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Autor: Prof. Rafael Eduardo Pereira Colaboradores: Prof. Flavio Buratti Gonçalves Profa. Laura Cristina da Cruz Dominciano Biomedicina Forense Professor conteudista: Rafael Eduardo Pereira Graduado em Ciências Biológicas – Modalidade Médica (Biomedicina) – 2003 e Especialista em Análises Ambientais – 2001, ambos pelo Centro Universitário Barão de Mauá. Mestre em Toxicologia pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto – USP (2008). Professor responsável pelos módulos de Patologia, Biologia, Química e Toxicologia Forenses do curso de pós-graduação em Ciências Forenses – Investigação Criminal e do módulo de Ciências Forenses do curso de pós-graduação em Criminal Profiling, pertencentes ao Instituto Paulista de Estudos Bioéticos e Jurídicos (IPEBJ) de Ribeirão Preto – SP (2008 a 2015). Docente da Universidade Paulista (UNIP), campus São José do Rio Pardo (SP), em diversas disciplinas da saúde vinculadas aos cursos de Biomedicina e Farmácia desde 2015. Coordenador auxiliar do curso de Biomedicina da Universidade Paulista (UNIP), campus Ribeirão Preto, desde 2016. Funcionário da Superintendência da Polícia Técnico-Científica/Instituto Médico Legal/Núcleo de Perícias Médico-Legais de Ribeirão Preto (SP) desde 2003. Possui conhecimento nas áreas microbiológica e físico-química com ênfase em análises ambientais; também nas áreas de coleta, hematologia, microbiologia, bioquímica, sorologia, parasitologia e uroanálise/fluidos corporais com ênfase em análises clínicas; e nas áreas forenses de citologia/histologia (anatomia-patológica), toxicologia, biologia, química, antropologia e sexologia, além de medicina legal. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P436b Pereira, Rafael Eduardo. Biomedicina Forense / Rafael Eduardo Pereira. – São Paulo: Editora Sol, 2020. 248 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Biologia forense. 2. Toxicologia. 3. Medicina legal. I. Título. CDU 61 U509.10 – 20 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Jaci Albuquerque de Paula Talita Lo Ré Vitor Andrade Sumário Biomedicina Forense APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 CIÊNCIAS FORENSES, CRIMINALÍSTICA E PERÍCIA CRIMINAL ..........................................................9 1.1 Isolamento e preservação de locais de crime ........................................................................... 12 1.2 Vestígio, evidência e indício ............................................................................................................. 15 1.3 Cadeia de custódia dos vestígios de crime (coleta, armazenamento, transporte e recebimento)........................................................................................................................ 15 2 TOXICOLOGIA .................................................................................................................................................... 19 2.1 Toxicologia forense .............................................................................................................................. 22 2.1.1 Drogas depressoras do SNC ................................................................................................................ 24 2.1.2 Drogas estimulantes do SNC .............................................................................................................. 29 2.1.3 Drogas modificadoras ........................................................................................................................... 33 2.1.4 Drogas sintéticas ..................................................................................................................................... 38 2.1.5 Praguicidas ................................................................................................................................................ 40 2.1.6 Gases tóxicos ............................................................................................................................................ 45 2.1.7 Toxicantes metálicos ............................................................................................................................. 49 2.1.8 Fundamentos analíticos ....................................................................................................................... 52 3 BIOLOGIA FORENSE ........................................................................................................................................ 59 3.1 Hematologia forense .......................................................................................................................... 60 3.1.1 Hematologia forense reconstrutora ................................................................................................ 61 3.1.2 Hematologia forense identificadora ............................................................................................... 65 3.2 Citologia forense .................................................................................................................................. 71 3.2.1 Teste microscópico para pesquisa de espermatozoides .......................................................... 72 3.2.2 Testes químicos para identificação de sêmen ............................................................................. 73 3.3 Tricologia e piloscopia forense ........................................................................................................ 76 3.3.1 Análise microscópica ............................................................................................................................. 77 3.3.2 Tipagem de DNA nuclear ou mitocondrial de pelos ................................................................. 85 3.4 Entomologia forense ........................................................................................................................... 86 3.5 Botânica forense ................................................................................................................................... 89 4 GENÉTICA FORENSE ....................................................................................................................................... 91 4.1 Aplicações da genética forense ...................................................................................................... 91 4.2 Exame de DNA ....................................................................................................................................... 96 Unidade II 5 OUTRAS ÁREAS FORENSES ........................................................................................................................1065.1 Balística forense ..................................................................................................................................106 5.1.1 Classificação das armas de fogo .....................................................................................................106 5.2 Papiloscopia, datiloscopia e revelação e impressões digitais ...........................................118 5.2.1 Identificação criminal e civil ............................................................................................................119 5.2.2 Revelação de impressões digitais em diferentes superfícies ............................................. 124 5.3 Medicina veterinária forense .........................................................................................................127 5.4 Perícia audiovisual forense .............................................................................................................131 5.4.1 Divisão das análises audiovisuais ...................................................................................................131 5.5 Psicologia e psiquiatria forense ....................................................................................................135 5.6 Engenharia forense ............................................................................................................................136 5.7 Informática forense ...........................................................................................................................139 5.7.1 Exames periciais em informática forense ...................................................................................141 5.8 Documentoscopia ..............................................................................................................................144 5.8.1 Divisão dos exames documentoscópicos ................................................................................... 147 5.9 Contabilidade .......................................................................................................................................154 5.9.1 Classificação das perícias contábeis ............................................................................................. 154 5.10 Física forense .....................................................................................................................................157 5.11 Perícia ambiental ..............................................................................................................................161 5.11.1 Classificação dos crimes ambientais .......................................................................................... 162 6 QUÍMICA FORENSE .......................................................................................................................................166 6.1 Análise de drogas de abuso ............................................................................................................166 6.2 Análise de adulteração de chassi de veículos e da numeração de identificação de arma de fogo .............................................................................................................170 6.3 Residuográfico (análise de resíduos de disparos de arma de fogo)...............................171 6.4 Análise de combustível adulterado .............................................................................................173 6.5 Análise de medicamentos adulterados ......................................................................................173 6.6 Análise de bebidas e alimentos adulterados ...........................................................................175 7 ODONTOLOGIA LEGAL..................................................................................................................................176 7.1 Identificação humana ......................................................................................................................176 7.2 Lesão corporal ......................................................................................................................................180 7.3 Exames de marcas de mordida .....................................................................................................180 7.4 Exames palatoscópico e queiloscópico .....................................................................................182 8 MEDICINA LEGAL ...........................................................................................................................................183 8.1 Classificação das áreas de atuação da medicina legal ........................................................183 8.1.1 Sexologia forense ................................................................................................................................. 183 8.1.2 Psiquiatria forense ............................................................................................................................... 184 8.1.3 Traumatologia forense ....................................................................................................................... 184 8.1.4 Tanatologia forense ............................................................................................................................ 189 8.1.5 Antropologia forense ......................................................................................................................... 194 7 APRESENTAÇÃO As atividades pertinentes à área das ciências forenses vêm assumindo um importante papel no âmbito científico e jurídico devido ao crescimento da criminalidade e do número de casos de violência que normalmente evoluem para a esfera judicial. Para agir segundo os preceitos jurídicos, autoridades policiais e judiciais exigem cada vez mais rigor e segurança na prova científica produzida, ou seja, na evidência dos achados e nas provas de certeza relativa, pois essas fornecem à justiça a comprovação da materialidade do crime, podendo promover a imputação da pena ao culpado. Devido à complexidade das provas, desde sua obtenção em um local de crime até a análise propriamente dita, se faz necessária uma abordagem multidisciplinar, na qual diversos saberes se entrecruzam e complementam uns aos outros. Por tais motivos, o principal intuito da disciplina em questão é apresentar ao estudante as diferentes áreas envolvidas nesse campo, em seus diversos âmbitos, tornando-o capaz de compreender o importante papel exercido pelo profissional que atua na perícia criminal, desde a coleta de amostras e informações relacionadas ao crime e sua análise até a produção dos laudos técnicos, auxiliando de forma decisiva as polícias técnico-científicas e o judiciário na elucidação de questões ligadas à prova pericial. INTRODUÇÃO Através de conhecimentos técnicos e científicos nas diferentes áreas das ciências naturais, nosso campo busca analisar vestígios que contribuam para elucidar questionamentos de interesse da Justiça. Portanto, não se baseiam em uma única ciência, tampouco na utilização de apenas uma estrutura ou método específico, uma vez que diversos saberes se relacionam e cada área de conhecimento apresenta seus próprios métodos, tendo como única finalidade atender os propósitos judiciais. Os conteúdos selecionados e apresentados neste livro-texto buscam fornecer de forma objetiva, clara e concisa os conceitos mais relevantes para que o estudante adquira os conhecimentos necessários para correlacioná-los com a criminalística, tornando-se apto a compreender as diversas facetas de um crime, de forma a atender os preceitos jurídicos na elucidação de diversos casos. Assim sendo, serão apresentadas ao aluno a importância e a aplicação das ciências forenses e seus diversos saberes no isolamento físico do local do crime, evitando que ocorra perda ou contaminação de vestígios que levem à apuração dos fatos ou na coleta de objetos, marcas ou sinais presentes nesses locais (que, aprincípio, possam ter relação com o delito) e na análise e interpretação dos dados obtidos, comprovando sua relação ou não com o fato ocorrido. A seguir, algumas áreas que estão estritamente relacionadas às ciências forenses são abordadas, como: a toxicologia forense, responsável por determinar drogas de abuso, praguicidas, gases, metais e outras substâncias em diferentes matrizes biológicas que possam ter alguma relação com o fato criminoso; a biologia forense, área responsável por analisar toda e qualquer amostra biológica com o objetivo de localizar, identificar e caracterizar sua origem, além de verificar a dinâmica, os meios e os modos pelos quais o evento ocorreu, e a genética forense, área 8 específica das ciências forenses que utiliza a biologia molecular para elucidação de crimes através da identificação genética dos indivíduos. Por fim, serão descritas outras importantes áreas forenses, como: balística, papiloscopia, medicina veterinária, perícia audiovisual, psicologia e psiquiatria, engenharia, informática, documentoscopia, contabilidade, física, perícia ambiental, química, odontologia e medicina legal. A balística é responsável pela identificação das armas de fogo, bem como seu funcionamento e efeitos provocados na vítima e no próprio atirador. A papiloscopia estuda as impressões digitais, a perícia ambiental tipifica os crimes contra o meio ambiente e a química forense qualifica e quantifica os vestígios para elucidação dos casos criminais. Em tais áreas, o profissional poderá atuar de forma direta, além de exercer atividades que contribuem indiretamente com a documentoscopia, que analisa a autenticidade e a integridade de documentos, com a medicina veterinária, odontologia e medicina legal, pela realização de exames complementares em amostras biológicas com o intuito de auxiliar na conclusão e elucidação de um acidente ou crime. Bons estudos! 9 BIOMEDICINA FORENSE Unidade I 1 CIÊNCIAS FORENSES, CRIMINALÍSTICA E PERÍCIA CRIMINAL Na época do Império Romano já havia relatos da atuação da medicina no esclarecimento das circunstâncias de morte de algumas pessoas importantes, sendo essa a primeira e, durante muito tempo, a única ciência a contribuir com a Justiça. Ao longo do tempo foi preciso que a medicina desenvolvesse conhecimentos técnicos específicos para atender as demandas do judiciário, surgindo, assim, a chamada “medicina legal”, que tinha como intuito a interpretação de vestígios em local de crime e a identificação humana através de análises químicas, físicas e biológicas. Devido ao aumento da criminalidade e do número de casos de violência que normalmente evoluem para a esfera judicial, as autoridades policiais e judiciais passaram a ser cada vez mais exigentes e rigorosas quanto à segurança da prova científica produzida, ou seja, na preservação e veracidade dos achados e das provas de certeza relativa, para que, assim, a materialidade do crime pudesse ser comprovada e, consequentemente, a imputação da pena aplicada ao culpado. A partir desse momento, a “medicina legal” por si só não mais comportava a complexidade das provas e de sua obtenção em um local de crime, fazendo-se necessária uma abordagem multidisciplinar, na qual diversos saberes se entrecruzariam e se complementariam. Surgiu assim o conceito de criminalística, termo utilizado pela primeira vez na Alemanha pelo juiz Hans Gross e que, de acordo com o professor Eraldo Rabello, quem se dedicou ao exercício da perícia criminal e ao ensino da criminalística, constitui-se em: [...] uma disciplina técnico-científica por natureza e jurídico-penal por destinação, a qual concorre para a elucidação e a prova das infrações penais e da identidade dos autores respectivos, por meio da pesquisa, do adequado exame e da interpretação correta dos vestígios materiais dessas infrações (RABELLO, p. 12, 1996). Assim, os conhecimentos técnico-científicos dos diferentes ramos das ciências naturais (matemática, química, física e biológica), quando empregados na análise de vestígios com o objetivo de responder as demandas e questionamentos jurídico-policiais, denominam-se ciências forenses, as quais têm demandando, em escala espantosamente crescente, a invenção e reinvenção de novas técnicas e metodologias para atender a criminalística. A pesquisa e os exames de caráter técnico-específico, empregados na elucidação de questões ligadas à prova pericial, são denominados perícia. Para a realização da perícia, faz-se necessária a participação do perito, profissional com formação acadêmica superior, que detenha conhecimentos teórico e prático a respeito do assunto e experiência para obtenção do melhor resultado, considerando os achados 10 Unidade I materiais e as tecnologias disponíveis para tal. Ainda, o perito deve conhecer os diferentes campos do saber que lhe possibilitem identificar e determinar vários exames, mesmo quando distintos de sua área de especialização, mas que, com o auxílio de outros profissionais especialistas e habilitados, resultem na geração do conhecimento interdisciplinar, fundamental para a investigação científica. Além disso, é claro, espera-se de um perito o conhecimento da legislação no que tange às regras impostas. A perícia pode ser categorizada como sendo cível ou criminal. A cível trata de conflitos judiciais na área patrimonial e/ou pecuniária (financeira), em que um profissional de nível superior e inscrito em seu conselho de classe é escolhido pelo juiz, de acordo com a formação específica, para a execução da análise dos laudos periciais e de qualquer outra peça inserida nos autos, com o intuito de sanar as dúvidas do magistrado titular do processo. Já a perícia criminal trata das infrações penais, em que o Estado assume a defesa do cidadão perante a sociedade, e, para tal, o profissional, além de ter nível superior, precisa ser perito oficial concursado. O perito oficial concursado pode atuar como perito médico-legista ou perito criminal. O perito médico-legista deve, obrigatoriamente, ser graduado em Medicina e é responsável por realizar exames no ser humano, tais como lesões corporais, necropsia, sexológico e antropológico, entre outros. Já o perfil do perito criminal compreende profissionais de várias áreas de formação acadêmica e conhecimento, os quais são responsáveis por diversos tipos de perícias, como balística forense, exame em locais de crimes, documentoscopia, fonética forense, psicologia e psiquiatria forense, contabilidade forense, genética forense, engenharia forense, informática forense, datiloscopia, biologia forense, química forense, medicina veterinária forense, perícia ambiental e física forense, entre outros. Ainda, em locais onde não existem peritos oficiais concursados para realizar uma perícia criminal, a autoridade competente nomeia um profissional com formação superior e especialista para aquela determinada área, conhecido como perito ad hoc. Tanto os peritos oficiais quanto os peritos ad hoc devem ser imparciais em suas perícias e são impedidos de exercer suas funções pelos juízes quando em suspeição, de acordo com os artigos 254 e 255 do Código de Processo Penal e dos artigos 138, inciso III e 145 do Código de Processo Civil. O profissional que atua como perito oficial, ad hoc ou particular deve estar ciente da importância de seu trabalho pericial, uma vez que tal trabalho poderá modificar a vida ou o patrimônio de pessoas, muitas vezes de forma irreversível. Portanto, uma perícia de baixa qualidade, devido aos limites impostos pela própria ciência ou a não disponibilização de conhecimentos e tecnologias para a realização de perícias específicas; uma perícia falsa, devido a afirmação falsa ou uma negativa ou omissão da verdade; ou, ainda, uma falha ou equívoco nos resultados de uma perícia podem acarretar gravíssimas consequências para o indivíduo e a sociedade. Atualmente, existe a figura do assistente técnico, profissional também com formação superior e especializado em uma das áreasdo conhecimento científico, que é contratado pelas partes para realizar trabalhos periciais que venham a esclarecer dúvidas e que concedam elementos técnicos à argumentação do advogado na tentativa de alcançar o convencimento sobre a tese defendida (esfera cível) ou revisar uma perícia feita e concluída pelo perito oficial e, caso necessário, contestá-la (esfera criminal). 11 BIOMEDICINA FORENSE O assistente técnico da área cível pode ser contratado para atuar em um processo, já formado ou em andamento, quando alguém pretende ajuizar uma ação e considera necessário acrescentar prova pericial na petição inicial (produção antecipada de provas) através de parecer. Já o assistente técnico da área criminal atua apenas na fase processual, analisando laudos periciais oficiais conclusos e juntados no processo. Ambos os assistentes técnicos não devem desviar a busca da verdade na realização ou revisão de perícias em favor da parte contratante, pois poderão responder criminalmente pela afirmação ou omissão falsa com dolo. Observação Dolo é o termo utilizado para se referir ao ato criminoso da pessoa que age de má-fé (fraude). O laudo pericial é um documento que deve pautar a constatação do fato e expor todo o roteiro das análises realizadas e suas interpretações, levando a resultados técnico-científicos que possam salvaguardar a conclusão do trabalho pericial na elucidação fidedigna de um caso em estudo. O laudo pericial não deve se restringir apenas ao preenchimento dos quesitos estipulados, mas, sim, caso necessário, descrever outros fatos que possam surgir no transcorrer de um exame e que tenham relação direta com o caso. Sempre que possível, na construção de um laudo pericial devem constar ilustrações, fotografias, croquis e esquemas que facilitem e permitam a clareza e a compreensão do que o perito pretende transmitir no desfecho final do trabalho de perícia em relação aos fatos. O perito, muitas vezes, não consegue reunir elementos necessários para a conclusão do laudo pericial devido à exiguidade ou até mesmo à destruição de vestígios em razão da preservação inadequada do local de crime. Nesse caso, a conclusão pode ser caracterizada como excludente, ou seja, não há possibilidade de fazer qualquer afirmação conclusiva devido a existência de mais de uma possibilidade técnico-científica para aquele evento. Entretanto, tais laudos podem fornecer informações que permitam excluir hipóteses relacionadas ao fato, facilitando a continuidade das análises (objetivas e subjetivas) para o esclarecimento investigativo do caso. A análise da morte de um indivíduo, por exemplo, pode ocorrer de forma acidental, natural, por homicídio ou suicídio. Se o perito conseguir eliminar totalmente dois desses tipos de mortes após investigação, haverá exclusão de metade das possibilidades. Há casos em que os vestígios encontrados não são capazes de eliminar qualquer possibilidade levantada durante a investigação, contribuindo apenas para indicação de maior probabilidade de ocorrência de uma delas ou, ainda, mais raramente, em alguns casos o perito relata a impossibilidade de concluir o laudo por falta de elementos a serem examinados. Já o parecer técnico se diferencia de um laudo pericial por ser menos abrangente e por ter como objetivo analisar, de forma técnico-científica e dentro dos rigores da ética, elementos pontuais de um laudo que venham corroborar, respaldar e enfatizar materialmente a convicção de uma tese 12 Unidade I (argumentação do cliente ou esclarecimento ao magistrado). Normalmente, o parecer técnico exerce uma função contestatória ou explicativa. Lembrete Nas Ciências Forenses diversos saberes se entrecruzam na elucidação de questões ligadas à prova pericial. 1.1 Isolamento e preservação de locais de crime Segundo a criminalística, toda área física ou virtual que configure uma infração penal e que possua vestígios de ação criminosa é denominada local de crime. Normalmente, no local de crime há materialização do princípio de Locard, o qual preconiza que sempre existe troca de vestígios entre os agentes delituosos e o ambiente, ou seja, o criminoso deixa algo seu no local ou leva algo do local consigo. Portanto, na grande maioria das vezes as infrações penais deixam vestígios que devem ser analisados por um perito oficial, de acordo com os preceitos do artigo 158 do Código de Processo Penal, que diz que, quando houver vestígios de uma infração, o exame de corpo de delito se fará insidpensável, não sendo suprimido mesmo pela confissão do acusado. A ausência de exame de corpo de delito dos vestígios pode resultar em anulação de uma ação penal. Quando se toma conhecimento de um possível crime, a autoridade policial deve isolar e preservar a área em questão para que os peritos oficiais possam trabalhar com segurança e idoneidade em busca de vestígios que reconstruam a dinâmica e a autoria do crime. O isolamento ou delimitação física do local é uma tarefa extremamente complexa pelo fato de não se saber ao certo o tamanho da cena do crime. Portanto, deve-se isolar a maior área possível dentro do contexto e da situação existente para que não se corra o risco de perda ou contaminação dos vestígios que levem a apuração dos fatos. Muitas vezes intempéries climáticas, como chuvas, podem danificar alguns vestígios, como uma pegada na areia. Nesses casos, compete à autoridade policial o bom senso de adotar medidas cabíveis para preservar os vestígios até a chegada do perito (lembrando sempre que se faz necessária a mínima ou nenhuma intervenção no local). O perito não pode, em hipótese alguma, negar a realização da perícia, mesmo nas situações em que verificar que o local do crime não foi devidamente preservado. Nesses casos, ele deverá relatar no laudo as alterações observadas e suas consequências para a elucidação do caso. Os locais de crimes são classificados de acordo com: • região de ocorrência, que pode ser: — imediato: área que apresenta a maior concentração de vestígios do fato; — mediato: locais adjacentes ao lugar em que ocorreu o fato, ou seja, a área intermediária entre o ambiente do fato e o exterior que o limita. 13 BIOMEDICINA FORENSE • quanto à preservação: — idôneo: quando os vestígios são mantidos inalterados desde o fato propriamente dito até seu registro e coleta; — inidôneo: quando os vestígios são contaminados ou alterados, com a alteração podendo se dar por adição, subtração ou substituição. • a caracterização da área, como: — interno: locais cobertos e/ou confinados por paredes que, consequentemente, protegem os vestígios contra a ação de agentes externos como chuva, vento, sol, caso de uma residência; — externo: locais sujeitos à intercorrência do ambiente atmosférico, podendo ocorrer alterações ou até mesmo destruição dos vestígios, como em vias públicas; — virtual: são os locais de crime de internet, ou seja, servidores de dados que independem do espaço físico em que se encontram. • quanto à natureza do fato: baseia-se no tipo de ocorrência geradora, podendo ser local de morte violenta, de furto, de acidente etc. O laudo pericial do local de crime é amplo e multiforme, devendo conter uma descrição narrativa sobre tudo que o perito encontrar no local sem especificação; um levantamento fotográfico, que corresponde a uma importante forma de registrar a cena do crime desde a chegada dos peritos até a liberação do local; e o croqui, que consiste no desenho manual ou por scanner 3-D da localização dos vestígios na cena do crime, contextualizando-o para futuras análises. Cada um desses instrumentos pode ser visualizado por meio das imagens a seguir. Residência A Corpo da vítima Figura 1 – Visão geral do local 14 Unidade I Figura 2 – Início do rastro de sangue no local Garagem Residência A Residência B Calçada WE 68 Calçada Portão Rastro de sangue Rastro de sangue 2,4 m 22,85 m 3 m 5 m 5, 1 m Figura 3 – Croqui do local de crime examinado Quando se verifica a existênciade conflito de versões entre testemunhas, vítimas e suspeitos sobre a dinâmica do fato, o perito criminal pode recorrer à reprodução simulada do crime para apurar a existência de falsas confissões. 15 BIOMEDICINA FORENSE Saiba mais Leia o artigo indicado a seguir para conhecer mais sobre perícias e exame de corpo delito. SIQUEIRA, D. C. S. Provas periciais: exame de corpo de delito e perícias em geral. Jus, jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75661/ provas-periciais-exame-de-corpo-de-delito-e-pericias-em-geral. Acesso em: 26 ago. 2020. 1.2 Vestígio, evidência e indício Em uma cena de crime, os peritos criminais devem procurar por objetos, marcas ou sinais que a princípio tenham relação com o delito. Todo material bruto constatado e/ou recolhido no local do crime passa a ser considerado um vestígio, que depois de estudado e interpretado pelos peritos, de forma isolada ou associada a outros, e comprovada sua relação com o fato, se transforma em evidência. Na fase processual, ambas as denominações (vestígio e evidência) recebem o nome de indícios, podendo ser representadas por elementos materiais, bem como subjetivos de um crime. Para que o vestígio exista, é necessária a interação entre o agente que o produz ou contribui para tal e o local, de forma a deixar um achado material. Portanto, vestígio nada mais é que o produto da ação materializada do agente causador do delito. Alguns vestígios são visíveis macroscopicamente e outros dependem de equipamentos específicos ou de outros métodos que os revelem para o perito. O perito criminal não consegue, no local dos fatos, realizar as análises individualmente de todos os vestígios encontrados para saber sua importância e relação com o crime. Tais análises são conduzidas no instituto, utilizando-se exames complementares que possibilitem estabelecer a existência desse vínculo, para que, então, os peritos possam utilizá-lo como subsídio de suas conclusões. Lembrete Vestígio corresponde a todo material bruto constatado e/ou recolhido no local do crime, já a evidência está relacionada à comprovação da relação entre o vestígio e o fato, após estudos e interpretações feitas pelos peritos. 1.3 Cadeia de custódia dos vestígios de crime (coleta, armazenamento, transporte e recebimento) Para ser considerada consistente perante a Justiça, a prova pericial deve seguir uma sequência cronológica documentada desde sua identificação no local do crime, incluindo coleta, análise nos institutos e devolução à autoridade policial (para compor o inquérito) até seu destino final (integração 16 Unidade I ao processo judicial). Essa sequência cronológica é denominada cadeia de custódia e tem como intuito assegurar e garantir a identidade e a integridade do vestígio, seja ele um material, equipamento, máquina, documento ou substância, entre outros, uma vez que vários profissionais irão manuseá-lo ao longo do espaçotemporal entre o crime e o julgamento. Muitas vezes, a prova pericial é anexada ao corpo do processo ou, ainda, armazenada nos institutos e cartórios para garantir sua segurança e idoneidade. Dessa forma, a adoção de todos esses cuidados associada à modernidade das tecnologias criminalísticas evita que o vestígio ou prova pericial apresente pontos de questionamentos (técnicos e/ou jurídicos) e se torne ineficiente na aplicação da justiça. Lembrete A cadeia de custódia é imprescindível para garantir a identidade, a integridade e a idoneidade da evidência perante a Justiça. Exemplo de aplicação A perícia criminal inicia-se com a análise do local de crime e a recolha dos possíveis vestígios pelo perito externo, que pode ser um biomédico. Esse perito avalia e descreve toda a dinâmica do crime através de laudo, fotos e croquis. Ainda, o biomédico pode atuar como perito interno, realizando as análises dos vestígios encontrados no local. Através de aplicações práticas, vamos entender o papel do profissional biomédico na perícia criminal? Para tanto, alguns casos de grande repercussão no país podem ser lembrados. No caso Isabella Nardoni (2008), vestígios foram encontrados no carro do pai, Alexandre Nardoni, manchas de sangue no banco traseiro ao lado de uma cadeirinha de criança, no encosto de cabeça do banco do motorista e no chão da parte de trás do veículo. Já no apartamento, foram encontradas diversas manchas de sangue no chão (da entrada, do corredor, ao lado da cama existente no quarto do qual a vítima, Isabella, foi jogada, além do parapeito do mesmo cômodo) e na maçaneta da porta de entrada, bem como dos rastros de sangue deixados pela mão da vítima na fachada do edifício. No lençol da cama do referido quarto foram observadas manchas de sangue e o decalque de uma palma de criança suja de sangue, além de marcas do solado da sandália que Alexandre utilizava no dia do crime, uma sequência de passos. No apartamento também foi encontrada, em um balde, uma fralda com sangue já em processo de lavagem, possivelmente utilizada para estancar o sangue do ferimento da cabeça da criança do carro até o apartamento. Ainda, os peritos externos observaram que a tela de proteção da janela do quarto, de onde a vítima foi jogada, estava cortada por diferentes instrumentos. Nas roupas de Alexandre (pai), encontradas no banheiro de um apartamento inabitado do sexto andar, no mesmo andar em que morava, como proprietária, sua irmã, foram evidenciadas manchas de sangue na parte anterior da calça, em ambas as pernas, e na camiseta, marcas da tela de proteção. 17 BIOMEDICINA FORENSE Após análise dos vestígios e da cena do local do crime, mesmo essa tendo sido manipulada (alterada com a limpeza de algumas manchas de sangue), foi possível descrever a dinâmica dos fatos ocorridos: toda a família Nardoni chegou de carro no edifício onde morava, o veículo foi estacionado na garagem e desligado em um determinado momento, registrado pelo GPS. Ainda dentro do veículo, Isabella foi agredida na parte anterior da cabeça (testa) por um instrumento perfuro-contundente, o que explica as manchas de sangue encontradas dentro do carro. A lesão na cabeça foi melhor descrita após exame necroscópico. Dando sequência, Alexandre subiu para o apartamento com Isabella no colo. Na cabeça da criança o casal colocou uma fralda para estancar o sangue durante o trajeto, fralda que, como dito, foi encontrada dentro do apartamento em processo de lavagem (no balde). Já dentro do apartamento, Alexandre caminhou em várias direções com Isabella no colo, o que ficou evidenciado pelas várias manchas de sangue encontradas no chão dos diferentes cômodos. Na sala, Alexandre jogou a filha no chão e a esganou (causou asfixia pela constrição do pescoço com as mãos), procedimento comprovado pelo exame de necropsia. Em seguida, já em posse de uma faca, Alexandre ajoelhou-se na cama e tentou cortar a rede de proteção da janela do quarto. Sem êxito, ele pegou então uma tesoura e fez a abertura na tela de proteção do quarto. Alexandre voltou até a sala, pegou a Isabella no colo e se direcionou para o quarto novamente, onde foram encontradas mais manchas de sangue no trajeto e próximas à cama. Já no interior do quarto, o pai subiu e caminhou com dificuldade em cima da cama até a janela, fato evidenciado pela sequência de passos deixada pelas marcas do solado da sandália e de sangue. Próximo da janela, Alexandre se debruçou no parapeito, o que ficou comprovado pela marca da tela de proteção tatuada na camiseta que usava no dia do crime, passou a filha pela abertura feita na tela de proteção de forma cuidadosa e quando ela estava rente ao parapeito pelo lado de fora da janela, o pai soltou a filha, o que também foi comprovado pelo rastro de sangue deixado pela mão da vítima na fachada do edifício. No caso de Elisa Samudio, ocorrido em 2009, foram encontradas, no interior do veículo de propriedade do goleiro Bruno, cinco manchas de sangue, sendo uma delas por projeção, sugerindo agressão. Foram encontrados também um par deóculos e sandálias pretas, objetos pertencentes à vítima, segundo testemunhas. No sítio para onde a vítima foi levada, foram encontradas roupas femininas e de bebê, fraldas e um colchão, no qual existiam manchas de sangue e cabelos. O crime de homicídio e ocultação de cadáver da vítima Elisa Samudio iniciou-se em maio de 2010, quando o indiciado Bruno atraiu a vítima de São Paulo para o Rio de Janeiro, usando o falso pretexto de que se submeteria à realização de exame de DNA para reconhecimento de paternidade do recém-nascido e posterior acordo judicial com Elisa. A vítima foi enganada pelo comparsa de Bruno e sequestrada nas proximidades do hotel onde estava hospedada, cuja diária foi custeada pelo denunciado. Levando o bebê, Elisa entrou no veículo de propriedade de Bruno, a princípio acreditando que iria ao encontro do indiciado. 18 Unidade I Dentro do veículo encontravam-se o comparsa de apelido Macarrão, Elisa, o bebê e mais um comparsa (o adolescente e primo do denunciado, Jorge) que estava escondido no porta-malas do veículo munido de uma pistola calibre 380. Em determinado momento, Jorge saiu do compartimento das bagagens e apontou a arma para vítima, que, entendendo ser uma emboscada, se desesperou e entrou em luta com o adolescente, que acabou deferindo um golpe com o cabo da arma (“coronhada”) em sua cabeça, sendo tal agressão comprovada pela mancha de projeção de sangue encontrada dentro do veículo. Dominada, a vítima e seu bebê foram levados para a casa do denunciado Bruno, situada no condomínio “Nova Barra”, no Rio de Janeiro. No dia seguinte, a vítima e o bebê, juntamente aos denunciados, viajaram para Minas Gerais, mais precisamente para o sítio de Bruno, situado no condomínio Turmalina, na divisa entre as cidades de Contagem e Esmeraldas. A vítima e seu bebê foram mantidos por seis dias em cárcere privado no referido sítio, fato comprovado pelas roupas femininas e da criança, além das fraldas encontradas pela perícia. Após esse período, Elisa foi conduzida para uma casa em Vespasiano (MG), onde ocorreu sua morte e ocultação de seu corpo. Já o bebê foi encontrado em uma residência na cidade de Ribeirão das Neves (MG), sob os cuidados de uma mulher. No caso Mércia Nakashima, datado de 2010, a vítima, Mércia, desapareceu após um jantar em família, na casa da avó. O principal suspeito era o ex-namorado Mizael, que não aceitava o rompimento do relacionamento. Na represa de Nazaré Paulista foi retirado o carro da vítima, um Honda Fit que estava submerso. Dentro dele foram encontrados dois projéteis de arma de fogo, após perícia. Na casa de Mizael foram recolhidos dois pares de sapatos com o propósito de verificar algum tipo de vestígio que o ligasse ao crime. Após a análise dos sapatos, foram verificados vestígios de sangue, fragmentos de ossos e chumbo, porém em quantidades insuficientes e com baixa qualidade para a realização de outros exames de comprovação e certificação, como o de pesquisa de sangue humano, de DNA e comparação do chumbo. Em depoimento à polícia, Mizael alegou que no dia do crime estava com uma garota de programa. Porém, o rastreador de seu veículo confirmou que, por um determinado período no dia do crime, ele esteve estacionado próximo à casa da avó da vítima. Ainda, com a quebra do sigilo telefônico do suspeito, ficaram evidenciadas algumas ligações, no dia do crime, para seu comparsa Evandro, vigia de um posto de gasolina em Guarulhos. Após uma denúncia, o veículo Honda Fit da vítima foi localizado com todos seus pertences, submerso a 6 metros de profundidade e a 25 metros de distância da margem da represa de Nazaré Paulista, indicando não ser um possível latrocínio (roubo seguido de morte). O corpo foi encontrado no dia seguinte boiando na represa. 19 BIOMEDICINA FORENSE Dentro do veículo, a perícia encontrou dois projéteis de arma de fogo contendo materiais orgânicos e fibra da blusa que Mércia usava no dia do crime. E, ainda, pela posição em que foram encontrados os projéteis, concluiu-se que sua trajetória foi de baixo para cima (postura de defesa), sendo comprovado pelas lesões no antebraço e maxilar da vítima verificadas após exame necroscópico. No caso do zelador Jezi, ocorrido em 2014, a perícia encontrou na parede do apartamento do suspeito manchas de sangue e também serrotes e outros objetos utilizados para esquartejar o corpo da vítima. E, em uma casa na Praia Grande (SP), foram encontrados 17 segmentos de um corpo humano, parte em putrefação e parte queimada dentro de uma churrasqueira. Após denúncia, foi verificado que o suspeito Eduardo já tinha desavenças com Jezi, o zelador do edifício onde morava, e que o desaparecimento da vítima ocorreu após um desentendimento entre as partes. A análise dos vestígios encontrados dentro do apartamento de Eduardo (manchas de sangue na parede e serrotes, entre outros objetos), somada às imagens de segurança do edifício (em que o suspeito aparece carregando uma mala) e, por fim, o fato de o suspeito ter sido surpreendido pela polícia tentando queimar o corpo do zelador na churrasqueira da casa de praia, evidenciaram a autoria do crime. Em relação à dinâmica do crime, concluiu-se que, após um desentendimento entre Eduardo e Jezi, Eduardo matou o zelador, o esquartejou e posteriormente transportou as partes do corpo em uma mala até a casa de praia, onde foram queimadas em uma churrasqueira. 2 TOXICOLOGIA Drogas e fármacos são conhecidos desde os primórdios da história da humanidade e possuem ampla aplicação, a qual tem por objetivo a obtenção de efeitos benéficos (cura de doenças) e/ou desejáveis. No século XIV, o alquimista e médico Paracelsus postulou que a definição de uma determinada substância como medicamento ou veneno é dependente da dose administrada. Desde então, várias ocorrências relacionadas ao uso de medicamentos e seus efeitos adversos, uso de drogas e outras substâncias químicas e venenos foram registradas e passaram a ser conhecidas pela humanidade. Dessa forma, surgiu a necessidade da criação de uma área específica que estudasse em maior detalhe os efeitos provocados por diferentes substâncias químicas: a toxicologia. Observação Dose é o termo utilizado para se referir à quantidade administrada de determinada substância. 20 Unidade I Saiba mais Leia o artigo indicado a seguir para conhecer um pouco mais sobre Paracelsus, o fundador da toxicologia. SOUZA, L. A. Paracelso: cientista da saúde. Brasil Escola, [s.d.]. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/quimica/paracelso-cientista-saude.htm. Acesso em: 26 ago. 2020. Portanto, toxicologia é uma ciência que tem por objetivo investigar os efeitos nocivos resultantes da interação de diferentes substâncias químicas, como drogas e fármacos, com os organismos vivos através da quantificação do espectro de alterações biológicas produzidas pela exposição a tais substâncias. O uso seguro dessas substâncias químicas representa o grande desafio da toxicologia, uma vez que fatores como a quantidade e a duração da exposição podem desencadear respostas variáveis entre os indivíduos de uma determinada população. A toxicologia baseia-se em três elementos fundamentais: • Agente tóxico ou toxicante: substância química capaz de produzir uma resposta deletéria ao interagir com organismos vivos. • Toxicidade: refere-se à capacidade que uma substância química (toxicante) possui de provocar efeitos nocivos, quando em contato com um organismo vivo, os quais são dependentes da concentração e do tempo de exposição ao toxicante. • Intoxicação: manifestação de sinais e sintomas que revelam os efeitos nocivos decorrentes da interação entre o toxicante e o sistema biológico de um organismo. Observação Resposta deletéria é aquela que destrói, corrompe, prejudica, por exemplo, o funcionamento do organismo. A toxicologia constitui-se em ciência multidisciplinar, na qual há interação de especialistas com diferentes formações profissionais e técnicas para permitiro aperfeiçoamento dos conhecimentos e o desenvolvimento das áreas de atuação. De acordo com a área de atuação e a diversidade de aplicações, a toxicologia pode ser dividida em diferentes especialidades, descritas a seguir. 21 BIOMEDICINA FORENSE • Toxicologia ambiental: estuda os efeitos nocivos produzidos pela interação dos contaminantes químicos ambientais com os organismos vivos. Exemplos: substâncias químicas derramadas ou extravasadas acidentalmente no ambiente. • Toxicologia ocupacional: compreende o estudo dos efeitos nocivos produzidos por contaminantes do ambiente de trabalho sobre o indivíduo exposto e o impacto sobre sua saúde na vida laboral. Exemplo: substâncias voláteis de postos de combustíveis. • Toxicologia de alimentos: estuda os efeitos adversos produzidos por contaminantes ou substâncias químicas presentes nos alimentos em relação à saúde daquele que os ingere. Exemplos: conservantes, edulcorantes, flavorizantes. • Toxicologia social: estuda os efeitos nocivos de fármacos e substâncias químicas utilizados pelo indivíduo sem prescrições médicas e/ou sem fins terapêuticos de forma individual, social ou legal e que possam interferir na vida em sociedade. Exemplos: drogas de abuso. • Toxicologia forense: tem como interesse principal o aspecto judicial, a fim de elucidar um crime através do fornecimento de evidências no que tange às circunstâncias do fato, ou seja, visa identificar qualquer toxicante que possa ter resultado em morte ou ter causado qualquer dano ao indivíduo. Dentro de cada uma dessas áreas de atuação, diferentes tipos de questões podem ser abordadas, como as relacionadas a aspectos regulatórios, médico-legais, analíticos e clínicos, entre outras. Consequentemente, de acordo com o campo de estudo, a toxicologia se divide em: • toxicologia analítica ou química: identifica e/ou quantifica os toxicantes e/ou seus metabólitos (produtos da biotransformação) em materiais biológicos; • toxicologia clínica ou médica: estuda os sintomas e sinais clínicos de uma possível intoxicação; • toxicologia experimental: trata da identificação e entendimento dos mecanismos de ação tóxica sobre o sistema biológico, bem como a avaliação dos efeitos resultantes dessa ação. Observação Biotransformação ou transformação metabólica (metabolização) corresponde ao conjunto de alterações químicas que ocorrem no organismo, geralmente mediadas por enzimas, em que substâncias como fármacos, drogas e toxicantes são convertidos em compostos diferentes dos originalmente administrados, facilitando sua excreção. Assim, o estabelecimento das diversas áreas de atuação toxicológica e de suas finalidades propicia ao toxicologista escolher a melhor matriz biológica (fragmentos de órgãos, conteúdo estomacal, sangue, 22 Unidade I urina etc.) a ser utilizada e a técnica analítica a ser aplicada para detecção de toxicantes de interesse na pesquisa. Entre tais vertentes de análises toxicológicas, a de maior interesse no momento é a toxicologia forense, descrita a seguir. 2.1 Toxicologia forense Desde tempos remotos, há relatos do uso de venenos e drogas pelo homem (substâncias naturais ou sintéticas) e sua interferência no funcionamento do organismo, levando-se em consideração os efeitos locais (órgão específico) e/ou sistêmicos (todo o corpo). Atualmente, o uso de drogas pelo homem se tornou um grande e um dos mais graves problemas da sociedade. Observação Diz-se substância natural aquela que é extraída de uma determinada planta ou componente existente na natureza, por diferentes processos, buscando obter o principal composto que provoque os efeitos desejados. Já a substância sintética é aquela produzida em laboratório através de processos químicos. Até o século XX, a toxicologia forense limitava-se a estabelecer a relação tóxica com um determinado crime. O toxicologista trabalhava diretamente com o cadáver visando pesquisar e identificar a substância em questão. Atualmente, o campo de ação dessa ciência tornou-se mais vasto, estendendo-se desde as perícias nos cadáveres até indivíduos vivos, sempre com o intuito de evidenciar as circunstâncias de um crime. Entre os objetivos pertinentes às análises toxicológicas forenses, estão os indicados a seguir. • Identificar e quantificar uma substância química (como medicamentos, drogas ilícitas, praguicidas, metais, gases tóxicos, entre outros) que tenha levado à intoxicação e morte de uma pessoa. Essas análises são realizadas em matrizes biológicas com o objetivo de auxiliar os exames necroscópicos de mortes violentas por causas externas e suspeitas, como suicídios, acidentes e homicídios. • Identificar e quantificar uma substância química que causa dependência psíquica e/ou física (como drogas ilícitas, álcool etílico, medicamentos, entre outros) em fluidos e materiais biológicos como sangue e urina (convencionais) ou saliva, suor, cabelo, unha e mecônio (não convencionais) de indivíduos vivos para auxiliar e complementar uma perícia. Cabe a essas análises verificar o uso de um toxicante que leve à mudança de desempenho e/ou de comportamento (alteração do estado de consciência), sendo realizadas no controle de doping, nos exames admissionais e de demissão para o trabalho, além de esclarecer supostas tentativas de suicídios, acidentes, tráfico e casos de homicídios. 23 BIOMEDICINA FORENSE Saiba mais Vamos aprender um pouco mais sobre suicídio, homicídio e doping? Leia os artigos indicados a seguir. BRASIL. Ministério da Saúde. Prevenção do suicídio: sinais para saber e agir. Disponível em: https://saude.gov.br/saude-de-a-z/suicidio. Acesso em: 26 ago. 2020. DIREITO LEGAL. Homicídio simples. Disponível em: https://direito. legal/direito-publico/direito-penal/resumo-de-homicidio-simples/. Acesso em: 26 ago. 2020. HOSPITAL ALBERT EINSTEIN. O que é o doping? Disponível em: https://www. einstein.br/noticias/noticia/o-que-e-o-doping. Acesso em: 26 ago. 2020. A seguir estão listadas as autoridades que podem solicitar análises toxicológicas, com finalidade forense: • autoridade policial responsável pelo inquérito; • autoridade militar conhecedora de fatos criminosos relacionados com o tráfico (comércio) e uso de substâncias químicas; • autoridade judiciária encarregada do julgamento; • médico legista, a fim de auxiliar na perícia do vivo e na necropsia (melhor descrita mais à frente). Na solicitação desse tipo de análise toxicológica, alguns elementos primordiais devem ser informados para otimização do entendimento e auxílio laboratorial do caso, os quais estão relacionados a seguir: • Qualificação detalhada do indivíduo ou do cadáver do qual foram coletados fluidos e materiais biológicos para o exame. • Histórico policial e exame pericial inicial do médico legista completos para direcionamento das análises que visam esclarecer uma suspeita. • Identificação e descrição precisas dos fluidos e/ou materiais biológicos encaminhados para a realização da análise e qual(is) a(s) substância(s) química(s) a ser(em) pesquisada(s). • Informações concisas sobre data e hora do fato e da coleta do material. • Identificação do requisitante da análise. 24 Unidade I Todas as análises toxicológicas com propósito forense devem seguir e respeitar a cadeia de custódia, extremamente importante para a preservação das fontes de provas. Ela consiste em um conjunto de documentos (anotações, croquis, fotografias, solicitações, laudos, entre outros) referentes à amostra biológica, considerada peça criminal, com o intuito de rastrear todas as operações realizadas e quem as manipulou, desde sua coleta até sua estocagem ou descarte. Assim, a cadeia de custódia constitui um aspecto relevante não apenas na política de qualidade do laboratório, mas também certifica a amostra biológica (peça criminal) quando de sua apresentação e apreciação no julgamento, como vestígio físico, caso necessário. O médico legista é responsável por toda e qualquer coleta dos fluidos e materiaisbiológicos para as análises toxicológicas forenses, tanto de indivíduos vivos quanto mortos. Dessa forma, ele deve seguir protocolos preestabelecidos de coleta, armazenamento e transporte da matriz biológica. Já o perito toxicologista é responsável por selecionar as técnicas analíticas mais apropriadas para isolar, identificar e quantificar um toxicante específico e/ou seus produtos de biotransformação (metabólitos) em matrizes biológicas convencionais e não convencionais. Entre os toxicantes de interesse médico-legal, analisados nos diferentes fluidos e materiais biológicos, encontramos substâncias lícitas (de uso permitido) e ilícitas (de uso não permitido), porém todas elas são denominadas e conhecidas na área forense como drogas de abuso. A maioria dessas drogas exerce ação psicoativa ou psicotrópica, ou seja, atua no sistema nervoso central (SNC) do indivíduo, levando a alterações no comportamento, no humor, na consciência, nos pensamentos, nos sentimentos, além de poder levá-lo a óbito. 2.1.1 Drogas depressoras do SNC São substâncias que diminuem as atividades do SNC, resultando em sono, hipnose e analgesia. A maioria das substâncias de interesse médico-legal dessa classe é considerada lícita, porém, quando usada em excesso, pode causar intoxicação e até morte. As principais substâncias de interesse médico-legal dessa classe são listadas a seguir. Álcool etílico (etanol) Trata-se de uma substância que inicialmente irá proporcionar ao indivíduo um efeito euforizante (desinibição comportamental, aumento das expressões afetivas e diminuição da autocrítica), seguido de um efeito depressor (tristeza, angústia, choro etc.). A toxicocinética do etanol inicia-se com a sua ingestão. Em seguida, ocorre a absorção, que pode ser rápida ou lenta dependendo da tolerância do indivíduo, da velocidade de ingestão, do tipo de bebida alcoólica e, ainda, de o estômago estar vazio ou não. Quando o estômago está vazio, há uma rápida absorção do álcool, atingindo níveis de alcoolemia (álcool no sangue) até duas vezes maiores do que quando o estômago está com alimentos, em um mesmo intervalo de tempo. Por outro lado, a presença de alimentos no estômago favorece o prolongamento do tempo de permanência do etanol no conteúdo 25 BIOMEDICINA FORENSE estomacal, resultando em absorção mais lenta e, consequentemente, maior taxa de biotransformação pela enzima álcool desidrogenase, presente na mucosa do estômago. Aproximadamente cinco minutos após a ingestão de bebidas alcoólicas, 20% do etanol é absorvido no estômago e 80% no intestino, chegando rapidamente na corrente sanguínea e, consequentemente, atingindo picos de concentração entre 30 e 90 minutos. Uma vez na corrente sanguínea, o etanol é distribuído para todos os fluidos e tecidos do organismo (principalmente sangue, cérebro, rins, além de transpor a barreira hematoencefálica e a placenta). A biotransformação inicial do etanol ocorre no estômago e, a seguir, predominantemente no fígado. Quase todo o etanol ingerido sofre metabolização (de 95% a 98%), metabolização essa cuja velocidade fica em torno de 0,2 g de etanol/L de sangue por hora. Já sua excreção é mais rápida em comparação às demais drogas de abuso, devido a sua alta polaridade: ela acontece cerca de seis a nove horas após cessar sua utilização pelo organismo. Quanto à toxicodinâmica do etanol, inicialmente há um efeito estimulatório no indivíduo devido à inibição dos mecanismos inibitórios neuronais, levando a uma sensação de euforia (inibição da autocensura). Em seguida acontece a depressão do SNC, associada à alteração do comportamento, dos reflexos, dos mecanismos de regulação térmica e da concentração de glicose sanguínea (levando à hipoglicemia), o que pode resultar em coma e morte devido à concentração plasmática de etanol em ascensão (quantidade de etanol ingerido versus tempo). Há uma diferença considerável de resposta do organismo feminino e masculino em relação à metabolização do álcool ingerido. Por possuírem menor proporção de água, maior de gordura corporal e menor atividade da enzima álcool desidrogenase na mucosa do estômago, as mulheres são mais sensíveis do que os homens. Adicionalmente, a ação dos neurotransmissores esteroides propicia, nas mulheres, uma rápida dependência física perante o etanol, e o seu uso abusivo, em associação aos hormônios femininos, potencializa problemas como interrupção da menstruação, aumento da tensão pré-menstrual, menopausa precoce, problemas de fertilidade, danos ao fígado (cirrose), problemas cardiovasculares, hipertensão e úlceras gastrointestinais. Para detecção de etanol in vivo (no vivo) ou post mortem (após a morte), a toxicologia forense utiliza como matriz biológica de escolha o sangue, tendo como segunda opção em mortos o humor vítreo. A técnica analítica usada para determinar a presença e quantidade de tal substância é a cromatografia gasosa (CG), com detector de ionização de chamas (DIC) acoplada a headspace (HS) (figura a seguir). 26 Unidade I A B 300 250 100 200 50 150pA 0 9852 74 minutos et an ol 3 ,1 30 iso bu ta no l 4 ,4 89 1 630 Figura 4 – (A) Típico cromatógrafo em fase gasosa (CG) com detector de ionização por chama (DIC) e amostrador para headspace (HS). (B) Típico cromatograma obtido pela técnica em fase gasosa indicando a presença de etanol na amostra frente a um padrão de referência (isobutanol) Barbitúricos e benzodiazepínicos São medicamentos utilizados como ansiolíticos, sedativos, hipnóticos, anticonvulsivantes, indutores anestésicos, miorrelaxantes, sendo os principais: fenobarbital, pentobarbital, primidona, clonazepam (Rivotril), diazepam (Valium), flunitrazepam (Rophynol), bromazepam (Lexotan), midazolam (Dormonid), alprazolam (Frontal), entre outros. Tanto os barbitúricos quanto os benzodiazepínicos são absorvidos no trato gastrointestinal, sendo a velocidade de absorção dependente de fatores como: formulação farmacêutica (ambos os fármacos), lipossolubilidade e ingestão concomitante com alimentos (benzodiazepínicos). Cerca de 60% a 90% dos benzodiazepínicos se ligam a proteínas plasmáticas, o que favorece sua maior permanência no organismo. A metabolização das duas classes de medicamentos ocorre no fígado e sua excreção se dá por meio da urina, sob a forma de conjugados glicurônicos. Os barbitúricos agem no processo central de transmissão sináptica do Sistema Ativador Reticular Ascendente (SARA), desencadeando efeitos sedativos e hipnóticos por deprimir a ação de neurotransmissores excitatórios e aumentar a ação inibitória do ácido γ-aminobutírico (GABA). O efeito anticonvulsivante dessa classe de fármaco ocorre pela inibição da geração de potencial excitatório pós-sináptico e aumento do limiar de estimulação neuronal. Tais medicamentos são considerados depressores não seletivos do SNC e promovem, em doses terapêuticas, o relaxamento muscular, a indução do sono e a diminuição da tensão arterial e da frequência cardíaca. A intoxicação por barbitúricos acontece quando a dose administrada é de aproximadamente quinze a trinta vezes maior do que a dose terapêutica, causando fala enrolada, ataxia, cefaleia, nistagmo 27 BIOMEDICINA FORENSE (movimento involuntário dos olhos) e confusão mental semelhante a um estado de embriaguez alcoólica. Entretanto, quando em altas concentrações no organismo, os barbitúricos induzem graus variados de coma com perda total dos reflexos, hipotermia, depressão respiratória e da contração miocárdica (parada cardiorrespiratória). Já os benzodiazepínicos atuam de forma sinérgica ao GABA, aumentando a abertura dos canais de ânions cloreto localizados na medula espinhal, hipotálamo, hipocampo, substância negra, córtex cerebelar e cerebral, favorecendo a ação inibitória na transmissão neural (sinapse). Os principais efeitos desses compostos são sedação, letargia, comprometimento do discernimento e diminuição da capacidade motora. Em altas doses, podem provocar ataxia, fala enrolada,sonolência, coma e depressão cardiorrespiratória. Exemplo de aplicação Uma realidade atual é a utilização de benzodiazepínicos, especificamente o Ropyinol, por criminosos como drogas facilitadoras de abuso sexual e de roubo. Tal ato é conhecido no meio policial como “boa noite cinderela” e resulta em grande e crescente impacto social e emocional nas vítimas. Vamos pesquisar mais sobre o assunto? Para análise e detecção desses fármacos, utilizam-se testes de triagem qualitativos, como os ensaios colorimétricos vanilina sulfúrica e reagente de Liebermann, além da cromatografia em camada delgada (CCD). A cromatografia gasosa acoplada à espectrometria de massa (CG/EM) ou cromatografia líquida de alta eficiência com detector UV (CLAE/UV) ou acoplada à espectrometria de massa (CLAE/EM) são utilizadas como exames confirmatórios, por serem quantitativas. Vale destacar que, para a realização dos exames cromatográficos, se fazem necessários os procedimentos de extração e preparação da amostra. Opiáceos e opioides Os opiáceos são substâncias de origem natural, encontradas no suco leitoso do fruto da papoula do oriente (Papaver somnniferum) e extraídas a partir do ópio. Como opiáceos naturais, tem-se morfina, codeína e papaverina. Já os opioides são substâncias sintéticas, ou seja, produzidas em laboratório e que apresentam estruturas químicas semelhantes aos opiáceos. Entre as substâncias semissintéticas destaca-se a heroína, que é obtida a partir de uma pequena modificação química da morfina. Além da heroína, há a meperidina, a metadona, o propoxifeno, entre outros. Lembrete Ópio é a mistura de alcaloides extraídos da papoula (Papaver somnniferum). Tanto os opiáceos quanto os opioides deprimem o SNC por diminuir as atividades cerebrais, resultando em analgesia (diminuição da dor) e hipnose (aumento do sono); dessa forma, são denominadas 28 Unidade I substâncias narcóticas. Eles atuam também no centro respiratório, podendo causar severas depressões respiratórias, cardíacas, coma e morte. São substâncias associadas à dependência severa, além do estabelecimento de tolerância, ou seja, doses cada vez maiores são necessárias para obtenção dos mesmos efeitos desejados pelo usuário. Ainda, a ausência dessas substâncias no organismo dos usuários leva a uma severa síndrome de abstinência, caracterizada por náuseas, vômitos, diarreia, cólicas intestinais, intensas dores musculares e cãibras, também conhecida como “rebote”. Outra problemática associada, agora em relação ao uso da morfina e heroína na forma injetável, é o aumento do número de usuários que adquirem doenças infectocontagiosas (principalmente hepatite e AIDS) devido ao compartilhamento de seringas contendo sangue contaminado (ritual dos usuários). Para a detecção dos opiáceos e opioides em amostras biológicas podem-se utilizar como métodos de triagem os testes colorimétricos (reagente de Marquis) e CCD, e, para análise confirmatória, a CG/EM, descritos previamente. Solventes e/ou inalantes São compostos químicos capazes de dissolver outras substâncias semelhantes e voláteis por apresentarem um baixo ponto de ebulição e alta pressão de vapor, facilitando, assim, sua inalação por aspiração pela boca e nariz. Os solventes e inalantes são substâncias que pertencem ao grupo dos hidrocarbonetos derivados do petróleo (tolueno, xilol, n-hexano, acetato de etila, tricloroetileno etc.). Vários produtos comerciais como esmalte, cola, tinta, tíner, gasolina, verniz, removedor, entre outros, contêm esses solventes e são inalados de forma involuntária por pessoas que trabalham diretamente com eles, como trabalhadores da indústria de calçados, frentistas de posto de combustível e manicures. A inalação de forma voluntária geralmente é feita pelas crianças moradoras de rua, que usam cola de sapateiro, e por jovens em festas de carnaval, nesse caso, lança-perfume e “cheirinho de loló”. Observação Lança-perfume é um inalante que vem acondicionado em tubos diretamente da fábrica e cuja produção é à base de cloreto de etila; já o “cheirinho de loló” é um inalante de fabricação caseira à base de clorofórmio e éter. Os solventes e/ou inalantes atuam no cérebro (SNC) provocando estimulação inicial, seguida de depressão, e podem desencadear processos alucinatórios. Segundos após a aspiração iniciam-se os efeitos, os quais duram somente de 15 a 40 minutos, levando os usuários a repetirem o processo de aspiração várias vezes para que as sensações desejadas perdurem por mais tempo. 29 BIOMEDICINA FORENSE Os efeitos dos solventes e/ou inalantes se dividem em quatro fases: • Primeira fase: corresponde à fase excitatória/euforizante (desejada pelos usuários), na qual ocorrem perturbações auditivas e visuais, além de náuseas e salivação excessiva. • Segunda fase: começa a predominar a depressão do SNC, provocando confusão, desorientação, voz meio pastosa, visão embaçada, perda do autocontrole, dor de cabeça, palidez. • Terceira fase: compreende a depressão profunda, levando a descoordenação motora (marcha vacilante) e ocular (a pessoa não consegue fixar os olhos nos objetos), fala enrolada e reflexos deprimidos, dando-se também o início dos processos alucinatórios. • Quarta fase: há uma depressão tardia, que leva à inconsciência, queda da pressão, sonhos estranhos e surtos convulsivos. Normalmente acontece em usuários crônicos que utilizam saco plástico contendo o solvente e/ou inalante para repetidas e constantes aspirações. Sabe-se que o uso crônico de solventes e/ou inalantes destrói os neurônios, causando lesões irreversíveis e, consequentemente, prejuízo de memória, diminuição da destreza manual, alteração do tempo de estímulos, confusão mental, descoordenação motora e sensitiva, além de dor de cabeça, cansaço e fraqueza muscular. Outro efeito preocupante provocado pela aspiração dessas substâncias é a sensibilização do coração em relação à adrenalina, levando a uma taquicardia. A análise em matrizes biológicas para a detecção de solventes e/ou inalantes é feita pela utilização de CG/DIC/HS ou CG/EM. Porém, é muito difícil detectar esses compostos devido ao seu curto tempo de permanência no organismo humano. 2.1.2 Drogas estimulantes do SNC Para as ciências forenses, essa classe de drogas representa a mais significante devido à estrita relação de seus usuários com a violência e a criminalidade. Tais drogas estimulam o SNC e os efeitos por elas exercidos são dependentes do usuário (maior ou menor susceptibilidade), do ambiente (como dormitório, festas, entre outros), da dose (concentração) e da via de administração (ingerida, aspirada, injetada, entre outras). As principais drogas dessa classe são: Cocaína Trata-se de um alcaloide natural encontrado nas folhas do vegetal Erytroxylum coca, podendo ser apresentado em diferentes formas: cloridrato de cocaína (produto refinado), crack (base livre), variante do crack (oxi) e merla (subproduto da cocaína). O cloridrato de cocaína possui aspecto de pó branco e cristalino, não volatiliza nem se decompõe em altas temperaturas. Portanto, nessa forma a droga não pode ser fumada. As principais vias de administração são a intravenosa e a intranasal (cheirada), além da via oral, quando inserida em bebidas alcoólicas destiladas. A cocaína nessa forma é a que sofre mais adulterações pelos traficantes, pois eles 30 Unidade I adicionam açúcares (glicose, lactose, maltose), sais de baixo custo (bicarbonato de sódio, carbonato, ácido bórico), anestésicos locais (lidocaína, benzocaína, procaína, entre outros), além de outras substâncias estimulantes (como a cafeína) para obtenção de maior rendimento do produto final. Já o crack, o oxi e a merla apresentam baixo ponto de fusão e se volatilizam quando aquecidos, permitindo que seus vapores sejam inalados no ato de fumar. Essas formas da droga apresentam uma grande quantidade de impurezas, resultantes da primeira fase da obtenção da pasta base (refino), como querosene, gasolina, metais pesados,ácido sulfúrico etc. Exemplo de aplicação Foi demonstrado que a cocaína pode ser encontrada em diferentes formas, desde as mais refinadas, como o cloridrato de cocaína, até produtos contendo grande quantidade de impurezas, como oxi e merla. Vamos pesquisar mais sobre como são feitos os processos de produção e refinamento da cocaína? Quando a cocaína é administrada pela via intranasal, apresenta lenta velocidade de absorção pelas membranas das mucosas devido à baixa taxa de difusão nessa região, às propriedades vasoconstritoras da substância e à possibilidade de parte da dose ser deglutida. Assim, apenas de 20% a 30% da cocaína são absorvidos, tendo o pico plasmático entre 30 e 60 minutos após o uso e meia-vida biológica cerca de 60 minutos. O crack, o oxi e a merla, que representam as formas fumadas da cocaína, possuem velocidade de absorção rápida e muito alta devido à extensa área de exposição da superfície pulmonar e de sua vascularização. O efeito máximo é obtido em 5 minutos, perdurando por aproximadamente 30 minutos. A meia-vida da cocaína nessa forma é de 10 a 30 minutos. As características da administração da cocaína por via intravenosa são semelhantes às descritas pelas formas fumadas. Após absorção da cocaína pelo organismo, ela se liga às proteínas plasmáticas (α-1-glicoproteína ácida com alta afinidade e albumina com menor afinidade) e se distribui amplamente pelo corpo. Por ser lipossolúvel, a cocaína atravessa a barreira hematoencefálica e também a barreira placentária, levando os recém-nascidos a desenvolverem uma narcodependência, além de provocar outros efeitos perinatais como retardamento do desenvolvimento fetal, cardiomiopatias, distúrbios de comportamento, microcefalia e até a morte intrauterina. A eliminação dos metabólitos na urina é controlada pela biotransformação da droga, sendo os principais produtos: éster metilecgonina (35%-48%), resultante da hidrólise do grupo benzoato da cocaína pelas enzimas colinesterases do plasma e do fígado; benzoilecgonina (30%-45%), quando da hidrólise espontânea da cocaína ou devido à reação catalisada por carboxilesterases; e norcocaína (2%-6%), obtida da N-desmetilação pelas enzimas do sistema citocromo P450, sendo esse o único produto farmacologicamente ativo. 31 BIOMEDICINA FORENSE Outros dois produtos que podem ser encontrados na urina são o cocaetileno, resultante da transesterificação hepática da cocaína quando combinada com álcool, e o éster metilanidroecgonina ou metilecgonidina, formado pela pirólise da cocaína fumada (crack). Ainda na urina, pode-se verificar a presença da cocaína inalterada em uma concentração de 2% a 14%. Observação Pirólise é a transformação de uma mistura ou de um composto orgânico em outra substância através do aquecimento. A cocaína é uma droga psicoestimulante que atua, aparentemente, nos sítios dos neurotransmissores dopamina, norepinefrina e serotonina, levando o indivíduo a uma intensa euforia (êxtase), sensação de bem-estar, ilusão de onipotência, autoconfiança e autoestima, sensações essas conhecidas como rush ou flash. Mesmo com doses relativamente baixas de cocaína, o usuário pode apresentar progressivas mudanças nos sistemas cardiovascular e respiratório e alterações das respostas do SNC. Em caso de intoxicação por cocaína, o indivíduo sofre diversas modificações em seu estado mental e fisiológico, como sensação de confusão, paranoia, pânico, ansiedade, alucinações, taquicardia, fibrilação ventricular, arritmias, infarto do miocárdio, vasoconstrição, hipertensão, broncodilatação, hipertermia, midríase e até mesmo comportamentos violentos, suicidas e homicidas. Normalmente, o usuário crônico de cocaína na forma inspirada (intranasal) apresenta lesões e perfuração do septo nasal, configurando o chamado “nariz de pato”. Já o usuário de crack apresenta queimaduras nos lábios, na língua e no rosto devido à proximidade com a chama do cachimbo, e o usuário da droga na forma intravenosa apresenta marcas de picadas por todo o corpo. A dependência causada pela cocaína é decorrente dos diferentes efeitos por ela exercidos e pelo tempo de uso; já a leve tolerância se deve ao fato de os usuários manterem quase que a dosagem inicial por longos períodos, obtendo efeitos euforizantes de mesma intensidade. Em relação à abstinência de cocaína, os principais sintomas associados são: depressão, fadiga, irritabilidade, perda do desejo sexual, distúrbios da fome e do sono. A urina é a matriz biológica de escolha para a detecção da cocaína inalterada, bem como de seus metabólitos. A análise é feita inicialmente por CCD ou imunoensaio (triagem) e, posteriormente, por CG/EM, CLAE/UV ou CLAE/MS, que são técnicas mais sensíveis, específicas e confirmatórias. Lembrando que, antes da realização das análises instrumentais (cromatográficas), é necessário preparar e condicionar a amostra. Anfetaminas São classificadas como drogas sintéticas (produzidas em laboratórios) e, a princípio, utilizadas para fins terapêuticos no tratamento da obesidade (anorexígenos como femproporex, mazindol e clorfentermina), narcolepsia, hipotensão, distúrbios de hiperatividade infantil (metilfenidato) e como 32 Unidade I descongestionante nasal (nafazolina, efedrina e fenilefrina). Ainda, as anfetaminas podem ter sua estrutura química modificada e se apresentarem como alucinógenos, caso da metanfetamina (rebite, bolinha, ice, speed ou cristal); metilenodioximetanfetamina (MDMA ou ecstasy); parametoxianfetamina (PMA); parametoximetilanfetamina (PMMA); 2,5-dimetoxi-4-bromoanfetamina (DOB, cápsula do vento); 2-CB – 4-bromo-2,5-dimetoxianfetamina (nexus); 4-MTA – 4-metiltioanfetamina (flatiner); DOM – 2,5-dimetoxi-4-metilanfetamina (STP). Esse último, sintetizado em forma de comprimidos de 10 mg, apresenta poder alucinógeno 100 e 30 vezes mais potente do que a mescalina e o LSD (dietilamidado ácido lisérgico), respectivamente. Observação Mescalina é o alcaloide extraído de um cacto (Lophophora williamsii) e que induz alucinações visuais. As anfetaminas alucinógenas podem ser apresentadas em forma de pó de diversas cores devido a impurezas, adulterantes e resíduos de solventes, na forma de cápsulas gelatinosas ou tabletes e papel impregnado com a substância. A administração pode ser feita por vias oral e intravenosa ou por inalação. Entre elas, a MDMA (ecstasy) merece destaque devido a sua ampla utilização. Na década de 1970, a MDMA era utilizada para fins psicoterapêuticos e, a partir de 1980, passou a ser usada de forma recreacional em festas de músicas eletrônicas (raves). O ecstasy é encontrado em comprimidos de 50-150 mg, de diferentes cores e, normalmente, em uma de suas faces há impressos ícones populares, figuras de desenhos animados, borboletas, entre outros; ainda, pode ser apresentado em forma de cápsulas ou em pó. Ao longo dos anos, as anfetaminas passaram a ser utilizadas por atletas, objetivando melhora no desempenho físico, e por estudantes, motoristas, trabalhadores noturnos, profissionais da saúde, entre outros, a fim de se manterem acordados e alertas por maiores períodos de tempo ou para aumentar a capacidade de concentração e raciocínio. Quando as anfetaminas são consumidas na forma de comprimidos ocorre rápida absorção oral, a manifestação de seus efeitos é iniciada em 30 minutos e perdura por algumas horas (4-6 horas). Possuem ampla distribuição pelo organismo, embora em maiores concentrações no cérebro devido aos transportes especiais de penetração na barreira hematoencefálica. A biotransformação das anfetaminas acontece no fígado, sendo 70% excretadas na urina em sua forma inativa (metabólitos) e 30% inalterada. Por ser dependente do pH urinário, sua eliminação ocorre melhor e mais rapidamente em urina ácida. As anfetaminas agem como aminas simpatomiméticas em nível de receptores α e β adrenérgicos e também como inibidoras da enzima monoaminoxidase (MAO), responsável pela oxidação dos neurotransmissores noradrenalina, dopamina
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