direitos divinos dos reis, a arbitrariedade da metafísica e a soberania do povo.” (LENZER, Gertrud (org.). Auguste Comte and Positivism: The Essential Writings. 5ª ed., New Brunswick (N.J.): Transaction, 2009, p. 49-50). MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 18 Bossuet, são os monarcas dotados de autoridade hereditária, sagrada e absoluta28; para Filmer, são outros monarcas com assento sobre direitos patriarcais29; para Locke, são aqueles responsáveis pela proteção dos direitos naturais à vida – inclusive à saúde –, liberdade e propriedade, mediante o alcance da paz e prosperidade viasupremacia de um poder legislativo limitado pelo bem comum da sociedade30; para Burke, são aqueles cujo juízo e indústria estão dedicados à discussão política31; para Maquiavel, são aqueles que conseguem ascender ao poder e reformar as instituições para engrandecimento do poder estatal32; para Marx, o proletariado33; para Schmitt, a figura institucional da unidade simbólica do povo34; para Kelsen, a Corte de Constitucionalidade é a responsável pela parcela de decisão política sobre o significado das decisões fundamentais inscritas na constituição de um país35; para os teóricos da democracia representativa 28Vide RILEY, Patrick (org.). Bossuet: Politics Drawn from Holy Scripture. Cambridge: University of Cambridge Press, 1999. 29Vide SOMMERVILLE, Jóhann P. (org.). Filmer: Patriarcha and Other Writings. Cambridge: University of Cambridge Press, 2000. 30Vide LOCKE, John. Two Treatises of Government. London: Whitmore and Fenn, 1821. 31Vide BROWNE, Stephen H. Speech to the Electors of Bristol: The Space of Rethorical Virtue, p. 67-81. In: Edmund Burke and the Discourse of Virtue. Tuscaloosa: The University of Alabama Press, 1993. 32MACHIAVELLI, Niccolò. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio: Discorsi. Trad. Sérgio Bath, 3ª ed., Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994. 33O uso da expressão Estado Trabalhador – workers’ state – é significativa para a presente análise, quando Marx responde à crítica de Bakunin a um governo do proletariado: “Ele [Bakunin] deveria ter se perguntado: que forma podem assumir as funções administrativas em um Estado trabalhador, se lhe agrada chamá-lo assim?” (McLELLAN, David. Karl Marx: Selected Writings. Oxford: Oxford University Press, 1982, p. 563). 34Vide SCHMITT, Carl. Sobre el parlamentarismo. Trad. Thies Nelsson e Rosa Grueso, 2ª ed., Madrid: Editorial TECNOS, 1996. 35Vide KELSEN, Hans. ¿Quién debe ser el defensor de la Constitución? Trad. Roberto J. Brie, 2ª ed., Madrid: Editorial TECNOS, 1999. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 19 liberal, é o parlamento36; para Hannah Arendt, é o homem criativo livre das necessidades da vida, mas preso à necessidade de ação política37. Os teóricos do Estado Administrativo também têm sua fórmula: a legitimidade de governar recai sobre o administrador.38 Nesse aspecto, os caminhos do Estado Administrativo e do Estado Regulador se bifurcam, à medida que se pode cogitar do Estado Regulador com base nas mais diversas explicações de legitimidade, muito embora o reforço da relação entre legitimidade e expertise técnica seja bem-vinda a pensadores daquela tradição do Estado Administrativo. Eis o divisor de águas entre a noção de Estado Administrativo e Estado Regulador: o princípio de legitimidade é distinto para cada um deles. Enquanto os teóricos do Estado Administrativo adotam uma visão unilateral e reducionista de legitimidade assentada sobre a figura do administrador – crítica que se estende às demais propostas reducionistas de legitimidade acima resumidas –, o Estado Regulador contribui para o reposicionamento da questão da legitimidade democrática ao reconhecer no regulado não mais um ser subserviente alheio ou utente de serviços, mas verdadeiro partícipe necessário da decisão política. Por regulado, deve- se entender todo player do ambiente regulatório, independentemente das fronteiras nacionais. Por regulador, deve-se entender a instituição regulatória, como ambiente de manifestação dos poderes regulatórios de administração das leis. Nessa toada, não é incomum relacionar-se o Estado Regulador às tradições de participação política da virtude política39 e do republicanismo40 em um movimento de despersonalização da legitimidade, que deixa de ser referida ao guardião, ao filósofoso, ao estrategista, ao cientista, ao monarca, ao proletariado, ao Führer, ou mesmo ao 36Vide GUIZOT, M. Histoire des origines de gouvernement représentatif en Europe. Tomo I. Bruxelles: Wouters, 1851. 37Vide ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2001. 38Vide WALDO, Dwight. Op. cit., p. 89-103. 39Vide ARANHA, M. I. Políticas públicas comparadas de telecomunicações (Brasil-EUA). Tese de Doutorado: CEPPAC (UnB), 2005. 40Vide OLIVEIRA, Artur Coimbra de. Republicanismo, instituições e a ingestão de normas internacionais por setores regulados brasileiros. Dissertação de Mestrado: Faculdade de Direito (UnB), 2011. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 20 administrador, para ser referida à institucionalização da dimensão política do ser. Assim, os pressupostos do Estado Regulador gravitam entre as percepções da regulação como o reino da expertise, passando pela concepção restritiva do administrador como síntese de legitimidade e de poderes estatais distribuídos entre a administração das leis e o poder de veto político e, finalmente, a compreensão informadora de fundo ao Estado Regulador da regulação como espaço público ou como institucionalização de virtude política e republicanismo. 1.2.5 PODER REGULAMENTAR NA TRADIÇÃO FRANCESA O agigantamento da função administrativa não foi, todavia, um acontecimento isolado da tradição anglo-americana; ele granjeou espaço significativo na doutrina administrativista francesa, que tanto influenciou o direito administrativo brasileiro. Foram dois os momentos de afirmação do direito administrativo francês como um direito especial da administração pública: a afirmação da justiça administrativa como uma jurisdição com peculiaridades tais de celeridade e amplitude que exigiam dela não só um método próprio, como também que se situasse no ceio da própria administração como algo distinto da justiça comum; e a ampliação do poder regulamentar. O primeiro momento de afirmação do direito administrativo clássico na França concentrou-se na identidade institucional da justiça administrativa, que dominou a Restauração francesa, em especial após a Carta Constitucional de 1814 e que se apoiava nos fundadores do direito administrativo clássico francês – Gérando41, Macarel42 e Cormenin43. A diferença entre o sistema então inaugurado do contencioso administrativo na França em oposição à opção brasileira pelo sistema de jurisdição una impede, em grande medida, que as distinções doutrinárias e jurisprudenciais de então operem efeitos na prática jurídica brasileira. 41Vide GÉRANDO, Joseph-Marie de. Institutions de Droit Administratif. Paris: Librairie de la Cour de Cassation, 1829. 42Vide MACAREL, Louis Antoine. Éléments de Droit Politique. Paris: Librairie de la Cour de Cassation, 1833. 43Vide CORMENIN, Barão de. Questions de Droit Administratif. Paris: Chez M. Ridler, 1822. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 21 Influentes foram, nesse período, as considerações doutrinárias que não dissessem respeito à divisão de poderes. O segundo momento pode ser didaticamente situado, embora não restrito à instauração do 2º Império, com Napoleão III, no bojo da Constituição francesa de 1852, que implicou o declínio do primado da teoria da separação dos poderes, questionando-se a onipotência do Legislativo, mediante exaltação da autoridade do Executivo.44 Ambientada na Constituição de 1852 e na criação do Tribunal de Conflitos, em 1849, para julgamento de conflitos de competência entre a justiça administrativa e a comum, a doutrina administrativista passou a evidenciar a expansão de fato do poder regulamentar tanto devido a mandatos constitucionais, quanto em virtude de delegação legislativa, impondo o reconhecimento de que as disposições regulamentares decorreriam da mesma fonte das disposições legislativas, ambas apoiadas no poder regulador da sociedade, fazendo-se dos “regulamentos administrativos (...) em essência assemelhados às obras legislativas”45. No final do século XIX e início do XX, parcela da doutrina administrativista francesa reconhecia a inafastável constatação de que, mesmo com a crescente disciplina constitucionallimitadora do poder regulamentar, este, na prática, bebia do mesmo material das leis formais. Confrontado-se com essa constatação, Laferrière46 dividiu o poder regulamentar entre regulamentos destinados à execução das leis – executórios –, de um lado, e regulamentos de administração pública, de outro, estes últimos voltados ao exercício de mandato entregue expressamente pelo Legislativo ao Executivo para, mediante o uso do poder regulamentar, complementar e desenvolver disposições pertinentes a determinadas matérias. Os regulamentos em número crescente na prática institucional francesa e independentemente da forma de governo, fosse ela o império, a monarquia ou a república, seriam manifestações cada vez menos enquadráveis na definição de meras execuções de leis. Divergindo de 44Vide CASTRO, Marcus Faro de. Violência, medo e confiança: do governo misto à separação dos poderes. In: Revista Forense 382: 157-180, novembro/dezembro de 2005. 45TEIXEIRA, Victor Cravo. A trajetória do poder regulamentar no pensamento político francês e seus reflexos no Brasil: um olhar para além dos manuais jurídicos. Dissertação de Mestrado: Faculdade de Direito (UnB), 2012, p. 102. 46Vide LAFERRIÈRE, Édouard. Traité de la Jurisdiction Administrative et des Recours Contentieux. Tomo I. Paris: Berger-Levrault et Cie, 1896. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 22 Hauriou47, que diferenciava materialmente leis e regulamentos, Duguit entendia que tais regulamentos com força de lei obrigam, com a mesma força das leis formais, “os particulares, os administradores e os juízes”48, concluindo que os fatos são mais fortes que as constituições. Contra a concepção de que as leis formais trariam princípios gerais a serem detalhados pelos regulamentos, Moreau, por sua vez, define os regulamentos como regras, só que “impostas por uma autoridade distinta do Legislativo”49. Tais concepções ampliativas do poder regulamentar sofreram críticas de autores que aderiam a uma separação rígida entre leis e regulamentos, como Jèze50, Barthélemy e o já citado Hauriou, mas o corpo de doutrina favorável ao reconhecimento do poder regulamentar como algo mais do que a simples execução e detalhamento de leis tinha a seu favor a prática institucional francesa: o argumento de que a prática institucional do poder regulamentar nunca teria, de fato, respeitado uma pretensa separação entre a lei e o regulamento. É nessa linha de avaliação das condições concretas de normatização que parcela da doutrina administrativista brasileira questiona a viabilidade do Legislativo exercer o gerenciamento normativo da realidade apoiada na insuficiência de um modelo tradicional de separação de poderes. A partir dessa nova visão muito influenciada por demandas políticas concretas de reestruturação do Estado brasileiro, nutrindo-se e nutrindo consultorias internacionais de privatizações setoriais da segunda metade da década de 1990, um novo direito administrativo passou a encarar de frente a realidade de maior intervencionismo estatal sob a forma de planejamento e gerenciamento, mediante “contínua edição e substituição de normas”51 decorrente não só do direito, quanto das condições concretas do setor regulado: foi-se o tempo das sínteses de direito administrativo descoladas da realidade setorial. 47Vide HAURIOU, Maurice. Précis de Droit Administratif et de Droit Public Général. Paris: L. Larose, 1900. 48DUGUIT, Léon. Les transformations du Droit Public. Paris: Librairie Armand Colin, 1913, p. 88. 49MOREAU, Félix. Le Règlement Administratif. Étude Théorique et Pratique de Droit Public Français. Paris: Albert Fontemoing, 1902, p. 2. 50Vide JÈZE, Gaston. Le Réglement Administratif. In: Revue Générale d’Administration, p. 6-22, maio de 1902. 51SUNDFELD, Carlos Ari. Serviços públicos e regulação estatal, p. 17-38. In: Idem (org.). Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 30. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 23 Por isso, também se insere no rol de pressupostos do Estado Regulador o gerenciamento normativo da realidade regulada via administração das leis, para plena aplicação do princípio do due process of law, tão bem traduzido por Miguel Reale como a devida atualização do direito.52 1.2.6 SITUANDO O CONCEITO DE ESTADO SUBSIDIÁRIO Até o momento, foram identificados os principais pressupostos do Estado Regulador inscritos, agora de trás para frente, na afirmação de um Estado eminentemente interventor sobre realidades setoriais complexas, de um Estado em que a administração das leis, como planejamento e gerenciamento contínuo, engrandece a função administrativa, de um Estado cuja expressão de legitimidade se desloca para a figura do administrador ou, alternativamente, para o processo ou para o espaço público regulador, de um Estado cujo conteúdo normativo dos direitos depende de sua conformação objetiva em ambientes regulados, de um Estado que internaliza o mercado em sua apresentação como produto dos direitos fundamentais. Dado esse cenário teórico, onde se situa a noção tão em voga de Estado Subsidiário? Entendido o Estado Subsidiário como uma opção societária sobre o nível de interferência estatal na esfera privada, ele se apresenta resumido na máxima: o governo deve fazer pelos cidadãos somente aquilo que eles não puderem fazer por si próprios, e nada mais. Trata-se, portanto, de noção que engloba ditames de orientação política de predomínio da iniciativa privada sobre a pública, de consequente limitação da atuação estatal, mas, ao mesmo tempo, de atribuição ao Estado da função de fomento, coordenação e fiscalização da iniciativa privada para potencialização dos negócios dos particulares, ou mesmo o incremento de parcerias público-privadas para o fim de subsídio à iniciativa privada53. Enquanto mera orientação política de dosagem cuidadosa do nível de interferência estatal na economia, o princípio da subsidiariedade 52REALE, Miguel. Revogação e anulamento do ato administrativo. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 71. 53Vide DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. 3ª ed., São Paulo: Atlas, p. 25. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 24 não afirma, nem infirma o Estado Regulador. Dito princípio pode reger o discurso de um chefe de governo com pretensões de expansão da regulação estatal, sem que isso afete o nível de interferência na economia, desde que dita interferência se justifique para o fim de preservação das regras equânimes de interação negocial privada em determinado setor regulado, ou seja, desde que se justifique para o fim de preservação do ambiente mercadológico pertinente. A desconexão entre o princípio da subsidiariedade e o Estado Regulador exsurge, contudo, quando ao conceito de Estado Subsidiário agrega-se a ideia de que os direitos fundamentais individuais são melhor garantidos pela ausência do Estado, o que contraria o pressuposto de que a atuação estatal reguladora é essencial à conexão entre os riscos da atividade econômica e a sociedade política, que pretende ter sua voz presente na constante reorientação política para preservação dos direitos fundamentais de todos os envolvidos, enquanto ameaçados por distorções produzidas por um mercado livre. Portanto, quando o Estado Subsidiário deixa de servir como guia político de dosagem da interferência estatal, mediante o princípio da subsidiariedade, para se apresentar com formatos totalizantes de ideal de eliminação da atuação estatal, somente aí dito Estado Subsidiário deixa de contribuir para a noção de Estado Regulador e passa a miná-la. Assim entendido o princípio da subsidiariedade, pode-se acrescentá-lo à listagem de pressupostos do Estado Regulador, que sinteticamente são: a) o Estado garante dos direitos fundamentais, inclusive a igualdade de condições competitivas; b) o Estado interventor; c) o Estado Administrativo,por sua apresentação de agigantamento da função de planejamento e gerenciamento das leis; d) o Estado legitimado na figura do administrador, do processo de gerenciamento normativo da realidade ou do espaço público regulador; e) o Estado de direitos dependentes de sua conformação objetiva em ambientes regulados; f) o Estado Subsidiário, em sua apresentação de potencialização da iniciativa privada via funções de fomento, coordenação e fiscalização de setores relevantes. 1.2.7 O ESTADO EMPREENDEDOR Uma nova dimensão do Estado Regulador vem revelada no conceito de Estado Empreendedor (Entrepreneurial State). Mazzucato resgata PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 25 esse conceito em livro de mesmo nome54 para evidenciar a função estatal de motor dinâmico da economia. O Estado Empreendedor significa, em síntese, negar o lugar comum de que o Estado deve se restringir à correção de falhas de mercado, muito ao gosto dos adeptos do Estado Subsidiário, que aceitam a atuação estatal somente nos casos em que o retorno social do investimento seja maior do que o retorno privado, como tem sido reconhecido para a atividade de limpeza de poluição – externalidades negativas não incluídas nos custos das empresas – e para o financiamento da pesquisa de base – benefício público de difícil apropriação privada. De fato, a abertura das contas governamentais em países insuspeitos para os adeptos do Estado Subsidiário, como os Estados Unidos, mostra que menos de um quarto dos gastos em pesquisa e desenvolvimento justificam-se pela lógica do maior retorno social do investimento frente ao retorno privado.55 Ou seja, o investimento público vai muito além da receita do Estado Subsidiário, fazendo do Estado um investidor de risco em atividades inovadoras. Ainda, o Estado Empreendedor é um Estado confiante de que ele detém a missão de criar algo novo na economia via expertise específica setorial e tecnológica, agregando talentos e gerando foco em projetos inovadores. O caso histórico dos investimentos do Departamento de Defesa norte-americano no surgimento da internet via DARPA e a experiência bem mais recente de liderança de investimentos públicos em energia limpa nos Estados Unidos, via ARPA-E, são exemplos representativos desse formato de Estado ainda tão pouco compreendido entre nós. O Estado Empreendedor, assim, é um Estado intervencionista no tocante à inovação, que não se rende à imagem que comumente é vendida de que o Estado seria uma versão ineficiente do setor privado. Ele atua segundo uma visão de mundo inexistente no setor privado porque parte do interesse público em dinamizar a economia como um todo. Não se trata, simplesmente, de se retirar o risco do setor privado, como um Estado mínimo, ou mesmo subsidiário, defendem, mas de avaliar o espaço de risco para ativamente redirecionar esforços e reconfigurar o espaço econômico rumo à inovação, à criação de algo novo, à definição de rumo que não mimique os interesses privados, e.g., via meras isenções tributárias. 54Vide MAZZUCATO, Mariana. The Entrepreneurial State: Debunking Public vs. Private Sector Myths. London: Anthem Press, 2014. 55Vide MOWERY, David C. Military R&D and Innovation. In: HALL, B. H.; ROSENBERG, N. Handbook of the Economics of Innovation. Vol. 2, Amsterdam: North-Holland, 2010, p. 1.219-1.256. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 26 Portanto, o Estado Empreendedor significa efetiva institucionalização da inovação. Ele é, de certo modo, uma atualização do keynesianismo, em que o desenvolvimento de tecnologias financiadas pelo Estado compõe uma fase necessária da indústria e do desenvolvimento nacional. O diferencial do Estado Empreendedor frente ao keynesianismo clássico está, entretanto, no fato de que aquele não se contenta com o incentivo em momentos de necessidade, mas reconhece que a necessidade de empreendedorismo estatal é permanente e que cada passo dado em investimentos de risco deve garantir algum retorno do investimento estatal para que este persista em sua essencialidade. Até aqui, descreveu-se o significado do Estado Empreendedor como aquele pautado pela ideia de sociedade de risco, pela institucionalização da inovação, pela essencialidade do investimento planejado e desbravador de novos mercados por parte do Estado, e sua natureza exclusiva e insubstituível pela iniciativa privada. Persiste, no entanto, a questão fundamental sobre quais são as características comuns aos Estados Regulador e Empreendedor. Enquanto, no Estado Regulador, o mantra é o dinamismo e a alteração conjuntural nas dimensões geral, regional e setorial da economia, no Estado Empreendedor, ele se assenta no dinamismo e alteração conjuntural para a inovação. Os dois conceitos perseguem o mesmo método de intervenção, embora o Estado Empreendedor se concentre em um objetivo específico. Ambos demandam, todavia, certeza e estabilidade de políticas públicas e são descrentes da assertiva de que o mundo econômico existe em apartado do Estado, ou seja, ambos apostam no papel indispensável do Estado na economia. Para o Estado Empreendedor, dita intervenção se justifica para o avanço da própria economia, enquanto para o Estado Regulador, a intervenção tem por base os direitos fundamentais, inclusive os econômicos. Ambas as concepções de Estado rejeitam o mito da oposição entre o público e o privado. A resposta totalitária à questão sobre a quem se deve privilegiar para obtenção do desenvolvimento econômico é negada por ambos os Estados. Enquanto para alguns, a resposta do desenvolvimento econômico reside na iniciativa privada e, para outros, na intervenção estatal, para os Estados Empreendedor e Regulador, ela reside na atuação consentânea, na indispensabilidade dos dois pólos da equação, que, ao fim e ao cabo, são um só; na atuação conjunta segundo virtudes próprias a cada espaço, seja ele estatal ou privado. A ideia de que o Estado não é inútil, nem mesmo um obstáculo ao desenvolvimento, presente na noção de Estado Empreendedor, tem seu reforço histórico na ideia de Estado Administrativo em seu resgate da função burocrática como virtude técnica, mas acrescenta a ela a noção de que a função administrativa é capaz de PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 27 assumir o risco empreendedor. Para além disso, o Estado Empreendedor repudia a crença na geração espontânea de grandes mercados pela mera inação estatal; eles não são produtos somente do sucesso empresarial privado, mas precisamente de uma sua simbiose com o Estado. Em ambos os Estados Empreendedor e Regulador, aceita-se a velha máxima de que compete ao Estado garantir a estabilidade macroeconômica via intervenção para correção, por exemplo, do sistema financeiro, como também para fomentar a pesquisa de base. Tais máximas são comuns também aos Estados Subsidiário e Mínimo. Para além disso, o Estado Empreendedor acrescenta à atuação estatal na economia o seu caráter empreendedor, como tomador de risco líder (lead risk taker) e criador de mercados (market creator), ao servir como incubador da inovação não somente via financiamento de pesquisa de base, mas principalmente via aproximação dos atores de mercado e demais passos prévios à viabilização de novos mercados. É nesse aspecto que o Estado Regulador colhe a contribuição do Estado Empreendedor para acrescentar às atividades interventoras de fomento e de definição de novos mercados a diretriz maior de antevisão de mercados funcionais derivados da atividade reguladora. É claro que o Estado Empreendedor se contenta com o papel criativo de um Estado Tomador de Riscos (risk-taking State). O Estado Regulador não menospreza essa função, mas a absorve na dicção mais abrangente do planejamento conjuntural de atividades voltadas à proteção dos direitos fundamentais. Existe uma missão própria ao Estado que vai além da correção de falhas de mercado. No Estado Regulador, a missão consiste em algo mais abrangente: a defesados direitos fundamentais via conhecimento técnico, geral e setorial. No Estado Empreendedor, a missão consiste em algo mais específico: a abertura de espaços de inovação por intermédio de uma expertise própria tecnológica e setorial de atração de talentos e criação de estímulos em torno a missões específicas. A intervenção característica a ambos os Estados Empreendedor e Regulador manifesta-se de forma distinta em cada um deles. Enquanto, para o Estado Empreendedor, a intervenção existe vinculada à ideia de intervenção clara e corajosa para inovação e transformação em áreas em que a iniciativa privada teme ingressar, o Estado Regulador abarca, para além do planejamento de inovação, todos aqueles movimentos burocráticos pensados para a reconformação contínua da atividade econômica rumo à promoção dos direitos fundamentais. De todas as características até aqui descritas, nenhuma delas é mais representativa do Estado Empreendedor do que aquela que vê o Estado imbuído da função de liderança, em oposição à concepção do Estado como mero administrador de interesses privados. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 28 Aqui se encontra o ponto de maior sinergia entre os conceitos de Estado Empreendedor e Estado Regulador, pois se o Estado Regulador, em seu afã de proteção de direitos fundamentais via administração das leis se entregar à ideologia de predominância e suficiência dos métodos privados de mercado, ele encontrará sua própria ruína em propagar a velha máxima da subsidiariedade totalitária, ou seja, aquela que pretende esgotar o Estado na função de substituto provisório do mercado. O Estado Empreendedor demonstra que o papel de liderança gravado por uma visão de essencialidade do Estado para a transformação econômica faz parte da administração das leis. A crítica de Mazzucato de um Estado restrito ao “papel administrativo”56 é bem situada nesse contexto. Outro ponto de reforço mútuo entre os conceitos de Estado Empreendedor e Estado Regulador está na necessidade criada por tais abordagens de se passar a definir o Estado não por suas deficiências, mas por suas contribuições à criação econômica. Trata-se do Estado como conformador e criador de mercados. O Estado Empreendedor não somente aglutina atores em torno a um setor, mas cria a “visão, a missão e o plano”57 do desenvolvimento econômico, viabilizando um sistema altamente relacional que reúne o que há de melhor no setor privado rumo ao bem público. Da relação entre Estado Regulador e Estado Empreendedor, surgem consequências práticas marcantes. Mediante a compreensão do papel empreendedor do Estado nos sistemas de inovação, pode-se situar com maior precisão as demandas empresariais por isenções tributárias. A pergunta exigida pelo arcabouço conceitual empreendedor é a seguinte: o interesse de isenção tributária tem contrapartida? Ou seja, a diminuição ou isenção de tributos resulta em elevação do investimento empresarial? A resposta depende da compreensão dos papeis desempenhados pela indústria na relação simbiótica de inovação que ela detém com o Estado. O investimento empresarial em inovação não depende dos tributos, sob o enfoque do Estado Empreendedor, mas de avaliação de risco58 e é exatamente este que é diminuído pelo investimento em pesquisa de base realizado pelo Estado. Sem a visão de toda a equação de investimento de risco, ao invés do mútuo benefício do Estado e da empresa no processo de inovação e consequente aumento da riqueza, pode-se justificar, pelo 56MAZZUCATO, Mariana. The Entrepreneurial State: Debunking Public vs. Private Sector Myths. London: Anthem Press, 2014, p. 6. 57MAZZUCATO, Mariana. The Entrepreneurial State: Debunking Public vs. Private Sector Myths. London: Anthem Press, 2014, p. 8. 58MAZZUCATO, Mariana. The Entrepreneurial State: Debunking Public vs. Private Sector Myths. London: Anthem Press, 2014, p. 23. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 29 contrário, um processo parasitário, em que a empresa se beneficia do investimento estatal e ainda se recusa a compensá-lo. O efeito prático descrito retoma o aspecto central comum aos Estados Regulador e Empreendedor: ambos propõem ver-se a relação público-privado como uma relação de apoio recíproco, de convergência e reforço mútuo. No chamado ecossistema de inovação, a relação entre os setores público e privado é classificada pelo termo, diga-se de passagem revelador, simbiose. A listagem de pressupostos do Estado Regulador cresceu. São eles: a) o Estado garante dos direitos fundamentais, inclusive a igualdade de condições competitivas; b) o Estado de intervenção permanente e simbiótica; c) o Estado Administrativo, por sua apresentação de agigantamento da função de planejamento e gerenciamento das leis; d) o Estado legitimado na figura do administrador, do processo de gerenciamento normativo da realidade ou do espaço público regulador; e) o Estado de direitos dependentes de sua conformação objetiva em ambientes regulados; f) o Estado Subsidiário, em sua apresentação de potencialização da iniciativa privada via funções de fomento, coordenação e fiscalização de setores relevantes. 1.2.8 PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO SOCIAL Um dos efeitos da análise jurídica da regulação está na compreensão do Estado Regulador a partir da situação jurídica do particular frente à produção de poder estatal. Enquanto no Estado-Polícia, ao particular é reservada a função jurídica de súdito; no Estado Liberal, a de bourgeois dotado de atributos oponíveis ao Estado; no Estado Social, a função de beneficiário utente de serviços públicos estatais definidores da esfera concreta dos seus direitos fundamentais; no Estado Regulador, o particular é um ator do ambiente regulatório, partilhando com o Estado a responsabilidade pelo alcance do interesse público. O cidadão do Estado Regulador é uma engrenagem essencial e uma força motriz necessária à implementação do interesse público, mediante co-participação na prestação de atividades socialmente relevantes. Ao se utilizar o termo co-participação, procurou-se revelar um elemento fundamental do Estado Regulador como aquele que valoriza a cooperação social. Nessa linha de raciocínio, as estruturas institucionais regulatórias não são somente novos nomes para antigas manifestações MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 30 estatais de gestão de bens e serviços públicos, mas um novo princípio-guia da atuação pública rumo a galvanizar a cooperação social ao redor do interesse público. A regulação adquire, assim, o papel de tradutora universal ou língua franca de incentivo à convergência de esforços entre os meios social e político. 1.2.8.1 A TAUTOLOGIA DA INTERNET COOPERATIVA Um exemplo esclarecedor dessa identidade do Estado Regulador apoiada no princípio da cooperação social, e que ainda merece ser apropriada por uma teoria jurídica da regulação, está na compreensão da internet como uma solução regulatória cooperativa. Robert Taylor, psicólogo e diretor do Information Processing Techniques Office (IPTO), no âmbito da Advanced Research Projects Agency (ARPA), do governo norte-americano, ao se deparar com a dificuldade experimentada no compartilhamento de meios – in casu, computadores – essenciais aos pesquisadores e universidades financiadas pela ARPA, propôs a criação de uma rede de computadores em formato colaborativo. A internet não surgiu como uma infraestrutura pura e simplesmente de conexão de computadores, algo já praticado à época por intermédio das redes telefônicas, mas como um programa de governo voltado a fomentar a cooperação entre centros de pesquisa para o fim desejado de expansão de capacidades e competências humanas.59 Não foi suficiente interconectar computadores; o caráter da internet somente aflorou quando à interconexão de computadores foi acrescentado o norte de uniformização de linguagem de conexão para efetiva cooperação dos atores desse novo mundo digital. A internet é o produto de uma manifestaçãoregulatória por excelência, mais especificamente de uma agência estatal norte-americana de regulação do desenvolvimento científico e tecnológico, em que padrões de comunicação foram produzidos para viabilizarem uma rede de computadores preexistente, mas à época ainda dependente, para acesso a cada terminal, de rotinas e comandos distintos. A ARPANET – antecessora da internet – introduziu a padronização de comandos para efetivo compartilhamento de computadores em rede: eis a inovação que mudou o mundo; o 59Vide HAFNER, Katie; LYON, Matthew. Where wizards stay up late: The origins of the internet. New York: Simon & Schuster, 2006. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 31 planejamento não-darwiniano de um ambiente de interação cooperativa entre os atores regulados. Sob tal perspectiva, somos todos beneficiários dessa regulação, mas também produtores dela. A regulação é um produto público, mas que somente rende homenagem à principiologia do Estado Regulador quando incorpora o norte de fomento de espaços de cooperação social. 1.2.8.2 ARBITRAMENTO E ARBITRAGEM NA REGULAÇÃO No paradigma do Estado Regulador, as fronteiras das disciplinas de direito público e privado continuam bem definidas, mas sua atribuição não se encontra reservada ao poder público. Pelo contrário, é na figura do Estado Regulador que se avolumam as manifestações jurídicas de entidades privadas com poderes públicos.60 Também encontra-se inserido na principiologia jurídica do Estado Regulador o ambiente propício à expansão de mecanismos autocompositivos e heterecompositivos de conflitos por meio de compromissos vinculantes privados, que têm sido absorvidos à prática regulatória setorial como instrumentos de partilha de responsabilidades na condução do interesse público. Trata-se aqui, em especial, da arbitragem e de sua distinção conceitual do arbitramento administrativo. A arbitragem se configura em um método de resolução de disputas de caráter heterocompositivo voltado à abertura de alternativas de decisão para além dos jogos de soma zero da teoria dos jogos, em que o sucesso de uma parte implica, necessariamente, a derrota da outra parte. O âmbito de aplicação da arbitragem resume-se a litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis (art. 1º, da Lei 9.307/96) e decorre de acordo entre partes ou de imposição regulatória ou legal.61 De outra parte, o arbitramento comum na prática regulatória é um processo administrativo de resolução de disputas, que, enquanto tal, caracteriza-se como o modo normal de atuação estatal via manifestação processual administrativa no uso de competência administrativa expressa 60Vide GONÇALVES, Pedro. Entidades privadas com poderes públicos. Coimbra: Almedina, 2005. 61Vide COIMBRA, Artur. O papel do órgão regulador na resolução de disputas entre operadoras de telecomunicações: a arbitragem e a mediação à luz das experiências japonesa, inglesa e americana. In: Revista de Direito, Estado e Telecomunicações 1(1): 111-159, 2009. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 32 em lei, constituindo-se em requisito à produção de atos administrativos pertinentes à solução de litígios perante a Administração Pública. Enquanto o arbitramento administrativo admite, como regra, pedido de reconsideração administrativa e, em qualquer caso, recurso amplo ao Judiciário sobre forma e mérito do ato administrativo, que deve respeitar o contraditório e a ampla defesa devido a seu enquadramento na hipótese de situações de litígio do art. 5º, LV da Constituição Federal de 1988, a arbitragem está apoiada em características próprias, umas mais ou menos distantes dos requisitos funcionais de um processo administrativo de resolução de disputas, quais sejam: a) ampla participação das partes no procedimento arbitral; b) maior autonomia na definição do procedimento do juízo arbitral; c) exigência de prévia aquiescência das partes para constituição de cláusula compromissória; d) definição dos árbitros por indicação das partes, exceto no caso de compromisso arbitral fixado por sentença judicial; e) sigilo das informações trazidas ao juízo arbitral; f) limitação da matéria passível de arbitragem a direitos patrimoniais disponíveis; g) imposição de tentativa de conciliação prévia; e finalmente h) o caráter mais distintivo de todos, a inadmissibilidade de recurso revisional de mérito à esfera administrativa ou judicial. Fartas são as hipóteses de arbitramento administrativo na prática regulatória. Basta citar, por exemplo, o caso de arbitramento inter- setorial decorrente de normatização conjunta da ANATEL, ANEEL e ANP. O Regulamento Conjunto de Resolução de Conflitos das Agências Reguladoras dos Setores de Energia Elétrica, Telecomunicações e Petróleo, aprovado pela Resolução Conjunta nº 2, de 27 de março de 2001, prevê a criação de Comissão Permanente de Resolução de Conflitos das Agências Reguladoras, disciplinando o processo de resolução administrativa de conflitos sobre compartilhamento de infraestrutura dos setores envolvidos. A distinção entre o processo administrativo de resolução de disputas e a arbitragem foi expressamente fixada na terminologia utilizada quando da consulta pública referente ao Regulamento em questão, que se utilizou da distinção entre arbitragem civil e processo administrativo de resolução de disputas para especificar o escopo da regulamentação submetida à consulta pública, qual seja, exclusivamente o processo administrativo, excluída a arbitragem civil. A Lei 13.575, de 26 de dezembro de 2017, por sua vez, que cria a Agência Nacional de Mineração (ANM), trata do arbitramento administrativo ao atribuir competência à ANM para decidir sobre conflitos entre os agentes da atividade de mineração (art. 2º, XIV da Lei 13.575/2017) e para dispor sobre os procedimentos a serem adotados para a solução de conflitos entre agentes da atividade de mineração, com ênfase na conciliação e na mediação (art. 17, caput da Lei 13.575/2017). PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 33 Um exemplo internacional serve para esclarecer que a distinção não se restrinje ao direito brasileiro. A diretiva europeia 2002/21/EC, no seu art. 20, parágrafo 2º, define que o dever das autoridades reguladoras de redes e serviços de comunicação eletrônica de decidirem sobre disputas do setor via arbitramento administrativo pode ser afastado pela normatização dos Estados-partes se for detectada a possibilidade de arbitragem ou mediação da questão ao alcance das partes. Se, todavia, a mediação ou arbitragem não solucionarem a disputa em até quatro meses, a autoridade reguladora local deve se comprometer a decidir a questão, fazendo uso de seu poder de arbitramento administrativo. Não tão fartas na regulamentação, embora presentes em nível de cláusulas de contratos de concessões de diversos setores, são as previsões de instalação de juízos arbitrais em dois formatos bem distintos: a) o juízo arbitral em que o poder público figura como árbitro, por meio do órgão regulador correspondente; b) o juízo arbitral em que o poder público figura como parte, por meio do compromisso arbitral firmado entre órgão regulador e entidade regulada.62 A previsão normativa de incorporação de agência reguladora na função de árbitra não é incomum e visa, basicamente, introduzir um método de resolução de disputas mais aberto e participativo para questões até então exclusivamente definidas pelo método tradicional de processo administrativo de solução de disputas entre prestadores de serviços regulados ou entre eles e os usuários dos serviços. Muito mais delicada é, entretanto, a inserção de um órgão regulador como parte em juízo arbitral envolvendo disputas entre o próprio órgão regulador e prestadores de serviços por ele regulados. De imediato, os princípios de direito público de indisponibilidade do interesse público, irrenunciabilidade de competência administrativa (art. 11, da Lei 9.784/99) e indelegabilidade de edição de atosde caráter normativo, de decisão de recursos administrativos e de matérias de competência exclusiva do órgão ou autoridade (art. 13, da Lei 9.784/99), surgem como obstáculos à definição da matéria que pode ser atingida por cláusula compromissória arbitral. Não obstante tais limitações de ponto de partida, tanto a prática de cláusulas compromissórias em contratos de concessão, quanto a avialiação doutrinária e jurisprudencial favorável à arbitragem dentro de certos limites é inquestionável na experiência jurídica brasileira. 62Vide SANTIAGO, Rafael da Silva. Arbitragem e regulação: uma análise da aplicação do juízo arbitral no setor de telecomunicações. In: Revista de Direito, Estado e Telecomunicações 6(1): 177-230, 2014. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 34 Para justificar a presença de cláusulas compromissórias arbitrais em contratos de concessão de prestação de serviços públicos, parte-se da distinção do direito administrativo clássico entre atividades administrativas de autoridade versus atividades administrativas de gestão patrimonial. Enquanto para as atividades de autoridade na prestação de serviços públicos não cabe qualquer tipo de negociação para composição de conflitos via juízo arbitral, para as consequências ou repercussões patrimoniais dos atos administrativos manifestantes do poder de autoridade estatal, o juízo arbitral tem sido aceito. Assim, o primeiro requisito para a introdução de cláusula compromissória arbitral em contratos de concessão está na delimitação de seu escopo para repercussões patrimoniais abarcadas pelas cláusulas econômico-financeiras do contrato. Há quem, inclusive, argumente pela exigência de cláusula compromissória arbitral em contratos de concessão63, mediante aplicação do art. 25, XV, da Lei 8.987/95, que prevê, dentre as cláusulas essenciais do contrato de concessão, o foro e modo amigável de solução das divergências contratuais. O entendimento jurisprudencial em tribunais recursais estaduais de validade das cláusulas compromissórias e compromissos arbitrais em contratos de concessão, tendo como parte, o órgão regulador titular do poder concedente, não é recente, mas somente em 2011, o STJ, por sua 3ª Turma, decidiu, para além de reconhecer a legalidade de cláusula compromissória arbitral em contratos de concessão para disputas entre o concessionário e o próprio poder concedente, também firmar o entendimento de que a ausência de previsão de arbitragem no edital de licitação ou no contrato de concessão consequente não invalida compromisso arbitral posteriormente firmado entre a concessionária e o poder concedente.64 Pinçando-se um exemplo do setor de telecomunicações que evidencia a aderência entre a normatização setorial e a possibilidade jurídica de arbitragem entre concessionária e órgão regulador, a Resolução ANATEL nº 341/2003 e a resolução para o quinquênio seguinte dos contratos de concessão de telefonia, a Resolução ANATEL nº 552/2010, que aprovam modelos de contrato de concessão do Serviço Telefônico Fixo 63Vide LEMES, Selma Maria Ferreira. Arbitragem na Concessão de Serviços Públicos – Arbitrabilidade Objetiva. Confidencialidade ou Publicidade Processual? RDM 134: 148-163, abr./jun., 2004. 64BRASIL. STJ. REsp 904.813/PR. Relatora Min. Nancy Andrighi. 3ª Turma. Julgado em 20/10/2011. DJe 28/02/2012. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 35 Comutado, criaram capítulos próprios à arbitragem, detalhando os limites materiais e formais de sua aplicação. No modelo de contrato de concessão do STFC na modalidade local, a Cláusula 16.2, IV, dispõe sobre o direito da concessionária de solicitar a instauração de procedimento de arbitragem em hipóteses do Capítulo XXXIII do contrato. A Cláusula 16.12, parágrafo único, por sua vez, possibilita lançar-se mão de pedido de arbitragem para cumprimento de dever de interconexão da rede da concessionária por parte de serviço de interesse coletivo. Finalmente, o Capítulo XXXIII do contrato detalha o requisito de que tenha havido prévia decisão em processo administrativo próprio com a qual a concessionária quedou inconformada. O mesmo capítulo impõe a instalação de Tribunal Arbitral, exceto se comprovado não se tratar de matéria autorizada para esse fim, ou seja, desde que diga respeito à (Cláusula 33.1): violação do direito da concessionária à proteção de sua situação econômica; revisão das tarifas; ou indenizações devidas quando da extinção do contrato de concessão, inclusive quanto aos bens revertidos. Ainda, o Capítulo XXXIII, em sua Cláusula 33.3, define a composição do Tribunal Arbitral com dois membros efetivos e suplentes indicados pelo Conselho Diretor da ANATEL, desde que não pertencentes aos quadros da Agência, dois membros efetivos e suplentes indicados pela concessionária dentre pessoas não empregadas por ela e um membro efetivo e suplente indicado pelos próprios membros acima. Finalmente, a Cláusula XXXIII, em diversos momentos, refere-se, expressamente, à aplicação da Lei 9.307/96, a Lei da Arbitragem. Com isso, mesmo no campo tradicional da decisão administrativa, parcela das questões antes exclusivamente tratadas em processo administrativo de resolução de disputas, têm colhido a contribuição dos próprios interessados na composição do litígio ou concordância na sua heterocomposição via arbitragem. 1.2.8.3 POLÍTICA DE PD&I E REGULAÇÃO Outra repercussão do reposicionamento do cidadão no Estado Regulador encontra-se evidente na política de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) brasileira, que pode ser traçada como uma cadeia coerente de produções legislativas que remontam a 1991 (Lei 8.248/91), com reflexos até 2012: Lei do Bem – Lei 11.196/05; Portaria nº 950/06, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação; Lei 11.484/07, que instituiu o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores; Lei 12.349/11, sobre preferência aos produtos desenvolvidos no País; Programa TI Maior, de agosto de 2012; medidas de normatização secundária e administração implementadas por órgãos governamentais e agências reguladoras para incentivo à pesquisa e MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 36 desenvolvimento nacional via, e.g., condicionamentos à anuência prévia a operações societárias de fusão de concorrentes em determinado setor de atividades relevantes ou via processos licitatórios seletivos de faixas de radiofrequências condicionadas à aquisição de bens com tecnologia nacional; acordos de compensação tecnológica, como é o caso dos acordos offset, visíveis na área da defesa nacional e também conhecidos como acordos de compensação comercial, industrial e tecnológica, que acompanham ou devem acompanhar grandes compras governamentais. Esse apanhado de leis, programas governamentais, e atitudes regulatórias evidenciam que, no Brasil, pode-se identificar uma política de PD&I como política de Estado relativamente imune aos dissabores de políticas de governo. Dito componente do Estado brasileiro de cerca de 25 anos de idade, mesmo desprezando-se o reconhecido investimento em PD&I dos governos militares implementado sob a lógica do Estado Social prestador de serviços públicos, nos leva a ver um diferencial do Estado Regulador de valorização da participação dos atores setoriais na construção do bem público. O uso de alavancas regulatórias para estímulo ao investimento por parte de empresas revela não somente a escolha da regulação por incentivos, quanto a incorporação dos atores setoriais nas fileiras de heróis do desenvolvimento em flagrante reconhecimento do cidadão regulatório como cidadão partícipe da administração das leis. Tal como ocorre com a inserção da arbitragem no meio regulatório, a regulação orientada a estimular o particular rumo ao interesse público na seara da PD&I também se apropria do esforço de atores setoriais para somar ao esforço estatal de proteção dos direitos fundamentais em ambientes regulados. Com isso, os espaçosantes reservados à técnica são politizados, no bom sentido – porque não submissos a decisões políticas desprovidas de conhecimento técnico –, inserindo-se a opção pelo rumo do desenvolvimento de ciência e tecnologia no arsenal de participação democrática e decisão política. A listagem de pressupostos do Estado Regulador foi, com isso, incrementada. São eles: a) o Estado garante dos direitos fundamentais, inclusive a igualdade de condições competitivas; b) o Estado de intervenção permanente e simbiótica apoiado no estímulo à cooperação público- privada; c) o Estado Administrativo, por sua apresentação de agigantamento da função de planejamento e gerenciamento das leis; d) o Estado legitimado na figura do administrador, do processo de gerenciamento normativo da realidade ou do espaço público regulador; e) o PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 37 Estado de direitos dependentes de sua conformação objetiva em ambientes regulados; f) o Estado Subsidiário, em sua apresentação de potencialização da iniciativa privada via funções de fomento, coordenação e fiscalização de setores relevantes. 1.2.9 O FENÔMENO DA REGULAÇÃO E SEU SIGNIFICADO O leitor se depara, neste ponto, com uma perplexidade: falou- se de tudo, menos da regulação, que intuitivamente deve compor o rol de pressupostos do Estado Regulador. Ela foi deixada para o final, pois a maior dificuldade na definição de pressupostos do Estado Regulador encontra-se na definição do seu qualificativo central: a regulação. Em grande parte, a dificuldade em se tratar da regulação está em suas diversas acepções. Ferozes são as críticas à percepção da regulação como uma metáfora derivada de sistemas biológicos ou mecânicos e entregue às versões mais simplificadas dos mecanismos de controle utilizados para alterar o curso do sistema regulado rumo à direção desejada. Peacock, por exemplo, se recente, na história das ideias da teoria econômica, que modelos de análise de finanças públicas e política fiscal, quando entregues à concepção dos sistemas de controle biológico e mecânico, não passariam de metáforas, ao invés de representações de partes interdependentes de uma realidade observável.65 A proposta deste livro, entretanto, não é a de tomar partido pró ou contra vertentes metafóricas ou realistas, mas o de evidenciar como o conceito de regulação bebe de ambas as fontes. Afinal, se a regulação, em sua acepção mais fundamental66 e, portanto, metafórica, significa um 65Vide PEACOCK, Alan. Public Choice Analysis in Historical Perspective. Edição de Diego Piacentino. Milano: Cambridge University Press, Raffaele Mattioli Foundation, 1997, p. 18-19. 66Sueli Dallari sintetiza os usos do termo a partir do século XVIII: “O conceito de regulação, no século XVIII, está ligado à técnica, expressando um sistema de comando destinado a manter constante o valor de uma grandeza, quaisquer que sejam as perturbações que a possam fazer variar, como, por exemplo, o termostato. No século XIX, ele se difunde pela fisiologia, significando os equilíbrios dinâmicos do corpo, e, assim, definem-se seus traços essenciais: ‘manter um ambiente equilibrado; apesar das perturbações exteriores, graças a um conjunto de ajustamentos’. Seu uso só se dissemina nas ciências sociais, entretanto, durante o século XX, sob influência do desenvolvimento da cibernética, que implica sempre MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 38 processo de realimentação contínua da decisão pelos efeitos dessa decisão, reconformando a atitude do regulador em uma cadeia infinita caracterizada pelo planejamento e gerenciamento conjuntural da realidade, há diversos elementos conceituais da regulação que especificam essa noção fundamental. São eles: a) a manifestação da atuação reguladora como uma atuação de poder político, caracterizando-a como um projeto de direito público; b) a consciência de que se regula algo que tem suas próprias leis, e que, portanto, a regulação potencializa as forças da iniciativa privada em um ambiente parcialmente preexistente e parcialmente criado pela própria atividade reguladora; c) a finalidade da regulação como o alcance de um equilíbrio dinâmico das interações dos atores setoriais em conformidade com um objetivo de interesse geral e não o de mera potencialização de um mercado regulado pretensamente indiferente ao contexto dos direitos políticos e sociais circundantes. A regulação, portanto, é uma força de coerência sistêmica – de resgate da ordem – quando as contradições internas em determinado sistema social revelam uma disfuncionalidade. Em ciências sociais, todavia, a referência ao resgate de um estado de coisas do passado é frágil devido ao fato de que a história da vida social apresenta-se como um fenômeno sempre inédito, mas o aspecto da regulação enquanto força de coerência sistêmica frente a movimentos de estruturação social considerados disfuncionais em determinado momento histórico não deixa de ser um conceito tentador. A definição da regulação como um resultado da disfuncionalidade de um sistema explica o fenômeno de auto-proclamação67 do caráter regulador de órgãos e entes estatais e paraestatais. Ela também explica o alastramento do uso do termo regulação sobre diversas realidades que, há pouco tempo atrás, sequer se cogitaria qualificá-las como regulatórias. Hoje, fala-se em regulação para cada vez mais temas antes um mecanismo de auto-regulação, permitindo aos sistemas organizados corrigir suas ações por meio das informações sobre seus resultados recebidas do ambiente. É, então, a teoria dos sistemas que irá se introduzir na teoria das organizações, na economia, na sociologia, na ciência política e no direito.” (DALLARI, Sueli. Direito Sanitário. p. 57-58. In: ARANHA, M. I. (org.). Direito Sanitário e Saúde Pública. Vol. I, Brasília: Ministério da Saúde, 2003, p. 39-64). 67Vide AUTIN, J. L. Refléxions sur l’usage de la régulation en droit publique. In: MIAILLE, M. La régulation entre droit et politique. Paris: L’Harmattan, 1995. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 39 alheios à terminologia regulatória68, tais como pesticidas agrícolas, pesquisas com embriões, mercado financeiro, ordenamento territorial, uso do espectro, posições orbitais, profissões, comercialização de hemoderivados, exploração petrolífera, infraestrutura aeroportuária, comércio eletrônico, patrimônio cultural, enfim, uma miríade de tópicos que se apropriam da linguagem regulatória para o exercício de uma função que se justifica no paradigma do Estado Regulador. O certo é que o conceito de regulação detém diversos significados a depender do ramo do conhecimento científico que o utiliza. A economia, mesmo em estudos mais recentes, costuma apresentá-lo em seu formato restritivo, como um mecanismo não-financeiro de imposição de limitações ou modificações da atividade dos agentes econômicos para o cumprimento de políticas públicas governamentais, ora se apresentando segundo sua exteriorização dura (hard regulation), mediante imposição de comportamentos sobre a atividade econômica e ameaças de sanções, ora tomando a forma de diretrizes não compulsórias (soft regulation) obtidas por meio de acordos, códigos de conduta ou boas práticas despidos de penalidades.69 Já se deixou claro mais acima que a abordagem jurídica da regulação é mais abrangente que a econômica e, embora não despreze, também não se restringe ao espaço da atividade econômica. Não se pode deixar de reconhecer, entretanto, que é na atividade econômica que a regulação revela sua manifestação mais visível. A regulação de mercados como uma “forma jurídica de engenharia social”70 não é novidade como lembra Ogus ao analisar o período Tudor e Stuart na Inglaterra, bem como na alegação de Geoffrey Elton, em seu clássico livro de 195371, de que Thomas Cromwell (séc. XVI) teria sido o inaugurador do governo burocrático moderno. 68Afirmando que “a linguagem e a prática da regulação têm ingressado,nas últimas três décadas [1980, 1990 e 2000], na linguagem da política pública, do direito e da economia” (BALDWIN, Robert; CAVE, Martin; LODGE, Martin. (org.). Regulation: The Field and the Developing Area, p. 3-16. In: The Oxford Handbook of Regulation. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 4). 69Vide PEACOCK, Alan; RIZZO, Ilde. The Heritage Game: Economics, Policy, and Practice. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 145. 70OGUS, Anthony I. Regulatory Law: Some Lessons from the Past. In: Legal Studies (London) 12(1): 1-19, 1983, p. 1. 71Vide ELTON, Geoffrey Rudolph. The Tudor Revolution in Government: Administrative Changes in the Reign of Henry VIII. Cambridge: Cambridge University Press, 1953. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 40 Na mesma linha de pensamento, o uso de contratos, termos, planejamento e acompanhamento administrativo remonta, na tradição brasileira, à valorização do serviço público dos clássicos do serviço público francês. O norte de planejamento e gerenciamento, contudo, assim encarado como característica central da atuação de poder, é o que faz da regulação, hoje, um termo onipresente. A regulação não se contenta com o governo pelas leis; ela exige o compromisso público pela administração das leis pari passu. O diferencial da regulação de hoje está nos seus pressupostos, que ampliaram sua amplitude, alcançando mais do que os comandos jurídicos destinados a evidenciar quando uma atividade regulada tornou-se disfuncional – a metáfora da regulação como um sinal vermelho – para encarnar o conjunto interdisciplinar de planejamento e gerenciamento conjuntural de atividades de interesse geral – o poder público como partícipe do setor regulado – ambientadas nos pressupostos do Estado Regulador, ou seja, na era do Estado Regulador. É bem verdade que os conceitos muitas vezes se misturam, quando, por exemplo, a crítica ao Estado Dirigista, Socialista ou proprietário dos meios de produção toma o termo ‘planejamento’ como próprio desse formato estatal em que a resposta às demandas sociais adquire o formato da estatização. Essa identificação entre planejamento econômico e estatização dos meios de produção foi ambientada na memória ainda recente dos anos 1990, que identificava a planificação econômica com o regime comunista do bloco soviético e resultou na percepção maniqueista entre Estado e mercado, em que o mercado passava a ser visto como uma entidade desligada do Estado, ao invés de um seu produto.72 Estudos inaugurais do Estado Regulador com esse viés de identificação do qualificativo do ‘planejamento’ com aquele Estado apoiado na estatização dos setores produtivos não são incomuns.73 Afora a apropriação indevida do conceito de planejamento ao de Estado Socialista, 72Vide BEVIR, Mark; TRENTMANN, Frank (org.). Markets in Historical Contexts: Ideas and Politics in the Modern World. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. 73A afirmação transcrita a seguir é um exemplo desse uso indevido do termo ‘planejamento’ como sinômino de um formato estatal superado pelo Estado Regulador: “Privatization and deregulation have created the conditions for the rise of the regulatory state to replace the dirigiste state of the past. Reliance on regulation – rather than public ownership, planning or centralized administration – characterises the methods of the regulatory state.” (MAJONE, Giandomenico. The Rise of the Regulatory State in Europe. In: West European Politics 17(3): 77-101, Julho de 1994, p. 77.) PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 41 algo negado pela extensa literatura do Estado Social e Democrático de Direito, o qualificativo ‘planejador’ é hoje inafastável do Estado Regulador. A regulação assimila a qualidade do ‘planejamento’ estatal não como ideologia, mas como método, ou melhor ainda, como tecnologia; como forma de expressão humana criativa oriunda da relação do ser humano com a natureza.74 Enquanto tecnologia, a regulação é uma forma de produção da existência social dependente de um projeto humano de acompanhamento conjuntural dos sistemas sociais. Assim entendida, a regulação seria melhor definida como uma tecnologia social de sanção aflitiva ou premial orientadora de setores relevantes via atividade contratual, ordenadora, gerencial ou fomentadora. A literatura apontada como inaugural do olhar estatal regulador é vasta e multifacetada.75 Em seu núcleo de significado, a regulação não exige, nem dispensa a ideia de agências reguladoras e menos ainda a de agências reguladoras independentes. A identidade entre a regulação e tais estruturas estatais das agências reguladoras ocorreu mediante a interdependência construída pela literatura do século XX e início do século XXI entre regulação e Estado Regulador, em que foi acoplado à definição de regulação o meio ou veículo de mediação entre o ser político e o setor regulado76 inaugurado pela prática institucional 74Vide PINTO, Álvaro Vieira. O conceito de tecnologia. Vol. I, Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2005. 75Moran elenca os principais autores e obras inaugurais do Estado Regulador que utilizam o linguajar da ciência política. Em seu estudo, a regulação, em sua dimensão de história institucional, é definida como uma “tecnologia administrativa de controle de negócios por intermédio de agências especializadas e apoiadas em leis específicas em oposição ao controle via técnica de propriedade estatal” (MORAN, Michael. Review Article: Understanding the Regulatory State. In: British Journal of Political Science 32: 391-413, 2002, p. 392). 76As agências são um “bem de produção de ordem superior”, na terminologia de Vieira Pinto (PINTO, A. V., op. cit., p. 112). Elas produzem bens de produção de ordem elementar de controle e incentivo de setores da economia. Ao se identificar a agência reguladora como um bem vital a setores da economia, opta-se, na lógica regulatória, por uma das manifestações da libertação humana à medida que o processo histórico de constituição das agências reguladoras lhes imprime com o esforço material e mental necessário à sua institucionalização. As agências são mediações entre o ser humano e sua contradição natural para alteração da realidade via esse engenho humano. Assim, as agências são essenciais para a regulação moderna pois se constituem na configuração histórico-institucional de como, no MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 42 americana. A íntima relação entre a construção conceitual da regulação e a história institucional do Estado Regulador dos modelos estadunidense e europeu permite falar-se de momentos regulatórios. Em síntese, o termo regulação, entendido em seu cerne como um processo de administração de sistemas sociais mediante retroalimentação contínua, foi transparecido, incialmente, em comandos estatais de controle sobre a conformação e os resultados da iniciativa privada para, a partir do processo de desregulação das décadas de 1970 a 1990, expressar, hoje, modos de regulação mais efetivos, mediante instrumentos de planejamento racional da atividade reguladora por vários canais, tais como a aplicação de métodos de controle menos restritivos e baseados em incentivos, a aplicação de administração de riscos às questões regulatórias, a aplicação de técnicas de análise de custo-benefício e de impacto regulatório, ou mesmo a aplicação de uma perspectiva minimalista de auditagem de controles regulatórios internos às empresas, de auto- regulação ou mesmo de exclusiva homenagem a incentivos de mercado. A regulação, portanto, parte de sua configuração original de ideia programática inscrita em um sistema automático de retroalimentação e controle para se apresentar hoje como uma tecnologia de governo de sistemas sociais, que pode estar sediada em órgãos estatais – a regulação por excelência do Estado Regulador –, em mecanismos internos de controle empresarial – a meta-regulação, em que o Estado audita os regimes de controle interno das empresas –, em mecanismosinstitucionais privados – auto-regulação –, no vencedor do jogo político entre os atores setoriais – o livre mercado – ou, finalmente, em uma composição de tais opções. Embora se possa chegar a um consenso sobre o significado da regulação, não por isso pode-se chegar a um consenso sobre sua orientação. Em outras palavras, ao se definir regulação, ainda resta saber-se como ela se manifesta nos diversos espaços geográficos, momentos históricos ou setores regulados. Enquanto fenômeno, a regulação é um ser multifacetado, como a legislação e a jurisdição, que, conquanto definidas com certa segurança, manifestam-se de forma distinta de acordo com sua composição e ideário. A compreensão de que o conceito informador da regulação até aqui esmiuçado não esgota a manifestação da regulação no seu dia-a-dia, Estado Regulador, a sociedade optou por mediar sua relação com setores da economia. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO ESTADO REGULADOR 43 que depende de um estudo biográfico de quem assume o leme das instituições regulatórias, é alentador, pois permite vermos formas distintas da prática regulatória geral – concorrência, consumo, trabalho – e setorial – saúde, educação, transportes, telecomunicações, recursos naturais etc – manifestadas sob a mesma tradição regulatória – sistema de acompanhamento conjuntural sensível às respostas do sistema regulado. Por isso, nem todos os setores relevantes comportam estruturas regulatórias em determinado país e a regulação varia no espaço e no tempo onde ela existe. A operacionalização regulatória e sua irmã gêmea, a identidade biográfica do regulador, também contribuem para a manifestação de uma regulação caracterizada por aspectos prevalecentes. Ora a regulação promove prioritariamente a publicidade dos procedimentos regulatórios, ora a proteção da indústria incumbente, ora a limitação dos monopólios e oligopólios, ora a defesa da tríade consumidor-trabalho-meio- ambiente, ora a legitimidade da ordem capitalista, mas todos esses aspectos estão presentes na ideia de regulação, aguardando o momento certo para ocuparem o proscênio. A constatação de que a manifestação regulatória é variada, mesmo quando apoiada em um conceito relativamente uniforme, é um sintoma encorajador ao revelar que o móvel das instituições regulatórias – o ser humano e suas opções – é decisivo para a caracterização do modelo regulatório. Como afirma McCraw, a regulação é imprevisível porque influenciada por fatores externos de história das ideias, das biografias e do substrato econômico da atividade regulada.77 O certo é que o conceito de regulação é um pressuposto do Estado Regulador, que, sinteticamente se apoia: a) no Estado garante dos direitos fundamentais, inclusive a igualdade de condições competitivas; b) no Estado de intervenção permanente e simbiótica; c) no Estado Administrativo, por sua apresentação de agigantamento da função de planejamento e gerenciamento das leis; d) no Estado legitimado na figura do administrador, do processo de gerenciamento normativo da realidade ou do espaço público regulador; e) no Estado de direitos dependentes de sua conformação objetiva em ambientes regulados; f) no Estado Subsidiário, em sua apresentação de potencialização da iniciativa privada via funções de fomento, coordenação e fiscalização de setores relevantes; e g) no conceito de regulação como processo de realimentação contínua da decisão pelos 77Vide McCRAW, Thomas K. Prophets of Regulation. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1984. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 44 efeitos dessa decisão, reconformando a atitude do regulador em uma cadeia infinita caracterizada pelo planejamento e gerenciamento conjuntural da realidade. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 45 Parte II TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 46 TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 47 2.1 INTRODUÇÃO O fenômeno regulatório detém diversas facetas visíveis ou invisíveis segundo a teoria que procure explicá-lo. Ele pode estar apoiado ora em movimentos reguladores estatais, ora em autorregulação privada, ora em uma composição de regulação organizacional – aquela advinda de atores do mercado regulado – e institucional – aquela advinda de regras do jogo tanto formais, como leis e contratos, quanto informais, como limitações culturais.78 A regulação de contratos futuros de commodities é um exemplo da incomum reunião dos tipos regulatórios organizacional e institucional em uma mesma pessoa jurídica de direito privado: a BM&FBOVESPA.79 Ela atua, no Brasil, tanto como organização interessada no mercado de contratos futuros, quanto como instituição produtora de regras para o mesmo mercado. Ao utilizarmos os conceitos de regulação organizacional e institucional, passamos a entender o diferencial do modelo de regulação de contratos futuros em face de outros espaços regulados. Sem essa diferenciação entre regulação organizacional e institucional, não conseguiríamos sequer formular, em palavras, a diferença entre a regulação produzida pela BM&FBOVESPA e a produzida por autarquias reguladoras, como a ANATEL, ANEEL, ANP, ANA, entre outras. A escolha por uma teoria de regulação traz consigo um manancial de conceitos como os de regulação organizacional e institucional elaborados para identificação de aspectos relevantes à forma de ver a regulação própria de cada teoria. Por isso, a compreensão das teorias regulatórias é fundamental para não somente identificarmos caminhos recomendados e testados para serem seguidos, como também para ressaltarmos ou obscurecermos aspectos regulatórios. A teoria serve ao fim de nos dar foco, como fazem os astrônomos ao analisarem corpos celestes próximos a estrelas, cobrindo-as, para que elas não ofusquem o objeto de análise. Cada teoria regulatória cobrirá uma parte do fenômeno regulatório e, por decorrência, revelerá 78Utilizam-se, aqui, os conceitos de instituição e organização conforme: NORTH, D. C. Institutions, institutional change and economic performance: Political economy of institutions and decisions. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. 79Vide SILVA, Felipe Morelli da. Especulação no mercado futuro de commodities agrícolas e o papel da regulação governamental e da autorregulação da BM&FBOVESPA. Revista de Direito Setorial e Regulatório, v. 1, n. 1, maio de 2015, p. 239-262. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 48 com maior intensidade outras dimensões do mesmo fenômeno. O bom pesquisador reconhece que as virtudes de uma teoria carregam consigo vícios próprios ao recorte do objeto de análise. 2.2 MÉTODO JURÍDICO-REGULATÓRIO: COERÇÃO EXTRÍNSECA VERSUS INTRÍNSECA E OS CONCEITOS DE GOVERNO, GOVERNANÇA E CONFORMIDADE O primeiro passo para compreensão de uma teoria está em identificar-se o método que ela trilha para iluminar o objeto de análise. A procura por um método pressupõe saber-se a natureza do objeto pesquisado: a regulação, como objeto metodologicamente endereçado, dirige os métodos possíveis de seu esclarecimento a partir de sua natureza; se é percebida como uma forma de afirmação da força por coerção extrínseca, ou como uma forma de diálogo e compromisso intrínseco. Por isso, é fundamental compreender-se a distinção entre as percepções do direito como coerção extrínseca ou intrínseca. Para teorias apoiadas na percepção do direito como coerção extrínseca, ele – o direito – somente se realiza quando descumprido. À primeira vista, pode parecer um contrassenso que, para uma vertente da teoria jurídica, o comportamento humano distoante da previsão normativa seja o principal pressuposto para a identidade do caráter normativo do texto positivado. Em outras palavras, a ausência de conformidade do comportamento individual às normas afirmaria a identidade própria ao direito, pois este somente seria visível e manifestado quando da coerção externa – leia-se, estatal – sobre ocomportamento individual desviante. É como se o comportamento desviante da previsão normativa fosse desejado para reforço da existência da norma, pois ela e o direito, como ser institucional, somente se afirmariam pelas condutas contrárias à prescrição normativa justificadoras do uso da coerção extrínseca como privação daquilo que o ser humano mais valoriza. Atente-se para o fato de que para as teorias jurídicas que exaltam a sanção, a mesma crítica se aplica: quando a sanção é tida como essencial, significa dizer que o descumprimento da norma é desejado pelo Estado não no sentido de que o Estado incentivará ostensivamente a prática de atos ilícitos, mas no sentido de que a afirmação do direito somente será perceptível quando da existência do ato ilícito. O Estado, no paradigma da coerção extrínseca, estará diuturna e incessantemente à procura de mais ilícitos para afirmar a norma TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 49 jurídica por intermédio de sua única manifestação perceptível: a sanção. O Estado estará à procura do ilícito, sabedor de que o ilícito justifica a própria existência estatal e dos servidores públicos que o movimentam. O Estado e seus arautos de coerção extrínseca são constantemente atraídos por essa força sombria que afirma seu poder. Uma visão predominantemente positivista – ou para alguns, normativista – de que o direito somente se afirmaria por sua negação e consequente manifestação como coerção extrínseca é responsável pela dificuldade dos juristas de hoje de verem para além da sanção, temendo pela extinção do direito caso ela deixe de ser a primeira linha de ação, ou mesmo única, ao descumprimento da norma. Os maiores inimigos da transição de uma visão jurídica restritiva do direito e dependente da pureza da sanção como seu instrumento de excelência para estratégias regulatórias mais abrangentes e efetivas são os próprios servidores públicos. O esforço da Agência Nacional de Aviação Civil, via Resolução ANAC nº 472, de 6 de junho de 2018, em transitar para um espaço de menor dependência da coerção extrínseca, liberando seus servidores da obrigação de abertura de processos punitivos para cada irregularidade em prol de providências administrativas preventivas, com o objetivo de estimular o retorno ao cumprimento normativo de forma célere e eficaz foi confrontado por vozes da própria casa que passaram a denominar aquela resolução de enforcement pelo termo pejorativo enfraquecement. A piada é boa, mas revela o quão arraigada é a compreensão do direito como dependente do ilícito e da sanção, como se o poder público buscasse evitar a adoção de estratégias que efetivamente alterassem o comportamento do regulado para que nunca falte um manancial de ilícitos nutridores da razão de ser do Estado. Assim, a relação entre norma, constrangimento normativo (enforcement), conformidade à norma (compliance) e coerção é um passo necessário para a desmistificação da sanção, sem que ela, por óbvio, seja afastada das opções regulatórias, como importante técnica regulatória que é. Mais especificamente, interessa saber a relação entre a conformidade regulatória e a coerção extrínseca e intrínseca. Essa relação passa pela compreensão das acepções do termo governança e conformidade, bem como pela tendência contemporânea de migração das escolas de direito de uma abordagem tradicional para novos regimes inovadores de regulação.80 80LOBEL, Orly. The Renew Deal: The Fall of Regulation and the Rise of Governance in Contemporary Legal Thought. Minnesota Law Review, v. 89, p. 342-470, 2004. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 50 A conformidade à norma, festejada em sua versão anglicana de compliance, quando referida à atividade de regulação, detém um significado inequívoco de uma miríade de respostas comportamentais de indivíduos e empresas às formas de controle estatal de atividades relevantes.81 Pode-se dizer que a conformidade à regulação é o resultado da relação entre a administração estatal da atividade empresarial – regulação governamental – e a operacionalização da atividade empresarial pela própria empresa – governança empresarial. De um lado, o Estado administra as leis produzindo normas regulamentares em geral – government regulations –, opta pelo Estado Regulador, ao privilegiar a administração apoiada em regras – rule-based governance –, ao invés de se resumir a funções macroeconômicas de tributação ou redistributivas de gastos públicos82 e, finalmente, implementa modelos de governo regulatório83 – regulatory government –, também chamados de regulação no governo – regulation inside government –,84 ou, ainda, privilegia modelos de regulação predominantemente descentralizada e apoiada em comunidades normativas presentes no ambiente regulado via governança regulatória – regulatory governance. De outro lado, tem-se a empresa, seja ela estatal ou não, organizando processos, sistemas e controles segundo orientações de governança empresarial – corporate governance –, com objetivos diversos, entre eles, o de satisfazer as expectativas de investidores internacionais,85 o de pura eficiência econômica às expensas de considerações éticas ou o de sistemático diálogo entre ética e objetivos empresariais de mercado.86 Ambos os polos de governo e governança participam da vida da empresa sob enfoques distintos: o enfoque governamental de 81PARKER, C.; NIELSEN, V. L. Explaining Compliance: Business Responses to Regulation. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 2011. 82MAJONE, Giandomenico. The Rise of the Regulatory State in Europe. West European Politics, v. 17, p. 77-101, 1994. 83CROLEY, Steven P. Regulation and Public Interests: The Possibility of Good Regulatory Government. Princeton: Princeton University Press, 2008. 84MINOGUE, Martin; CARIÑO, Ledivina (Eds.). Regulatory Governance in Developing Countries. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 2006, p. 3. 85ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Guidance on Good Practices in Corporate Governance Disclosure. New York/Genebra: United Nations Publication, 2006. 86ZIMMERLI, Wlahter Ch.; RICHTER, Klaus; HOLZINGER, Markus. (Eds.). Corporate Ethics and Corporate Governance. Berlin/Heidelberg: Springer, 2007. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 51 administração extrínseca da vida empresarial, seja por normas gestadas no seio estatal ou garimpadas em normas do modelo de negócios regulados; e o enfoque empresarial de operacionalização intrínseca de sua própria vivência. Governança regulatória e governança empresarial são, portanto, termos que representam momentos distintos de afirmação da governança como método de governo de organizações empresariais mediante técnicas regulatórias apoiadas na participação do regulado para alcance do interesse público – governança regulatória – ou de organização de processos, sistemas e controles movidos pelo interesse empresarial – governança empresarial. O significado da governança regulatória é variável, mas sua característica fundamental está na necessidade de que os próprios afetados por um tipo de regulação apoiada em variáveis situadas fora das normas jurídicas presentes em comunidades normativas para além do Estado exercitem, em maior grau, habilidades colaborativas e assumam a responsabilidade por seus atos, configurando o modelo de governança regulatória descentralizada. Há quem defenda, por exemplo, que a governança regulatória seria uma característica diferencial do Estado Regulador, quando este opta por abordagens regulatórias apoiadas em outros sistemas normativos que não somente o estatal, o que justificaria falar de uma governança regulatória em vários níveis – multi-level governance.87 Como consequência, ao se defender a governança regulatória, trata-se de estilo regulatório para além do comando e controle, pois foge à compreensão da regulação como atividade intencional de controle oriunda do Estado pelo uso de regras jurídicas apoiadas em sanções. O significado da conformidade regulatória – regulatorycompliance – costuma estar associado ao de constrangimento normativo – enforcement –, entendendo-se o compliance regulatório como justificativa e parâmetro para os atos estatais de constrangimento do particular. O objetivo que se busca, todavia, é usualmente ambíguo, seja ele o de alcance de objetivos da coletividade ou de cumprimento de disposições normativas regulatórias.88 Adota-se, aqui, a solução abrangente de se considerar o 87KING, Roger. The Regulatory State in an Age of Governance: Soft Words and Big Sticks. Houndsmills, Basingstoke, Hampshire, UK: Palgrave Macmillan, 2007. 88YEUNG, Karen. Securing Compliance: A Principled Approach. Oxford: Hart Publishing, 2004, p. 11. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 52 compliance regulatório como inclinado tanto à satisfação de interesses sociais em geral, quanto para o cumprimento de comandos normativos específicos.89 Quando se parte da ideia de governança empresarial, a regulação se transforma em um objeto de estratégia de negócios. A relação entre governança e regulação advém, nesse caso, da necessidade de se orientar o comportamento empresarial rumo ao cumprimento ou não de regras regulamentares mediante o chamado compliance regulatório, como um dos pilares estratégicos de administração empresarial do trinômio governança-risco-compliance, mais especificamente, no que se refere ao risco operacional. Sob o enfoque da governança empresarial, o compliance regulatório consiste em estratégia empresarial frente às constrições regulatórias medida por uma análise de risco sobre a aplicação da regulamentação estatal. Quando, por outro lado, se parte da ideia de governança regulatória, a regulação toma a forma de um modelo também estratégico, mas agora voltado ao alcance do interesse público mediante medidas governamentais que procuram incrementar o nível de compliance do particular, mediante reforço dos incentivos empresariais presentes em normas previamente existentes no sistema social regulado rumo ao interesse público. A presença de intervenção estatal, dessa forma, não significa uma opção por um modelo de comando e controle; ela é essencial tanto para um modelo de comando e controle, quanto para um modelo de regulação por incentivos. Pode-se dizer que o modelo de regulação por incentivos existe prioritariamente em meio ao necessário envolvimento estatal com medidas regulatórias de reforço dos incentivos. Jordan, Wurzel e Zito90, em estudo que comparou oito países da União Europeia, concluíram serem raros os casos de aplicação de novos instrumentos de política ambiental que não demandassem maior envolvimento estatal. Instrumentos regulatórios integralmente apoiados em governança empresarial sem o envolvimento do Estado são extremamente raros na prática regulatória dos países mais industrializados da União Europeia. Ou seja, a opção por incentivos não afasta; pelo contrário, exige a atuação estatal. Daí se falar em estratégias ou modelos de conformidade/compliance em substituição às formas de constrangimento da 89PARKER, C. Summary of Scholarly Literature on Regulatory Compliance. Paris: OCDE, 1999. 90JORDAN, Andrew; WURZEL, Rüdiger K. W.; ZITO, Anthony. The Rise of 'New' Policy Instruments in Comparative Perspective: Has Governance Eclipsed Government? Political Studies, v. 53, n. 3, p. 477-496, 2005. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 53 conduta privada. Enquanto as diversas formas de constrangimento extrínseco do indivíduo pelo Estado para o cumprimento de uma norma jurídica têm por enfoque predominante o quadro regulatório ordenador e criminalizador do comando e controle, a conformidade regulatória bebe da percepção, por parte do regulado, de que o sistema regulatório será justo e eficaz. Enfim, o compliance regulatório angaria forças da relação de confiança entre regulado e regulador com ênfase na cultura e comportamento do regulado e, acima de tudo, na atitude cooperativa entre regulador e regulado.91 Benkler92 ressaltará, entretanto, que a postura cooperativa também é uma postura regrada e regulada, propondo um conjunto de princípios regulatórios que devem guiar o regulador na implementação de dinâmicas cooperativas. Mesmo sob o enfoque de governo regulatório – de administração regulatória apoiada em regras extrinsecamentes impostas –, o compliance regulatório pode assumir o papel de parâmetro de sucesso ou fracasso da regulação.93 A regulação stricto sensu – governo regulatório –, quando em batimento com a governança regulatória, resume-se à atuação estatal sobre a esfera privada a partir do pressuposto de interferência unilateral e impositiva de constrangimento extrínseco. Assim, o compliance regulatório é, ao mesmo tempo, uma estratégia empresarial de lidar com os modelos regulatórios, sejam eles de comando e controle ou de regulação descentralizada, como também um objeto de estudos de estratégias governamentais de regulação apoiadas em regulação ordenadora e criminalizadora ou principalmente apoiada na cultura de negócios do setor regulado. Compliance é um termo novo na literatura jurídica, mas o que ele representa é mais velho que o tempo, pois tem sido estudado na esteira de uma tradição doutrinária mais abrangente e preocupada com a possibilidade de orientação de conduta do indivíduo por normas jurídicas: o compliance social ou conformidade normativa social. 91MCBARNET, D. When Compliance is not the Solution but the Problem: From Changes in Law to Changes in Attitude. In: BRAITHWAITE, V. Taxing Democracy. Hants, UK: Ashgate, 2002. p. 229-243. 92BENKLER, Yokai. From Greenspan's Despair to Obama's Hope: The Scientific Bases of Cooperation as Principles of Regulation. In: MOSS, D.; CISTERNINO, J. New Perspectives on Regulation. Cambridge, MA: The Tobin Project, 2009. p. 65-87. 93PARKER, C.; NIELSEN, V. L. Compliance: 14 Questions. In: DRAHOS, P. Regulatory Theory: Foundations and Applications. Acton, AU: Australian National University Press, 2017. p. 217-232. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 54 O direito, visto como técnica social, apoia-se no reconhecimento de sua influência sobre o comportamento humano e, por consequência, no pressuposto de que a disciplina normativa e a atividade administrativa ordenadora, prestacional ou fomentadora conformam a conduta daqueles que busca regular. O dogma do direito como pauta de conduta parte do pressuposto de que regras jurídicas e atuação administrativa se configuram em importantes guias do comportamento humano. Entretanto, o método utilizado para regramento de condutas é variável e revela a problematização daquele dogma quando ora defende a postura de uma administração ordenadora e criminalizadora, ora parte para uma abordagem pautada pelo esforço em se angariar convencimento social. Ora a atividade reguladora se concentra em influenciar o comportamento do regulado por disciplina ordenadora apoiada na ameaça de imposição de sanções aflitivas,94 ora se concentra em moldar o contexto fático em que ocorre a conduta, apoiando-se no pressuposto de que uma norma seria capaz de descrever adequadamente as reais circunstâncias em que os particulares praticam seus atos e de moldar a sua conduta segundo incentivos presentes no código de conduta próprio ao ambiente regulado.95 São abundantes as teorias que se propõem a definir a natureza do sistema jurídico em sua relação com o comportamento humano, projetando o direito como uma realização institucional segundo a qual a conduta humana seria governada por regras.96 As teorias jurídicas positivistas bebem da assertiva de que o direito se afirma precisamente quando do distanciamento entre a conduta humana e a prescrição jurídica. O principal ponto de conflito entre as teorias de direito natural e do positivismo jurídico consiste em considerar o sistema jurídico um sistema, respectivamente, de coerção interna, para o jusnaturalismo, ou externa, para o juspositivismo. Essa diferenciação entre coerção externae interna dá ensejo a duas técnicas opostas de regulação: a regulação por comando e 94BLACK, Julia. Talking about Regulation. Public Law, v. 1, p. 77-105, 1998. 95Vide BLACK, J. Rules and Regulators. Oxford: Clarendon Press, 1997; MCBARNET, D.; WHELAN, C. The Elusive Spirit of the Law: Formalism and the Struggle for Legal Control. Modern Law Review, v. 54, n. 6, p. 848-873, 1991; DIVER, C. S. The Optimal Precision of Administrative Rules. Yale Law Journal, p. 65-109, 1983. 96FULLER, L. L. The Morality of Law. New Haven: Yale University Press, 1964. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 55 controle, também chamada regulação por administração ordenadora e criminalizadora, como um tipo de regulação no Estado ou com enfoque no Estado, representada pela identidade entre regulação e normas estatais, entendida a regulação como uma faceta pública de governo regulatório da organização empresarial;97 e os tipos regulatórios apoiados em normas sociais ou suas galvanizadoras por intermédio de incentivos – regulação por incentivos –, quais sejam, a regulação apoiada em redes, a regulação descentralizada, ou descentrada em certas traduções, ou as diversas manifestações da regulação apoiada na cultura de negócios do setor regulado. A abordagem regulatória de comando e controle tem por ponto de partida a assertiva de que a norma jurídica detém força própria de vedação de conduta ou exigência de comportamento em um ambiente institucionalizado de controle direto e permanente sobre uma determinada área da vida econômica.98 Essa abordagem considera a ameaça de sanções aflitivas como suficiente para realinhamento de conduta do particular e, em especial, dos interesses empresariais rumo ao interesse público ou ao interesse de toda a sociedade.99 Trata-se, portanto, de uma abordagem que é reforçada pela suposição de que o sistema jurídico manifesta-se por intermédio de atos coercitivos extrínsecos. Kelsen100 defende que o direito seria uma técnica social de um sistema de coerção externa apoiada no pressuposto de que o comportamento humano restaria motivado pelo direito e por instituições jurídicas. A conduta humana seria afetada pela norma jurídica, cuja existência decorreria da validade do direito como uma consequência de atos ilícitos. Esse modo de se perceber o direito não é exclusivo de Kelsen. Ao digladiarem sobre a essência de um direito, correntes de pensamento do 97LAFFONT, Jean-Jacques. The New Economics of Regulation Ten Years After. Econometrica, v. 62, n. 3, p. 507-537, 1994. 98BALDWIN, Robert; CAVE, Martin; LODGE, Martin. (org.). The Oxford Handbook of Regulation. Oxford: Oxford University Press, 2010. 99COGLIANESE, Cary; MENDELSON, Evan. Meta-Regulation and Self- Regulation. In: BALDWIN, R.; CAVE, M.; LODGE, M. The Oxford Handbook of Regulation. Oxford: Oxford University Press, 2010. p. 146-168. 100KELSEN, Hans. Introduction to the Problems of Legal Theory. Trad. Bonnie Litschewski Paulson e Stanley L. Paulson. Oxford: Oxford University Press, 1992; KELSEN, Hans. Contribuciones a la Teoría Pura del Derecho. Trad. Eduardo Vásquez; R. Inés W. de Ortíz, et al. Cidade do México: Fontamara, 2003. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 56 positivismo jurídico inclinam-se a considerá-lo, seguindo Holmes, como somente a “substância de uma profecia”101, segundo a qual o poder público atuará contra aquele que o violentar. O direito, nessa acepção, se confunde com uma ameaça. Disso decorre que um direito estaria incrustado no comportamento social do ser humano como uma coerção extrínseca sob a forma de privação de algo que o ser humano mais valoriza, seja a liberdade, a propriedade, a segurança, a privacidade ou qualquer outro desejo humano. Esse pré-requisito da teoria pura do direito kelseniana de que o direito se resumiria a uma ameaça aderente aos centros de imputação normativas necessária à conformação da conduta individual entra em choque frontal com os fundamentos do direito natural, pois este último afirma a existência de princípios de dignidade, bondade e ordem intrínsecos à conduta individual.102 Em outras palavras, a força vinculante do direito, sob o ponto de vista do direito natural, encontra-se em um valor ou ideia intrínseca ao ser humano. O debate entre o direito natural e o positivismo jurídico interessa para esta abordagem de compliance regulatório ao demonstrar como uma postura positivista apoiada em forças coercitivas extrínsecas influenciou a regulação rumo a um modelo de comando e controle, por intermédio da consideração do direito como um simples conjunto de medidas coercitivas que se afirmam principalmente perante um ato ilícito. Quando o positivismo jurídico de Kelsen defende que é por intermédio de um ato ilícito que se comprova a existência do direito, ou quando Weber103 afirma que a identidade distintiva do direito decorre da existência de um aparato coercitivo, ambos estão reforçando a conclusão de que, quanto mais sanções aflitivas existirem em um sistema jurídico, maior será a sua eficácia na conformação do comportamento social. É bem verdade que o positivismo jurídico não se apresenta como um corpo consistente e monolítico de conceitos. Como prova disso, não se podem olvidar as críticas de H. L. A. Hart à teoria de Kelsen, entre outras coisas, pela desconsideração das diversas funções sociais do direito, em particular, a função da norma de reconhecimento – rule of recognition –, que seriam, segundo Hart, uma evolução frente à abordagem proposta por 101HOLMES JR., Oliver Wendell. Natural Law. Harvard Law Review, v. 32, p. 40-44, 1918, p. 42. 102FINNIS, J. Natural Law & Natural Rights. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2011. 103WEBER, Max. The Theory of Social and Economic Organization. Glencoe, Ill.: Free Press, 1957. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 57 Kelsen e apoiada no conceito de norma fundamental – Grundnorm.104 Apesar das eventuais discordâncias entre as correntes de pensamento do positivismo jurídico, seus seguidores convergem para a assertiva de que o fundamento do direito assenta-se sobre um conjunto de regras extrínsecas ao meio social que se pretende regular, regras estas voltadas à obtenção da conformação de conduta ou compliance social. Embora não se possa dizer que o método regulatório de comando e controle seja oriundo do positivismo jurídico, há uma evidente relação entre ambos. A relação entre positivismo jurídico e método regulatório administrativo ordenador e criminalizador demonstra que a preferência reinante até a década de 2010 no modelo regulatório adotado no Brasil em diversos setores por um modo específico de se lidar com o comportamento humano remonta à crença de que o direito se manifestaria principalmente por intermédio de sistemas coercitivos extrínsecos, em detrimento da crença de que ele se manifestaria por intermédio de normas gestadas no sistema social que as normas jurídicas pretendem regular. Se o regulador optasse, nesse ambiente de percepção generelizada de coerção extrínseca reinante, por uma abordagem regulatória que se fundamentasse sobre as normas intrínsecas aos negócios regulados, estaria nadando contra a corrente predominantemente positivista de seu tempo. Isso explica os olhares de desconfiança que os próprios operadores da máquina administrativa dirigem a teorias avançadas de regulação apoiadas em incentivos, mesmo cientes do fracasso de conformidade vivenciado em vários setores regulados sob o crivo da coerção extrínseca. Esse fracasso não decorre de uma opinião subjetiva, mas de dados objetivos colhidos pelo Tribunal de Contas da União em estudo que revelou que, entre 2011 e 2014, apenas 6,03% das multas aplicadas teriam sido efetivamente convertidas em arrecadação.105 Somente na ANATEL, para tomar um exemplo da agência modelar da experiência regulatória brasileira, estudo de coautoria do próprio presidente da agência clama por soluções alternativas ainda ao revelar que,de 2000 a 2017, foram instruídos 57 mil processos administrativos sancionatórios, na sua quase totalidade resultando em multas, sem repercussão sensível na reconformação dos comportamentos desviantes que os originaram.106 104HART, H. L. A. The Concept of Law. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 2012. 105TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). Acórdão nº 1970/2017, j. 06/09/2017, plenário. Processo nº 029.688/2016-7. Relator Aroldo Cedraz. 106FREITAS, Luciano Charlita de; MOURA FILHO, Ronaldo Neves de; STANZANI, Juliano; MOREIRA, Renata Machado; MORAIS, Leonardo Euler MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 58 Ao se falar em coerção extrínseca, também é importante observar que se está optando por uma teoria de incentivos extrínsecos, que considera como incentivo toda medida extrínseca que induz determinados agentes a adotar um comportamento desejável. A teoria dos incentivos influencia teorias jurídicas que consideram o direito como força motriz do comportamento individual em direção a resultados socialmente desejados, como, por exemplo, a consideração de que os contratos criariam incentivos jurídicos à atuação concorde das partes,107 as patentes gerariam benefícios via monopólio de direitos intelectuais, incentivando novas invenções,108 e a responsabilidade civil serviria como incentivo ao comportamento lícito ao impor custos via ameaça de composição de danos.109 Ao questionar essa tendência em resumir o direito a um conjunto de incentivos extrínsecos, Atiq110 defende que os incentivos podem dar ensejo tanto a resultados desejados quanto indesejados. Quando a coerção extrínseca é prescrita como a pomada milagrosa para todos os males, pode-se chegar à conclusão, por outro lado, de que o único meio de se obter um resultado desejado seja por intermédio de agentes extrinsecamente motivados. A desconexão entre o padrão normativo de facto de um determinado grupo social e o direito positivo consiste no objeto de pesquisa da sociologia do direito desde a proposta de Montesquieu, no Espírito das Leis, de que o clima e a geografia explicariam o direito nacional, pelo que outros o seguirão, como a famosa assertiva de 1907 de William Graham Sumner, de que os caminhos da lei não conseguem alterar a prática social e de. Obrigações de fazer em sanções regulatórias no Brasil: aplicação ao setor de telecomunicações. Revista de Direito, Estado e Telecomunicações, v. 11, n. 2, p. 71-86, outubro 2019, p. 75-76. 107SCHWARTZ, A.; SCOTT, R. E. Theory and Limits of Contract Law. Yale Law Journal, v. 113, n. 3, p. 541-620, 2003. 108HUBBARD, W. Competitive Patent Law. Florida Law Review, v. 65, n. 2, p. 341-394, 2013. 109LANDES, W. M.; POSNER, R. A. The Economic Structure of Tort Law. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1987; CALABRESI, G. The Costs of Accidents: A Legal and Economic Analysis. New Haven, CT: Yale University Press, 1970. 110ATIQ, E. H. Why Motives Matter: Reframing the Crowding Out Effect of Legal Incentives. Yale Law Journal, v. 123, n. 4, p. 1070-1116, 2014. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 59 de que a legislação é incapaz de criar costumes,111 até a proposta de 1913 de Eugen Ehrlich, segundo o qual o aparato conceitual do direito positivo deve refletir o direito vivo ou o caráter peculiar das instituições sociais de uma Nação.112 O desenvolvimento mais recente de estudos empíricos em diversos setores regulados sobre a real capacidade do direito em conformar condutas minou a certeza de que o uso exclusivo de medidas coercitivas extrínsecas desconectadas dos parâmetros normativos internos à sociedade seria capaz de explicar os resultados de sucesso e fracasso regulatórios e, com isso, evidenciou a importância de se rediscutir o real nível de compliance regulatório experimentado nos setores regulados. As abordagens regulatórias de comando e controle tendem a se concentrar sobre fatores econômicos, sob o argumento de que seriam os principais fatores de conformação do comportamento empresarial. Há duas formas de homenagear essa proposta a depender do valor que se dê aos custos de implementação ou ao compliance regulatório. Se o objetivo primário do regulador for o de obter o cumprimento da regulação segundo uma perspectiva estritamente econômica, o nível ótimo de implementação será alcançado quando os benefícios sociais de implementação da regulação forem iguais aos custos de implementação. Outra forma, entretanto, de se medir o sucesso regulatório está em avaliá-lo segundo o nível de compliance regulatório alcançado, independentemente do custo de sua implementação, apoiando-se na teoria punitiva de dissuasão. Segundo essa teoria, o regulado seria dissuadido de cometer um ilícito e, portanto, caminharia no sentido do compliance regulatório, quando os custos impostos pela intervenção normativa extrínseca superassem os lucros percebidos pelo regulado decorrentes da conduta ilícita. Esse raciocínio parte do pressuposto de que a empresa seria um ator racional que ponderaria os custos e benefícios de um ato ilícito.113 De acordo com essa abordagem, as empresas não adotariam condutas que lhes causassem prejuízo para o fim de cumprirem objetivos regulatórios – compliance regulatório – a não ser que suas ações fossem exigidas por normas 111SUMNER, William Graham. Folkways: A Study of Mores, Manners, Customs and Morals. Mineola, NY: Dover, 2002. 112EHRLICH, Eugen. Fundamental Principles of the Sociology of Law. Tradução de Walter L. Moll. New Brunswick, NJ: Transaction Publishers, 2009. 113ABBOT, C. Enforcing Pollution Control Regulation: Strengthening Sanctions and Improving Deterrence. Londres: Bloomsbury Publishing, 2009. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 60 jurídicas e os custos pelo descumprimento excedessem os benefícios em batimento com a probabilidade de serem descobertas e impedidas de praticarem o ato ilícito. Os incentivos econômicos não explicam, todavia, a variedade de comportamentos empresariais dos regulados em casos em que a empresa implementa deveres jurídicos além do exigido pela normatização (beyond compliance) e que não decorram simplesmente de indivisibilidade tecnológica ou de uniformidade tecnológica (overcompliance).114 A conformidade perante as normas – compliance regulatório – decorreria, segundo correntes de pensamento apoiadas em comando e controle, da coerção extrínseca, mas ela não explica todos os casos de comportamento empresarial para além do exigido pela regulamentação. Outros fatores internos à dinâmica empresarial, como processos internos de poder e de liderança115 ou condições de incerteza regulatória e exasperada percepção sobre os riscos empresariais decorrentes do descumprimento da regulação116 também dirigem o comportamento do regulado. 2.3 TEORIAS JURÍDICAS SUBSTANTIVAS E PROCEDIMENTAIS DA REGULAÇÃO A partir dessa constatação de insuficiência do comando e controle para explicação do compliance regulatório, outras teorias regulatórias tentarão dar conta desse paradoxo ao resgatar a compreensão do direito como apoiado em normas e pressões sociais intrínsecas ao ambiente regulado. Diversas são hoje as teorias econômicas e de ciência política sobre a regulação.117 114VOGEL, D. The Market for Virtue: The Potential and Limits of Corporate Social Responsibility. Washington, DC: Brookings Institution, 2005. 115PRAKASH, A. Why do Firms Adopt 'Beyond-Compliance' Environmental Policies? Business Strategy and the Environment, v. 10, p. 286-299, 2001. 116DEHART-DAVIS, L.; BOZEMAN, B. Regulatory Compliance and Air Quality Permitting: Why do Firms Overcomply? Journal of Public Administration Research and Theory, v. 11, n. 4, p. 471-508, 2001. 117Vide LEVI-FAUR, D. (Ed.). Handbook on the Politics of Regulation. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 2011; OGUS, Anthony I.; VELJANOVSKI, C. G. Readings in the Economics of Law and Regulation. Oxford: Clarendon Press, 1984. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 61 Por outrolado, na seara jurídica, algumas teorias jurídicas da regulação são de caráter substantivo, ao orientarem a regulação rumo a valores que as justificam, tais como, aos direitos fundamentais, assim entendidos como direitos institucionalizados conforme proposto neste manual, ou aos cânones interpretativos derivados de princípios do Estado Regulador na mediação entre regulação e representação democrática para administração do risco social inscrito nos direitos do consumidor, na proteção do meio ambiente, na saúde do trabalhador próprio a autores gestados na experiência americana de surgimento da regulação social das décadas de 1960 e 1970.118 Outras teorias detêm caráter procedimental ao indicarem a forma de regular, independentemente dos valores a serem protegidos ou afastando-os dos holofotes, segundo estratégias de desenho regulatório ou de interação com a cultura de negócios regulados. Essas últimas teorias configuram-se em espécies de teorias procedimentais da regulação, tais como, a regulação ordenadora e criminalizadora,119 também chamada de comando e controle, a regulação como forma jurídica de engenharia social,120 a teoria da regulação inteligente,121 as teorias sistêmicas de regulação, sejam elas autopoiéticas ou não, como é o caso, respectivamente, da teoria do trilema regulatório122 e da teoria da regulação responsiva123 e, finalmente, a teoria que bebe da própria 118SUNSTEIN, Cass Robert. After the Rights Revolution: Reconceiving the Regulatory State. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1993. 119KELSEN, Hans. Introduction to the Problems of Legal Theory. Trad. Bonnie Litschewski Paulson e Stanley L. Paulson. Oxford: Oxford University Press, 1992; KELSEN, Hans. Contribuciones a la Teoría Pura del Derecho. Trad. Eduardo Vásquez; R. Inés W. de Ortíz, et al. Cidade do México: Fontamara, 2003; WEBER, Max. The Theory of Social and Economic Organization. Glencoe, Ill.: Free Press, 1957. 120OGUS, Anthony I. Regulatory Law: Some Lessons from the Past. In: Legal Studies (London) 12(1): 1-19, 1983. 121GUNNINGHAM, Neil; GRABOSKY, Peter. Smart Regulation: Designing Environmental Policy. Oxford: Clarendon Press, 1998. 122TEUBNER, Gunther. After Legal Instrumentalism: Strategic Models of Post- Regulatory Law. In: TEUBNER, G. Dilemmas of Law in the Welfare State. Berlin: Walter de Gruyter, 1988. p. 299-326. 123AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992; BRAITHWAITE, John. Enforced Self-Regulation: A New Strategy for Corporate Crime Control. Michigan Law Review, v. 80, n. 7, p. 1466-1507, Jun. 1982; _____. Corporate Crime in the Pharmaceutical Industry. Londres: MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 62 construção jurídica do fenômeno processual de direito público: a teoria processual administrativa da regulação.124 Algumas delas estarão mais inclinadas a incorporarem métodos de governança regulatória e, em decorrência disso, preocupam-se prioritariamente, para definição das opções regulatórias, com o nível de conformidade regulatória – regulatory compliance - como parte da justificativa de sua adoção. A teoria da regulação responsiva, por exemplo, é comumente defendida por incorporar em sua fórmula de pirâmides de persuasão e de punição a justificativa de que o método responsivo levaria a uma melhor efetivação da conformidade/compliance regulatório. O compliance regulatório, ou conformidade à regulação aplica-se tanto à regulação de comando e controle, quanto às espécies regulatórias apoiadas em normas e pressões sociais intrínsecas ao setor regulado, mas é nestas últimas que ele se apresenta como um problema de primeira grandeza, já que a regulação ordenadora e criminalizadora é dogmática em pressupor que a conduta do particular seria afetada pela previsão normativa extrínseca e comumente – ou convenientemente – dispensa a análise sobre o real nível de conformidade regulatória efetivamente por ela alcançado. A proposta de alteração do modelo regulatório apoiado principalmente na garimpagem de incentivos no ambiente regulado – intrínsecos – exige dos estudos pertinentes que se debrucem com mais Routledge & Kegan Paul, 1984; _____. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985; _____. Crime, Shame and Reintegration. Cambridge: Cambridge University Press, 1989; _____. Restorative Justice & Responsive Regulation. Oxford: Oxford University Press, 2002; _____. Rewards and Regulation. Journal of Law and Society, v. 29, n. 1, p. 12-26, March 2002; _____. Meta Risk Management and Responsive Regulation for Tax System Integrity. Law & Policy, v. 25, n. 1, p. 1- 16, Jan. 2003; _____. Responsive Regulation and Developing Economies. World Development, v. 34, n. 5, p. 884-898, 2006; _____. The Essence of Responsive Regulation. University of British Columbia Law Review, v. 44, p. 475-520, 2011; KOLIEB, J. When to Punish, When to Persuade and When to Reward: Strengthening Responsive Regulation with the Regulatory Diamond. Monash University Law Review, v. 41, n. 1, p. 136-162, 2015; DRAHOS, P. Intellectual Property and Pharmaceutical Makets: A Nodal Governance Approach. Temple Law Review, v. 77, p. 401-424, 2004. 124CROLEY, Steven P. Regulation and Public Interests: The Possibility of Good Regulatory Government. Princeton: Princeton University Press, 2008. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 63 afinco sobre o tema do compliance regulatório, elevando-o à categoria de componente essencial de teorias da regulação que afirmam a necessidade de modelagem regulatória à imagem e semelhança da cultura de negócios do regulado. As teorias da regulação que enxertam em sua fundamentação o compliance regulatório, de fato, rendem homenagem a uma visão mais utilitária da regulação, justificando-a pelo melhor resultado de efetiva aplicação das normas e seu cumprimento por parte dos regulados. Assim, a conformidade regulatória ingressa na regulação como justificativa central para adoção de estratégias regulatórias alegadamente mais eficazes, mas também como um índice, entre muitos, destinado a inspirar a arquitetura de modelos regulatórios pautados pela aferição do sucesso ou fracasso de sua implementação. O certo é que, atualmente, regulação e conformidade andam de mãos dadas em quaisquer modelos regulatórios, com especial estrelato no seio das teorias da regulação apoiadas em normas e pressões sociais, aqui definidas como de incentivos intrínsecos, a partir de uma rede interdependente de influências recíprocas entre mecanismos regulatórios e atitudes dos regulados125 em alianças produtivas. Se a importância do estudo da conformidade regulatória, como demonstrado até aqui, é diretamente proporcional à aplicação de teorias regulatórias apoiadas na cultura de negócios do regulado, a propósito festejadas em organismos internacionais, isso, por si só, revela a centralidade do compliance social, em geral, e do compliance regulatório, em especial, nas discussões de modelagem regulatória que ocupam os atuais esforços de administração das leis, bem como evidencia a também centralidade de modelos regulatórios apoiados em incentivos intrínsecos e a importância em se aprofundar o estudo das motivações dos regulados. A essa altura, a crítica de Eric Posner126 sobre como são comumente vistas as normas sociais que motivam o comportamento é relevante para que seja devidamente posicionada uma teoria regulatória apoiada em incentivos intrínsecos sem que isso represente a opção por uma posição dogmática sobre os efeitos que eles operam na conformidade à norma. 125PARKER, C.; NIELSEN, V. L. Compliance: 14 Questions. In: DRAHOS, P. Regulatory Theory: Foundations and Applications. Acton, AU: Australian National University Press, 2017. p. 217-232. 126POSNER, Eric A. Law and Social Norms. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2002.MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 64 O autor critica a forma como o problema da desconsideração da regulação extrajurídica (nonlegal regulation) ou mecanismos extrajurídicos de cooperação (nonlegal mechanisms of cooperation) ou formas extrajurídicas de ordenação (nonlegal forms of order) têm sido tratados pela literatura, pois os estudos comportamentais, em geral, somente tem se preocupado em dizer que as forças exógenas seriam insuficientes para explicar a ordem social, mas não avançariam sobre o que efetivamente motiva o comportamento social em obedecer as regras não estatais. Ele propõe um arcabouço analítico para análise das formas de constrangimento social e descreve tais normas sociais como regularidades comportamentais (behavioral regularities). A compreensão de como as normas sociais operam efeitos no comportamento depende de um modelo de cooperação, que, por sua vez, depende da dinâmica de incentivos sociais. A análise regulatória deve fazer uso das normas e incentivos sociais não meramente como instrumentos de alcance de bens coletivos, mas como seres institucionais e vivos, que precisam ter suas motivações preservadas para que permaneçam eficazes. É como se a maioria das teorias regulatórios apoiadas em normas sociais garimpassem as normas existentes na cultura de negócios do setor regulado e as reputassem eternas e imutáveis, ao invés de dependentes dos fatores sociais que lhes dão força. Sem um estudo aprofundado das motivações sociais para cumprimento das normas sociais, mesmo a regulação apoiada em normas sociais pode, rapidamente, transformar-se em algo ainda menos eficaz que a regulação de comando e controle, pois estará apoiada em normas pretensamente sociais sem vida e força social. Uma norma social sem força social já não é mais, por óbvio, uma norma social, e sim um fantasma de norma social presente na regulação e um engodo, pois despida de força social que lhe dá utilidade. Enfim, a norma social, ao ser incorporada à regulação sem o cuidado de averiguação institucional contínua sobre os incentivos sociais que as preservam, a transforma em uma norma estatal de terceira ordem, pois despida do constrangimento extrínseco e agora também despida do constrangimento intrínseco do meio social que a hospedava. A crítica é dolorosa, pois revela que as teorias regulatórios que se apoiam em normas sociais para fugirem do estigma da dependência do constrangimento externo, na verdade, podem estar agregando outra forma de constrangimento, às vezes, mais violento e desumano, que o estatal. Posner revelará que uma regulação apoiada em normas sociais não é necessariamente bem intencionada e sensível, mas reforçada por um rol distinto de constrangimentos. Os demais autores não deixam de falar TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 65 dos constrangimentos ao se remeterem ao termo, por exemplo, de pressões sociais, mas ao deixarem de se aprofundar sobre tais pressões, transmitem um ar de superioridade implícita à sua moralidade e as imunizam de críticas quanto à justiça de sua implementação, reforçando-se a assertiva de que a regulação apoiada em normas sociais é essencialmente utilitária, sorvendo forças da maior eficácia dos modelos que propõe e convenientemente fechando os olhos às reais motivações que dão força às normas sociais, tornando-as relevantes. Em outra seara, estudo empírico recente demonstrou que o pressuposto usualmente aceito de que experiências reputadas de sucesso sobre as motivações dos membros de entidades de garantia mútua de crédito se apoiariam no capital social não se confirmou. A conclusão do estudo foi, pelo contrário, de que tais iniciativas não se apoiariam, efetivamente, na confiança interpessoal ou em normas sociais oriundas das relações interpessoais, mas em confiança de natureza institucional apoiada em normas formais.127 Essa constatação empírica sobre a experiência modelar italiana festejada pela teoria do capital social demonstra como qualquer proposta séria de autorregulação depende de seu encaixe em um modelo institucional regulador que lhe dê viabilidade. Não existe, nessa linha de pensamento de dependência entre o comportamento e a confiança institucional, autorregulação desregulada. Mesmo propostas de códigos voluntários de conduta para setores regulados procuram evidenciar ser indispensável que, para alcance de efeitos benéficos, eles sejam inseridos em um ambiente de efetivo monitoramento por terceiros independentes,128 que agem como substitutos de reguladores,129 ou mesmo, que exista uma teia entrelaçada de códigos 127SAMPAIO, P. S. Capital Social nas Entidades de Garantia Mútua de Crédito na Itália e no Brasil: uma análise jurídico-institucional comparada. Brasília: Tese de Doutorado defendida na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 2019, p. 428. 128COHEN, David (Ed.). Voluntary Codes: A Guide for their Development and Use. Ottawa: Office of Consumer Affairs/Industry Canada/Regulatory Affairs Division/Treasury Board Secretariat, 1998. 129GUNNINGHAM, Neil; GRABOSKY, Peter. Smart Regulation: Designing Environmental Policy. Oxford: Clarendon Press, 1998, p. 262. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 66 voluntários e normas governamentais capazes de se apresentarem de forma complementar e construtiva.130 Não por acaso, o artigo precursor de uma das teorias jurídicas da regulação mais conhecidas, publicado no volume 80 da Michigan Law Review de 1982, era intitulado government enforced self-regulation – autorregulação com constrangimento normativo governamental, ou, na tradução usual, embora genérica, de autorregulação regulada –, no intituito de diferenciá-lo da corregulação.131 Aliás, a proposta de autorregulação regulada de Braithwaite presente nesse artigo de 1982 foi posteriormente incorporada, dez anos mais tarde, como Capítulo 4 do livro de 1992 inaugural da regulação responsiva.132 No artigo original, de 1982, um dos argumentos de evidência da necessidade de uma nova forma de lidar com a regulação era precisamente a provável deterioração regulatória oriunda da política pública de Ronald Reagan de relaxamento regulatório (easygoing regulatory approach), bem como uma resposta a propostas apoiadas na “inocência em atribuir às empresas a regulação de si mesmas”.133 Uma teoria responsiva da regulação acreditará na autorregulação, mas não em qualquer autorregulação: ela desconfia da autorregulação voluntária. Uma teoria de autorregulação regulada parte do pressuposto de que as empresas são, de fato, mais capazes de regular suas atividades empresariais do que o governo, mas terem maior capacidade de regular não significa que sejam mais propensas voluntariamente a regularem com efetividade. Eis a grande diferença entre propostas de autorregulação voluntária e autorregulação regulada: somente a última delas impõe soluções antipáticas às empresas, fazendo uso de grupos de compliance empresarial, por exemplo, mediante regramento governamental de que o diretor de 130WEBB, Kernaghan; MORRISON, Andrew. The Law and Voluntary Codes: Examining the 'Tangled Web'. In: WEBB, K. Voluntary Codes: Private Governance, the Public Interest and Innovation. Ottawa: Carleton Research Unit for Innovation, Science and Environment, 2004. p. 97-174. 131BRAITHWAITE, John. Enforced Self-Regulation: A New Strategy for Corporate Crime Control. Michigan Law Review, v. 80, n. 7, p. 1466-1507, Jun. 1982. 132AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992. 133BRAITHWAITE, John. Enforced Self-Regulation: A New Strategy for Corporate Crime Control. Michigan Law Review, v. 80, n. 7, p. 1466-1507, Jun. 1982, p. 1470. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 67 compliance deve reportar à agência reguladora, à diretoria da empresa ou a um corpo de auditores externos, quaisquer diretivas oriundas dos grupos de compliance que tenham sido ignoradas pela gerênciaempresarial.134 Trata-se de uma regulação de segundo nível, em que as ordens de conduta são oriundas do setor regulado, submetidas à aprovação do órgão regulador, cabendo ao regulador lidar com as deficiências de controles internos, agregando consequências impositivas a processos de auditoria e a recomendações de grupos de compliance, definindo parâmetros mínimos de melhoria dos serviços prestados, anunciando margens aceitáveis de impacto regulatório, entre outros. Se a autorregulação desejável será factível ou não, isso é objeto de outro nível de análise, que enfrentará não somente casos de incentivos institucionais à adoção de medidas autorregulatórias, mas também afirmará, por exemplo, que mesmo experiências fracassadas de autorregulação podem levar ao sucesso da coordenação empresarial em torno a regras mais efetivas.135 As propostas mais avançadas de novas teorias regulatórias não são, portanto, de mero relaxamento regulatório, mas de maior inteligência regulatória ponderada entre regulação e espaços de autonomia controlada do regulado. A compreensão sobre a motivação do comportamento regulado é, portanto, um aspecto central para o contínuo melhoramento de um modelo regulatório. Ela revela que o método regulatório deve estar aberto à apreensão diuturna dos motivos cambiantes que regem o comportamento dos regulados, mesmo nos espaços de maior liberdade de autodeterminação autorizados pelo regulador. 2.3 TÉCNICA, ESTRATÉGIA, MODALIDADE, MECANISMO E MODELO REGULATÓRIO Além do método jurídico-regulatório de coerção extrínseca, intrínseca ou de sua composição, a compreensão das teorias jurídicas da regulação exige situá-las em meio aos conceitos de técnicas/instrumentos 134Id., Ibid. 135SAMMECK, J. A New Institutional Economics Perspective on Industry Self-Regulation. Heidelberg: Gabler/Springer Fachmedien, 2012, p. 140. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 68 regulatórios, estratégias regulatórias, forma/modo/modalidade regulatória e mecanismo/engrenagem regulatória. Quando se fala em uma teoria de regulação apoiada em comando ou ordenação, trata-se de algo distinto de técnicas ou instrumentos de comando ou ordenação, e não se confunde com modo/modalidade/mecanismo de regulação extrínseca por comando ou ordenação, nem mesmo com estratégia regulatória de matiz ordenadora, embora todos esses conceitos partilhem de um denominador comum. Por exemplo, uma vertente de teoria responsiva da regulação renderá homenagem a técnicas de comando e controle, mas se oporá frontalmente a uma teoria de comando e controle. As técnicas de regulação136 diferem da teoria regulatória, pois esta implica ordená-las funcionalmente. Coisa inteiramente distinta é a estratégia regulatória, que pode fazer uso de diversos modelos ou teorias. Para fins de maior clareza do discurso, os termos teoria/modelo regulatório, técnica/instrumento regulatório, estratégia/modelagem regulatória e forma/modo/modalidade/mecanismo regulatório detêm significados próprios e relevantes para a compreensão do universo regulatório. Instrumentos ou técnicas regulatórias são meios de que o Estado lança mão com a finalidade de influenciar o comportamento social para alcance dos objetivos inscritos em políticas públicas. Tais meios, sob o enfoque jurídico, configuram-se em instituições de direito público e institutos de direito privado, enquanto cristalizações de cultura jurídica estabilizadas no ordenamento jurídico e na prática institucional de um país. Uma concessão, por exemplo, é uma técnica contratual e estatutária de prestação de serviços públicos. Estratégias regulatórias dão um passo além, pois gravadas pela característica funcional de integração de instrumentos/técnicas regulatórias à procura de influenciar o comportamento social. Enquanto os instrumentos/técnicas regulatórias podem ser concebidos como despidos de direção sistêmica, as estratégias regulatórias representam um esforço de modelagem, mediante integração de instrumentos e técnicas em uma apresentação inovadora. Exemplo de estratégia regulatória responsiva de metagestão de riscos é dada por Braithwaite em uma pirâmide de constrangimento com 136MORGAN, Bronwen; YEUNG, Karen. An Introduction to Law and Regulation. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 313-322. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 69 respostas regulatórias distribuídas da base da pirâmide ao seu ápice à medida que as empresas são classificadas como de baixo, médio, médio- alto, ou alto risco de transferência de lucros para o exterior.137 Não se desconhece, aqui, que parte da literatura regulatória trata de estratégias regulatórias como sinônimo de técnicas regulatórias, mas mesmo essa literatura faz uso do termo estratégias regulatórias no plural para representar um conjunto de diferentes técnicas capazes de alcançar um resultado regulatório ótimo.138 Para além do fato de que estratégias regulatórias representam combinações de técnicas regulatórias, o Estado somente aplica estratégia regulatória quando agrega inteligência de integração inovadora à sua atuação regular, à semelhança do que fazem empresas integradoras como a Embraer e a Apple, fugindo da prática ultrapassada de atuação pontual de uso de instrumentos regulatórios em apresentação não sistêmica, esperando-se que tais instrumentos solucionem problemas para os quais eles não foram desenhados. Quando o Estado faz uso do contrato de concessão como instrumento/técnica regente do comportamento do concessionário, do espaço de atuação do regulador, seja ele poder concedente ou não, e dos direitos e deveres dos usuários, adota-se uma técnica de regulação juridicamente bem definida, geral e passível de administração conjuntural, mas despida de inteligência de integração de instrumentos regulatórios, aprisionando-se o Estado, o regulado e os potenciais afetados às consequências jurídicas previamente limitadas pela característica estatutária e contratual da concessão. Quando, entretanto, a concessão não é utilizada como meio com pretensão de satisfação plena do processo regulador, mas como ingrediente de uma receita regulatória que integre outros meios de regulação, passa-se a visualizar algo mais complexo e multifacetado, que é a estratégia de modelagem regulatória. Essa estratégia pode fazer uso ou não de concessões, que terão sido ressignificadas para o exercício de uma função condizente com a posição que ocupam na estratégia regulatória, seja uma função central de guia contratual-estatutário de previsibilidade das consequências das condutas na vida do regime jurídico instituído pelo 137BRAITHWAITE, John. Meta Risk Management and Responsive Regulation for Tax System Integrity. Law & Policy, v. 25, n. 1, p. 1-16, Jan. 2003. 138BRAITHWAITE, John. Enforced Self-Regulation: A New Strategy for Corporate Crime Control. Michigan Law Review, v. 80, n. 7, p. 1466-1507, Jun. 1982. p. 1467. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 70 contrato de concessão, seja uma função periférica de disciplina de situações jurídicas específicas e marginais infensas, e.g., às técnicas de incentivo adotadas pela estratégia regulatória. À exceção de teorias regulatórias de matiz institucionalista, a doutrina regulatória falará do uso de instrumentos/técnicas de forma assistemática, resumindo-se a mencionar a combinação de instrumentos/técnicas regulatórias sob o codinome de regulatory toolbox approach (abordagem regulatória de caixa de ferramentas), como espécies de abordagens regulatórias apoiadas em conjuntos preordenados de instrumentos disponíveis.139 Assim, na literatura regulatória, o que se está aqui chamando de estratégia regulatória costuma ser referido como abordagem regulatória apoiada em conjunto predefinido de instrumentos ou técnicas. Coisa distinta é a forma, modo ou modalidade regulatória. A forma/modo/modalidade regulatória envolve, necessariamente, a compreensão do funcionamento do mecanismo ou engrenagemregulatória, o que leva a uma opção sobre a natureza do sistema controlado. Se o mecanismo/engrenagem pressuposta de funcionamento de um motor tem natureza de combustão, sabe-se que ele reagirá à injeção de combustível com determinada octanagem, somente funcionará se de fato houver algo que provoque a combustão, entrará em funcionamento se for proporcional a relação entre a energia armazenada, energia gerada e potência utilizada, terá futuro se a dinâmica das engrenagens estiver bem lubrificada, enfim, se um conjunto de fatores ínsitos ao modo de ser daquele motor forem contemplados. A técnica de alimentação de um motor a combustão naturalmente difere da técnica de alimentação de um motor elétrico. Por analogia, cada instrumento/técnica detém DNA próprio predominante, servindo melhor ou pior, ou mesmo sendo contraproducente para certo mecanismo de funcionamento da regulação em que for utilizado. O mecanismo de funcionamento de uma engrenagem específica posiciona os instrumentos, os ressignifica, lhes atribui propósito ou os nulifica. Instrumentos/técnicas regulatórias somente terão significado pleno quando correlacionadas às funções abertas por engrenagens regulatórias. O modo de influenciar o comportamento social define o status de uso e efeitos dos instrumentos/técnicas regulatórios disponíveis no ordenamento jurídico. 139MORGAN, Bronwen; YEUNG, Karen. An Introduction to Law and Regulation. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 9. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 71 Tais distinções são úteis para compreensão das teorias regulatórias. Por exemplo, a teoria da regulação inteligente (smart regulation) trabalhará precisamente com a adequação ou inadequação de instrumentos regulatórios entre si, propondo uma tabela de instrumentos que se reforçam e outros que se anulam para que o regulador tenham ao alcance de suas mãos recomendações teóricas de um rol de instrumentos que devem ser utilizados em conjunto ou evitados em determinado caso. Por outro lado, uma teoria de regulação responsiva de persuasão e punição proporá modalidades regulatórias partindo do pressuposto de que os regulados agem segundo mecanismos de convencimento (persuasão) e punição integrados em um desenho institucional que os reforce e os nutra constantemente. Enfim, toda teoria regulatória pressuporá um mecanismo de funcionamento do regulado, recomendará estratégias integradoras de técnicas regulatórias mais ou menos elaboradas e lançará mão das formas regulatórias que considere mais apropriadas. Quando o jurista pressupõe um significado único de um instituto/instituição jurídica – instrumento/técnica regulatória de caráter jurídico –, declara, em alto e bom tom, sua ignorância quanto às repercussões oriundas das modalidades regulatórias e invisibiliza essa dimensão também jurídica de organização da atividade administrativa de regular. Não há entendimento uniforme sobre o tema, mas são formas/modalidades regulatórias reconhecidas, em geral, pela doutrina, às vezes, confundindo-as com os próprios instrumentos/técnicas regulatórios ou mesmo entendendo-as como categorias mais amplas agregadoras de instrumentos/técnicas segundo a modalidade de controle que encarnam:140 a) comando; b) competição; c) consenso; d) comunicação; e) arquitetura. Outra divisão mais intuitiva e usual de formas de regular é a que se assenta na distinção entre formas de autorregulação, metarregulação e heterorregulação, ou ainda, em modalidades específicas de regular baseadas em risco (risk-based regulation), gestão (management-based regulation), performance (performance-based regulation), redes (governança nodal), transparência e accountability (tripartismo regulatório), corregulação (e.g. enforced self-regulation), mecanismos de mercado (market-based regulation), desregulação (voluntarismo regulatório), autorregulação, ou ordenação estatal (comando e controle). 140MORGAN, Bronwen; YEUNG, Karen. An Introduction to Law and Regulation. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 79-113. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 72 A forma regulatória de comando e controle, por exemplo, usualmente referida como CAC regulation, ao partir do princípio de que o mecanismo de conformação intencional de conduta de terceiros opera por intermédio da coerção extrínseca estatal, define a regulação como aquela implementada “pelo Estado por meio de regras jurídicas apoiadas em sanções frequentemente penais”141, e assume um conjunto de pressupostos sobre como a engrenagem regulatória funciona, tais como o de que o Estado deteria a capacidade de comandar e controlar, a exclusividade de fazê-lo, que os comandos e controles seriam efetivos, que o mecanismo regulatório seria informado pelo caráter unilateral da regulação, pela existência de uma relação linear entre causa – comando e controle – e efeito – conformidade à norma –, por informação suficiente detida pelo Estado sobre as razões que informam o comportamento dos regulados. Serão precisamente tais pressupostos os evidenciados por teorias regulatórias descentralizadas, que apontarão falhas de informação e conhecimento, falhas de implementação e falhas de motivação para avançarem outras formas regulatórias que não padeçam da crença no mecanismo centralizado no Estado e unilateral de regular. A opção pela forma de regular também é uma opção pelo significado da regulação. Dos três conceitos de regulação apresentados por Baldwin, Cave e Lodge,142 a regulação por comando e controle somente diz respeito aos dois primeiros, que se apoiam nas ideias de regulação como conjuntos específicos de comandos normativos ou como influência deliberada do Estado sobre o comportamento social. A forma de regular de comando e controle implica a adoção do conceito de regulação como promulgação de regras pelo governo acompanhadas de instrumentos de monitoramento e constrangimento normativo ou como qualquer forma de intervenção na atividade econômica. Essa forma de regulação estadocêntrica não conversa, todavia, com um terceiro conceito de regulação descentralizada, assim entendido como quaisquer mecanismos de controle social ou formas de influência que afetem o comportamento social. A coincidência usual na literatura regulatória entre a regulação entendida como normas administrativas 141BLACK, Julia. Critical Reflections on Regulation. Australian Journal of Legal Philosophy, v. 27, p. 1-35, 2002, p. 2. 142BALDWIN, Robert; CAVE, Martin; LODGE, Martin. (org.). The Oxford Handbook of Regulation. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 3. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 73 impositivas143 – primeiro conceito de regulação acima exposto – e a forma regulatória de comando e controle explica a dificuldade que o jurista tem de compreender outras formas de regulação como igualmente legítimas. No entanto, o significado da regulação como normatização administrativa ou como influência deliberada do Estado sobre o comportamento social não fecham as hipóteses de influência em regimes apoiados em comando, explicitamente lembrados pela literatura regulatória,144 tais como incentivos econômicos, contratuais, estatutários, fomento, outorgas, gestão da informação ou quaisquer outras técnicas juridicamente possíveis e, quando mais eficientes, juridicamente priorizáveis frente à tradicional e já desgastada técnica associada ao mecanismo de comando e controle, quando utilizada sem uma articulação estratégica de teorias mais elaboradas. As teorias da regulação mais avançadas lidarão precisamente com o ajuste fino entre técnicas/estratégias regulatórias e modalidade/mecanismo regulatório, como ocorre com a regulação inteligente, que basicamente propõe sequências de técnicas regulatórias que se reforçam ou se nulificam de acordo com um mecanismo regulatório de arquitetura responsiva. Finalmente, no esquema de termos regulatórios, a teoria ou modelo regulatório é uma formulação coerente de técnicas, estratégias e modalidadesregulatórias propostas com o intuito de repercutirem sobre a engrenagem regulatória pressuposta do espaço regulado. A teoria/modelo regulatório pressupõe, portanto, determinado mecanismo de funcionamento da engrenagem regulatória, leva em conta as possibilidades disponíveis de instrumentos/técnicas regulatórias existentes no ordenamento jurídico e, se for uma teoria mais atualizada com os tempos de hoje, incorporará espaço às estratégias regulatórias de integração inovadora já ponderadas com o mecanismo regulatório pertinente. A definição acima de teoria regulatória pode ainda ser incrementada com a consciência de que uma teoria jurídica da regulação nasce em berço esplêndido previamente munido de instituições jurídicas das quais poucas foram talhadas para o fim específico de regular. Uma teoria jurídica da regulação beberá de teorias jurídicas tradicionais de base sobre o funcionamento da engrenagem jurídica e as enriquecerá com aspectos de 143DUDLEY, Susan E.; BRITO, Jerry. Regulation: A Primer. 2. ed. Arlington: Mercatus Center / The George Washington University Regulatory Studies Center, 2012. 144BALDWIN, Robert; CAVE, Martin; LODGE, Martin. Understanding Regulation: Theory, Strategy, and Practice. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 3. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 74 identidade do mundo regulatório. Ao se compreender uma teoria regulatória, ela será tanto mais produtiva, quanto mais informar o comportamento dos atores da regulação com previsibilidade, visão de conjunto e ajuste dinâmico de técnicas regulatórias. Tais distinções terminológicas não servem somente ao deleite teórico – aliás, uma contradição em termos –, mas têm efeitos concretos importantes. A partir dessa diferenciação, é possível compreender que os instrumentos/técnicas regulatórios devem ser aquilatados segundo sua pertinência ao mecanismo regulatório, bem como podem ser híbridos, ao se apoiarem em mais de um mecanismo para regular o comportamento social. Em outras palavras, os instrumentos/técnicas regulatórias não são guloseimas espalhadas em uma prateleira à disposição do regulador para seu deleite segundo o desejo do dia, mas componentes apropriados ou não ao mecanismo regulatório que se crê apto a solucionar um problema regulatório. O esforço de modelagem regulatória é, por natureza, complexo. A modelagem regulatória tem por enfoque moldar o comportamento social regulado, podendo fazer uso de técnicas/instrumentos regulatórios informados por mecanismos de arquitetura regulatória, comandos, persuasão, abstenção, intervenção direta, contratos, prestação, fomento, fiscalização, todos eles com inteligência de incentivos, ou não. Ao atuar como integrador de técnicas regulatórias, o regulador perfaz, mutatis mutandis, o papel de uma empresa integradora de novas tecnologias. Embora, em regra, não crie novas técnicas, cria processos inovadores que repercutem decisivamente no sucesso do empreendimento público. Nesse sentido, uma proposta de modelagem regulatória produto de uma estratégia regulatória é funcional prescritiva – normativa –, pois vai além da caracterização do processo regulatório para se concentrar na melhor integração de técnicas rumo à conformação eficiente de condutas. Se, para regular, o regulador se satisfizesse em preservar as características básicas da regulação, estaria desenhando o mecanismo regulado sem agregar inovação. É precisamente o aspecto da procura por respostas inovadoras para os problemas regulatórios que ocupa atenção diferenciada na literatura mais atualizada de regulação.145 O regulador pode agir, ou não, de forma estratégica. Se não o faz, aposta na perfeição das soluções do passado e na imutabilidade do 145BLACK, Julia; LODGE, Martin; THATCHER, Mark. (Eds.). Regulatory Innovation: A Comparative Analysis. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 2005. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 75 sistema regulado. Se, no entanto, fizer bom uso da experiência empírica documentada na teoria regulatória e do conhecimento sedimentado em juízos comparados, aplicará, em um primeiro momento, técnicas regulatórias importadas de outros setores ou de outros países; em um segundo momento, de mecanismos regulatórios e consequentes técnicas a eles pertinentes; e, em um terceiro momento, de estratégias inovadoras que integram as técnicas e as posicionam segundo a melhor relação possível frente aos mecanismos regulatórios. Tais estratégias assim o serão não por nascerem de boas intenções ou intuições, mas da compreensão de fundo de que o regulador ideal é um integrador de técnicas regulatórias, fazendo uso do conhecimento sobre modelos teóricos e sua experiência, e avançando como um integrador criativo em constante inovação pensada em batimento com as técnicas, os modelos e a experiência conjuntural. Quando Hood, Rothstein e Baldwin146 descrevem a anatomia dos regimes regulatórios frente a parâmetros de risco, irão utilizar três categorias de controle usuais em estudos de sociologia do direito e estudos políticos. Um sistema regulador teria, por características básicas, a partir de uma definição cibernética, a tríade de configuração esperada do sistema ou expectativas desejadas (standard-setting), monitoramento (information-gathering) e adaptação dinâmica (behaviour-modification). A regulação, vista por tais eixos, contempla realidades em que o sistema regulado seria um ser independente ao regulador ou que com ele se confundiria. Um processo regulador normativo aplicado às ciências sociais, entretanto, vai muito além dessa configuração para trabalhar com um sistema regulador com regras e existência separadas do regulado, estando, ambos, em posição jurídica distinta. Por isso, não basta, para identidade de uma teoria jurídica da regulação, que ela descreva a tríade de características cibernéticas da regulação, mas que prescreva, em propostas de modelagem regulatória, as técnicas e os mecanismos a serem integrados em um esforço criativo que ultrapasse a identidade da regulação para qualificá-la por formas de apresentação inovadoras que irão agregar valor(es) antes não vislumbrado(s), mas, a partir de agora, caracterizado(s) por função de eficiência e por método próprio. É importante que se compreenda que, embora seja possível concordar com a definição de regulação por seus componentes básicos, será o aspecto teleológico que lhe dará caráter – finalidade de regular – e serão os pressupostos que informam a regulação que lhe darão locus institucional. 146HOOD, Christopher; ROTHSTEIN, Henry; BALDWIN, Robert. The Government of Risk: Understanding Risk Regulation Regimes. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 20-27. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 76 É neste último aspecto que se situa a opção por uma regulação por incentivos intrínsecos, decorrente da desestabilização de verdades dogmáticas sobre a regulação centralizada na figura estatal em direção ao que a doutrina passou a chamar de regulação descentralizada ou descentrada147, tornando mais complexo, mas, ao mesmo tempo, mais produtivo, o ato de regular. O ato de regular, entretanto, não se rende a preconceitos de que técnicas e mecanismos somente seriam úteis quando aplicados segundo os valores que os justificaram. Há um preconceito, na própria literatura recente de regulação, de que a opção por uma forma/modo/modalidade regulatória – seja o controle, competição, comunicação, consenso ou arquitetura – implicaria, necessariamente, a adoção de determinados valores.148 Essa literatura dirá que cada modalidade regulatória carregaria consigo uma aceitação implícita de legitimidade quanto ao fator ou aspecto regulado que poderia ser preterido. Por exemplo, ela dirá que a modalidade regulatória apoiada em competição comunicaria aceitação estatal de comportamentos desviantes, desde que a repercussão concorrencial fosse alcançada. A crítica corrente é no sentido de que somente uma atuação punitiva sobre condutasdesviantes revelaria uma opção por inaceitabilidade da conduta e de que modalidades regulatórias que privilegiassem a autonomia do regulado legitimariam comportamentos desviantes nos espaços não controlados sob fundamento de melhoria geral da prestação dos serviços. Trata-se, entretanto, de percepção que restringe o horizonte de opções regulatórias, pois pressupõe que somente a proibição direta de determinada atividade a preveniria e, ainda, que a proibição direta e sancionada seria o método mais eficaz e eficiente para alcançar o benefício esperado na proteção dos valores diretivos inscritos na política pública. O problema dessa percepção intuitiva de que modalidades regulatórias carregariam consigo opções predefinidas de valorização de opções políticas está no fato de que ela pressupõe que a opção por uma determinada modalidade significaria, necessariamente, valorizar somente o aspecto de comportamento atacado pela correspondente técnica regulatória, quando, na verdade, ao se optar por uma estratégia regulatória inovadora, o regulador é chamado a voltar sua atenção para comportamentos passíveis 147BLACK, Julia. Critical Reflections on Regulation. Australian Journal of Legal Philosophy, v. 27, p. 1-35, 2002. 148MORGAN, Bronwen; YEUNG, Karen. An Introduction to Law and Regulation. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 79 e seguintes. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 77 de gerar incentivos de boas práticas em seara distinta daquela diretamente atingida pela norma. Essa deficiência de percepção doutrinária das formas de regulação como dependentes de opções de valoração política é evidente quando se lança mão de casos. Quando o regulador resolve, por exemplo, adotar técnica de incentivos intrínsecos sobre a estrutura societária do regulado, ao não adotar técnicas de vedação direta de conduta que dispare uma sanção estatal, não por isso, opta por aceitar o resultado que pretende suprimir. Pelo contrário, uma técnica de internalização societária de consequências indesejadas ao regulado por aferição de resultados indesejados pelo regulador pode fazer repercutir sobre o comportamento desviante efeitos ainda mais devastadores para a vida da empresa e, em especial, para quem é o diretor de plantão. É inquestionável que tais efeitos perniciosos sentidos ainda mais fortemente em casos de consequências societárias internalizadas por determinação regulatória, ou seja, por técnica de regulação intrínseca, revela, claramente, uma opção pela inaceitabilidade da prática que dispare o efeito societário prejudicial. O contrassenso intestino da literatura regulatória de vincular técnicas e mecanismos regulatórios a valores predeterminados gera padrões contraproducentes para a atuação do regulador. Parte-se de um preconceito intuitivo do passado e despido de comprovação empírica, para julgar propostas presentes e aferidas empiricamente. Não por acaso, as iniciativas de nova modelagem regulatória vêm manietadas por técnicas contraditórias. Se o regulador, ao adotar nova modalidade regulatória, não compreende que ela é inerentemente híbrida e que pode ser funcionalmente orientada a fins não-intuitivos, acreditará que ela estará em contradição com os objetivos centrais de sua existência quando, na verdade, a adoção de técnica acusada de ser mais liberal, dando-se autonomia ao regulado para a prática de atos indesejados, pode ser dosada para extrair um resultado de conformidade regulatória muito superior ao esperado de uma modalidade regulatória de controle ostensivo, pretensamente mais obediente à intransigência com o ilícito. A defesa de que o ilícito somente pode ser combatido por meio de medidas exparsas sancionatórias, no mais das vezes, camufla a realidade de promiscuidade entre o lícito e o ilícito, atribuindo-se maior valor ao momento necessário sim da punição, mas insuficiente para obtenção do bem efetivamente desejado de bom comportamento do regulado. Talvez o maior desafio do presente esteja em alterar a compreensão intuitiva, mas empiricamente falsa, de que a punição representa o ápice de manifestação de preocupação da autoridade com o problema regulado para revelar-se no que ela realmente é: a última etapa de MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 78 um longo e malogrado processo regulatório que efetivamente não atingiu o resultado desejado, ou seja, a conformidade à norma. Outro aspecto preparatório à descrição de teorias jurídicas da regulação é o de que as categorias usualmente utilizadas pela literatura regulatória para descrição de gêneros de teorias regulatórias, à exceção da institucionalista – ou seja, teorias de interesse público e teorias de interesse privado –, têm obscurecido a visualização do aspecto jurídico do fenômeno regulatório. Costuma-se falar em razões de existência política, econômica e sociológica da regulação, mas não em razões de existência jurídica. Mesmo abordagens principiológicas apoiadas no ordenamento jurídico têm sido confundidas com opções políticas por valores justificadores da regulação, como ocorre, por exemplo, com a usual classificação das propostas de Cass Sunstein, de 1990, e de Tony Prosser, de 1986, como espécies do gênero teorias da regulação de interesse público149, sob o argumento de que o papel do direito na regulação se resumiria a fornecer um quadro geral com a única finalidade de coordenação e tradução da decisão política bem intencionada em ordens normativas, muito ao gosto de uma visão processual do direito, que tem espaço, por exemplo, em uma teoria jurídico-processual administrativa da regulação, como a de Croley que, por sua vez, é usualmente classificada como teoria da regulação de interesse privado, haja vista tratar do diálogo dos interesses privados no espaço processual administrativo estatal, mesmo quando não há dúvida, para a ciência jurídica, de que o processo administrativo de que trata Croley150 é indubitavelmente uma instituição de direito público tratada pela teoria do direito público, cujo arauto mais visível é o interesse público. Ocorre, entretanto, que o significado de interesse público para as teorias da regulação apoiadas em razões econômicas, políticas ou sociológicas, de cunho subjetivo, é essencialmente distinto do interesse público para a teoria jurídica de direito público, de caráter objetivo e ordenamental. Ao se dedicar espaço, neste livro, ao conceito de regulação para o direito, afirma-se existir uma razão de ser da regulação para além de teorias econômicas e políticas, e, por consequência, colmata-se uma 149MORGAN, Bronwen; YEUNG, Karen. An Introduction to Law and Regulation. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 27-42. 150CROLEY, Steven P. Theories of Regulation: Incorporating the Administrative Process. Columbia Law Review, v. 98, n. 1, p. 1-168, Jan. 1998. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 79 falta reconhecida pela literatura regulatória de justificação jurídica da regulação. Uma teoria jurídica da regulação somente se sustenta se estiver apoiada em uma justificativa jurídica e isso explica o tradicional desconforto do jurista em lidar com novas estratégias regulatórias, quando ele tem sido apresentado a teorias da regulação sem fundamentação jurídica. Para que não se pareça estar tomando as dores de outros, o próprio Prosser dirá, mais de vinte anos depois do seu escrito que o inseriu na categoria de teorias regulatórias de interesse público sob o olhar político e econômico, que, embora a regulação econômica tenha dominado a literatura regulatória até o presente, outras formas de regulação estão apoiadas em uma racionalidade distinta de promoção e proteção de direitos.151 Esse encaixe forçado de teorias jurídicas em moldes criados a partir de juízos econômicos e políticos fecha os olhos ao movimento constitucionalista do século XX, como se ele não tivesse afirmado o conteúdo objetivo dos direitos fundamentais e sua precedência ao discurso político constituído; ele obscurecea compreensão já sedimentada no constitucionalismo moderno de que, senão em sua manifestação de poder constituinte originário, precário e de exceção, a decisão política é subordinada ao estatuto jurídico fundamental, em vez de sua origem. A justificativa jurídica da regulação é a proteção de direitos. As implicações políticas, econômicas ou sociológicas serão, decerto, relevantes, mas em um segundo nível de análise sobre as técnicas e mecanismos regulatórios apropriados à solução de determinado problema. A ponderação dos efeitos de uma estratégia regulatória frente às suas consequências sobre direitos, repercussões econômicas e políticas públicas ocorrem após solucionado o pressuposto de uma teoria jurídica da regulação, que é a justificativa do ato de regular como sediada na proteção de direitos fundamentais. Morgan e Yeung152 admitem que a explicação do porquê da regulação, como parte integrante de uma teoria da regulação, tem sido arvorada em ciência política, economia e sociologia. É precisamente por isso que a tradicional divisão das teorias da regulação em três vertentes – interesse público, interesse privado e institucionalistas – aproveita pouco ao direito, pois tal divisão lida com razões de existência da regulação de fundo econômico, político ou sociológico, carecendo de fundamento jurídico que, por sua tradição constitucionalista, é objetivo e assentado no ordenamento 151OLIVER, Dawn; PROSSER, Tony; RAWLINGS, Richard (Eds.). The Regulatory State: Constitutional Implications. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 312. 152MORGAN, Bronwen; YEUNG, Karen. An Introduction to Law and Regulation. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 16. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 80 jurídico, conectando-se ao processo decisório como instituição de direito público funcionalmente subordinada aos princípios jurídico-constitucionais. Justificativas econômicas, políticas e sociológicas concentrarão suas atenções sobre as forças motivadoras da tomada de decisão e a relação entre os interesses individuais e a manifestação coletiva. Para uma análise jurídica, entretanto, parte-se do pressuposto de que tais forças são domadas por princípios jurídicos que regem uma teoria jurídica da regulação. Assim, falar-se em uma teoria da regulação do interesse público, pressupondo-se que os elaboradores das leis e da regulamentação teriam uma intenção benevolente é indiferente à análise jurídica, que se concentra na pertinência objetiva da decisão frente ao contexto de princípios e regras jurídicas, anteriores e superiores aos órgãos decisórios. Isso, por si só, já evidencia o desajuste e inadequação em se tentar aplicar a razão de ser de teorias econômicas e políticas de regulação a uma teoria jurídica. Estar-se-ia criando um Frankenstein teórico, utilizando- se da razão de ser da regulação de uma ciência e camuflando-a com argumentos jurídicos. Não se quer dizer com isso que estudos de posicionamento do direito no esquema de teorias regulatórias econômicas e políticas não sejam úteis ou precisos em seus pressupostos, pois expressamente se preocupam em evidenciar o papel do direito em teorias de interesse público ou privado.153 Para o direito, entretanto, o regulado e o regulador não agem com o desejo de atingirem objetivos públicos ou privados; eles agem em sintonia ou não com a orientação normativa objetiva e são algozes ou vítimas dos constrangimentos normativos voltados à promoção de princípios jurídicos para teorias jurídicas de oposição entre o público e o privado, ou são partícipes na consecução da eficiência regulatória para teorias jurídicas inspiradas no Estado Regulador, como é o caso da teoria responsiva da regulação, que se propõe a superar o antagonismo entre discursos de desregulação e de intensificação regulatória para abraçar a nova realidade de fluxo institucional ou regulatório.154 Outro ponto de esclarecimento prévio ao avanço sobre as teorias jurídicas da regulação encontra-se na tendência a se confundirem percepções jurídicas sobre a manifestação do direito como coerção extrínseca ou intrínseca com a discussão sobre opções regulatórias endógenas 153MORGAN, Bronwen; YEUNG, Karen. An Introduction to Law and Regulation. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 41; 51. 154AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p .15. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 81 ou exógenas da análise econômica. Abordagens regulatórias econômicas identificadas como regulação baseada em desempenho (performance-based regulation – PBR) surgiram como uma alternativa à abordagem tradicional de regulação de utilidades públicas baseada em custo do serviço (cost-of-service regulation – COSR). A regulação por desempenho se diferenciava da apoiada em custo pelo fato de introduzir um preço de referência exógeno ou preço- teto, reservando-se espaço à criatividade empresarial em encontrar formas para economia de custos, premiando-as por sua eficiência. Como se pode ver, a regulação baseada em desempenho não surgiu em antagonismo à regulação de comando e controle, mas deu os primeiros passos rumo a uma maior liberdade de atuação e escolhas empresariais pautadas por metas. Outras formas mais recentes de regulação baseada em desempenho passaram a identificá-la com um tipo regulatório de mecanismos dirigidos de incentivo ao desempenho (targeted performance incentive mechanisms – PIMS), que seguem a lógica de repercussões normativas premiais ou aflitivas decorrentes de critérios de desempenho155 muito ao gosto da racionalidade finalística do Estado de Bem-estar Social. Nessa linha, o principal autor de uma das teorias mais festejadas de regulação – a regulação inteligente, ou smart regulation – expressamente classificará a regulação baseada em padrões tecnológicos, a regulação baseada em padrões de performance e a regulação baseada em padrões de processos como tipos de regulação de comando e controle156 quando do estudo do mix de instrumentos regulatórios. A regulação baseada em performance é tida, nessa linha de pensamento, como um tipo de padrão de comando e controle com um modus operandi distinto dos demais, mas ainda inscrito no espaço do dirigismo, com o diferencial de que, ao contrário dos padrões tecnológicos e processuais, evita prescrições específicas, mas não deixa de ser um tipo de regulação prescritiva de resultados. Quando, por sua vez, estudos econômicos diferenciam regulação por preço-teto, ou regulação price cap (RPC), como uma alternativa à regulação baseada em custos, ou regulação por custo do serviço ou taxa de retorno (RCS), eles o fazem com o propósito de reforçar a meta exógena em detrimento à técnica mais invasiva da regulação por custo do serviço. Para uma análise jurídica, entretanto, tais tipos 155AAS, Dan. Performance Based Regulation: Theory and Applications in California. Berkeley, 2016, p. 2-10. 156GUNNINGHAM, Neil; GRABOSKY, Peter. Smart Regulation: Designing Environmental Policy. Oxford: Clarendon Press, 1998, p. 424. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 82 regulatórios apresentam-se como instrumentos regulatórios tipificados como atos administrativos ordenadores condicionantes de direitos, que podem ser utilizados no modelo regulatório de comando e controle, ou reaproveitados, em um esforço de definição de novo propósito a ditos instrumentos, em modelos regulatórios propriamente apoiados na lógica do incentivo do Estado Regulador, ou seja, na racionalidade reflexiva de estímulos indiretos. Finalmente, não se pode deixar de reforçar o problema da legitimidade de modelos regulatórios imbricados no paradigma do Estado Regulador de reserva da técnica a instâncias de administração das leis. Esse é um problema que atinge o universo de manifestações regulatórias desgarradas da ilusão de uma Administração meramente executiva, implementadora de prescrições legais oniscientese universais. Em suma, a legitimidade importa para qualquer manifestação regulatória, seja ela apoiada em modelagem de coerção extrínseca ou intrínseca. A questão da legitimidade é, entretanto, revisitada quando da sugestão de adoção de modelos regulatórios apoiados em incentivos intrínsecos, que pressupõem atribuição de funções ao regulado e maior abertura do regulador ao diálogo e à cooperação com os atores envolvidos, sejam regulados, consumidores ou terceiros. A literatura que se debruça com mais afinco sobre o aspecto da legitimidade regulatória preocupa-se com o fenômeno mais amplo da regulação policêntrica, ou, em termos jurídicos, dos regimes regulatórios policêntricos,157 muitas vezes indevidamente reduzidos aos conceitos de autorregulação, autoconstrangimento, autogovernança e auto-organização.158 Os problemas de legitimidade elencados em tais regimes regulatórios policêntricos são de maior monta que os enfrentados pelo tipo regulatório apoiado em incentivos intrínsecos dependentes de regulação estatal. Essa diferença entre níveis de déficit de legitimidade – entre uma regulação pura para além do Estado e uma regulação resultado da composição estratégica de atuação estatal e incentivos intrínsecos – é reconhecida pela literatura de regulação descentralizada,159 mas isso não 157BLACK, Julia. Constructing and Contesting Legitimacy and Accountability in Polycentric Regulatory Regimes. Regulation & Governance, v. 2, p. 137- 164, 2008. 158PLAGGENHOEF, Wijnand van. Integration and Self Regulation of Quality Management in Dutch Agri-Food Supply Chains. Wageningen, The Netherlands: Wageningen Academic Publishers, 2007, p. 84. 159BLACK, Julia. Legitimacy and the Competition for Regulatory Share. Law, Society, Economy Working Papers, v. 14, p. 1-25, 2009. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 83 desautoriza a remissão às soluções apontadas por pesquisas sobre experiências de regulação policêntrica160, cujo ápice estará situado na discussão sobre governança democrática no âmbito da regulação supragovernamental161, nos chamados non-state regulators, ou NSRs162, em um direito administrativo oriundo de regulação global163, na padronização de códigos de conduta voluntários164, ou mesmo na autorregulação empresarial165. As teorias esmiuçadas neste capítulo encontram-se parcialmente vacinadas contra tais déficits de legitimidade, pois não prescindem do Estado, como é o caso de parcela do rol de teorias de regulação policêntrica. Acusa-se a postura cooperativa de uma regulação por incentivos indiretos intrínsecos de estar mais inclinada ao tráfico de influências e a um déficit de isenção pública, mas o mesmo pode ser dito de 160Vide HARLOW, Carol; RAWLINGS, Richard. Promoting Accountability in Multilevel Governance: A Network Approach. European Law Journal, v. 13, n. 4, p. 542-562, July 2007; COHEN, Joshua; SABEL, Charles F. Global Democracy? International Law and Politics, v. 37, p. 763-797, 2005; FROOMKIN, Michael. Wrong Turn in Cyberspace: Using ICANN to Route Around the APA and the Constitution. Duke Law Journal, v. 50, p. 17-184, 2000; SCOTT, Colin. Accountability in the Regulatory State. Journal of Law and Society, v. 27, n. 1, p. 38-60, 2000. 161Vide MEIDINGER, Errol. Competitive Supra-Governmental Regulation: How Could It Be Democratic? Chicago Journal of International Law, v. 8, n. 2, p. 513-534, 2008; PAUWELYN, Joost; WESSEL, Ramses A.; WOUTERS, Jan. (Eds.). Informal International Lawmaking. Oxford: Oxford University Press, 2012. 162Vide BLACK, Julia. Legitimacy and the Competition for Regulatory Share. Law, Society, Economy Working Papers, v. 14, p. 1-25, 2009. 163Vide CASSESE, Sabino. Administrative Law without the State? The Challenge of Global Regulation. International Law and Politics, v. 37, p. 663- 694, 2005; KINGSBURY, Benedict; KRISCH, Nico; STEWART, Richard B. The Emergence of Global Administrative Law. Law and Contemporary Problems, v. 68, p. 15-61, Summer/Autumn 2005. 164Vide CLAPP, Jennifer. The Privatization of Global Environmental Governance: ISO 14000 and the Developing World. Global Governance, v. 4, p. 295-316, 1998; SETHI, S. Prakash. (Ed.). Globalization and Self-Regulation: The Crucial Role that Corporate Codes of Conduct Play in Global Business. New York: Palgrave MacMillan, 2011. 165Vide BROWN, Dana; WOODS, Ngaire. (Eds.). Making Global Self- Regulation Effective in Developing Countries. Oxford: Oxford University Press, 2007; PARKER, Christine. The Open Corporation: Effective Self- Regulation and Democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 84 uma postura não cooperativa impositiva unilateral de comando, que cria dificuldades para vender facilidades. Em qualquer dos casos, seja de teorias regulatórias apoiadas em coerção extrínseca, seja de teorias apoiadas em coerção intrínseca, deve- se estar atento a soluções que tragam maior legitimidade à atuação regulatória. Não há pecado original em nenhuma teoria da regulação: elas serão o que nós fizermos delas. 2.3.1 O PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE DAS TÉCNICAS REGULATÓRIAS A Emenda Constitucional n° 109, de 15 de março de 2021, acrescentou novo § 16 ao art. 37 da Constituição Federal, introduzindo, no rol de comandos constitucionais à administração pública brasileira, a determinação de que os órgãos e entidades da administração pública realizem avaliação das políticas públicas, inclusive com divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados. Esse novo mandamento do poder constituinte derivado eleva à categoria constitucional a orientação básica regulatória de atuação administrativa estatal pautada por finalidades materiais de execução de políticas públicas, gravando as normas infraconstitucionais com o efeito plasmador da instrumentalidade das técnicas regulatórias utilizadas, inclusive, por óbvio, a técnica sancionadora, para determinar à administração pública, em geral, e ao regulador, em especial, o dever constitucional de orientação de sua conduta por avaliação conjuntural dos instrumentos utilizados. Não mais é facultado ao administrador supor a adequação dos efeitos de técnicas administrativas inscritas nas leis. A administração obtusa tornou-se flagrantemente inconstitucional; encontra-se, agora, escancarada a ordem constitucional de que a administração pública avalie sua atuação e, portanto, a aplicação automática e irrefletida de institutos jurídicos ou pretensas ordens legais ou regulamentares desprovidas de finalidades materiais. Os constructos de direito administrativo já deviam antes ser reorientados à sua função regulatória, mas com a EC 109/2021, a atuação da administração pública em evidenciar o propósito regulatório das instituições de direito administrativo, e.g., dos contratos de concessão, das autorizações de uso de bens públicos, das sanções administrativas, dentre outras, tornou-se um dever expresso constitucional gravado pela exigência adicional de avaliação dos resultados. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 85 A nova norma constitucional determina a avaliação dos resultados e, por decorrência, ordena à administração pública que especifique quais são eles, ou seja, quais são os objetivos regulatórios que devem ser avaliados para que se comprove a utilização devida das instituições de direito administrativo. Uma sanção administrativa que não resulte em efetiva conformidade regulatória à política pública correspondente deve ser, portanto, substituída fundamentadamente por outras medidas de conformidade, providências administrativas ou estratégias regulatórias que resultem em melhor índice de conformidade ou expectativa de um ambiente de contínua melhoria da prática regulatória; a aplicação de uma sanção desconectada do resultado esperado é expressamente inconstitucional. O princípio ínsito ao novo § 16 do art. 37 da Constituição Federal de 1988 já informava o ordenamento jurídico brasileiropor força da clássica instituição de direito público do desvio de finalidade, mas com a constitucionalização do comando normativo de avaliação de resultados de políticas públicas, ele é reforçado e esclarecido como princípio da instrumentalidade das técnicas regulatórias. Assim, não se trata mais de uma opção do legislador ou do regulador infralegal aplicar modelagem regulatória pautada pela aferição diuturna da eficácia das medidas de conformidade de condutas reguladas, mas um dever constitucional de que se opte por técnicas regulatórias capazes de efetivamente atrair o regulado para uma conduta regular de conformidade, como resultado maior de qualquer atuação regulatória. Mesmo que as leis ou normas infralegais prevejam a aplicação de determinada sanção, ou mesmo de técnicas consensuais, se elas não corresponderem, de fato, aos resultados regulatórios esperados que, por óbvio, não podem ser o de arrecadação de uma multa ou de simpatia do regulador, o agente público que a aplica deve sustar o processo sancionatório, anular a sanção ou partir diretamente para ela em prol da medida de conformidade reputada adequada pela modelagem regulatória adotada. 2.3.2 FORMAS AUTORREGULATÓRIAS A literatura regulatória é profícua e de assimilação recente nos países não alinhados à tradição anglo-americana. Por isso mesmo, gera imprecisões conceituais. A forma/modalidade/modo de regular denominada autorregulação talvez seja a campeã de reclamações sobre sua imprecisão terminológica. Isso ocorre por força do ajuste conceitual sofrido pelo direito continental e latino-americano ao assimilarem o conceito jurídico de MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 86 regulação, bem como por força de traduções imprecisas sobre modalidades de autorregulação. Por exemplo, a literatura alemã e francesa está repleta de referências ao termo autorregulação regulada, respectivamente regulierte Selbstregulierung e autorégulation régulée.166 Um estudo mais aprofundado sobre os termos ainda é aguardado, mas há um consenso de que ele foi cunhado nos movimentos de privatização alemã postal, telecomunicacional e ferroviária da década de 1990,167 acompanhando a introdução, na literatura jurídica constitucional e administrativa, do termo regulação (Regulierung), que tomou o lugar antes ocupado por referências a regulamentação ou regramento (Regelung), tal qual ocorreu no Brasil, com a progressiva substituição do termo regulamentação por regulação precisamente em meio a um movimento paralelamente vivenciado de privatizações de energia, telecomunicações e petróleo, em que a regulamentação diz respeito à produção normativa de um nível inferior àquele que pretende regulamentar, enquanto regulação significa um conjunto de medidas de cunho normativo e administrativo que reconfigura conjunturalmente determinado sistema regulado, inclusive medidas regulamentares. Antes da adoção do termo ‘regulação’, na Alemanha, utilizava- se de termo sem abertura conceitual apropriada aos novos tempos. O Selbstregelung, autorregramento ou autorregulamentação, significa a existência de regras comportamentais desenvolvidas como compromissos morais ou éticos auto-impostos em típica manifestação de auto-organização não estatal. Ocorre, todavia, que nem toda manifestação autorregulatória é auto-imposta ou prescinde de atuação estatal, o que evidencia porque uma nova terminologia foi cunhada para explicar o fenômeno regulatório. Hoje, fala-se, também na Alemanha, em autorregulação (Selbstregulierung) e, por autorregulação deve-se entender a existência de regras comportamentais desenvolvidas com alguma participação do próprio destinatário ou exclusivamente desenvolvidas por ele. O terreno da autorregulação é movediço, mas se pode dizer, com segurança, que os tipos de autorregulação partilham de um denominador comum de crença no poder de incentivos intrínsecos ao 166Vide COLLIN, Peter. Regulierte Selbstregulierung in rechtshistorischer Perspective: Studien und Materialien. München: Max Planck Institute for European Legal History, 2018, p. 29. 167Vide COLLIN, Peter; RUDISCHHAUSER, Sabine. Regulierte Selbstregulierung: Historische Analysen hybrider Regelungsstrukturen. Trivium 21: 1-20, 2016, p. 2. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 87 universo regulado para reorientação do comportamento dos afetados; no reconhecimento da crença na motivação interna ao sistema regulado. Essa crença não significa uma aposta cega na autossuficiência da autorregulação, mas no princípio que a guia, ou seja, de que há forças internas ao sistema regulado que ou são suficientes, ou relevantes à conformidade do comportamento. A autorregulação, como forma regulatória, não é, portanto, um dogma sobre a possibilidade do regulado reger-se por si só sem a interferência do regulador. É precisamente esse ponto que a diferencia da teoria dos sistemas autopoiéticos, que parte do pressuposto invariável de que os sistemas deteriam códigos próprios capazes de se reproduzirem e de manterem sua diferenciação frente aos demais sistemas sociais. Pelo contrário, a autorregulação não é um dogma sobre a habilidade dos sistemas de se autogerirem. Formas autorregulatórias podem ser utilizadas por teorias regulatórias que se apoiem nesse dogma. A autorregulação serve, por assim dizer, a vários deuses, ao se apresentar como um conjunto de formas regulatórias decorrentes da atribuição de certo nível de autonomia ao sistema regulado para produzir suas próprias regras, contribuir no processo de elaboração de regras próprias ou situadas no regulador e/ou cooperar na aplicação ou fiscalização da regulação. Para que se possa diminuir a confusão conceitual, passemos à especificação dos tipos de autorregulação. A primeira apreensão possível da autorregulação ocorre em sua definição mais singela de espaço de autocontrole. O significado mais intuitivo e divulgado de autorregulação a posiciona em espaço antípoda ao do controle estatal, como um lugar de autorregulação social (gesellschaftliche Selbstregulierung) contraposto ao espaço de controle estatal (staatliche Steuerung); um espaço de predomínio das forças de autocontrole (Sebststeuerungskräfte)168 em clara oposição entre hierarquia – como controle por um superior no exercício de função diretiva169 -, a partir de uma 168GRIMM, Dieter. Regulierte Selbstregulierung in der Tradition des Verfassungsstaats, p. 11. In: BERG, Wilfried et al. Die Verwaltung – Beiheft 4 – Regulierte Selbstregulierung als Steuerungskonzept des Gewährleistungsstaates. Berlin: Duncker & Humblot, 2001, p. 9-20. 169OGUS, Anthony I. Regulation: Legal Form and Economic Theory. 2ª ed., Oxford-Portland: Hart Publishing, 2004, p. 2. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 88 concepção de estatismo, e mercado, como autorregulação.170 Essa concepção de autorregulação encontra guarida no primeiro dos dois momentos de autorregulação, que são o da autorregulação em setor desregulado e o da autorregulação em setor regulado. Essa primeira concepção de autorregulação, como posição antípoda ao do controle estatal, enquadra-se perfeitamente na tradição de construção do sujeito de direitos. Trata-se do momento histórico de afirmação da autorregulação em setor desregulado, com origem na tradição de redes de comércio, a exemplo da Lex Mercatoria do Século XI do Mediterrâneo ou da Liga Hanseática dos mares do Norte e Báltico, ou mesmo de manifestações mais recentes que se projetaram nos primórdios da regulação antitruste, com a autorregulação dos trustes da segunda metade do Século XVIII, nos Estados Unidos da América. Outra é a concepção de autorregulação em setor regulado, que abre espaço a uma miríade de formas regulatórias. São basicamente duas as subdivisões desse tipo autorregulatório: a) a autorregulação à sombra do Estado (under the shadow of the State); e b) a autorregulação com o Estado, corregulação (co-regulation ou Ko-Regulierung). Adentrando os pormenores, a autorregulaçãoà sombra do Estado é um conceito que revela um incentivo institucional à autorregulação sob a ameaça de intervenção estatal caso não se alcancem resultados autorregulados, compromissos entre os agentes regulados entre si ou com o regulador, ou o interesse público esteja ameaçado.171 Por sua vez, na corregulação ou autorregulação com o Estado, o Estado é parceiro dos reguladores privados, podendo cooperar em diversos níveis. Nesse sentido, a autorregulação é um efeito de modelagens regulatórias abertas à experiência de partilhar com o regulado da responsabilidade pela conformidade da conduta. Em outras palavras, a autorregulação não é a crença na autonomia privada destacada do Estado, mas uma forma povoada de instrumentos próprios à interação entre a regulação estatal e a privada. A corregulação pressupõe que exista um 170Vide MELDE, Thomas. Nach Nachhaltige Entwicklung durch Semantik, Governance und Management: Zur Selbstregulierung des Wirtschaftssystems zwischen Steuerungsillusionen und Moralzumutungen. München: Springer VS, 2012, p. 19. 171KLEINSTEUBER, Hans J. The Internet between Regulation and Governance, p. 63. In: MÖLLER, Christian; AMOUROUX, Arnaud (org.). The Media Freedom Internet Cookbook. Viena: Organization for Security and Co- operation in Europe, 2004, p. 61-75. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 89 arcabouço normativo estatal definidor de objetivos, direitos, constrangimentos normativos, mecanismos processuais e condições para o monitoramento da conformidade regulatória, bem como pressupõe a combinação de medidas legais e regulatórias com ações tomadas pelos atores interessados, apoiando-se em sua expertise prática.172 A forma da combinação entre medidas estatais e privadas, bem como quem lança a iniciativa de regulação é variável. Por se tratar de forma regulatória com graus diversos de participação do regulado na concepção das normas e/ou na sua implementação, a corregulação tem por aspecto central que seus participantes sejam representativos, responsalizáveis por seus atos e capazes de seguirem procedimentos abertos à averiguação social. Uma possibilidade de corregulação ocorre quando a cooperação se dá em instituições comuns de implementação da normatização regulatória, em que há a operacionalização conjunta da regulamentação via, e.g., entidades privadas responsáveis pela avaliação de indicadores de qualidade de serviços. Outra possibilidade encontra-se na operacionalização por um determinado ator regulado, ou outros níveis de agregação de atores regulados, de normas negociadas com o regulador e garantidas por ele, como ocorre com a chamada autorregulação com constrangimento normativo estatal, ou autorregulação obrigatória ou constrangida (enforced self-regulation) da literatura australiana da regulação responsiva. A literatura responsiva173 tratará da enforced self-regulation como espécie de metarregulação. Também é nessa seara da corregulação que floresce a literatura alemã de autorregulação regulada (regulierte Selbstregulierung), em que se pressupõe um diálogo entre as partes interessadas em um meio termo entre as opções de autorregulação pura e de regulação burocrática central de comando e controle.174 Não é trivial a identificação dos pontos de contato e diferenças entre o enforced self-regulation e o regulated self-regulation, mas é seguro dizer que, embora a autorregulação regulada da literatura alemã (regulated self- regulated ou regulierte Selbstregulierung) tenha se inspirado inicialmente no 172COMMISION OF THE EUROPEAN COMMUNITIES. European Governance (White Paper). Bruxelas: CEC, 25.7.2001, p. 21. 173PARKER, Christine. Restorative justice in business regulation? Australian competition use of enforceable undertakings. Modern Law Review 67: 209-246, 2004; Grabosky, Peter N. Using non-governmental resources to foster regulatory compliance. Governance 8(4): 527-550, 1995. 174MARSDEN, Christopher T. Co- and Self-regulation in European Media and Internet Sectors: The Results of Oxford University’s Study, p. 80. In: MÖLLER, Christian; AMOUROUX, Arnaud (org.). The Media Freedom Internet Cookbook. Viena: Organization for Security and Co-operation in Europe, 2004, p. 76-100. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 90 conceito australiano de autorregulação obrigatória (enforced self-regulation), dele se distanciou, ampliando a tal ponto a abrangência da autorregulação regulada que hoje é uma tarefa difícil diferenciá-lo do conceito de corregulação. Há quem proponha que a autorregulação regulada seria uma espécie de corregulação em que o Estado é responsável por estruturá-la mas não se envolve na sua implementação.175 Mesmo que se adote, entretanto, um significado ampliada da autorregulação regulada, pode-se dizer seguramente que a autorregulação obrigatória ou mediante constrangimento normativo estatal da literatura australiana se diferencia dela por sua identidade própria advinda de sua relação umbilical com a teoria da regulação responsiva, que será tratada mais a frente. O seu primo – a autorregulação regulada – detém um significado destacada de uma teoria regulatória específica e é identificado pela sua oposição à autorregulação privada (private Selbstregulierung). Assim, o caráter central da autorregulação regulada está no fato de que enquanto a autorregulação privada encontra-se na seara do regime de direito privado, a autorregulação regulada (regulierte Selbstregulierung) partilha de manifestações de regime de direito público. Fossem os alemães coerentes com essa oposição trazida pela literatura tedesca, e a autorregulação regulada chamar- se-ia autorregulação pública, mas o termo usualmente utilizado é o de autorregulação regulada, como aquela que é regida também por normas de direito público. Embora se diga que a autorregulação regulada esteve em fase de incubação (Inkubationsphase) desde a década de 1870,176 o seu caráter mais marcante encontra-se na postura estatal cooperativa, apresentando-se, portanto, como uma forma de cooperação própria ao Estado Regulador.177 Ainda outro termo autorregulatório, servindo como uma subdivisão transversal aos conceitos já apresentados, é o de autorregulação 175KLEINSTEUBER, Hans J. The Internet between Regulation and Governance, p. 63. In: MÖLLER, Christian; AMOUROUX, Arnaud (org.). The Media Freedom Internet Cookbook. Viena: Organization for Security and Co- operation in Europe, 2004, p. 61-75. 176COLLIN, Peter; RUDISCHHAUSER, Sabine. Regulierte Selbstregulierung: Historische Analysen hybrider Regelungsstrukturen. Trivium 21: 1-20, 2016, p. 11. 177Vide SECKELMANN, Margrit. Regulierte Selbstregulierung – Gewährleistungsstaat – Kooperativer Staat – Governance: Aktuelle Bilder des Zusammenwirkens von öffentlichen und privaten Akteuren als Analysekategorien für historische Kooperationsformen. In: COLLIN, Peter et al. Regulierte Selbstregulierung in der westlichen Welt des späten 19. und frühen 20. Jahrhunderts. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann Verlag, 2014, p. 27-56. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 91 mediada ou indireta (mittelbare Selbstregulierung), e a autorregulação não mediada, imediata ou direta (unmittelbare Selbstregulierung), representando duas formas de autorregulação que se diferenciam pelo tipo de instância institucional em que são formuladas ou operacionalizadas. Enquanto, na autorregulação mediada, o regramento ou operacionalização regulatória são partilhadas com o Estado, na autorregulação não mediada, o particular desenvolve a regulação por si mesmo sem a necessária cooperação estatal. Enquanto a primeira forma é um tipo de corregulação, a segunda se afasta dessa característica cooperativa. A compreensão das formas de autorregulação revela dois pontos importantes: a) o de que há uma grande gama de opções regulatórias entre os extremos de controle burocrático estatal e de autorregulação pura; e b) o de que os atores regulados podem também ser reconhecidoscomo reguladores, como também podem partilhar com o regulador estatal funções regulatórias várias, como, por exemplo, funções delegadas de consentimento de polícia e de fiscalização de polícia, enquanto o Estado preserva parcela dessas dimensões do poder de polícia em sua esfera de atribuições. Como ressalta Schlottfeldt178, se bem implementada, a autorregulação é um meio de se fugir ao descontrole e pode tornar mais racional e efetiva a regulação. Mais a frente, quando da análise da teoria da regulação responsiva, será aprofundada a forma regulatória da autorregulação com constrangimento normativo estatal ou enforced self- regulation. 2.4 COMANDO E CONTROLE VERSUS INCENTIVOS Falou-se, até aqui, em vários momentos, do método regulatório por comando e controle e do método regulatório por incentivos. É chegada a hora de explicar no quê, precisamente, eles se diferenciam. Várias são as teorias econômicas que informam a regulação. Existem duas grandes categorias usualmente citadas na literatura como delineadoras de posicionamentos econômicos bem definidos sobre a regulação: a categoria da teoria do interesse público; e a da teoria dos interesses específicos, também chamada de escolha pública (public choice). A ciência econômica vê o interesse público e os interesses específicos de 178SCHLOTTFELDT, Shana. Autorregulação e corregulação: duas ferramentas no canivete do regulador. Revista Consultor Jurídico, 11 de junho de 2021. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 92 grupos de interesse segundo um enfoque distinto daquele utilizado pelo direito. Tais categorias, para a ciência econômica, são predominantemente descritivas do que se acredita seja o ambiente da regulação. De um lado – o da teoria (econômica) do interesse público -, parte-se, na tradição anglo-americana, de que a regulação seria orientada no sentido de implementação da soma dos interesses individuais, enquanto, na tradição continental, de que a regulação seria orientada no sentido de um interesse geral do Estado propriamente público; parte-se, portanto, do pressuposto de que a regulação caminharia naturalmente rumo a um valor maior público que beneficiaria a coletividade em primeiro lugar. De outro lado – o da teoria dos interesses específicos aplicada ao mercado da regulação – o regulador atuaria como resposta à dinâmica entre a oferta de regulação e a disputa entre os interesses específicos dos regulados, que dirigiriam a regulação em uma revolução contínua de interesses específicos em disputa pela oferta de regulação; ou seja, a regulação seria dirigida por grupos de interesses específicos. A compreensão da teoria da escolha pública, ou dos interesses específicos, será aprofundada mais adiante, em capítulo próprio de diferenciação entre public choice e teoria processual administrativa da regulação. Permaneçamos, por enquanto, concentrados na precisão conceitual do comando e controle e dos incentivos, objeto de perspectivas econômicas e jurídicas não coincidentes. Tais teorias econômicas sobre o funcionamento da regulação não tomam partido, a priori, pelas formas regulatórias, seja por comando-e- controle, seja por incentivos. A modalidade de comando e controle apresenta-se como uma forma do regulador dirigir o comportamento do regulado via microgerenciamento da atuação privada, em especial empresária, enquanto a modalidade de regulação por incentivos, mesmo que por meio de orientações estatais impositivas, é um forma de regular que abre espaço a que os meios e os fins escolhidos para o cumprimento da ordem estatal o sejam via opções de racionalidade do negócio regulado. A regulação por comando e controle apoia-se no exercício da autoridade do Estado, enquanto a regulação por incentivos aplica métodos de amenização do conflito de interesses entre sociedade e regulado, buscando o alinhamento entre os interesses do regulado e da sociedade. Na linha da literatura econômica, seriam exemplos de regulação por comando e controle: a) a que descrevesse exaustivamente a TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 93 forma como o regulado deve realizar operação e manutenção de equipamentos; b) a que se caracterizasse como regulação por custo do serviço ou por taxa de retorno, ou seja, a regulação que procurasse impor a maior proximidade possível entre o custo do serviço e o preço por ele cobrado, definindo, por consequência, um montante esperado do lucro e convivendo com um conflito constante entre regulado e regulador. Regulado e regulador são dispostos em posições antípodas na regulação por comando e controle, pois é esperado do regulado que procure brechas regulatórias para o cumprimento dos comandos mesmo que isso implique em não alcançar os objetivos desenhados pelo regulador. Essa técnica de regulação por custo do serviço ou por taxa de retorno própria à modalidade de comando e controle pressupõe que o interesse do regulado – de lucro – divergirá do interesse estatal – de que a empresa tivesse lucro econômico zero. Por outro lado, a regulação por incentivos busca um desenho regulatório que alinhe os objetivos do regulador e do regulado em um formato menos invasivo que o exercido na regulação por comando e controle e com a responsabilidade pelos resultados da regulação compartilhada entre os atores da regulação. Normalmente, na literatura econômica, afirma-se a regulação por incentivos como um contraponto da regulação por comando e controle. Em oposição à regulação de tipo comando e controle por custo do serviço, tem-se uma modalidade regulatória de incentivo à redução dos custos por parte das empresas reguladas. Uma das técnicas mais conhecidas de regulação por incentivos da literatura econômica é a chamada regulação price cap, teto de preços ou preço-teto. Ao fixar um preço máximo por uma cesta de serviços, o regulador abre espaço para que a empresa escolha os pesos de cada serviço e procure reduzir os custos para obtenção de maior lucro.179 O preço-teto pode ser reajustado segundo índice inflacionário corrigido por um fator de ganhos de eficiência conhecido como fator X, correspondente à parcela dos ganhos de eficiência de uma empresa que ela deverá compartilhar com seus consumidores. Esse mesmo preço-teto pode ser alterado em revisões tarifárias regulares. Outro técnica de regulação por incentivos sob o viés econômico é conhecida como revenue cap ou teto de receitas, em que a lógica do preço-teto é aplicada às receitas totais da empresa, ao invés de ser 179A regulação price cap tem como um de seus principais objetivos o de gerar incentivos adequados à redução de custos por parte do regulado. Vide SAPPINGTON, D. E. M.; WEISMAN, D. L. Designing Incentive Regulation for the Telecommunications Industry. Cambridge: The MIT Press, 1986. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 94 aplicada ao preço. Essa técnica gera uma dependência entre a demanda e os preços praticados por parte da empresa regulada. Segundo ela, quando houver variação positiva da demanda por produto ou serviço da empresa frente ao que havia sido definido na regulação, o preço será majorado; quando houver variação negativa da demanda por produto ou serviço da empresa frente ao que havia sido definido na última revisão tarifária, haverá diminuição automática do preço praticado. Há ainda técnicas que correspondem a outros mecanismos pressupostos de incentivos, tais como a taxa de retorno com bandas, a moratória de pedidos de revisão, o compartilhamento de receitas, a desregulação parcial, o regime de opções de planos, a regulação de referência por ameaça e a regulação via contratos.180 Como se pode ver, a diferença essencial entre formas de regulação por comando-e-controle e por incentivos está na sensibilidade do regulador aos incentivos internos aos negócios regulados presente na regulação por incentivos e ausente na regulação por comando e controle. A descrição acima sobre o olhar econômico a respeito dos incentivos demonstra que a regulaçãopor incentivos depende de medidas apoiadas no modelo de negócios regulado, levando a um alinhamento entre os interesses do regulado e do regulador. Essas são características inafastáveis da regulação por incentivos, mesmo sob o enfoque estritamente jurídico. Embora essa descrição tradicional dos incentivos contribua com a noção de que há técnicas mais eficientes de conformar o comportamento do regulado via alinhamento entre os seus interesses e os do regulador, ela peca por não tratar de estratégias regulatórias dinâmicas que reconheçam as várias dimensões comportamentais dos regulados, ao partir do pressuposto de que os regulados reagiriam igualmente à mesma cesta de incentivos. Em última análise, quando a literatura econômica considera o teto de preços ou o teto de receitas fixado pelo Estado como uma forma de regulação por incentivos, reduz a forma regulatória por incentivos a uma ou algumas poucas técnicas regulatórias. 180Vide COUTINHO, Paulo Cesar; OLIVEIRA, André Luís Rossi de; FERREIRA, Hállison. Estudo sobre Regulação por Incentivos e Abordagem Comando-Controle. Projeto de Pesquisa e Inovação Acadêmica sobre Regulação apoiada em Incentivos na Fiscalização Regulatória de Telecomunicações. Brasília: Agência Nacional de Telecomunicações e Centro de Políticas, Direito, Economia e Tecnologias das Comunicações da UnB, 2019. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 95 Por isso, quando se estuda regulação por incentivos hoje, são imprescindíveis os avanços trazidos pelo contexto de legitimidade da intervenção regulatória do Estado Regulador e por outras teorias regulatórias que veem o incentivo como uma forma de regulação apoiada em diversas técnicas e estratégias que reconhecem que cada regulado responderá a incentivos distintos e que um mesmo regulado pode responder de acordo com o esperado em determinado momento e, em outro, não se conformar às regras. A análise jurídico-regulatória avança precisamente nesse campo fértil de ajuste conjuntural regulatório à diversidade de comportamentos, de perfis dos regulados e de suas motivações. 2.5 LEGITIMIDADE DA INTERVENÇÃO REGULATÓRIA, RAZÃO BUROCRÁTICA, RACIONALIDADE MATERIAL E INCENTIVOS As teorias jurídicas da regulação germinaram em meio ao advento do Estado Regulador, em especial, como resposta a uma característica oriunda do Estado Administrativo: a do domínio da técnica. Trata-se da legitimação da intervenção regulatória do Estado por intermédio da razão burocrática, como fiadora da dispensação de utilidades reguladas para o atendimento de diretrizes de interesse público via insulamento entre o sistema administrativo-burocrático e o político.181 Ou seja, a razão burocrática que informa o Estado Regulador justifica a entrega regulada de utilidades fruíveis pelos particulares com base em juízo técnico, mas isso não resume a forma de regular. A razão burocrática de hoje é distinta da existente no Estado de Bem-Estar Social precisamente pelo seu entrecruzamento com o tipo de racionalidade legitimadora que rege o Estado Regulador. Para a compreensão dessa cadeia de relação entre o juízo técnico que informa a regulação e o tipo estatal em que a regulação germina, é importante passarmos por um breve relato dos tipos de racionalidade identificadores da relação entre Estado e sociedade. No paradigma do Estado Liberal, o direito tem a forma operativa de abertura do espaço de autodeterminação criado para o livre trânsito do indíviduo mediante garantia da liberdade e da isonomia em 181LOPES, Othon de Azevedo. Fundamentos da Regulação. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2018, p. 200-209. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 96 típica manifestação de racionalidade formal, em que o direito opera por intermédio de direitos subjetivos públicos e contratos garantidores do espaço do direito privado. No paradigma do Estado de Bem-Estar Social, por sua vez, o direito opera para instrumentalizar o alcance de utilidades materiais fruíveis pelos particulares em típica função de legitimação prestacional de serviços públicos. Trata-se, portanto, do predomínio da racionalidade material ou finalística instrumental, em que o Estado indica os fins, mas principalmente e, acima de tudo, os meios pelos quais tais fins de interesse público serão alcançados. Nesse formato de poder, o Estado dirige os olhares para si como grande provedor das necessidades da vida e o faz mediante um direito dirigista da atuação do particular rumo aos desígnios estatais, separando-se claramente o interesse público do privado e os colocando em posição de conflito. O particular que avança seus interesses privados e ousa implementar interesses públicos é um inimigo do Estado por retirar-lhe parte de sua essencialidade como prestador estatizante do bem-estar social. Finalmente, no atual Estado Regulador, a posição do particular é elevada à categoria de parceiro do poder público, tendo-se a transposição de uma racionalidade material instrumental para uma racionalidade material reflexiva, em que o Estado se legitima pela garantia de provimento de serviços essenciais, define, em suas instâncias políticas, as finalidades de uma comunidade de princípios, mas os meios para sua consecução são entregues a um processo de contínuo realinhamento entre os interesses do Estado e dos particulares em que a regulação estatal conversa com os códigos do sistema regulado e, ao mesmo tempo, pressiona e cede terreno para o alcance de um ótimo regulatório de conformidade normativa capaz de abrir espaço, inclusive, à conduta virtuosa do particular para além da conformidade exigida pelas regras jurídicas. Trata-se de um Estado em que o particular que avança interesses públicos é um amigo festejado. A racionalidade própria ao Estado Regulador é reflexiva, pois ela relaciona o sistema econômico e o político-burocrático, entregando ao direito funções coordenadoras de integração sistêmica da sociedade na relação entre economia e Estado. Com a racionalidade reflexiva, as respostas regulatórias a um problema do mundo não decorrem diretamente de princípios ou regras gestadas no silêncio do sistema político-burocrático estatal, mas decorrem, necessariamente, da dinâmica de construção conjunta de soluções capazes de comunicar os códigos normativos próprios aos sistemas regulado e regulador. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 97 A característica reflexiva depende da preservação da identidade dos sistemas regulado e regulador. Tal identidade é destruída quando o sistema regulador pretende substituir com suas regras os códigos presentes no sistema regulado, esgotando-o no Estado em uma verdadeira totalização da economia e das demais manifestações do mundo da vida na burocracia. O Estado Regulador repudia essa totalização e propõe uma convivência de ajustes contínuos e conjunturais para realinhamento dos interesses público e privado e construção de soluções efêmeras quantos aos meios para satisfação dos fins trazidos pela comunidade de princípios enunciada no direito. Em síntese, reflexivo é o método regulatório que abraça a preservação da diversidade, repudiando o domínio do Estado sobre o particular ao exigir de ambos uma conduta cooperativa de contínua reconstrução das soluções para a proteção dos direitos fundamentais. Nesse espaço de negociação reflexiva da intervenção regulatória, surgem as novas teorias jurídicas da regulação, aptas a lidarem com diversas personalidades dos regulados e incentivos intrínsecos dos sistemas regulados. Os incentivos, para as novas teorias da regulação, não são meramente formas de maior liberdade de atuação do regulado, mas modos regulatórios capazes de galvanizar códigos de conduta intrínsecos aos sistemas regulados e alinhá-los ao interesse público, e vice-versa. Incentivos, portanto, não são meras recompensas, mas formas regulatórias inscritas em uma racionalidade material reflexiva de contínua negociação das regras de conduta, mediante realinhamento conjunturalde interesses e compreensão da diversidade de motivações dos regulados, entre si, e no tempo e no espaço. Uma regulação por incentivos é uma forma de regular que compreende a importância de um sistema regulador maleável capaz de angariar forças do sistema regulado e reforçar suas normas de conduta de coerção intrínseca, abandonando a premissa de que a razão do bom comportamento, ou seja, da conformidade às regras por parte do regulado se deve à ameaça ou mera afirmação de uma regra estatal com pretensão de coerção extrínseca. As novas teorias jurídicas da regulação rendem homenagem à compreensão da complexidade da motivação do comportamento do regulado e propõem soluções de desenhos institucionais complexos, dinâmica regulatória reflexiva e regimes regulatórios variáveis para fazer do direito um sistema finalmente compreensível pelo particular, que passa enxergar seu reflexo no espelho do regulador como cúmplice da regra, apreendendo-a como um produto oriundo da participação privada na MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 98 construção dos caminhos para alcance do interesse público. Com isso, o cidadão do Estado Regulador é finalmente um agente criativo e emancipado com autodeterminação sobre as opções e medidas de concretização de direitos fundamentais decorrentes da comunidade de princípios jurídico- políticos em que se insere. Uma regulação por incentivos de coerção intrínseca em um ambiente de racionalidade material reflexiva cooperativa é a nova fronteira vislumbrada por teorias jurídicas da regulação. Para compreendê-las, entretanto, é necessário dar mais alguns passos em direção ao seu significado funcional, divisando-se a natureza e razão de ser de uma teoria regulatória. 2.6 A RAZÃO DE SER DE UMA TEORIA REGULATÓRIA: DESCREVER OU PRESCREVER Embates acadêmicos entre as percepções da ciência econômica e do direito são atraídos pelo mantra muitas vezes repetido de que a economia teria por meta a descrição do fenômeno regulatório, procurando entender seu funcionamento, enquanto o direito procuraria prescrever formas regulatórias, no intuito de direcionar o comportamento do regulado. Trata-se de uma afirmação que é parcialmente verdadeira. Ela é parcialmente verdadeira pois apenas reflete um estado predominante nas abordagens econômicas e jurídicas, sem representar com fidelidade o estado da arte sobre as teorias regulatórias econômicas e jurídicas. É bem verdade que, antes do advento da chamada teoria econômica da regulação182, na década de 1970, o campo de pesquisa econômica era dominado pela economia prescritiva de precificação de custo marginal, em que se atribuía ao governo o papel de corrigir as falhas de mercado por intermédio das instituições reguladoras de utilidades públicas, apostando-se 182Richard Posner cunhou o termo “teoria econômica da regulação”, que passou a identificar uma espécie de teoria da escolha pública ou dos interesses específicos aplicada ao mercado de regulação e inaugurada por George Stigler em sua obra seminal de 1971. Vide STIGLER, George. The Theory of Economic Regulation. The Bell Journal of Economics and Management Science, v. 2, n. 1, p. 3-21, Spring 1971. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 99 no papel virtuoso do monopólio natural.183 Após o advento da teoria econômica da regulação, entretanto, a pesquisa econômica tornou-se eminentemente descritiva, muito embora dela surjam propostas prescritivas de ajustes regulatórios capazes de fazer frente a efeitos maléficos descritos pela teoria econômica da regulação. Enfim, a compreensão de uma teoria se faz usualmente por seus aspectos prevalecentes e, por isso, fala-se, atualmente, em uma teoria econômica da regulação dominante na pesquisa econômica com caráter descritivo. Do outro lado da balança, estarão as teorias jurídicas da regulação, que, por sua origem em teorias jurídicas prescritivas de condutas dos regulados, flertaram inicialmente com a percepção de que sua contribuição seria exclusivamente de caráter prescritivo de condutas na arena do dever ser. Felizmente, a pesquisa jurídica inspirada principalmente em sociologia comportamental e justiça restaurativa avançou para além das amarras tradicionais da ciência jurídica e adotou uma postura holística de compreensão dos mecanismos de funcionamento de um mercado ou setor regulado, de adoção de estratégias integradoras de técnicas regulatórias adequadas ao cenário vislumbrado e condizentes com o arcabouço institucional vigente no direito nacional e, finalmente, de prescrição de desenhos regulatórios mais avançados capazes de fazer frente a um ambiente conjuntural e dinâmico de contínuo realinhamento de interesses privados e públicos rumo à eficiência. Teorias econômicas ou jurídicas podem se identificar como predominantemente descritivas ou prescritivas, mas, no estágio de desenvolvimento teórico em que estamos, demandarão invariavelmente a prerrogativa de se movimentarem entre os aspectos descritivo e prescritivo, pois cientes de que são aspectos complementares. É uma tentação irresistível para teóricos preocupados com a descrição da tomada de decisão regulatória – teoria econômica da regulação – a prescrição de soluções que corrijam distorções do mercado da regulação. Da mesma forma, teorias jurídicas da regulação naturalmente preocupadas com a prescrição do dever ser sentem-se desnudas se ausente problematização sobre o real 183Afirmando o predomínio de uma abordagem prescritiva na pesquisa econômica regulatória no período anterior ao advento da teoria econômica da regulação, conferir PELTZMAN, Sam. George Stigler's Contribution to the Economic Analysis of Regulation. Journal of Political Economy, v. 101, n. 5, p. 818-832, Oct. 1993. p. 818-819. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 100 funcionamento da tomada de decisões por parte do destinatário da norma. Não há teoria avançada de regulação hoje que abra mão de trafegar entre os pólos descritivo e prescritivo do fenômeno regulatório. Em especial, as teorias jurídicas da regulação partirão da descrição de como o fenômeno regulatório ocorre para que ele possa ser compreendido – os mecanismos de funcionamento do setor regulado, e, por conseguinte, da regulação –, para que possa ser antecipado em seus efeitos e, finalmente, influenciado/orientado/controlado rumo a objetivos fixados na comunidade de princípios jurídicos. Tais teorias jurídicas da regulação, apoiadas em pressupostos descritivos de como o comportamento do regulado é efetivamente influenciado, prescreverão desenhos regulatórios capazes de integrar técnicas/instrumentos regulatórios em estratégias bem definidas em modos/formas regulatórias condizentes com os mecanismos/engrenagens de funcionamento do comportamento do setor regulado orientados por dogmas e experiências hospedados em determinada teoria. Hoje, se fôssemos obrigados a representar em um esquema mnemônico a razão de ser de uma teoria regulatória, o faríamos na relação compreender-antecipar descritivamente o fenômeno regulatório para influenciar-desenhar prescritivamente recomendações de boas práticas regulatórias. Tendo-se avançado sobre os métodos jurídico-regulatórios de coerção extrínseca e intrínseca, sua relação com a conformidade regulatória, a diferença entre teorias jurídicas substantivas e procedimentais da regulação, as formas de comando e controle de regulação por incentivos, a legitimação da intervenção regulatória na racionalidade reflexiva e a dupla finalidade descritiva e prescritiva das novas teorias da regulação, é chegado o momento de avançarmos sobre os aspectos fundamentais das principais teorias da regulação. 2.7 TEORIA PROCESSUAL ADMINISTRATIVA DA REGULAÇÃO VERSUS ESCOLHA PÚBLICA A ciência econômica, embora não tenha sido a primeira a se debruçar sobre aspectos da regulação, desenvolveu todo um ramo de estudos dedicados exclusivamente à regulação e à sua precisão conceitual, enquanto a análisejurídica continental europeia, precedendo em mais de um século as novas análises regulatórias econômicas, tratou da regulação como um subproduto de uma disciplina maior da teoria do serviço público. Não TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 101 se trata aqui de se estabelecer precedência ou grau de importância entre as abordagens econômicas e jurídicas, mas de se identificar a teoria jurídica da regulação para além de olhos leigos como uma teoria muito mais influente e fundamental para a compreensão do fenômeno regulatório. Desnecessário frisar que há teorias jurídicas da regulação, pois o direito lida diretamente com uma manifestação proeminente da regulação, ou seja, a regulamentação normativa. Sob o enfoque geral de que regular significa, para a ciência jurídica, regulamentar por intermédio de preceitos normativos, todas as teorias jurídicas destinadas à disciplina da técnica legislativa, da técnica regulamentar e da estrutura administrativa e seus limites constitucionais explicam a regulação, como de fato o fazem para fins de definição do que pode ou não ser disciplinado pelo poder regulamentar, de como os poderes instituídos devem se manifestar sobre determinada matéria regulada, de quais são os limites desses mesmos poderes frente às garantias constitucionais dos direitos fundamentais, de quais são as áreas e serviços passíveis de regulação, enfim, de uma miríade de temas que são tratados pela ciência jurídica desde que se cogita do regramento normativo de condutas humanas. A regulação moderna, ao ser elevada ao patamar de categoria conceitual definidora do ethos estatal, não se contenta, todavia, com tais abordagens gerais que a encaram apenas como um subproduto jurídico. Imersa no meio regulatório, a ciência jurídica reagiu antes de envidar esforços no sentido de destacar a categoria regulatória de seus estudos tradicionais, mas afinal encontrou o caminho de tratamento científico da regulação via direito administrativo especial de cunho setorial: o direito setorial e regulatório. Ao contrário do preceituado pelos expoentes da teoria econômica da public choice, a teoria jurídico-institucional da regulação vê na estrutura regulatória uma consequência necessária da divisão funcional de poderes e uma garantia institucional da preservação do interesse público em setores regulados: trata-se, portanto, da preeminência dos controles substantivos e procedimentais de legitimidade da instituição reguladora. Uma dessas teorias de viés procedimental é a teoria processual administrativa da regulação184, que afasta os pressupostos da teoria da public choice, de que haveria inafastáveis incentivos à cooptação dos 184Vide CROLEY, Steven P. Regulation and Public Interests: The Possibility of Good Regulatory Government. Princeton: Princeton University Press, 2008. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 102 reguladores rumo a uma regulação de grupos de interesse ou special interest regulation.185 A teoria jurídica conhecida como processual administrativa, pelo contrário, revela a dimensão jurídico-processual da regulação como uma regulação de interesse público ou public-interest regulation. Em outras palavras, a teoria jurídica da regulação enfoca um aspecto pouco aprofundado pela teoria econômica: o processo jurídico-institucional de preservação da dicção funcional do direito. Ao se opor, de um lado, a regulação de grupos de interesse e, de outro, a regulação de interesse público, o que se quer dizer com isso é que, de um lado – do lado da regulação de grupos de interesse –, os benefícios regulatórios são atribuídos a parcelas da sociedade em detrimento desproporcional de toda a sociedade, ou seja, o custo dos benefícios de poucos excede o retorno eficiente e competitivo usufruído pelos beneficiários. Pelo contrário, a regulação (econômica) de interesse público é visível quando os benefícios regulatórios à sociedade como um todo excedem o, ou empatam com os benefícios alcançados por poucos na linha do critério econômico da curva de eficiência de Kaldor-Hicks. A tradução jurídica desse critério econômico apoiado na eficiência de Pareto encontra-se inscrita em princípios constitucionais da eficiência administrativa, da preeminência do interesse público e da proporcionalidade de medidas restritivas de direitos. Ambos os enfoques – econômico e jurídico – portanto detêm categorias conceituais para aquilatarem a regulação como prejudicial à sociedade em benefício de grupos de interesse, ou como virtuosa ao interesse público. A seguir, são identificadas as principais características dessas duas teorias representativas das análises econômicas e jurídicas para que, mais à frente, elas possam ser esmiuçadas. A teoria econômica da public choice afirma, em síntese apertada, que o processo decisório da regulação seria um produto necessário da troca de vantagens políticas entre representantes eleitos, grupos de interesse e agências reguladoras. Para tanto, ela parte de estudos econômicos sobre a democracia e decisão política, concluindo pela ínsita inadequação da regulação ou intervenção estatal sobre a economia como meio de alcance do interesse público.186 185De acordo com a teoria da public choice, grupos de interesse competiriam por bens regulatórios, ou mais friamente, pela compra de legislação de políticos e burocratas, bem como outras medidas regulatórias para o benefício de seus interesses privados. 186Sobre os clássicos da teoria da public choice, vide: BLACK, Duncan. The Theory of Committees and Elections. Cambridge: Cambridge University Press, 1958; DOWNS, Anthony. Uma Teoria Econômica da Democracia. Trad. Sandra TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 103 Por outro lado, a teoria jurídico-processual da regulação parte da própria natureza e razão de ser do processo decisório das agências reguladoras ou órgãos reguladores: trata-se, portanto, do estudo processual da manifestação do poder administrativo, algo, aliás central para a análise do fenômeno regulatório. Daí poder-se dizer que se trata de uma teoria processual administrativa da regulação ou teoria do processo administrativo regulatório. Ela se preocupa com a dimensão processual do fenômeno regulatório em sua justificativa funcional de autonomia do processo de tomada de decisões regulatórias. Exatamente ao defender a consequência jurídica de autonomia decisória das estruturas regulatórias via disciplina jurídica do processo administrativo pertinente, a teoria processual administrativa da regulação nega o fundamento básico da teoria da public choice, qual seja, a dependência da tríade congressistas - grupos de interesse - regulador. As categorias conceituais que compõem a base da teoria processual administrativa da regulação são, sinteticamente, as seguintes: a) procedimento administrativo; b) neutralidade do processo administrativo; c) ambiente jurídico-institucional administrativo. Cada um desses elementos fornece um conjunto de pressupostos tradicionais à teoria geral do direito público, que dirigem, constrangem ou afastam os incentivos que fariam do regulador uma peça inerte no jogo de trocas políticas. A neutralidade do processo administrativo apoia-se na natureza jurídico-funcional da decisão administrativa, enquanto a exteriorização do processo via procedimento administrativo apoia-se na transparência, visibilidade, obtenção de apoio social, melhoria do conteúdo de regulamentações propostas, antecipação de críticas dos atores setoriais e oportunidades de ajuste da proposta. No que diz respeito ao ambiente institucional regulatório, este abre espaço à construção de propostas Guardini Teixeira Vasconcelos, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999 (Original de 1957); OLSON, Mancur. The Logic of Collective Action: Public Goods and the Theory of Groups. Harvard, 2002 (Original de 1965); ARROW, Kenneth J. Social Choice and Individual Values. 2ª ed., New Haven: Yale University Press, 1963; BUCHANAN, James M.; TULLOCK,Gordon. The Calculus of Consent: Logical Foundations of Constitutional Democracy. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1965; NISKANEN, William A. The Peculiar Economics of Bureaucracy. The American Economic Review, v. 58, n. 2, p. 293-305, May 1968; STIGLER, George J. The Theory of Economic Regulation. The Bell Journal of Economics and Management Science, v. 2, n. 1, p. 3-21, Spring 1971. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 104 regulatórias via estabilidade profissional do regulador, via contatos perenes com comitês acadêmico-científicos, via incentivos à defesa do interesse público por parte do servidor-regulador, via apoio de outras estruturas de poder à preservação da competência das agências reguladoras, ou mesmo via controle externo e interno da atividade reguladora. Não é por acaso que a literatura do novo direito administrativo dedique tanto tempo e esforço ao desenvolvimento de conceitos de autonomia dos órgãos reguladores, independência administrativa, transparência processual, e processo decisório administrativo.187 Esses temas se apresentam invariavelmente como os temas inaugurais da teoria jurídica da regulação via especialização do direito administrativo e são indispensáveis à compreensão da autonomia do fenômeno regulatório. Cabe aqui ressaltar, todavia, que ao se compreender a regulação processual administrativa como um espaço republicano de interação democrática e formação do interesse público regulatório, isso não significa uma opção por um ambiente de tecnicalidades processuais tão caras ao jurista formalista e que deu razão à Woodrow Wilson quando declarava seu temor em nomear advogados para as agências independentes nos Estados Unidos. Dizia ele que quase sentia pavor ao indicar um advogado para uma comissão reguladora, pois este imediatamente a manietava em tecnicalidades e, com isso, limitava seu escopo ao ler em suas leis de criação proibições onde outros não viam senão atribuições de poder.188 2.8 TEORIA SUBSTANTIVA DA REGULAÇÃO: TEORIA SOCIAL DA REGULAÇÃO E TEORIA INSTITUCIONAL DA REGULAÇÃO Da mesma forma que a teoria processual da regulação reage à concepção da regulação como um produto da composição de interesses dos atores regulados, enfatizando o aspecto processual da formação de decisão regulatória, outra vertente de análise jurídica da regulação reage àquela 187ROSE-ACKERMAN, Susan; LINDSETH, Peter L. (org.). Comparative Administrative Law. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 2010. 188THOMPSON, Huston. Memorandum of a talk with Wilson. Library of Congress. Manuscrito de 1º de dezembro de 1916. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 105 concepção ao considerar a regulação como um fenômeno jurídico- institucional de proteção de bens jurídicos maiores externos à estrita relação entre os atores regulados e seus interesses: trata-se de uma teoria substantiva ou material da regulação. Na tradição da experiência regulatória dos Estados Unidos da América, essa vertente é encarnada na corrente representada por dois expoentes da análise jurídica da regulação, nomeadamente dois publicistas: Stewart e Sunstein. Ela é conhecida como a teoria social da regulação, em oposição à teoria econômica da regulação. A teoria social da regulação foi ambientada na crise do Estado Regulador dos Estados Unidos da América da década de 1960, em que as pretensões regulatórias deixaram de se circunscrever ao bom funcionamento de um setor específico da economia para atingir atividades que se alastram por diversos setores, tais como defesa do consumidor, meio ambiente e saúde do trabalhador. A regulação social acrescentou preocupações de direitos sociais às decisões regulatórias, qualificando, na literatura estadunidense, o chamado Estado Social Regulador. Segundo Stewart189, esse tipo estatal se caracteriza pela apresentação da regulação não mais como uma solução pontual de conflitos entre os atores econômicos, mas como produção de estratégias jurídicas de comando de setores regulados. Em outras palavras, Stewart defende a compreensão da regulação como a juridicização dos conflitos setoriais econômicos. Sunstein parte do mesmo princípio de que a regulação dos anos 1960 e 1970 nos Estados Unidos sofreu mudanças profundas ao deixar de se preocupar exclusivamente com a estabilização da economia ou com controle de preços e de entrada no mercado regulado para passar a representar a defesa da saúde e segurança pública contra riscos, bem como para compensar, apoiada em enunciados de direitos fundamentais, a “subordinação social de grupos em posição de desvantagem”190. 189STEWART, Richard B. Regulation and the Crisis of Legalisation in the United States. In: DAINTITH, Terence (org.). Law as an Instrument of Economic Policy: Comparative and Critical Approaches. Berlin: Gruyter, 1988, p. 97-133; STEWART, Richard B. Regulation in a Liberal State: The Role of Non-Commodity Values. In: Yale Law Journal 92 (1983), 1537-1590. 190SUNSTEIN, Cass R. After the Rights Revolution: Reconceiving the Regulatory State. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1990, p. 13. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 106 Tais correntes de pensamento são representativas das dimensões jurídicas processual e substantiva da regulação, mas não esgotam as descrições e explicações jurídicas da regulação. Nem todas as teorias jurídicas de regulação são facilmente enquadráveis como exclusivamente substantivas ou processuais, mas são identificáveis por suas características prevalecentes. Quando da exposição, no capítulo anterior deste manual, dos pressupostos teóricos do Estado Regulador, procurou-se avançar uma concepção mais abrangente de regulação funcionalmente orientada à proteção dos direitos fundamentais, algo mais aderente à tradição constitucionalista e independente das fases regulatórias próprias à história dos Estados Unidos da América. Essa visão material da regulação como voltada à proteção da conformação objetiva dos direitos fundamentais – uma verdadeira teoria institucional da regulação - aqui defendida não afasta as contribuições da teoria processual administrativa da regulação, nem mesmo a evolução proposta por uma teoria americana social da regulação. Ela vai além para firmar a razão de ser da regulação como apoiada na materialização de direitos fundamentais, inscrita nas garantias institucionais que os cercam e aberta à nova racionalidade material que rege o Estado Regulador de cunho reflexivo. A diferença de fundo entre a teoria processual administrativa da regulação e a teoria substantiva ou material da regulação – seja em sua vertente americanizada de proteção de direitos sociais, seja a aderente à tradição constitucionalista de objetivação dos direitos fundamentais – está em que, embora ambas advoguem a insuficiência da análise econômica centrada na potencialização dos interesses dos atores privados envolvidos em um mercado regulado, a primeira delas preocupa-se com a dimensão processual de tomada de decisão regulatória, afirmando a possibilidade de decisões regulatórias em prol do interesse público via constrições procedimentais, enquanto a segunda delas concentra-se na dimensão substantiva da regulação, ou seja, no conteúdo da disciplina regulatória voltada à concretização de direitos. Fixada a relação entre a função da regulação para o direito e as categorias de teorias processuais e materiais de regulação, importa, a seguir, aprofundar um expoente de teoria jurídica da regulação que tem granjeado cada vez mais espaço no cenário das teorias regulatórias: a teoria da regulação responsiva em suas várias vertentes. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 107 2.9 TEORIA DA REGULAÇÃO RESPONSIVA A teoria da regulação responsiva propõe que a regulação seja compreendida como um esforço de criação de incentivos morais para o cumprimento da lei.191 Na tentativa de ultrapassar o debate entre regular e desregular, Ayres e Braithwaite propõem a chamada regulação responsiva (responsiveregulation)192, segundo a qual a efetividade da regulação depende da criação de regras que incentivem o regulado a voluntariamente cumpri-las, mediante um ambiente regulatório de constante diálogo entre regulador e regulado. A regulação, para Braithwaite, consiste em um conjunto de atividades distribuídas em uma pirâmide em que, na base, encontram-se atividades persuasivas da conduta do regulado, enquanto, no topo, um conjunto de penas draconianas de condutas indesejadas. Portanto, à primeira vista, trata-se de uma análise processual da regulação em que se propõe a constante interação entre regulador e regulado na construção do ótimo regulatório de incentivos os mais efetivos para persuasão dos regulados via reavaliação de sucessos e fracassos das políticas regulatórias implementadas sem definir, a priori, quais seriam os elementos substantivos que guiariam a atuação regulatória. Ocorre, todavia, que a análise mais detida da proposta de Braithwaite pode divisar uma dimensão substantiva da regulação quando se identifica como seu objetivo o alcance da persuasão do regulado, apelando para o valor da responsividade como norte e razão da regulação. Ela angariou tamanha notoriedade que dispensa apresentações, mas, ao mesmo tempo, sofre com reducionismo exagerado em sua descrição usualmente restrita à apresentação da pirâmide de punição e persuasão e à ideia de escalonamento de sanções em razão do comportamento mais ou menos virtuoso do regulado. Para sua compreensão de fundo, entretanto, é necessário percorrer o itinerário de sua origem e pressupostos, bem como perquirir como ocorre a transferência de funções regulatórias do Estado para o ambiente regulado, no quê a regulação responsiva se distingue de outros esforços regulatórios, tais como a corregulação, a metarregulação e a autorregulação, em relação ao quê uma regulação se apresenta como 191BRAITHWAITE, John. Crime, Shame and Reintegration. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. 192AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 108 responsiva e, finalmente, como deve ser apresentado o desenho regulatório para que contenha diferenciais responsivos. 2.9.1 JUSTIFICATIVA E ORIGEM DA TEORIA DA REGULAÇÃO RESPONSIVA Antes de tudo, é importante ressaltar que a teoria da regulação responsiva é uma teoria in fieri, com acréscimos e desenvolvimentos que se estendem desde estudos empíricos de movimentos nacionais de desregulação e proposta de teorização responsiva sobre a natureza do direito, ambos da década de 1970, estudos sobre o papel influente da ordenação social, mercadológica, estatal e corporativa na estruturação da indústria regulada, em especial da década de 1980, passando pelo clássico livro de Ayres e Braithwaite, de 1992, sobre regulação responsiva, que organizou estudos prévios, como o do próprio Braithwaite sobre autorregulação regulada, de 1982, até uma infinidade de artigos científicos e livros sobre o tema que ocuparam as décadas de 1990, 2000 e 2010 com propostas de melhoria teórica, tais como a proposta do diamante regulatório de Kolieb193, e aplicação prática em formato de governança nodal do próprio Braithwaite194 de expansão do campo de aplicação da teoria para países em desenvolvimento, ou mesmo avanços para o campo dos princípios regulatórios que sirvam de guia para a composição de um mix de técnicas regulatórias proposto pela regulação inteligente de Gunningham e Grabosky.195 Estudos já da década de 2010, sobressaindo-se os australianos, demonstrarão o uso da regulação responsiva e da pirâmide regulatória em diversos setores, desde a atividade de administração regulatória, passando por saúde pública, meio-ambiente, transportes e comunicações.196 O termo “regulação responsiva” (responsive regulation) pode ser encontrado muito antes da formulação da teoria com o mesmo nome, mas com o significado literal de maior sintonia do regulador com as demandas dos regulados, como demonstra o clamor por regulação 193KOLIEB, Jonathan. When to Punish, When to Persuade and When to Reward: Strengthening Responsive Regulation with the Regulatory Diamond. Monash University Law Review, v. 41, n. 1, p. 136-162, 2015. 194BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation and Developing Economies. World Development, v. 34, n. 5, p. 884-898, 2006. 195GUNNINGHAM, Neil; GRABOSKY, Peter. Smart Regulation: Designing Environmental Policy. Oxford: Clarendon Press, 1998. 196IVEC, Mary; BRAITHWAITE, Valerie. Applications of Responsive Regulatory Theory in Australia and Overseas: Update. Canberra: Regulatory Institutions Network, Australian National University, 2015. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 109 responsiva por parte do Civil Aeronautics Board dos Estados Unidos da América nas audiências públicas de tramitação da Reforma Regulatória da Aviação, de 1977.197 Em outras palavras, a teoria da regulação responsiva não se confunde com o desejo atemporal por atuação responsiva do Estado frente às demandas da sociedade, embora carregue consigo a proposta de uma atuação mais concertada entre regulador e regulado. A teoria da regulação responsiva também não se confunde com a teoria do direito responsivo de Nonet e Selznick198 esboçada em 1978, embora Ayres e Braithwaite procurem identificar na regulação responsiva aspectos de flexibilidade, negociação e cidadania participativa próprios ao direito responsivo.199 Os autores da regulação responsiva não aprofundaram o tema, mas a leitura de Nonet e Selznick em sua crítica à proposta de Dworkin de que decisões judiciais deveriam ser derivadas de princípios, ao invés de políticas, entendendo-se por princípios as proposições que descrevem direitos e por políticas as que descrevem objetivos,200 é um rico campo de análise sobre os fundamentos da opção regulatória e sua relação com os direitos. A função paradigmática do direito responsivo está na regulação, ao invés da solução de litígios privados, entendendo-se a regulação como o processo de elaboração e correção de políticas, processo este necessário à realização de um propósito legal.201 A regulação, para a interpretação do direito, detém por guia primário a finalidade legal como propósito da norma, o que evidencia a disfuncionalidade da burocracia em sua propensão de “transformar meios – regras e objetivos operacionais de todo tipo – em fins”202. Isso demonstra 197U.S. HOUSE OF REPRESENTATIVES. Aviation Regulatory Reform: Hearings Before the Subcommittee on Aviation of the Committee on Public Works and Transportation. Washington, D.C.: U.S. Government Printing Office, 1977: “Modesto represents a community that needs responsive regulation by the Civil Aeronautics Board” (p. 897); “H.R. 8813 is a good bill for commuters. It’s truly responsive to the needs of our industry” (p. 625); “(…) raises the very basic question of whether the present regulatory system is responsive to the needs of the public” (p. 433). 198NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Law & Society in Transition: Toward Responsive Law. Abindgon, UK: Routledge, 2017. 199AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 5. 200DWORKIN, Ronald. Hard Cases. Harvard Law Review, v. 88, n. 6, p. 1057-1109, Apr. 1975, p. 1060-1067. 201NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Law & Society in Transition: Toward Responsive Law. Abindgon, UK: Routledge, 2017, p. 108-109. 202NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Op. cit., p. 80. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 110 como a inexplorada natureza da regulação frente à interpretação do direito ainda tem um longo caminho a seguir. A regulação responsiva, entretanto, afasta-se de discussões sobre a razão de ser da regulação para afirmar-se como uma teoria que, em seu nascedouro, procurou transcender o impasse entre posições extremadas queadvogavam, de um lado, a intensificação da regulação estatal e, de outro, a desregulação, algo aliás inscrito no próprio subtítulo do livro de Ayres e Braithwaite sobre regulação responsiva: transcendendo o debate da desregulação. A teoria da regulação responsiva detém inúmeras bases teóricas, mas uma delas que merece ênfase está no pressuposto da incapacidade da lei e do processo em atingirem simultaneamente todos os objetivos neles pretendidos.203 O momento histórico do livro clássico de Ayres e Braithwaite, por sua vez, transparecia uma experiência de cerca duas décadas do predomínio de um discurso pró desregulação, de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, e da diferença em termos de efetivos constrangimentos normativos implementados pelas agências reguladoras dos Estados Unidos no primeiro e segundo governo Reagan, em que foi detectada uma efetiva retomada da força regulatória – no segundo mandato – após uma inicial diminuição no primeiro mandato. Essa constatação de que o discurso de desregulação, de fato, resultara em mais regulação vinha atribuída à compreensão de que a regulação havia migrado de um período de opção maniqueísta entre regular e desregular para uma era de fluxo regulatório caracterizada pelo predomínio dos fluxos e refluxos, de correntes e contra-correntes oriundas da interrelação e interdependência entre as ordens social, mercadológica, estatal e associativa.204 Essa concepção de fluxo regulatório revelava que cada uma dessas ordens seria importante para tanto restringir quanto reforçar o poder das demais e que teorias de regulação que se preocupassem com apenas um aspecto – usualmente o de ordenação estatal ou a autorregulação – estariam fadadas ao fracasso, por desprezarem os efeitos disruptivos e, ao mesmo tempo, complementares das demais ordens. A teoria da regulação responsiva é uma resposta à retórica de oposição entre desregular e regular mais intensamente, em homenagem à nova realidade de fluxo regulatório, ou 203BRAITHWAITE, John. Corporate Crime in the Pharmaceutical Industry. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1984, p. 290; DIVER, Colin S. The Assessment and Mitigation of Civil Money Penalties by Federal Administrative Agencies. Columbia Law Review, p. 1435-1502, 1979, p. 1499. 204AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 14. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 111 também chamada de fluxo institucional. Dita retórica de opção entre dois extremos não é exclusiva desse período histórico. A análise de Osborne205 sobre a oposição entre regulação política – estatal – e autorregulação é um exemplo de quão atual é a tentativa de se priorizar, em abstrato, uma opção frente à outra. Antes de procurar posicionar propostas teóricas assentadas em ideologias, o principal autor da teoria, John Braithwaite procurará apoiar o desenho regulatório responsivo em estudos empíricos, algo que o acompanhou desde sua tese doutoral preocupada em fugir das armadilhas ideológicas para avançar sobre relações empiricamente comprováveis.206 A desconstrução da retórica de oposição entre regular e desregular apoia-se tanto em constatações empíricas de ricochete de movimentos de desregulação,207 quanto nas constatações de que a desregulação como política leva a sua autodestruição208 e de que movimentos de privatização vêm acompanhados de aumento da regulação, chegando-se a dizer que privatização e desregulação seriam tendências sociais de sinais trocados. Quando se intensifica a privatização, aumenta-se a regulação, e vice-versa.209 2.9.2 PRESSUPOSTOS DA TEORIA DA REGULAÇÃO RESPONSIVA Dita origem da teoria da regulação responsiva na intersecção entre movimentos extremos de regulação e desregulação explica os pressupostos por ela utilizados. O pressuposto central encontra-se no fato de que seria no espaço de interação e influência recíproca entre regulação estatal e privada onde estariam as melhores oportunidades de construção de alternativas de desenho regulatório à então discussão polarizada entre regular e desregular. 205OSBORNE, Evan. Self-Regulation and Human Progress: How Society Gains When We Govern Less. Stanford: Stanford University Press, 2018. 206BRAITHWAITE, John. Inequality, Crime, and Public Policy. Londres: Routledge and Kegan Paul, 1979. 207AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 8. 208SIGLER, Jay A.; MURPHY, Joseph E. Interactive Corporate Compliance: An Alternative to Regulatory Compulsion. New York: Quorum Books, 1988, p. 42-43. 209AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 11. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 112 Ali, o regulador tem condições de se concentrar no redirecionamento dos pontos de contato entre regulação pública e privada, ao invés de almejar modelos de plena regulação estatal ou, igualmente perniciosos modelos de autorregulação voluntária.210 Um pressuposto inafastável da teoria da regulação responsiva é o de que se assume que os atores regulatórios, sejam eles reguladores ou regulados, na maioria das vezes, optam por estratégias de atuação ineficientes e, assim, a regulação responsiva é uma prescrição de atuação estatal contínua à procura de novas estratégias quando o regulador é controntado com insucessos recorrentes, assumindo-se que a maior parte das iniciativas regulatórias fracassam na maioria dos contextos de aplicação.211 A ideia de que a regulação seria indesejada é rejeitada pela teoria da regulação responsiva. Essa teoria parte do princípio de que o bom funcionamento dos mercados somente pode atingir uma estágio ótimo e, portanto, benéfico às ordens envolvidas, quando o fluxo regulatório estiver sendo integrado por intermédio da regulação estatal. Punição e persuasão são dependentes entre si e reforçam os efeitos de sua contraparte.212 Um dos pressupostos da teoria da regulação responsiva – um pressuposto, em particular, empiricamente deduzido – é o de que a ameaça de sanção pode figurar como um instrumento mais apropriado do que a persuasão para obtenção de informação sobre o descumprimento das normas. “O poder de punir ajuda a afirmar a legitimidade dos reguladores que desejem persuadir”213. Persuadir, para a teoria da regulação responsiva, significa negociar, abrindo-se mão da aplicação intransigente de punições para valorizar o comportamento cooperativo do regulado e, em última análise, ampliar os efeitos da regulação,214 pois a “punição nunca resulta sozinha em um meio efetivo de regulação de negócios”215. A boa regulação é aquela que sabe impor sanções, quando necessárias – não simplesmente possíveis, ou decorrentes de uma automática e irrefletida aplicação das normas, pois as sanções drenam muito mais dos recursos regulatórios – sem que seja destruída a capacidade da fiscalização de persuadir, apoiando-se na maior presença pressuposta de sinergias do que incompatibilidades entre punição 210AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 3. 211BRAITHWAITE, John. Evidence for Restorative Justice. The Vermont Bar Journal & Law Digest, v. 40, p. 18-22, Summer 2014, p. 22. 212BRAITHWAITE, John. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985, p. 86. 213BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 118. 214BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 113. 215BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 117. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 113 e persuasão.216 Outro pressuposto da teoria responsiva está no fato de que dita sinergia pavimentaria o caminho de menor resistência empresarial à norma.217 A resposta à pergunta sobre se é preciso punir ou persuadir é de que nem um nem outro, mas ambos, pois são técnicas interdependentes. Igualmente, somente punir ou somente persuadir não é recomendado pela teoria da regulaçãoresponsiva; ela é uma teoria que se opõe a estratégia de ser consistente,218 pois isso retira a capacidade de manobra do regulador em obter os benefícios do jogo entre punição e persuasão. Nas palavras dos próprios autores da regulação responsiva, um certo grau de desregulação seria bem-vindo, com a queda do muro de Berlim, para os países saídos da cortina de ferro da União Soviética, mas mesmo essa medida deveria ser acompanhada de esforços para constituição das ordens regulatórias até então inexistentes ou fragilizadas pelo regime comunista, sem as quais os novos mercados não teriam como funcionar ou sobreviver. Ou seja, a receita regulatória para ingresso daqueles países no regime capitalista passaria necessariamente pelo reforço da regulação nas diversas ordens regulatórias, mesmo que com a diminuição da intensidade regulatória da ordem estatal.219 Isso ocorre porque outro pressuposto da teoria da regulação responsiva é o de que a fiscalização regulatória realizada pela indústria seria mais ostensiva, demorada e profunda do que a realizada por agentes públicos. É um equívoco, segundo a teoria da regulação responsiva, pressupor-se que a autorregulação seria uma opção de amenização das consequências pelo descumprimento das normas quando comparada com constrangimentos públicos, pois há evidências de que punições societárias decorrentes, por exemplo, de departamentos de compliance podem ser muito mais severas do que as extrinsecamente implementadas.220 A fiscalização privada seria mais violenta, mais invasiva, mais detalhista, com maior capacidade de detecção de problemas, teria mais fiscais e pessoal de 216BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 119. 217BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 126. 218“Tanto punir consistentemente, quanto persuadir consistentemente são estratégias insensatas” (BRAITHWAITE, John. Types of Responsiveness, p. 118. In: DRAHOS, Peter (org.). Regulatory Theory: Foundations and Applications. Acton: Australian National University Press, 2017, p. 117-132). 219AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 7. 220BRAITHWAITE, John. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985, p. 122. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 114 compliance das empresas, mais preparados, além de gozarem de confiança empresarial para obtenção de informações e correção de rumos.221 A característica de servir como meio de interação entre ordens regulatórias evidencia o porquê da teoria da regulação responsiva ter sido concebida como uma estratégia específica de governança do mercado,222 com ênfase no termo governança para ressaltar que medidas regulatórias estatais somente têm reforço e limites quando confrontadas com medidas regulatórias internalizadas nos atores regulados. Em especial, estratégias regulatórias que posicionem as normas no seio das empresas reguladas, tornando-as parte do processo de produção, mediante ratificação de normas oriundas de propostas do próprio regulado geram maior aderência do comportamento empresarial às prescrições normativas.223 Essa característica de reforço da autonomia do sistema regulado também decorre da constatação de que a regulação pode aplicar, em seu escopo, uma recomendação para a regulação das relações internacionais: “maximizar a liberdade como não-dominação”224. Além disso, outro pressuposto da teoria da regulação responsiva está na afirmação de que regras governamentais detalhadas nunca poderão cobrir adequadamente as deficiências de gestão empresarial decorrentes de planejamento inadequado, falhas de comunicação e contabilidade deficiente; as minúcias de uma gestão empresarial eficiente são inalcançáveis por regras estatais, mas passíveis de incentivo pela escalada regulatória.225 Ao se posicionar como uma teoria capaz de interagir com o novo fluxo regulatório, ela se apresenta como um método de vantagens mútuas no jogo regulatório.226 221BRAITHWAITE, John. Enforced Self-Regulation: A New Strategy for Corporate Crime Control. Michigan Law Review, v. 80, n. 7, p. 1466-1507, Jun. 1982, p. 1468. 222AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 4. 223BRAITHWAITE, John. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985, p. 126. 224BRAITHWAITE, John. Relational Republican Regulation. Regulation & Governance, v. 7, p. 124-144, 2013, p. 142. 225BRAITHWAITE, John. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985, p. 124-125. 226AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 17. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 115 Além disso, a forma como a teoria da regulação responsiva vê os regulados repercute na estruturação da pirâmide regulatória e na sua dinâmica. Para os autores da regulação responsiva, os atores regulados são combos de compromissos contraditórios com valores de racionalidade econômica, respeito às leis e responsabilidade nos negócios.227 A regulação responsiva opera na convergência entre análises de escolha racional e análises sociológicas que negam o pressuposto do modelo da escolha racional. Ela parte do pressuposto de que abordagens econômicas da regulação, ao resumirem o comportamento do regulado a uma constante racional, enfraquecem a força moral do direito, tornando a detecção e a dissuasão mais difíceis de serem alcançadas do que a partir do legalismo; ela parte do pressuposto de que, embora o economicismo tenha uma papel importante na regulação dos negócios, ele é limitado em suas contribuições ao passado, ao contrário do legalismo, como modelo punitivo de comando e controle, que, ao não assumir que os negócios sempre se comportariam de forma racional, pode prevenir a prática de atos danosos antes que eles ocorram.228 Não só cada ator regulado se comporta de uma forma, como cada ator regulado manifesta-se de diversas formas contraditórias a depender do momento, do contexto, das motivações, dos incentivos, enfim, do ambiente regulador. A existência de diferentes personalidades do regulado faz com que seus comportamentos sejam sensíveis a diferentes motivações e, portanto, somente podem ser devidamente controlados por uma sólida estrutura regulatória e estratégia apropriada oriunda da teoria dos jogos e aplicada no dilema do prisioneiro conhecida como estratégia regulatória da reação equivalente, “isso por aquilo”229, ou tit-for-tat regulatory strategy, capaz de ser contingencialmente responsiva à provocação, mas também capaz de contingencialmente perdoar. Ao se apoiar na teoria dos jogos, a teoria da regulação responsiva absorve seus pressupostos e um deles a caracteriza pela compreensão de que uma teoria normativa do agir estratégico regulatório em busca do comportamento desejado depende da 227AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 19. 228BRAITHWAITE, John. The Limits of Economism in Controlling Harmful Corporate Conduct. Law and Society Review, v. 16, n. 3, p. 481-504, 1981/1982. 229GOETTENAUER, Carlos. Regulação Responsiva e a Política de Segurança Cibernética do Sistema Financeiro Nacional. Revista de Direito Setorial e Regulatório, v. 5, n. 1, p. 131-146, maio 2019, p. 136. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 116 vivência empírica, ou seja, ao invés de se apoiar em considerações apriorísticas, apoia-se na interação efetiva entre os jogadores.230 Essa complexidade de comportamento de um mesmo ator regulado resulta em quatro pressupostos sistêmicos abraçados pela teoria da regulação responsiva, quais sejam: a) uma estratégia regulatória inteiramente apoiada em persuasão e autorregulação será manipulada pelos regulados quando eles forem motivados por racionalidadeeconômica; b) uma estratégia apoiada prioritariamente em punições minará a boa vontade dos atores quando eles forem motivados por um senso de responsabilidade social; c) uma estratégia apoiada prioritariamente em sanções punitivas fomentará uma subcultura de resistência à regulação na organização empresarial, em que métodos de resistência legal e contra-ataque serão incorporados no modo de ser da indústria; d) a estratégia regulatória da reação equivalente – isso por aquilo, tit for tat ou TFT – será eficaz em impedir o desrespeito às normas por atores puramente movidos por racionalidade econômica, mas também será útil em gerar confiança e ação ou compromisso cívico – civic virtue. Os dois primeiros pressupostos sistêmicos acima decorrem de Braithwaite.231 O terceiro é inspirado em Bardach e Kagan232 e o quarto decorre das propostas de Anatol Rapoport de teoria dos jogos assimiladas à regulação por John Scholz, na linha da estratégia cooperativa233 e da conformidade voluntária234. 230SCHELLING, Thomas C. The Strategy of Conflict. 18. ed. Cambridge, MA: Harvard University, 2002, p. 162-163. 231BRAITHWAITE, John. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985. 232BARDACH, Eugene; KAGAN, Robert A. Going by the Book: The Problem of Regulatory Unreasonableness. Philadelphia: Temple University Press, 1982. 233SCHOLZ, John T. Cooperation, Deterrence, and the Ecology of Regulatory Enforcement. Law & Society Review, v. 18, n. 2, p. 179-224, 1984. 234SCHOLZ, John T. Voluntary Compliance and Regulatory Enforcement. Law & Policy, v. 6, n. 4, p. 385-404, 1984. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 117 A abordagem regulatória de retaliações equivalentes tem por pressuposto que a melhor regulação não é uma constante punitiva, mas também não é uma constante persuasiva. Ambas as abordagens são necessárias para caracterizar a regulação responsiva como forma de regulação que angaria força em migrar de uma postura cooperativa para uma punitiva e vice-versa, conforme a postura do regulado, ou seja, a personalidade que esteja aflorando naquele contexto: a do agente motivado pelo lucro, pela responsabilidade social ou por princípios de negócios. Ao incorporar a figura da pirâmide regulatória, mais a frente esmiuçada, a teoria da regulação responsiva qualifica essa migração necessária entre posturas cooperativas e punitivas pelo pressuposto de que o regulador que promove a escalada de estratégias regulatórias tem uma vantagem comparativa frente ao que não faz uso dela.235 A existência de punições – em abstrato e em concreto – é um incentivo para o regulado ingressar no jogo cooperativo.236 A teoria da regulação responsiva apoia-se, além disso, em um conjunto de assertivas derivadas de estudos empíricos prévios, tais como a de que sanções são dispendiosas, pois desperdiçam recursos em litigância, enquanto a persuasão é barata, e os constrangimentos de natureza punitiva criam um jogo de gato e rato regulatório, em que as empresas encontram formas de fugir à regulação e o Estado cria mais e mais normas para colmatar as lacunas regulatórias.237 235BRAITHWAITE, John. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985, p. 142. 236AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 34. 237Se a profusão de normas é um indício de que o caminho regulatório escolhido por uma Nação foi o da exclusividade dos constrangimentos punitivos, o setor de saúde, no Brasil, não deixa dúvidas dessa opção desastrada, ao conviver com cerca de 18 mil artigos espalhados em 1060 leis ordinárias e 12 leis complementares, regulamentados por mais de 9 mil artigos somente do Gabinete do Ministro da Saúde e infindáveis disciplinas normativas das secretarias do Ministério da Saúde (SANTOS, Alethele de Oliveira. Teses da Saúde no Relatório Final da VIII Conferência Nacional de Saúde e na Legislação Federal no período compreendido entre 1986 e 2016: uma análise comparada. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade de Brasília, 20 de setembro de 2019, p. 36-37). MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 118 Tais estudos empíricos indicarão o caminho mais produtivo da postura cooperativa estratégica: “rejeitar a regulação punitiva é inocente”238; o oposto também o é. A conformidade é otimizada em uma regulação contingencialmente feroz e complacente.239 Não existe uma fórmula mágica de regras de conduta aplicável a todas as empresas, mesmo no seio de um determinado setor, que resulte no mesmo comportamento, pois cada empresa apoia sua estrutura formal de ser em sua história, personalidades dirigentes, estatutos, que geram um ambiente empresarial em que uma fórmula única será incapaz de gerar comportamentos equivalentes.240 Finalmente, a teoria da regulação responsiva parte do pressuposto de que a regulação cooperativa será tanto mais possível quanto maior for a dimensão ou intensidade de três requisitos: a) o uso de uma estratégia de barganha de reação equivalente; b) a disposição hierárquica de uma gama de sanções e de estilos regulatórios interventores nas pirâmides de constrangimento; e c) a altura da pirâmide, representada pela aflitividade de sua sanção mais severa.241 Tais requisitos, quando bem combinados, geram no regulado a consciência de que o regulador age com critério e justiça, o que, por si só, tem efeito benéficos na conformidade desejada às normas, pois, como afirma Benkler,242 a percepção de que a regulação seja justa gera maior probabilidade de conformidade. 2.9.3 A TEORIA É RESPONSIVA A QUÊ? Compreendida a ambientação da teoria da regulação responsiva e de seus pressupostos, cabe perguntar-se quanto ao quê ela se 238AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 25. 239AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 27. 240BRAITHWAITE, John. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985, p. 61-62. 241AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 40. 242BENKLER, Yokai. From Greenspan's Despair to Obama's Hope: The Scientific Bases of Cooperation as Principles of Regulation. In: MOSS, D.; CISTERNINO, J. New Perspectives on Regulation. Cambridge, MA: The Tobin Project, 2009, p. 65-87. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 119 julga responsiva. A resposta a essa pergunta é uma tríade.243 A teoria seria responsiva: a) à estrutura da indústria regulada, no sentido de que cada setor regulado exige graus e formas regulatórias específicas; b) às motivações que importam aos atores regulados, segundos os objetivos que guiam as ações das empresas, dos grupos empresariais e dos indivíduos isoladamente, ou seja, segundo os diferentes perfis de atores influentes no comportamento regulado; c) ao comportamento do regulado, à procura por evidências de que o regulado esteja tornando efetiva a regulação privada, reagindo conforme graus distintos de intervenção estatal. Este último aspecto costuma gerar perplexidades quando da aplicação da teoria da regulação responsiva em setores regulados. Uma leitura enviesada que costuma ocorrer da regulação responsiva é de que os três aspectos acima estariam no mesmo patamar. Os dois primeiros são, todavia, pressupostos para uma regulação responsiva; o terceiro, sua identidade. Para que exista responsividade, é necessário que a regulação seja sensível ao perfil comportamental ou atitudinal dos regulados. A indústria regulada, por certo, tem suas peculiaridades, como riscos inerentes ao negócio, à atividade, à sua complexidade, à organização empresarial, mas aplicar-se uma regulação baseada em riscos nãosignificará responsividade. Uma modelagem responsiva pode assimilar formas regulatórias baseadas em risco para camadas da pirâmide responsiva, já que a teoria da regulação responsiva é, em última análise, uma teoria que propõe uma combinação excelente de formas regulatórias para fruição de efeitos comportamentais. Outro enfoque também oriundo da teoria da regulação responsiva está em se dizer que a estratégia responsiva o é em relação à constante mudança dos ambientes regulatórios e de responsividade daqueles que são regulados.244 Ou seja, a teoria propõe que o regulador seja responsivo à constante transformação e, para isso, seja sensível à experiência contextual dos atores regulados. 243AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 4. 244BRAITHWAITE, John. Evidence for Restorative Justice. The Vermont Bar Journal & Law Digest, v. 40, p. 18-22, Summer 2014, p. 22. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 120 Em proposta de expansão da responsividade rumo a uma “verdadeira” regulação responsiva, Baldwin e Black245 defendem que o regulador deve ser responsivo não somente ao comportamento do regulado, mas também à conformação operacional e cognitiva das empresas, ao ambiente institucional e à performance do regime regulatório, às diferentes lógicas dos instrumentos e estratégias regulatórias e às transformações que nelas se operam. Eles concluem que uma regulação somente será verdadeiramente responsiva quando ela conhecer os regulados e seus ambientes institucionais, quando for capaz de implementar novas e diferentes lógicas regulatórias de forma coerente, quando for sensível a sua própria performance e quando conseguir compreender as transformações dos desafios que enfrenta.246 Parafraseando Baldwin e Black, o aspecto ‘verdadeiramente’ inovador de sua proposta está na apresentação da responsividade também como interação com o regime regulatório, haja vista que mesmo o aspecto não pleiteado na teoria original de responsividade de combinações de instrumentos e estratégias regulatórias fora antecipado por Gunningham e Grabosky247 na formulação da teoria da regulação inteligente, mais a frente tratada. 2.9.4 CARACTERÍSTICAS ESPECÍFICAS DA ATUAÇÃO RESPONSIVA DO REGULADOR Além da caracterização dos fundamentos para a ação responsiva da Administração Pública, a responsividade do regulador é caracterizada por um diferencial próprio ao modelo responsivo: espera-se do regulador que atue de forma inovadora sobre o rol de respostas regulatórias à dinâmica da estrutura, das motivações e do comportamento do regulado. Em termos jurídicos, isso significa dizer que a atividade regulatória é vítima de uma reserva infralegal qualificada pela inovação constante oriunda de alterações aferíveis de estrutura, motivações e comportamento do regulado. Uma disciplina infralegal regulatória responsiva incorpora, por pressuposto, as razões acima como próprias ao princípio de tratamento isonômico dos regulados: o regulador recompensará a cada um conforme suas obras. 245BALDWIN, Robert; BLACK, Julia. Really Responsive Regulation. LSE Law, Society and Economy Working Papers, Londres, v. 15, p. 1-47, 2007. 246BALDWIN, Robert; BLACK, Julia. Op. cit., p. 47. 247GUNNINGHAM, Neil; GRABOSKY, Peter. Smart Regulation: Designing Environmental Policy. Oxford: Clarendon Press, 1998. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 121 Não se deve confundir, entretanto, uma abordagem responsiva com o culto pela recompensa. Tais conceitos são mais antípodas do que complementares. A literatura responsiva chega ao ponto de concluir que recompensas formais são contraproducentes,248 incentivando um comportamento meramente reativo por parte do regulado, abrindo-se espaço, somente em certos casos, para seu uso na base da pirâmide de constrangimento e, mesmo assim, não como linha de frente, e também na pirâmide aspiracional, ambas mais à frente tratadas. Não seria um exagero dizer que a regulação responsiva recomenda ao regulador afastar-se ao máximo das recompensas formais, à exceção do espaço de atuação do regulado para além da conformidade às normas inscrito na pirâmide aspiracional. A teoria responsiva recomenda sem temor, entretanto, o uso de recompensas informais, como elogios e reconhecimento. A teoria responsiva é uma meta-estratégia ao tratar, lado- a-lado, das estratégias restaurativa e responsiva como estratégias sobre como selecionar estratégias voltadas à solução de problemas concretos mediante uma regulação assim entendida em sentido lato como uma forma de redirecionamento do fluxo de eventos por intermédio de abordagens multidimensionais.249 A literatura responsiva, predominantemente de língua inglesa e hospedada na tradição anglo-americana, falará ainda de delegação de funções regulatórias, muito ao gosto da própria justificativa jurídica do exercício do poder regulador por delegação legislativa. É sabido, entretanto, que a tradição informadora das instituições de direito público brasileiras não incorpora essa dicção para afirmação da competência das agências reguladoras, de modo que se passa a falar, aqui, do que se pretende enfatizar com dita referência como galvanização de normas sociais pela ordem regulatória estatal. Nesse sentido, a governança do mercado ocorre, na teoria da regulação responsiva, por intermédio de técnicas informadas, estudadas, pensadas, planejadas e estratégicas de transposição de funções regulatórias do método de intervenção extrínseca estatal para a ordem regulatória empresarial. É da combinação entre medidas intrusivas e medidas de incentivos regulatórios que exsurge a configuração responsiva da regulação. 248BRAITHWAITE, John. Rewards and Regulation. Journal of Law and Society, v. 29, n. 1, p. 12-26, March 2002. 249BRAITHWAITE, John. Evidence for Restorative Justice. The Vermont Bar Journal & Law Digest, v. 40, p. 18-22, Summer 2014, p. 21-22. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 122 O modo como se dá a influência sobre a ordem regulatória do mercado via transposição de funções regulatórias do Estado para a iniciativa privada, na teoria de regulação responsiva, encontra-se apoiado em um conceito essencial à teoria de regulação responsiva. Trata-se do escalonamento de formas de intervenção governamental, representado na pirâmide de constrangimento normativo250 ou enforcement pyramid e que, intuitivamente, significa a escalada de constrangimentos mais intrusivos aos descumpridores das normas, mas também, e tão importante quanto, a desescalada gradual dos constrangimentos251 inspirada na estratégia de relações internacionais de redução gradual de tensão criada por Osgood, na década de 1960, sob o codinome Graduated Reciprocation in Tension-Reduction – GRIT, em que a parte iniciadora da estratégia é desaconselhada a tolerar que aqueles a quem a estratégia se dirige tirem proveito de seus atos ou a contrastem com escalada de reações. Em face de comportamentos nocivos, a estratégia GRIT recomenda retaliação imediata e proporcional para restauração do status quo existente antes da escalada de tensão.252 O caráter gradual de escalada na pirâmide de constrangimento se apresenta como outra marca identificadora da regulação responsiva, inspirada em estudos que revelam a ineficácia em se partir diretamente para estratégias dissuasivas ao invés de se apelar à ética dos negócios e a medidas educativas sobre as consequências das ações do regulado.253 O reforço do momento cooperativo entre regulador e regulado é o enfoque central da teoria responsiva, entendendo-se esse momento não somente como a autorregulação voluntária própria aos espaços de direito privado naturais a qualquer ambiente regulatório, mas principalmente como o momento de construção conjunta de soluções, inclusive sancionáveis, mas com a expectativa de que não se precise chegar à sua aplicação. A pirâmide é a representação mais conhecidada teoria da regulação responsiva e detém orientações prescritivas próprias para sua identificação enquanto tal, quais sejam: 250AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 19-53. 251AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 128. 252LINDSKOLD, Svenn; COLLINS, Michael G. Inducing Cooperation by Groups and Individuals: Applying Osgood’s GRIT Strategy. Journal of Conflict Resolution, v. 22, n. 4, p. 679-690, 1978, p. 680. 253PATERNOSTER, Raymond; SIMPSON, Sally. Sanction Threats and Appeals to Morality: Testing a Rational Choice Model of Corporate Crime. Law & Society Review, v. 30, n. 3, p. 549-584, 1996. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 123 a) que persistam punições ameaçadoras no topo da pirâmide, pois a sua força é tanto maior quanto maior for a distância entre a base da pirâmide e as medidas intrusivas do seu ápice, inscrito na famosa afirmação de que “as agências reguladoras serão capazes de falar manso quando forem vistas com grandes cassetetes”254; b) que contemple uma hierarquia de sanções e de estratégias regulatórias de graus variados de intervencionismo; c) que funcione com controle cidadão apoiado no conceito de tripartismo republicano regulatório, o que gera maior aderência aos objetivos regulatórios, previne a corrupção, impede a captura danosa, encoraja certas formas de captura benéfica e nutre a democracia; d) que inspire confiança na atitude esperada do regulador em escalar e desescalar o constrangimento normativo, ou seja, que transmita credibilidade quanto ao escalonamento ser real e efetivo, pois somente assim o regulador poderá, confiante no temor do regulado em sofrer a escalada de punições, concentrar-se em formas menos intrusivas e menos estadocêntricas de intervenção, beneficiando-se de uma governança laissez-faire sem abdicar da responsabilidade pública pela correção de comportamentos desviantes (AYRES e BRAITHWAITE, 1992, p. 4-5). A regulação responsiva prefere tentativas fracassadas de punição à ausência de movimentação por parte do regulador nesse sentido, quando a cooperação falhar. Esforçar- se por punir, mesmo que fadado ao insucesso, é “muito mais eficaz do que docilmente abster-se de exercer poderes persecutórios”255, pois se resultar meramente em uma orientação interna empresarial de que todos os departamentos atentem para o 254AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 6. 255AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 137. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 124 problema, já se terá cumprido a função de reforço de normas internas e, portanto, de incentivo à conformidade. e) que contemple a escalada não somente de punições formais, mas também de constrangimentos em geral, tais como frequência de atos de fiscalização,256 monitoramento tripartite,257 ou seja, quaisquer ações que gerem desconforto no regulado e percepção de que terá migrado de uma posição de maior liberdade e segurança para outra de maior controle e ameaça. Espaço considerável da exposição sobre a teoria da regulação responsiva é reservado a identificar os destinatários dessa transposição de funções regulatórias realizada de forma específica e condicionada. São eles: a) os grupos de interesse público;258 b) os competidores desregulados;259 c) as empresas reguladas.260 A forma de se efetivar essa transposição é naturalmente influenciada pelas técnicas regulatórias à disposição do regulador e pela natureza do destinatário, mas isso não impediu que fossem fixadas características gerais do desenho regulatório em que tais técnicas são distribuídas. Não há dúvidas que a proposta de regulação responsiva é teoricamente sólida e seu espaço de oportunidade empiricamente justificado. Os próprios idealizadores da teoria, entretanto, admitem que ela não entregaria um programa ou conjunto de prescrições sobre a melhor forma de regular.261 Essa afirmação deve ser, entretanto, ligeiramente corrigida com o desenvolvimento conceitual da teoria regulatória para se afirmar que a teoria da regulação responsiva fornece um arcabouço teórico e recomendações práticas que demonstram formas recomendadas de regular inspiradas no mecanismo regulatório responsivo de transposição de funções regulatórias, governança empresarial, reforço do fluxo regulatório e integração das técnicas de regular em uma pirâmide de punições e de incentivos. No seu nascedouro, também não faltam prescrições de técnicas regulatórias a serem utilizadas nas camadas da pirâmide regulatória. O que efetivamente falta à teoria da regulação responsiva e nunca poderá ser 256AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 38. 257AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 54-100. 258Id., ibid. 259AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 133-157. 260AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 101-132. 261AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 5. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 125 colmatado é uma receita de ingredientes regulatórios predefinidos para todas as situações-problema,262 pois a teoria parte do pressuposto de que cada caso, setor, ambiente institucional, inclusive jurídico, e cultura regulatória demandarão um esforço inovador do regulador na montagem da pirâmide regulatória segundo estratégia pensada frente à estrutura da indústria regulada, às motivações que importem aos atores regulados e o efetivo comportamento dos regulados. Espera-se do regulador um juízo informado e circunstancial sobre a devida modelagem da pirâmide regulatória e uma atitude responsiva aberta a uma variedade de abordagens – técnicas – regulatórias, atitude essa inspirada na proposta de Sigler e Murphy263 de compliance empresarial. Não há, portanto, na regulação responsiva, soluções universais, mas isso não impede que Ayres e Braithwaite recomendem algumas técnicas úteis à estruturação e implementação das ações regulatórias nas camadas da pirâmide de constrangimentos. Por exemplo, a proposta de autorregulação regulada é recomendada como estratégia de galvanização da ordem regulatória empresarial por intermédio de incentivos ao exercício responsável de controles internos. A transposição de funções regulatórias do Estado para o setor regulado pode mesmo chegar a transpor o monitoramento das demais funções transpostas.264 O formato da pirâmide é alongado, ou seja, de base mais alargada, como qualquer pirâmide, mas com o seu topo distorcendo o formato tradicional piramidal com um distanciamento desproporcional da base. Quanto mais distante for o topo da pirâmide da base, melhores serão os resultados de conformidade projetados pela atuação responsiva. Isso significa dizer que o arsenal de sanções disponíveis ao regulador deve ser o mais poderoso possível, gerando a imagem, no regulado, de que a agência reguladora é uma grande arma benigna (benign big gun), com fala mansa, mas portadora de um cassetete descomunal.265 Essa apresentação da agência como capaz de lançar mão de sanções devastadoras,266 mas somente as exercitando quando todas as demais opções de atuação cooperativa falharem e uma cadeia de sanções menores escalonadas267 forem utilizadas sem a repercussão esperada trará efeitos diferenciados de conformidade às 262AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 18. 263SIGLER, Jay A.; MURPHY, Joseph E. Interactive Corporate Compliance: An Alternative to Regulatory Compulsion. New York: Quorum Books, 1988. 264AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 4. 265AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 40-41. 266AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 19-53. 267AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 19. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 126 normas no comportamento dos regulados. O sucesso do modelo regulatório responsivo apoia-senão só no escalonamento das intervenções regulatórias, mas também na variedade de níveis de intervenção e na maior distância possível entre o ambiente de maior liberdade do regulado e a camada da pirâmide regulatória de sanções ameaçadoras. Outra forma recomendada pela teoria da regulação responsiva para atuação do regulador encontra-se na forma de aplicação da estratégia de constrangimento de reação equivalente ou TFT enforcement strategy, apoiada na importação da teoria dos jogos à regulação, em que a regulação é modelada segundo o dilema do prisioneiro. Tanto a análise de teoria dos jogos quanto o capítulo de regulação parcial da indústria foram contribuições de Ian Ayres268 ao livro seminal da regulação responsiva de 1992. Uma abordagem regulatória de reação equivalente implica, por parte do regulador, o comportamento de se abster de aplicar sanções enquanto a empresa for cooperativa,269 pois simulações computacionais de rodadas experimentais demonstram que essa postura maximizaria os resultados de conformidade à norma e minimizaria custos regulatórios, sendo benéfica para ambos – regulador e regulado – enquanto ambos adotassem posturas cooperativas. Por isso, é disruptivo quando a empresa se aproveita da postura cooperativa do regulador para trapacear no compliance, como também é disruptivo quando o regulador cede à tentação de aplicar sanções a empresas cooperativas, pois tais atitudes disparam retaliações do Estado em aplicar sanções e da empresa em se evadir das normas. O importante da aplicação da teoria dos jogos à regulação decorre da ciência de que uma parte – regulador ou regulado – somente detém trunfos em relação à outra parte enquanto persistir na postura cooperativa. A partir do momento que o Estado lança mão de constrangimentos normativos extrínsecos, culminando nas sanções aflitivas e incapacitantes, ele perde a vantagem no jogo, o mesmo sucedendo com as empresas desleais à postura cooperativa. O meio para que esse formato de estratégia regulatória de retaliações equivalentes seja implementado, no Brasil, demanda, entretanto, 268AYRES, Ian. Responsive Regulation: A Co-Author's Appreciation. Regulation & Governance, v. 7, p. 145-151, 2013. 269AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 54-100. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 127 esforço de engenharia jurídica. A tradução dessa estratégia regulatória para a experiência jurídica brasileira, que desconfia da discricionariedade e submete o servidor público a uma espada de Dâmocles de responsabilização iminente com ônus da prova invertido, encontra-se no desenho de regimes jurídicos próprios aos comportamentos cooperativo e adversarial. O modus operandi do regulador na regulação responsiva é também decisivo. É um requisito de sucesso da atuação da agência reguladora, segundo as prescrições da teoria da regulação responsiva, que ela reconheça a existência de níveis de agregação de atores regulados, seja o nível de agregação das empresas em associações, o nível de desagregação das empresas em subdivisões empresariais, o nível de desagregação das subdivisões em agentes empresariais e, finalmente, o nível de desagregação dos agentes/indivíduos em seus múltiplos eus ou personalidades,270 pois as motivações incidentes sobre o ator regulado provocam facetas de sua personalidade, que dependem das circunstâncias de momento e contexto, ora incorporando a personalidade maximizadora do lucro, ora a obediente às normas, ora a respeitante do ambiente de negócios. Como já se disse mais acima, os atores regulados são combos de compromissos contraditórios. A regulação deve reconhecer essa ordem de incentivos de racionalidade econômica, respeito às normas e responsabilidade social e nos negócios: o tratamento respeitoso abre espaço à manifestação da personalidade de responsabilidade social do executivo da empresa. Tratá-lo sem recorrer a ameaças é um incentivo para que aflore sua faceta com responsabilidade perante a norma e responsabilidade social.271 A agregação e desagregação dos atores regulados e a consciência de que se trata de atores com múltiplas personalidades representa a forma como a teoria da regulação responsiva sintetiza o binômio ‘objetivos-motivações do regulado’ para evidenciar que a escalada de constrangimentos e sanções responde aos diferentes objetivos e motivações dos atores regulados. Dentre as recomendações ao regulador, a teoria da regulação responsiva indica que: 270AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 19 e 34. 271AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 27-35. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 128 a) o regulador deve ter sempre, como ponto de partida e primeira forma de abordagem de aproximação, a cooperação,272 o que não se confunde com a recomendação de que a base da pirâmide de estratégias regulatórias seja a autorregulação, pois uma coisa é dizer que a postura do regulador deve iniciar pela cooperação e outra é dizer que o regime regulatório destinado aos atores regulados cooperativos é o da autorregulação e autorregulação regulada apoiado na ideia de que o regulado pode internalizar punições mais persuasivas por intermédio, por exemplo, da atuação de departamentos de segurança do trabalho com poderes de recomendar que um empregado seja demovido de sua função ou que perca oportunidades de promoção;273 b) o regulador deve estabelecer uma sinergia entre punição e persuasão;274 c) o regulador deve se comportar de modo a transmitir um recado claro e em alto e bom tom de que atores regulados descumpridores das normas que não adotarem, honestamente, posturas cooperativas, sofrerão efetiva persecução, ou seja, deve transmitir a real impressão de credibilidade da atuação reguladora punitiva sob pena de desincentivar os atores cumpridores das normas quando eles não veem credibilidade na efetiva punição dos infratores;275 d) o regulador deve dar tempo suficiente ao regulado para correção de conduta antes de escalar as sanções, o que reafirma sua reputação de regulador justo, apoiando-se na paciência como incentivo à adoção de postura cooperativa pelo regulado e no rigor exemplar e divulgação dos resultados punitivos para todos os regulados quando a postura cooperativa falhar;276 272AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 21. 273BRAITHWAITE, John. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985, p. 122. 274AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 25. 275BOWLES, Chester. Promises to Keep: My Years in Public Life 1941-1969. New York: Harper & Row, 1971. 276AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 43. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 129 e) o regulador deve identificar níveis de conformidade às normas, classificando-os na pirâmide de constrangimentos277 e, para cada nível de descumprimento das normas, deve existir um correspondente agravamento sancionatório,278 trabalhando com a abundância de meios sancionatórios, pois a escassez deles representa perda de eficácia da pirâmide regulatória; f) o regulador deve adotar uma visão de longo prazo, tanto na compreensão do setor regulado, quanto na expectativa de colher os frutos do modelo da pirâmide regulatória;279 g) a fiscalização regulatória deve ser episódica,280 ou seja, deve avançar sobre um tema específico com averiguação e escalada de constrangimentos para em seguida ser suspensa por determinado período, entendendo-se os episódios de fiscalização como forças-tarefa de prioridades estatais com início e fim para que o caráter punitivo ou persuasivo contínuo sofra interrupções estratégicas e retomadas. Ao reforçar a fiscalização regulatória episódica, a teoria da regulação responsiva evidencia como uma fiscalização concentrada em padrões de comportamento indesejados é mais eficaz do que uma fiscalização apoiada em cumprimento horizontal e contínuode toda a regulamentação.281 Cada episódio ou período de fiscalização dirigida e aplicação de escalada de constrangimentos deve vir acompanhada de maior exigência de evidência cooperativa do regulado, sendo que quanto mais cooperativo ele for, mais rápido sairá da situação de desconforto. Um tipo de medida cooperativa envolve aquilo que a doutrina internacional chama de auto-sanção (self-sanction), como, por exemplo, a 277AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 42. 278AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 37. 279BRAITHWAITE, John. Enforced Self-Regulation: A New Strategy for Corporate Crime Control. Michigan Law Review, v. 80, n. 7, p. 1466-1507, Jun. 1982, p. 1466. 280AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 42-43. 281BRAITHWAITE, John. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985, p. 40. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 130 obrigação da empresa pagar por investigação independente para produção de relatórios públicos sobre desconformidade normativa.282 O caráter episódico de esforços de regulação responsiva evidencia que esse tipo regulatório é inimigo da aplicação rotineira de penalidades, pois essa postura estatal destrói a cooperação e qualquer benefício derivado de sanções verdadeiramenta graves. O Estado deve lançar mão da persuasão, no front, reservando a punição para a retaguarda, pois a teoria da regulação responsiva parte do pressuposto de que, quanto menos evidente e poderosa for a técnica de controle utilizada para alcance da conformidade, será mais provável que ocorra a internalização da norma no comportamento do regulado. Por isso, o regulador deve seguir o princípio do mínimo suficiente, ou seja, somente deve ir até o ponto da pirâmide de constrangimento suficiente para o alcance da conformidade. Cada avanço para além do necessário diminui os efeitos benéficos da proposta responsiva, que segue a lógica de que medidas de dissuasão ou incapacitação somente têm lugar quando a internalização de normas no comportamento do regulado falhar.283 O momento cooperativo da negociação regulatória é potencializado pelo efeito instrutivo e demonstrativo que o regulador deve adotar ao entabular discussões nessa fase, evidenciando que os efeitos da desconformidade à norma serão inexoráveis. A cooperação entre regulador e regulado deve vir acompanhada de uma clara exposição dos efeitos maléficos do insucesso, tanto nos níveis de agregação empresarial – reputação empresarial – quanto de desagregação individual – exposição pessoal.284 Ao desenhar a pirâmide regulatória, o regulador deve também ter presente que há diversos tipos de constrangimentos para diferentes atores regulados e suas diferentes personalidades. Sanções aflitivas com efeitos econômicos voltam-se ao ator regulado e a manifestações de seu eu obediente à racionalidade econômica, como multas, intervenção, apreensão, lacração, suspensão provisória de atividades. Tais sanções ainda se encontram no nível de procurar impedir ou prevenir a ação danosa; são constrangimentos dissuasivos (deterrence), 282AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 44. 283AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 49-51. 284AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 45. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 131 mas não incapacitantes (incapacitative), tais como a cassação, que por sua natureza definitiva e final, dirige-se a atores ou personalidades irracionais.285 Outros tipos de constrangimento, como publicidade adversa,286 também tocam na tecla da racionalidade econômica, mas, como comprovado por Thornton, Kagan e Gunningham287, somente para certos tipos de empresas de um setor regulado motivadas pela perda de reputação. O regulado ora age motivado pelo lucro, ora por responsabilidade social, entendendo-se que o regulado é um retrato de como o regulador o trata, pois a forma como o regulador trata o regulado o faz migrar de um comportamento apoiado em virtude para outro apoiada em racionalidade econômica; o regulador cultiva a personalidade correspondente à forma de tratamento que aplica ao regulado.288 Um exemplo de comportamento produzido por tipo regulatório que pressupõe o pior do regulado é o que se vivencia no Brasil na relação entre certos órgãos de controle e a Administração Pública. Tais órgãos são acusados, no dia-a-dia da atuação administrativa, de pressuporem que todo servidor público seria um criminoso em potencial, tratando cada deslize ou erro não intencional como uma tentativa cuidadosamente planejada de burlar as leis. Mesmo que isso não seja verdade – e não é –, a teoria comportamental responsiva evidencia que o que realmente importa é como o comportamento do controlador repercute no controlado e a imagem de tais órgãos na Administração Pública é inquestionavelmente dirigida a uma constante punitiva. Dada essa imagem prevalecente, os órgãos de controle brasileiros acabam por minar o comportamento virtuoso do servidor público e fazem florescer, conforme argumentam os estudos de motivações individuais, um comportamento retaliador do agente em cumprir somente o estritamente exigido por lei, ou seja, o agente controlado passa a adotar uma postura radical de racionalidade, tendo sua personalidade virtuosa embotada por um regime corregedor que tende a desconhecer o reforço de atitudes pautadas por responsabilidade social e respeito às leis. 285AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 30. 286FISSE, Brent; BRAITHWAITE, John. The Impact of Publicity on Corporate Offenders. Albany: State University of New York, 1983. 287THORNTON, Dorothy; KAGAN, Robert A.; GUNNINGHAM, Neil. When Social Norms and Pressures Are Not Enough: Environmental Performance in the Trucking Industry. Law & Society Review, v. 43, n. 2, p. 405-435, 2009. 288BRAITHWAITE, John. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 132 O regulador deve fazer com o regulado, portanto, o inverso do que certos órgãos de controle fazem com ele. O regulador deve adotar a postura de que o ato de conformidade à norma do regulado não necessariamente se baseia no receio de ser punido, mas em uma opção deliberada pela conformidade. Sua atuação estratégica – do regulador – deve ser orientada não à acusação e à ameaça,289 mas ao esclarecimento da norma em busca do eu-responsável – a personalidade do regulado motivada por responsabilidade social –, pois, do contrário, arrisca transformar um regulado moralmente orientado em um adversário despido de princípios. A postura que não condiciona cada ato do regulado a uma ameaça reforça o sentido de responsabilidade ao se pautar pela confiança. Isso evidencia outro aspecto fundamental da implementação de um desenho regulatório responsivo: uma comunicação competente sobre o modelo, a intenção do Estado de cumpri-lo à risca e a imagem de invencibilidade e justiça do regulador ao se apresentar decisivo na escalada progressiva de ameaças. O regulador deve agir à imagem e semelhança de um cão pastor que consegue domar um rebanho com sinais progressivos de agressividade, transmitindo uma imagem de ataque iminente, mas sem ter que, na grande maioria dos casos, chegar às vias de fato. Essa postura faz desabrochar, no regulado, sua personalidade leal, cumpridora das normas, cooperativa e de responsabilidade social.290 A clara comunicação antecipada sobre a intenção do Estado em escalar as punições da pirâmide é um incentivo para a indústria e o regulador de procurarem fazer funcionar a regulação nas camadas mais baixas.291 A pirâmide regulatória também deve ser estruturada lançando- se mão de um abundante arsenal de medidas interventivas de constrangimento, evitando-se a concentração do esforço regulatório em poucas sanções graves. É na gradação das sanções que reside a força de uma regulação responsiva. Tanto mais forte será a pirâmide em impactaro comportamento do regulado quanto mais medidas forem dispostas com graus de constrangimento distintos, desde medidas amenas até as mais graves. É sabido que a disciplina do comportamento exclusivamente por medidas gravosas extremamente drásticas pode levar à ineficácia da regulação e ao fenômeno da subregulação e impunidade.292 289AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 48. 290AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 47. 291AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 38. 292FEELEY, Malcolm. Court Reform on Trial: Why Simple Solutions Fail. New York: Basic Books, 1983; MENDELOFF, John. An Economic and Political TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 133 Tão importante quanto o que fazer é o que não fazer na regulação responsiva e a recomendação mais incisiva da teoria está em que o regulador não transforme a pirâmide em um retalho de medidas regulatórios independentes. Quando a teoria da regulação responsiva indica como desenho regulatório ideal o da pirâmide, o faz para evidenciar que o modelo regulatório responsivo é um conjunto integrado de medidas escalonadas em gradação correspondente às motivações e aos comportamentos dos regulados. Se o exercício da atuação responsiva se desviar para se concentrar na aplicação de sanções drásticas ao invés de se concentrar na atitude cooperativa e no tratamento da fiscalização regulatória de forma episódica, estará colocando a perder todos os benefícios esperados da modelagem regulatória. Da mesma forma, se o regulador se concentrar na negociação e atitude cooperativa descurando-se da escalada de constrangimentos, também estará abrindo mão dos benefícios dessa atitude.293 Finalmente, foi deixado por último a recomendação da teoria da regulação responsiva que parece ter sido elaborada pensando-se no setor de telecomunicações, segundo a qual, nas indústrias de transformações tecnológicas céleres, o regulador deve apostar pesadamente em persuasão, ao invés da punição.294 Essa afirmação deve ser lida, obviamente, em conjunto com o corpo de recomendações da regulação responsiva, eminentemente apoiada em medidas de reação equivalente contingenciais, de reavaliação constante, de regimes de comportamento e motivações dos regulados, de contínua e episódica escalada e desescalada de constrangimentos e de disponibilidade de um amplo arsenal de medidas punitivas. 2.9.5 AS PIRÂMIDES REGULATÓRIAS De forma didática, as pirâmides regulatórias foram desenhadas a seguir, inserindo-se nelas medidas específicas como exemplos para, em Analysis of Occupational Safety and Health Policy. Cambridge: MIT Press, 1979. 293AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 38. 294AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 26. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 134 seguida, promover-se a sua explicação, com o benefício visual de remissão às figuras correspondentes, lembrando-se que a apresentação visual das pirâmides é uma forma de sintetizar passos heurísticos representativos da teoria da regulação responsiva e, à exceção das pirâmides de perfis dos regulados (Figura 3) e de finalidades regulatórias (Figura 4), contêm medidas exemplificativas que não esgotam as possibilidades de inovação regulatória por parte do regulador. É comum, na literatura responsiva, até mesmo evitar-se preencher as pirâmides com medidas específicas, diminuindo-se o trabalho dos teóricos, mas remetendo-se ao regulador o esforço de preenchimento.295 Para facilitar a leitura, preferiu-se reunir todas as técnicas citadas na literatura esparsa nas figuras abaixo, sem que elas esgotem o espectro de possibilidades regulatórias responsivas. Atente-se também para o fato de que tais pirâmides são representações simplificadas da teoria que professam e que o apego somente à forma pode levar o pesquisador a negligenciar aspectos centrais da teoria da regulação responsiva, como salientado por Mascini.296 As pirâmides e suas derivações devem ser analisadas tendo-se em mente que a teoria da regulação responsiva intencionalmente abre mais questões para serem resolvidas pela prática regulatória e por estudos científicos, e que ela é, ao mesmo tempo, “muito complexa para ser implementada e tão intuitiva quanto jardinagem ou criação de filhos”297. 295É o que ocorre em GOSSUM, Peter Van; ARTS, Bas; VERHEYEN, Kris. "Smart Regulation": Can Policy Instrument Design solve Forest Politcy Aims of Expansion and Sustainability in Flanders and the Netherlands? Forest Policy and Economics, v. 16, p. 23-34, 2012, p. 26. 296MASCINI, Peter. Why was the Enforcement Pyramid so Influential? And what price was paid? Regulation & Governance, v. 7, p. 48-60, 2013. 297PARKER, Christine. Twenty Years of Responsive Regulation: An Appreciation and Appraisal. Regulation & Governance, v. 7, p. 2-13, 2013. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 135 ESTRATÉGIAS REGULATÓRIAS Figura 1 – Pirâmide de estratégias regulatórias Fonte: John Braithwaite (To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety, 1985, p. 142) e Ian Ayres e John Braithwaite (Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate, 1992, p. 39). regulação por sanções vinculadas regulação por sanções discricionárias autorregulação regulada autorregulação MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 136 MEDIDAS DE CONSTRANGIMENTO Figura 2 – Pirâmide de constrangimento Fonte: Ian Ayres e John Braithwaite (Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate, 1992, p. 35). revogação da licença de operar suspensão temporária de licença de operar sanção penal sanção cível advertência persuasão TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 137 PERFIS DOS REGULADOS TELEOLOGIA DAS MEDIDAS DE CONSTRANGIMENTO Figura 3 – Pirâmide de perfis dos regulados ou de suposições regulatórias Fonte: John Braithwaite (The Essence of Responsive Regulation, 2011, p. 486; Responsive Regulation and Developing Economies, 2006, p. 887). Figura 4 – Pirâmide de finalidades regulatórias, de teleologia das medidas de constrangimento ou de justiças restaurativa, dissuasiva e incapacitante Fonte: Com enfoque na finalidade regulatória, Peter Drahos (Intellectual Property and Pharmaceutical Makets: A Nodal Governance Approach, 2004, p. 412); e, com enfoque em justiça restaurativa, John Braithwaite (The Essence of Responsive Regulation, 2011, p. 486; Responsive Regulation and Developing Economies, 2006, p. 887). MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 138 INTEGRAÇÃO DE PERFIS DE REGULADOS E FINALIDADES REGULATÓRIAS Ator incapaz ou irracional Ator racional Ator virtuoso Figura 5 – Pirâmide de Pareamento entre Perfis dos Regulados e Justiças restaurativa, dissuasiva e incapacitante Fonte: John Braithwaite (Restorative Justice & Responsive Regulation, 2002, p. 32); John Braithwaite (Regulatory Capitalism: How it Works, Ideas for Making it Work Better, 2008, p. 91). incapacitação dissuasão justiça restaurativa TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 139 RECOMPENSAS (supports) SANÇÕES (sanctions) Figura 6 – Pirâmide de recompensas ou strenghts-based pyramid Pirâmide de apoios, reforço positivo ou recompensas, ligeiramente adaptada para situações-problema genéricas Fonte: John Braithwaite, Toni Makkai e Valerie Braithwaite (Regulating Aged Care: Ritualism and the New Pyramid, 2007, p. 319); John Braithwaite (The Essence of Responsive Regulation, 2011, p. 482) Figura 7 – Pirâmide de sanções ou pirâmide regulatória Pirâmide de sanções ou punições, ligeiramente adaptada para situações-problema genéricas Fonte: John Braithwaite, Toni Makkai e Valerie Braithwaite (Regulating Aged Care: Ritualism and the New Pyramid, 2007, p. 319); John Braithwaite (The Essence of Responsive Regulation, 2011, p. 482) MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 140 GOVERNANÇA REGULATÓRIA EM REDE Figura 8 – Pirâmide de regulação em rede Pirâmidede governança regulatória em rede ou apoiada em nós de governança em rede Fonte: John Braithwaite (Responsive Regulation and Developing Economies, 2006, p. 890); John Braithwaite, Toni Makkai e Valerie Braithwaite (Regulating Aged Care: Ritualism and the New Pyramid, 2007, p. 316); John Braithwaite (Responsive Regulation and Developing Economies, 2007, p. 155). Regulação em Rede Plus-Plus Regulação em Rede Plus Regulação em Rede Autorregulação TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 141 DIAMANTE REGULATÓRIO R eg u la çã o d e C o n fo rm id ad e R eg u la çã o A sp ir ac io n al Legislação e regulação setorial com padrãos mínimos de comportamento Figura 9 – Diamante Regulatório Diamante Regulatório, preenchido com exemplos inexistentes no desenho original, mas derivados de propostas da teoria da regulação responsiva aspiracional ou do diamante regulatório. Fonte: composição nossa, apoiada em Jonathan Kolieb (When to Punish, When to Persuade and When to Reward: Strengthening Responsive Regulation with the Regulatory Diamond, 2015, p. 150) para desenho da forma, com preencimento de exemplos constantes da exposição dissertativa da teoria. Selos de qualidade e de comportamento ético e obrigações de que empresas divulguem certos comportamentos, como, por exemplo, resultados de auditorias Normas estatais que encoragem melhoria de performance, como divulgação de boas práticas de gestão empresarial e identificação de soluções técnicas de ponta Normas não-jurídicas e.g. códigos de conduta da indústria, orientações operacionais internas de empresas (códigos de responsabilidade social), códigos de conduta pessoal de matiz religiosa ou ética Respostas regulatórias de cunho dialógico, colaborativo e voluntário (enfoque persuasivo) Punições menos graves (enfoque dissuasivo) Punições graves (enfoque incapacitante) MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 142 MECANISMOS REGULATÓRIOS298 Figura 10 – Pirâmide de mecanismos regulatórios Fonte: John Braithwaite, Judith Healy e Kathryn Dwan (The Governance of Health Safety and Quality, 2005, p. 15); Judith Healy e John Braithwaite (Designing Safer Health Care Through Responsive Regulation, 2006, p. S57). 298O texto de onde se extraiu esta pirâmide não a chamou de pirâmide de mecanismos regulatórios, mas simplesmente de pirâmide regulatória. Todavia, durante a explicação do posicionamento das estratégias regulatórias nesta pirâmide, fala-se em típicos modos, modalidades ou mecanismos regulatórios, pelo que se optou por atribuir o termo acima como o mais apropriado para esta apresentação da pirâmide regulatória. O conteúdo da pirâmide foi ligeiramente adaptado a um cenário mais amplo que não se restringisse ao setor de origem das fontes pesquisadas Comando e Controle - Sanções penais ou civis - Revogação ou suspensão de licença ... Metarregulação - Autorregulação regulada - Exigência de melhoria contínua - Auditoria externa - Exigência de que se reportem incidentes - Proteção de denunciantes - Exigência de que se promova ao estudo das causas - Publicação de indicadores de performance -Comitê de reclamações de consumidores... Autorregulação Acreditação voluntária; Objetivos de performance; Benchmarking; Revisão por pares; Transparência... Mecanismos de Mercado Competição; Contratos; Informação de consumo Voluntarismo Protocolos e Orientação; Monitoramento pessoal; Educação continuada; Novas tecnologias TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 143 MODELO EXPANDIDO DE PIRÂMIDE REGULATÓRIA Primeiros atores Segundos atores Terceiros atores Figura 11 – Pirâmide Tridimensional Fonte: Neil Gunnigham e Darren Sinclair (Smart Regulation: Designing Environmental Policy, 1998, p. 398). A pirâmide regulatória de matiz responsiva foi primeiramente proposta por Braithwaite no seu livro de 1985 sobre punição e persuasão na regulação de segurança do trabalho em minas de carvão299 sob o argumento de que a conformidade à norma seria mais provável quando o regulador explicitasse uma pirâmide de constrangimento, “pirâmide escalonada de regimes intervencionistas”300, ou enforcement pyramid. Essa pirâmide de constrangimento representa o tipo e a proporção relativa de atividades de constrangimento do regulador. Um primeiro passo à compreensão da pirâmide regulatória está em entendê-la como várias pirâmides de escaladas punitivas e desescaladas persuasivas (Figura 1 e Figura 2). Assim, a primeira referência à pirâmide regulatória foi proposta como uma pirâmide de estratégias regulatórias – pyramid of regulatory strategies – e uma pirâmide de níveis de atividades de constrangimento ou simplesmente pirâmide de constrangimento – enforcement pyramid. A pirâmide de estratégias regulatórias, ao contrário do que ocorre com a pirâmide de constrangimento, não explicita as técnicas ou instrumentos específicos, mas se concentra em descrever as formas de regulação que devem guiar a abordagem do regulador desde espaços deixados à autorregulação, passando pela 299BRAITHWAITE, John. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985. 300GOETTENAUER, Carlos. Regulação Responsiva e a Política de Segurança Cibernética do Sistema Financeiro Nacional. Revista de Direito Setorial e Regulatório, v. 5, n. 1, p. 131-146, maio 2019, p. 137. Governo como regulador Negócios como autorreguladores Organizações comerciais e não- comerciais como reguladores substitutos MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 144 autorregulação com constrangimento normativo estatal e por comandos punitivos discricionários até chegar a punições vinculadas à imagem e semelhança da estratégia de incêndio de pontes, ou burning bridges, cujo conteúdo de incentivo está em comunicar ao regulado a intenção de nunca retroceder.301 A pirâmide de estratégias regulatórias tem escalonados, da base para o topo:302 a) a autorregulação, ou self-regulation; b) a autorregulação regulada, ou autorregulação com constrangimento normativo governamental, ou enforced self-regulation; c) a regulação por sanções discricionárias, ou regulação por comandos normativos com discricionariedade para punir, ou command regulation with discretionary punishment; d) a regulação por sanções vinculadas, ou regulação por comandos normativos punitivos vinculados, ou command regulation with nondiscretionary punishment. O rol de estratégias não é um dado pronto e acabado, como demonstra a pirâmide de mecanismos regulatórios,303 que insere, ainda abaixo da autorregulação, os mecanismos de mercado e o voluntarismo (Figura 10). Por sua vez, a pirâmide de constrangimento é estruturada contendo, em sua base, exemplificativamente, a persuasão, escalando para advertência, sanção cível, sanção penal, suspensão temporária de licença de operar e revogação da licença de operar. É precisamente no rol de técnicas regulatórias da pirâmide de constrangimento onde o regulador deve exercitar seu esforço inovador, pois para cada setor e conjuntura regulatória, haverá diferentes técnicas, tais como as seguintes aventadas em estudo empírico australiano sobre a prática de diversos setores, procurando trazê-las, da prática regulatória, para o formato responsivo piramidal: a) na seara de regulação de empresas, privilegia-se a autorregulação sob fiscalização regulatória, o monitoramente regular de determinados mercados, e a investigação criminal por provocação;304 b) na regulação ambiental, são utilizados o licenciamento, os 301AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 38. 302BRAITHWAITE, John. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985, p. 142. 303HEALY, Judith; BRAITHWAITE, John. Designing Safer Health CareThrough Responsive Regulation. The Medical Journal of Australia, v. 184, n. 10, p. S56-S59, May 2006, p. S57. 304GRABOSKY, Peter; BRAITHWAITE, John. Of Manners Gentle: Enforcement Strategies of Australian Business Regulatory Agencies. Melbourne: Oxford Universit Press/Australian Institute of Criminology, 1986, p. 12-16. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 145 relatórios de auto-avaliação compulsórios ou voluntários, e o automonitoramento de atividades por parte da empresa;305 c) na regulação de saúde e segurança do trabalho, são comuns a judicialização de condutas, o enfoque em fiscalizações relâmpago sobre áreas de competência do regulador, ou seja, episódio ou blitz fiscalizatória, as ações educativas e de persuasão, o incentivo à formação de comitês privados fiscalizadores, a aplicação de constrangimentos informais de aumento de fiscalização quando detectado o descumprimento de normas, e a preferência ao uso de punições de suspensão de atividade empresarial em comparação a multas;306 na regulação nuclear, aplicam-se auditorias independentes, automonitoramento e fiscalização governamental da atividade de automonitoramento, pirâmide de constrangimento despida de ameaça de judicialização, mas fazendo uso de advertência branda, advertência grave e ameaça de perda de licença de operação;307 na regulação consumerista, aplicam-se fiscalização reativa, dependente de provocação, fiscalização proativa, campanhas educativas, mediação de conflitos, enfoque sobre casos repetitivos em que a negociação com as empresas produzam melhores resultados do que uma postura de litigância, desmascaramento de falsos esquemas de autorregulação, corregulação, publicidade governamental de más práticas dos regulados, dissuasão à composição voluntária de conflitos, blitz fiscalizatória dirigida e realizada por departamento povoado de fiscais com especialidade persecutória;308 na regulação alimentar, há, predominantemente, o comando e controle reforçado por um estado de competição entre os reguladores quanto ao número de penalidades aplicadas, com exemplos de persuasão e campanhas educativas, e enfoque no resultado final do processo produtivo;309 na regulação de medicamentos e produtos de saúde, aplicam-se controle indireto de preços por inscrição de medicamento em tabela de subsídio governamental, autorregulação regulada por código de práticas de produção farmacêutica, monitoramento de compliance ao código, ameaça de recall de produtos, monitoramento de propaganda e promoções, e campanhas educativas;310 na regulação de segurança de transporte, aplica-se um sistema de aprovação prévia para comercialização de novos produtos, visitas regulares de fiscalização, análise de relatórios empresariais de testes, detalhada regulamentação de padrões, fiscalização randômica, uso de empregados privados acreditados para 305GRABOSKY, Peter; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 34-37. 306GRABOSKY, Peter; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 61-65. 307GRABOSKY, Peter; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 75-76. 308GRABOSKY, Peter; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 81-87. 309GRABOSKY, Peter; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 100-104. 310GRABOSKY, Peter; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 110-113. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 146 averiguação da atuação do regulado;311 na regulação bancária, o predomínio de consultas informais e persuasão, a ameaça não concretizada de severas penalidades e extensos poderes de intervenção e revogação de licenças de operar, o reforço da confiança e entendimento mútuo entre regulador e regulado, em que o regulador considera sua função a de garantir a viabilidade do negócio;312 na radiodifusão, um monitoramento seletivo quase que exclusivamente oriundo de reclamações, demonstrando uma postura eminentemente reativa, bem como a presença de ameaças nunca concretizadas mas draconianas de cassação de licenças e raras advertências, apoiando-se, entretanto, na força da renovação das licenças que funcionam como incentivos à autorregulação.313 Para além da Austrália, uma análise de comportamento internacional a partir de constrangimentos hospedados em normas dos Estados Unidos da América referentes à proteção de propriedade intelectual na indústria farmacêutica e sob o enfoque de nós de governança evidenciou, da base ao topo da pirâmide, medidas persuasivas, na forma de diálogo informal e diálogo formal, medidas dissuasivas, na forma de publicação anual de ranking de proteção da propriedade intelectual, inclusão em listas de acompanhamento especial, inclusão em listas de prioridade de acompanhamento, abertura de procedimentos de investigação, e medidas incapacitantes, na forma de aplicação de sanções.314 Em alguns casos, o diagnóstico sobre a forma de estruturação da pirâmide de constrangimento é o resultado natural do setor regulado. Por exemplo, a opção por uma eventual fiscalização proativa por parte de agências de proteção do consumidor seria impossível, haja vista tais reguladores não terem como desprezar reclamações dos consumidores ao perseguirem um estilo regulatório proativo.315 Essa constatação é, entretanto, empírica. Ela obviamente depende das condições jurídicas do ambiente regulado. Uma consequência relevante da comparação de diversas estratégias regulatórias está na conclusão de que estratégias de regulação cooperativa ou conciliatória são menos orientadas a objetivos ou metas 311GRABOSKY, Peter; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 116-122. 312GRABOSKY, Peter; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 132-134. 313GRABOSKY, Peter; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 178-181. 314DRAHOS, Peter. Intellectual Property and Pharmaceutical Makets: A Nodal Governance Approach. Temple Law Review, v. 77, p. 401-424, 2004, p. 412. 315GRABOSKY, Peter; BRAITHWAITE, John. Of Manners Gentle: Enforcement Strategies of Australian Business Regulatory Agencies. Melbourne: Oxford Universit Press/Australian Institute of Criminology, 1986, p. 80. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 147 regulatórias do que a estratégia de comando e controle.316 A teoria da regulação responsiva evidenciará a vantagem comparativa de medidas conciliatórias frente às de comando de controle para alcance efetivo de metas regulatórias. Tais recomendações de técnicas regulatórias escalonadas seguem a lógica geral da pirâmide de constrangimento ao assumir que há três grande tipos de atores dispostos da base ao topo da pirâmide, o que representa uma pirâmide de perfis de regulados (Figura 3), que, entretanto, não foi tratada nos escritos inaugurais da teoria da regulação responsiva de 1982 a 1992: o virtuoso; o racional; e o irracional.317 Essa divisão de perfis dos regulados sofre melhorias também, na evolução da teoria da regulação responsiva, como é o caso do proposto por Drahos,318 ao intercalar entre o ator racional e o irracional, o resistente à norma. Trata- se de uma pirâmide de perfis de atores regulados, que justifica a ordem de técnicas aplicáveis aos diversos níveis de constrangimento. Nesse formato, a sanção estaria reservada a atores irracionais e resistentes, e ela seria qualificada pela função de incapacitar o agente. Sob esse enfoque, há ainda uma quarta pirâmide regulatória teleológica ou funcional ou de finalidades das medidas de constrangimento (Figura 4): a persuasiva; a dissuasiva; e a incapacitante. Isso demonstra como, no momento inaugural da teoria da regulação responsiva, havia ainda confusão entre a persuasão – inserida na base da pirâmide de constrangimento – e os instrumentos de persuasão – ausentes naquela primeira pirâmide de constrangimento proposta por Ayres e Braithwaite. Ali (Figura 2), utilizou-se de uma finalidade – persuasão – para descrição da base da pirâmide, enquanto se fez uso de instrumentos regulatórios para os demais níveis de constrangimento. A compreensão da teoria da regulação responsiva depende da identificação das pirâmides. Até o momento, a literatura de regulação responsiva identificou não menos que onzepirâmides, sem entretanto sistematizá-las, ou mesmo, reconhecer a existência de todas elas. São elas: a pirâmide de estratégias regulatórias; a pirâmide de constrangimento; a pirâmide de perfis dos regulados; a pirâmide finalidades 316GRABOSKY, Peter; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 229. 317BRAITHWAITE, John. The Essence of Responsive Regulation. University of British Columbia Law Review, v. 44, p. 475-520, 2011, p. 486; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation and Developing Economies. World Development, v. 34, n. 5, p. 884-898, 2006, p. 887. 318DRAHOS, Peter. Intellectual Property and Pharmaceutical Makets: A Nodal Governance Approach. Temple Law Review, v. 77, p. 401-424, 2004, p. 411. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 148 regulatórias; a pirâmide de pareamento entre perfis de regulados e tipos de justiça; a pirâmide de recompensas; a pirâmide de sanções; a pirâmide de regulação em rede; o diamente regulatório, que, na verdade, contém duas pirâmides – a aspiracional e a de conformidade –; a pirâmide de mecanismos regulatórios; e a pirâmide tridimensional. Na base da pirâmide de constrangimento estão os instrumentos brandos, ou soft tools, tais como orientações de conduta, protocolos, estratégias educativas, reunidos no termo genérico de instrumentos de diálogo e persuasão apoiados no perfil de regulado tendente a cooperar. Tais instrumentos passam a assumir um caráter mais coercitivo à medida que sobem em direção ao ápice da pirâmide, podendo lançar mão, a depender do setor regulado, de prisão, suspensão de atividades, perda de licença de operar, dentre outros.319 A existência de duas pirâmides (Figuras 1 e 2) na formulação inaugural da teoria da regulação responsiva pode dar a impressão de que a descrição das pirâmides seria espelhada, ou seja, de que o observador teria condições de sobrepor a pirâmide de estratégias à pirâmide de atividades de constrangimento, bem como que elas teriam o mesmo número de níveis e que, para cada estratégia, haveria uma atividade de constrangimento correspondente. Ocorre, entretanto, que a descrição das pirâmides não segue uma divisão estanque de níveis, mas tem efeito demonstrativo de que há prioridades de atuação regulatória distribuídas desde a base até o topo da pirâmide. Tentativas de espelhamento das pirâmides regulatórias geram desalinhamentos decorrentes do fato de que a teoria da regulação responsiva não se prende em níveis predeterminados de escalonamento, mas os propõem como abordagens iniciais demonstrativas. Esse relativo descasamento entre a pirâmide de estratégias regulatórias e a pirâmide de constrangimento fica evidente quanto se pretende inserir técnicas de constrangimento da segunda pirâmide nas estratégias previstas na primeira pirâmide (Figuras 1 e 2). Enquanto a pirâmide de estratégias regulatórias detém quatro níveis, a de constrangimentos detém seis níveis. Assim, constrangimentos de ordem penal – quarta camada da pirâmide de constrangimentos – podem estar presentes no nível de autorregulação regulada – segunda camada da base da pirâmide de estratégias regulatórias. Da mesma forma, todas as camadas 319DRAHOS, Peter. Intellectual Property and Pharmaceutical Makets: A Nodal Governance Approach. Temple Law Review, v. 77, p. 401-424, 2004, p. 410- 411. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 149 intermediárias da pirâmide de constrangimento podem estar presentes na terceira camada da pirâmide de estratégias regulatórias, como formas de regulação por comandos normativos com discricionariedade. A segunda camada da pirâmide de estratégias regulatórias – autorregulação regulada ou com constrangimento normativo estatal – partilhará de técnica de persuasão própria à primeira camada da pirâmide de constrangimento e de técnica de dissuasão própria às camadas subsequentes da pirâmide de constrangimento. Como se pode ver, as pirâmides ordenam as posições relativas do que representam, mas não são espelháveis, ou seja, não detêm o mesmo número de camadas e as camadas de uma pirâmide podem ser reunidas ou distribuídas por uma ou mais camadas de outra pirâmide. Existem pirâmides dentro das pirâmides. As pirâmides propostas por Braithwaite – de estratégias regulatórias e de constrangimento – têm função demonstrativa e podem ter, para cada ambiente regulado, mais ou menos camadas. Isso é evidenciado no formato da pirâmide (Figura 8) proposta para países em desenvolvimento320 voltado a contornar as deficiências institucionais de tais países. Além disso, a pirâmide de constrangimento não foi desenhada tendo-se em mente sua aplicação a quaisquer setores ou circunstâncias. As técnicas regulatórias de persuasão, advertência, sanção cível, sanção penal, suspensão de licença e revogação de licença são adequadas às questões de regulação de saúde e segurança do trabalho, meio ambiente e asilos, mas não são adequadas a outros setores, que devem construir suas próprias pirâmides.321 O conjunto de instrumentos persuasivos depende do setor regulado, da cultura de negócios, da tradição jurídica, enfim, de circunstâncias, cabendo ao regulador desenhar a pirâmide regulatória segundo as características do setor regulado, do segmento do setor regulado e mesmo das condições próprias a cada regulado. Embora as pirâmides regulatórias possam ter mais ou menos camadas e tipos de constrangimento, elas revelam algo em comum: as áreas de cada nível da pirâmide são proporcionais às atividades descritas e esperadas do regulador. Portanto, a pirâmide não é simplesmente uma demonstração de que a maior parte dos atores e comportamentos estarão 320BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation and Developing Economies. World Development, v. 34, n. 5, p. 884-898, 2006; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation and Developing Economies. In: BROWN, D.; WOODS, N. Making Global Self-Regulation Effective in Developing Economies. Oxford: Oxford University Press, 2007. p. 149-174. 321AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 36. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 150 na sua base, mas uma recomendação de que o regulador concentre esforços em direção à base mediante incentivos persuasivos distribuídos por toda a pirâmide. Outra é a preocupação relacionada a suprir deficiências de persuasão e constrangimento estatal no esquema de incentivos inscrito na pirâmide regulatória. Quando a teoria responsiva se debruça sobre problemas de efetividade do processo regulatório, exsurgem soluções que apontam para atribuição de funções diferenciadas aos partícipes. Em sua origem, a pirâmide de constrangimento, ao lidar com o problema do risco de cooptação e corrupção do regulador pelo regulado, supostamente ampliado pela maior aproximação entre ambos, conforme reforço da postura cooperativa nos moldes responsivos, deve ser acompanhada, segundo Ayres e Braithwaite,322 pelo que chamam de tripartismo, como meio de contornar medidas prejudiciais à responsividade, mas usualmente levantadas para combate à captura em sentido vulgar: limitações à discricionariedade; multiplicidade de competências regulatórias incidentes sobre a mesma indústria, e rotatividade de pessoal no ambiente regulador. Tais medidas são contraproducentes quando se pretende incentivar o comportamento cooperativo, bem como tendem a eliminar a chamada captura desejada, eficiente ou efficient capture.323 No caso brasileiro, a última delas é, inclusive, ilegal, ferindo de frente o princípio de estabilidade do servidor público. A solução trazida pela teoria responsiva é de se substituir tais medidas pelo reforço ou potencialização de grupos de interesse público no processo regulatório, bem como de uma cultura republicanamente imbuída no regulador de ser duro com empresas trapaceiras na linha da proposta do comunitarismo regulatório.324 Assim, a teoria da regulação responsiva, ainda em seu nascedouro, buscava o apoio de terceiroscom o objetivo de fugir da dicotomia entre regulado e regulador, algo que somente veio a ser explorado em profundidade quando ela internalizou o discurso da governança nodal ao se debruçar sobre a viabilidade da aplicação da pirâmide regulatória em países em desenvolvimento.325 Vários estudos se preocuparão em apontar que um dos 322AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 54-100. 323AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 64-92. 324AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 92-94. 325DRAHOS, Peter. Intellectual Property and Pharmaceutical Makets: A Nodal Governance Approach. Temple Law Review, v. 77, p. 401-424, 2004; TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 151 problemas da regulação responsiva está em precisamente depender de repetidos encontros entre regulador e regulado;326 essa proximidade entre regulador e regulado é resolvida na formulação originária da teoria responsiva, por Ayres e Braithwaite, mediante o tripartismo regulatório, ou em formulações seguintes de Braithwaite, mediante a estratégia da governança nodal. Por outras razões, que incluem, mas vão além da preocupação com a captura ineficiente, a teoria da regulação responsiva, com o tempo, passou a propor a estratégia da governança nodal como forma alternativa aos constrangimentos estatais na pirâmide de constrangimento (Figura 8). Em 2004, inaugurou-se um ramo da teoria da regulação responsiva apoiado na ideia de que a teoria da governança nodal explicaria a crescente globalização da propriedade intelectual de fármacos por intermédio de coordenação nodal de uma pirâmide de constrangimento internacional (international enforcement pyramid), que possibilitaria a atores não- estatais garantirem a conformidade dos países a padrões globais de direitos de propriedade intelectual que, por sua vez, configuram os mercados de patentes farmacêuticas reguladas.327 Em outras palavras, Drahos328, fazendo uso do caso dos direitos de propriedade intelectual farmacêutica, descreve como o setor privado pode potencializar os efeitos das pirâmides de constrangimento por meio de nós de governança. BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation and Developing Economies. World Development, v. 34, n. 5, p. 884-898, 2006. 326GUNNINGHAM, Neil; GRABOSKY, Peter. Smart Regulation: Designing Environmental Policy. Oxford: Clarendon Press, 1998; GUNNINGHAM, Neil; JOHNSTONE, Richard. Regulating Workplace Safety: Systems and Sanctions. Oxford: Oxford University Press, 1999; SCOTT, Colin. Regulation in the Age of Governance: The Rise of the Post Regulatory State. In: JORDANA, J.; LEVI- FAUR, D. The Politics of Regulation: Institutions and Regulatory Reforms for the Age of Governance. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 2004. p. 145-176; NIELSEN, Vibeke Lehmann; PARKER, Christine. Testing Responsive Regulation in Regulatory Enforcement. Regulation & Governance, v. 3, p. 376-399, 2009. 327DRAHOS, Peter. Intellectual Property and Pharmaceutical Makets: A Nodal Governance Approach. Temple Law Review, v. 77, p. 401-424, 2004. 328DRAHOS, Peter. Op. cit., p. 411-419. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 152 Entende-se por nós, nessa teoria de governança nodal, inspirado no conceito de redes de Castells,329 os “meios organizacionais específicos, por meio dos quais são concentrados recursos de múltiplas redes para produção de ação”330 ou “conhecimento, capacidade e recursos mobilizados em um sistema gerador de resultados para gestão de um curso de eventos”331. Por outro lado, ela adota um conceito amplo de governança como “gestão do curso de eventos em um sistema social”332. Utilizando-se da teoria de governança nodal, Drahos333 propõe pirâmides de coordenação nodal ou nodally coordinated pyramids, que teriam por efeito proeminente o de ampliar o alcance do constrangimento. Drahos e Braithwaite334 evidenciam também que a atuação dos Estados Unidos na regulação internacional de aplicação da propriedade intelectual segue uma pirâmide de constrangimento com medidas de dissuasão escalonadas e pautadas por listas mantidas pelo Office of the United States Trade Representative (USTR) – mais um exemplo de medidas dissuasivas para o agente racional. A escalada de constrangimentos é pautada por listas de conformidade, que inscrevem países como bons cumpridores, maus cumpridores, potenciais descumpridores, entre outros, resultando em alteração de comportamento dos países que se veem inscritos em listas progressivas de ameaças e no raro uso de sanções de banimento do mercado americano. Dos únicos 11 casos abertos contra 7 países até 2002, somente um deles resultaria em aplicação de medidas tarifárias punitivas: o país era o Brasil.335 Os demais países, inclusive a China, souberam jogar o jogo responsivo e fugir da categorização de ator incapaz. Afora a revelação dessa fatalidade que atingiu em cheio o Brasil, a contribuição do estudo de Drahos foi o de abrir espaço ao próprio Braithwaite para agregar constrangimentos em rede à pirâmide de constrangimento. 329CASTELLS, M. Materials for an Exploratory Theory of the Network Society. British Journal of Sociology, v. 51, n. 1, p. 5-24, Jan./Mar. 2000. 330DRAHOS, Peter. Intellectual Property and Pharmaceutical Makets: A Nodal Governance Approach. Temple Law Review, v. 77, p. 401-424, 2004, p. 410. 331BURRIS, Scott; DRAHOS, Peter; SHEARING, Clifford. Nodal Governance. Australian Journal of Legal Philosophy, v. 30, p. 30-58, 2005, p. 37. 332BURRIS, Scott; DRAHOS, Peter; SHEARING, Clifford. Op. cit., p. 30. 333DRAHOS, Peter. Intellectual Property and Pharmaceutical Makets: A Nodal Governance Approach. Temple Law Review, v. 77, p. 401-424, 2004. 334DRAHOS, Peter; BRAITHWAITE, John. Information Feudalism: Who Owns the Knowledge Economy? Londres: Earthscan Publications Ltd, 2002. 335DRAHOS, Peter; BRAITHWAITE, John. Information Feudalism: Who Owns the Knowledge Economy? Londres: Earthscan Publications Ltd, 2002, p. 99. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 153 A estratégia de governança nodal conversa com arquiteturas de regulação descentralizada,336 ou decentered regulatory architectures, já identificadas, em certa medida, na prática institucional brasileira de telecomunicações.337 Ela também traduz o acoplamento estrutural de sistemas relacionados de forma reflexiva, da teoria dos sistemas autopoiéticos, para o termo mais amigável ao campo de estudos comportamental: os “nós de governança em rede”338. A pirâmide regulatória de governança em rede (Figura 8) faz uso de parceiros privados para contornar o déficit de capacidade regulatória de países em desenvolvimento, desonerando a estrutura estatal do ônus de implementar as medidas de incentivo à conformidade normativa do regulado, mediante a crescente agregação de atores principalmente não-estatais na rede de governança em progressiva oneração ou pressão sobre o ator regulado em desconformidade, lançando-se mão, até mesmo, de recompensas motivadoras de agentes privados para a descoberta de atitudes desviantes da norma por parte dos regulados.339 Outra vertente da teoria da regulação responsiva passou a reforçar um aspecto que não era evidente nas primeiras formulações da teoria: o da conformidade para além das regras. Essa proposta ainda pouco conhecida de regulação responsiva propõe o desenho do chamado diamante regulatório, que desvia o foco da teoria responsiva de busca da conformidade a padrões de comportamento extrinsecamente definidos. Em grande medida, a proposta do diamante regulatório é uma proposta de ampliação do conceito de regulação com a referência ao comportamento para além da conformidade, ou beyond compliance.340 A regulação, segundo a teoria responsiva do diamante regulatório, deveria ter seu conceito ampliado, abandonando-se uma visão restritiva deque seria sinônimo de métodos e mecanismos de conformidade a regras ou constrangimentos derivados de regras regulatórias para abraçar 336BLACK, Julia. Critical Reflections on Regulation. Australian Journal of Legal Philosophy, v. 27, p. 1-35, 2002. 337ARANHA, Marcio Iorio. Telecommunications Regulatory Design in Brazil: Networking around State Capacity Deficits. Economia Pubblica, v. 25, n. 2, p. 83-105, 2016. 338BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation and Developing Economies. World Development, v. 34, n. 5, p. 884-898, 2006, p. 885. 339BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 894. 340BORCK, Jonathan C.; COGLIANESE, Cary. Beyond Compliance: Explaining Business Participation in Voluntary Environmental Programs. In: PARKER, C.; NIELSEN, V. L. Explaining Compliance: Business Responses to Regulation. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 2011. p. 139-169. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 154 um conceito mais amplo: o de regulação como algo que engloba também métodos e mecanismos de incentivo aos regulados para irem além de padrãos normativos de conduta voltados à satisfação de objetivos regulatórios.341 O diamante regulatório, tal como a pirâmide regulatória, é uma representação simplificada da teoria. A diferença da proposta de diamante regulatório está em que, ao enfatizar tanto padrões e incentivos comportamentais de conformidade à norma, quanto incentivos ao regulados de irem além do exigido pela normatização, cada metade do diamante regulatório representa um aspecto da regulação; a metade inferior do diamante é dedicada a representar as contribuições sedimentadas da pirâmide regulatória brathwaitiana invertida, reunindo-se ali as medidas punitivas e persuasivas da pirâmide de constrangimento com finalidade de regulação para conformidade às normas – regulação de conformidade ou compliance regulation –, enquanto a metade superior dedica-se a representar a contribuição originária de estudos sobre conformidade para além das normas – regulação aspiracional342 ou aspirational regulation. Há várias semelhanças entre o diamante regulatório e a pirâmide regulatória que vão além do fato de que a parte inferior do diamante é composta pela própria pirâmide regulatória invertida. A parte central do diamante, que coincide com as bases das pirâmides de conformidade e de aspiração representam o espaço regulatório onde ocorre a maioria das interações regulatórias apoiadas em medidas educativas e mecanismos cooperativos apoiados no diálogo entre regulador e regulado.343 A identidade teórica do diamante regulatório encontra-se no fato de que, enquanto a pirâmide regulatória corresponde a modos regulatórios que se concentram na conformidade às normas – compliance- centred models –, o diamante regulatório representa modos abertos também à manifestação regulatória de atuação para além da conformidade às normas. 341KOLIEB, Jonathan. When to Punish, When to Persuade and When to Reward: Strengthening Responsive Regulation with the Regulatory Diamond. Monash University Law Review, v. 41, n. 1, p. 136-162, 2015, p. 137. 342Optou-se aqui pela tradução mais próxima ao termo em inglês, ao invés do recomendado termo do vernáculo de regulação aspirante, por ser a que melhor expressa o significado desse tipo regulatório do ponto de vista comunicacional. 343KOLIEB, Jonathan. When to Punish, When to Persuade and When to Reward: Strengthening Responsive Regulation with the Regulatory Diamond. Monash University Law Review, v. 41, n. 1, p. 136-162, 2015, p. 152. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 155 Outro aspecto de fundo herdado da teoria da regulação responsiva piramidal braithwaitiana está na adoção, pela teoria da regulação responsiva de Kolieb, do incremento contínuo próprio à pirâmide responsiva, segundo o qual estratégias de influência sobre comportamentos devem utilizar de persuasão e sanção. No diamante regulatório, essas estratégias são ampliadas para englobarem, para além de metas mínimas de comportamento, metas idealizadas com mecanismos regulatórios voltados a atingir ambas.344 No diamante regulatório, os padrões normativos de conduta ocupam o espaço em que as pirâmides se tocam, servindo como ponto de partida para as estratégias de constrangimento e de aspiração.345 Essa linha divisória entre as pirâmides, no diamante regulatório, é ocupada pela regulação, trazendo as normas jurídicas para dentro da representação de modelagem regulatória. Uma consequência marcante da proposta do diamante regulatório está em definitivamente separar as metas regulatórias positivadas em normas de conduta das metas ideais ou desejáveis da regulação.346 A adesão às normas não significa, por si só, a solução de todas as aspirações sociais e esse destaque entre o objetivos normativos expressos e os objetivos regulatórios ideais abre uma nova forma de se ver a função do direito na regulação como instrumento regulatório relevante para definição de padrões mínimos, mas ao mesmo tempo, insuficiente para a projeção de padrões ideais. A relação entre a regulação, as normas – estas entendidas no sentido atribuído por Foucault,347 como matéria prima para as leis, mais especificamente aqui entendidas como medidas-padrão comuns de comportamento de um grupo social348 – e a prática dos atores atingidos por tais normas é complexa.349 344KOLIEB, Jonathan. Op. cit., p. 151. 345KOLIEB, Jonathan. Op. cit., p. 152. 346Id. ibid. 347FOUCAULT, Michel. Security, Territory, Population: Lectures at the Collège de France 1977-78. Basingstoke, UK: Palgrave Macmillan, 2007, p. 56. 348EWALD, François. Justice, Equality, Judgement: On "Social Justice", p. 91- 110. In: TEUBNER, G. Juridification of Social Spheres: A Comparative Analysis in the Areas of Labor, Corporate, Antitrust and Social Welfare Law. Berlin: Walter de Gruyter, 1987. p. 108. 349DENT, Chris. Relationships Between Laws, Norms and Practices. Griffith Law Review, v. 21, n. 3, p. 708-727, 2012. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 156 A contribuição do diamante regulatório está em unir os pólos aspiracionais e de conformidade em torno às normas, revelando que o cumprimento das normas não esgota a relação regulatória.350 Embora se possa dizer – e com razão – que o diamante regulatório não teria inovado nos mecanismos de incentivo ao bom comportamento, fossem eles de conformidade ou de reforço positivo de condutas, o diferencial inquestionável da teoria da regulação responsiva aspiracional está em revelar que um modelo regulatório pode, em certos casos, ter que partir de modelagem aspiracional, em especial quando se trata de atividade inicialmente desregulada. Outra consequência da adoção do diamante regulatório é o de diferenciar o comportamento virtuoso de conformidade do comportamento virtuoso ideal. Em verdade, Kolieb351 vai mais além ao dizer que não há nada de virtuoso em simplesmente cumprir as normas; o comportamento de conformidade na base da pirâmide regulatória, para Kolieb, nada mais é do que uma mistura entre virtude e racionalidade, e a parte superior do diamante regulatório orientada por uma regulação aspiracional serve ao fim de criar um mercado para a virtude.352 2.9.6 AUTORREGULAÇÃO VOLUNTÁRIA, AUTORREGULAÇÃO REGULADA E COMANDOS NORMATIVOS IMPOSITIVOS A autorregulação é uma forma genérica de regulação que detém significados variados de acordo com a teoria/modelo regulatório adotado, conforme visto no item intitulado “Formas Autorregulatórias”, nas seções de abertura do Capítulo de “Teoria Jurídica da Regulação”. Para a teoria responsiva, autorregulação voluntária não significa simplesmente ausência de controles extrínsecos, mas presença correspondente de controles internos presumivelmente mais severos para o indivíduo que as punições do poder público. A estratégia regulatória de substituição de regulação ordenadora preexistente por autorregulação deve ser ainda mais cuidadosa do que a mera idealização de espaços autorregulados, recomendando-se,a partir da teoria da regulação responsiva, que sejam incluídas previsões de reversão em todas as iniciativas de desregulação. 350KOLIEB, Jonathan. When to Punish, When to Persuade and When to Reward: Strengthening Responsive Regulation with the Regulatory Diamond. Monash University Law Review, v. 41, n. 1, p. 136-162, 2015, p. 155. 351KOLIEB, Jonathan. Op. cit., p. 159. 352KOLIEB, Jonathan. Op. cit., p. 162. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 157 Existe, portanto, uma diferença de postura por parte do regulador quanto à introdução da autorregulação voluntária em áreas nunca antes reguladas e áreas em que a autorregulação somente pode ser introduzida mediante procedimento prévio de desregulação, por definição, mais arriscado.353 A compreensão do conceito de autorregulação, nesse aspecto, é fundamental para melhor delimitação da utilidade de cada técnica em uma teoria regulatória. Ao se partir, por exemplo, de um conceito usual de autorregulação de “fornecimento de bens para além do que é requerido pela norma”354, tem-se uma definição ampla que abraça aquilo que, na teoria da regulação responsiva, é representado pela pirâmide aspiracional ou de recompensas (Figura 6 e Figura 8), e por ao menos três camadas de manifestações da pirâmide regulatória, como é o caso da pirâmide de mecanismos regulatórios (Figura 10). A pirâmide de mecanismos regulatórios evidencia que a autorregulação da teoria responsiva não tem o condão de englobar tudo que esteja fora das normas, pois se diferencia de voluntarismo e de mecanismos de mercado. Mesmo a definição ampla de autorregulação não é capaz, entretanto, de absorver o tipo autorregulatório próprio da origem da teoria da regulação responsiva, ou seja, a autorregulação regulada, obrigatória ou constrangida, que incorpora consequências punitivas estatais na disciplina normativa proposta pelo regulado e ratificada pelo regulador. Por outro lado, mesmo o conceito usual de autorregulação comporta variações, pois uma coisa é a chamada autorregulação unilateral, ou unilateral self- regulation de uma única empresa, e outra é a chamada autorregulação da indústria, ou industry self-regulation, pressupondo atuação coletiva para melhoria da reputação do setor como um todo.355 353BRAITHWAITE, John. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985, p. 122-124. 354LENOX, Michael. Do Voluntary Standards Work Among Corporations? The Experience of the Chemicals Industry. p. 62-77. In: BROWN, D. L.; WOODS, N. Making Global Self-Regulation Effective in Developing Countries. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 62. 355LENOX, Michael. Do Voluntary Standards Work Among Corporations? The Experience of the Chemicals Industry. p. 62-77. In: BROWN, D. L.; WOODS, N. Making Global Self-Regulation Effective in Developing Countries. Oxford: Oxford University Press, 2007. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 158 É seguro dizer-se que a teoria da regulação responsiva aceita todos esses tipos de técnicas regulatórias, pois não afasta, por princípio, nenhuma técnica regulatória, mas é necessário que se façam distinções sobre que tipo de autorregulação é uma contribuição própria dessa teoria e os outros tipos que comporão os ingredientes gerais a serem utilizados em estratégias regulatórias responsivas. Ou seja, a regulação responsiva não é avessa à autorregulação propriamente dita, seja ela unilateral ou da indústria, mas reserva essa técnica a um espaço próprio de regulação aspiracional em momentos mais recentes da teorização responsiva. Em outra frente, a regulação responsiva proporá que se avance na autorregulação regulada ou obrigatória, com ênfase no tipo autorregulatório unilateral, pois bebe das peculiaridades de cada empresa. A autorregulação regulada, autorregulação constrangida, com constrangimento estatal ou enforced self-regulation é um meio termo entre a estratégia de autorregulação propriamente dita e a de comando e controle em que a empresa é obrigada a produzir um conjunto de normas que cubram uma determinada área de preocupação do regulador, submetendo- as a ele para ratificação, com a possibilidade de que sejam reenviadas ao regulado para aprimoramentos. Após ratificação, suas eventuais violações são punidas com atuação direta do regulador. O diferencial dessa estratégia para a de comando e controle está em que o regulado passa a ser regido por um regime jurídico específico, sem que o Estado seja obrigado a idealizar normas com pretensão de aplicação universal desconectadas das reais condições de implementação e motivações de cada ator regulado. Costuma-se traduzir a enforced self-regulation como autorregulação regulada, por inspiração no termo alemão regulierte Selbstregulierung, ele mesmo tradução da enforced self-regulation. A autorregulação regulada é o termo Broadway, mais conhecido, mas, ao mesmo tempo, com tal abrangência, que acaba por não traduzir adequadamente o significado da enforced self-regulation. Outros termos podem revelar aspectos dessa forma regulatória, como o de autorregulação pública, que indica a posição da enforced self-regulation frente ao conceito de autorregulação, ou o de autorregulação induzida, que indica um aspecto da enforced self-regulation, mas não revela o momento de sua aplicação com constrangimento estatal. A tradução mais precisa para a língua portuguesa seria a de autorregulação com constrangimento estatal, por ser autoevidente e inspirada na tradução própria do termo enforced. Além da característica de existência de normas escritas privadamente e ratificadas publicamente, outro elemento próprio à autorregulação regulada – ou autorregulação com constrangimento estatal – da teoria responsiva está em se exigir da empresa que internalize custos de TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 159 fiscalização por intermédio da criação de departamento ou grupo de conformidade interno à empresa com o objetivo de monitorar a observância das normas e recomendar ações disciplinares contra os infratores. O fracasso em reverter a situação de desconformidade por parte da empresa, de corrigir a atuação desconforme ou de implementar recomendações de punições disciplinares resulta em comunicação compulsória, por parte da diretoria de compliance, à agência reguladora. A estratégia da autorregulação regulada exige, do regulador, que: a) somente ratifique regras de conduta empresarial que satisfaçam as políticas públicas governamentais; b) garanta que o departamento ou grupo de compliance da empresa tenha independência na estrutura hierárquica societária; c) realize a averiguação dos livros de registro da atuação desse grupo; d) implemente fiscalizações pontuais para avaliar se o grupo está cumprindo sua finalidade de detecção de violações às normas; e e) abra processos administrativos contra empresas que tenham subvertido a atuação do grupo de compliance.356 Também é relevante pontuar que a autorregulação regulada, ou mesmo a autorregulação voluntária, são manifestações de estratégias regulatórias apropriadas a áreas de regulação complexa, multifacetada e sujeita a constantes transformações tecnológicas.357 Em um mesmo setor de atividades, existem espaços de certezas tecnológicas perenes e princípios e direitos que são constantes axiológicas, cujo espaço adequado de representação regulatória é o de comandos normativos impositivos. As estratégias regulatórias de autorregulação voluntária e regulada têm limites de utilidade e não servem como panaceia para todos os males, sob pena de se estar manietando um modelo responsivo dependente da sinergia entre espaços de liberdade, liberdade controlada e controle estatal. Uma das características marcantes da teoria da regulação responsiva está em afirmar categoricamente que a autorregulação depende do reforço da regulação extrínseca – de comando e sanção – para funcionar adequadamente.358 Essa conclusão é reforçada por um relatório356BRAITHWAITE, John. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985, p. 125-132; BRAITHWAITE, John. Enforced Self-Regulation: A New Strategy for Corporate Crime Control. Michigan Law Review, v. 80, n. 7, p. 1466-1507, Jun. 1982. 357BRAITHWAITE, John. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985, p. 134. 358BRAITHWAITE, John. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985, p. 136. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 160 encomendado pelo Governo do Reino Unido e finalizado em 2006 sobre efetividade das ‘sanções regulatórias’ em um amplo escopo de áreas de regulação e níveis regulatórios nacional e local,359 que, por sua vez, originou-se de relatório, no qual se recomendava que o regime punitivo deveria estar apoiado no risco de nova ofensa e em seu impacto, com uma escalada de penalidades de fácil e célere aplicação para a maioria das infrações, reservadas penalidades mais duras para os que persistissem no desrespeito às regras.360 Os comandos normativos discricionários e vinculados, embora se situem em posição superior da pirâmide de estratégias regulatórias, não se apresentam, necessariamente, como mais punitivos que a autorregulação regulada, embora se espere da autorregulação uma vivência institucional de menor número de punições efetivamente implementadas. O diferencial entre elas reside em outra seara: a da característica universal das regras e sua gestação e aprovação no seio do Estado, evidenciando um conjunto normativo muito mais assentado em requisitos técnicos estáveis. Daí a importância de que um desenho regulatório responsivo seja acompanhado de evidências e estudos tecnológicos sobre a perenidade ou efemeridade de padrões de conformação técnica.361 Enquanto a autorregulação regulada é o ambiente normativo apropriado às particularidades dos atores regulados e a áreas de regulação de caráter dinâmico, a estratégia de comandos normativos discricionários aplica-se mais propriamente a regras gerais de caráter técnico resiliente. As estratégias de comando também se afastam das de autorregulação regulada por preverem a aplicação direta de sanções como método de assegurarem a conformidade à norma, enquanto a autorregulação regulada recorre à sanção apenas indiretamente para reforçar a atuação dos constrangimentos internos da empresa. Essa diferença geral entre elas não pode, entretanto, ofuscar o fato de que a ameaça de sanções por uma estratégia de comandos normativos puníveis implica também em reforço às forças internas de compliance da empresa, ou seja, a punição, na teoria da regulação responsiva, é, ao mesmo tempo direta e um instrumento de incentivo ao compliance 359MACRORY, Richard B. Regulatory Justice: Making Sanctions Effective. London: Chancellor of the Duchy of Lancaster, Cabinet Office, UK, 2006. 360HAMPTON, Philip. Reducing Administrative Burdens: Effective Inspection and Enforcement. Norwich, UK: Controller of Her Majesty's Stationery Office, 2005. 361GIBSON, D. et al. Evaluating Quality of Care in Australian Nursing Homes. Australian Journal on Ageing, v. 11, n. 4, p. 3-9, 1992. TEORIA JURÍDICA DA REGULAÇÃO 161 interno empresarial.362 Por isso, dizer-se que tais modos de regular não são meras opções do regulador disponíveis em gôndolas de supermercado, mas um pacote que somente faz sentido em conjunto. Para que se justifique, entretanto, o uso da forma regulatória de comando-sanção, o regulador deve: a) identificar interesses envolvidos ou potencialmente afetados de tal monta e importância que não justifiquem arriscar a adoção de formas cooperativas; b) identificar o risco de que formas autorregulatórias reguladas gerem cooptação; c) demonstrar que os custos envolvidos na autorregulação regulada excedem os benefícios por se tratar de padrões ou requisitos que seriam melhor aplicáveis a todo um setor ou conjunto de regulados uniformemente.363 2.9.7 O PAPEL DA TEORIA DOS JOGOS NA TEORIA DA REGULAÇÃO RESPONSIVA A teoria dos jogos é necessária ao desenho regulatório responsivo, por tornar efetivos os incentivos aos regulados para se reposicionarem em camadas mais baixas da pirâmide regulatória. Sem ela, o regulador teria que escolher os incentivos sem parâmetros comparativos de maximização dos objetivos da regulação. A teoria dos jogos parte do pressuposto do agente racional pela maximização do bem-estar, mas não alastra esse pressuposto como pressuposto geral da teoria da regulação responsiva, que a reserva ao perfil racional da posição intermediária da pirâmide responsiva. A teoria da regulação responsiva não é intransigente contra o pressuposto do agente racional: ela é intransigente em dizer que o regulado e o regulador não se comportam sempre com determinado perfil, que depende de condições intrínsecas e extrínsecas. O agente não é essencialmente racional para a teoria da regulação responsiva, mas pode ser racional, irracional, virtuoso ou, como ela bem expressa, um combo de compromissos contraditórios, que torna o agente maleável segundo o desenho regulatório que as convença de remodelarem seu comportamento para determinado perfil de forma regular. A teoria dos jogos parte do pressuposto de que tanto o regulador, quanto o regulado, estarão procurando maximizar seus objetivos – o regulador buscando maximizar o bem-estar do consumidor, enquanto o 362BRAITHWAITE, John. To Punish or Persuade: Enforcement of Coal Mine Safety. Albany: State University of New York Press, 1985, p. 134. 363BRAITHWAITE, John. Op. cit., p. 137. MANUAL DE DIREITO REGULATÓRIO 162 regulado buscaria maximizar seu lucro. Outro pressuposto da teoria dos jogos é o de que ambos – regulador e regulado – seriam agentes racionais e que a decisão a ser tomada pelo regulador dependeria da comparação de cenários, seja o cenário de opção por compensações automáticas aplicadas aos regulados que descumpram a qualidade contratada com determinado consumidor, seja o cenário de opção por sanções aplicadas, seja o cenário de inação do regulador perante o comportamento de desconformidade. A contribuição de Ian Ayres na proposta do livro seminal da teoria da regulação responsiva foi de que o regulador não deveria ter uma preferência apriorística sobre como agir, ou seja, se aplicará sanções, se aplicará compensações automáticas, se não agirá, ou se aplicará governança nodal, entre inúmeras possibilidades. A teoria dos jogos demonstra que a atuação do regulador depende de fatores intrínsecos ao ambiente regulado, de fatores dependentes da severidade da punição, ou outras variáveis. Em outras palavras, uma contribuição da aplicação da teoria dos jogos à regulação responsiva está precisamente em evidenciar que o regulador deve ser maleável, móvel, responsivo ao comportamento do regulado e demais características acima elencadas. Outro ponto relevante está no fato de que o jogo proposto por Ayres no livro de 1992 sobre regulação responsiva é repetitivo exatamente porque, para a teoria da regulação responsiva, interessa gerar no regulado a percepção de que a escalada na pirâmide regulatória gera efetivo prejuízo aos interesses empresariais e, com isso, desenha na mente do regulado a compreensão de que a opção pelo bom comportamento – virtuoso – deve ser preferível como regra, independentemente do benefício específico de cada caso, ou seja, de cada jogo comparativo de benefícios e prejuízos. Por isso, a teoria da regulação responsiva bebe da teoria dos jogos, mas não se confunde com a teoria dos jogos. A teoria da regulação responsiva se utiliza da teoria dos jogos para viabilizar um desenho regulatório de incentivos que efetivamente convençam o regulado a permanecer na base da pirâmide, mas ao fazê-lo destaca o comportamento do regulado da lógica do comportamento racional in casu para um