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46 Unidade II Unidade II 5 OS ESTADOS MODERNOS E AS FORMAS DE GOVERNO NO MUNDO MODERNO E CONTEMPORÂNEO O Estado liberal era muito bom, com uma teoria ótima; porém, na prática, não foi bom para a população. Sua decadência deu-se, a grosso modo, porque o Estado liberal não era titulado a cuidar da sociedade, nem era equitativo (redistribuição de renda – tirar de quem tem mais, com tributos legais, e aplicar em setores carente, onde há necessidade fundamental). O Estado liberal revelou-se absolutista, voltou ao status quo ante (estado anterior à questão tratada); ficou insuficiente, não mais bem administrava. Posto isso, o Papa Leão XXIII publicou uma encíclica, a Rerum Novarum, e no século XIX temos o Estado Liberal-Social. Sobre o tema “O liberalismo e sua decadência”, bem como sobre a encíclica Rerum Novarum, analisaremos o Estado liberal, seus erros e sua decadência, finalizando com a leitura da carta papal. Será feito aqui um breve estudo para compreender a história, particularmente levando em conta a solução apontada por Leão XII e como, em vista das medidas tomadas, o Estado liberal se salvou da destruição total. O assunto é fundamental para que possamos ter um conhecimento aprofundado a fim de nos ajudar no estudo do curso de Direito, na disciplina de Organização do Estado. Historicamente, o liberalismo aparece ligado à ascensão da burguesia, quando esta, tendo crescido economicamente, quis também conquistar o poder político, o que efetivamente o conseguiu. O marco da sua concretização histórica está ligada diretamente a Revolução Francesa, baseada nos preceitos Iluministas, quais sejam: igualdade, liberdade e fraternidade. Porém, em menos de meio século, tudo o que o liberalismo havia prometido ao povo redundou em conquistas e privilégios apenas das classes economicamente dominantes. Com toda essa injustiça social, o povo sem lar, sem comida e sem fé, começou a reagir violentamente, levando o Estado liberal ao dilema de reformar-se ou perecer. Ocorreu então uma cadeia de fatos que influenciaram na decadência do liberalismo primitivo, este é ligado à ausência do Estado atuando nas relações econômicas e de trabalho. 5.1 Conceito O liberalismo é uma corrente política que abrange diversas ideologias históricas e presentes, que proclama como o único objetivo do governo a preservação da liberdade individual. Tipicamente, o liberalismo favorece também o direito à discordância dos credos ortodoxos e das autoridades estabelecidas em termos políticos ou religiosos. Neste aspecto é o oposto do conservadorismo, e vai contra o absolutismo. 47 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO É um modo de entender a natureza humana e uma proposta destinada a possibilitar que todos alcancem o mais alto nível de prosperidade de acordo com seu potencial (em razão de seus valores, atividades e conhecimentos), com o maior grau de liberdade possível, em uma sociedade que reduza ao mínimo os inevitáveis conflitos sociais. Ao mesmo tempo, se apoia em dois aspectos vitais que dão forma a seu perfil: a tolerância e a confiança na força da razão. Este sistema parte do princípio de que o homem nasce livre, tem a propriedade dos bens que extrai da natureza ou adquire por via de seu mérito ou diligência e, quando plenamente maduro e consciente, pode fazer sua liberdade prevalecer sobre as reações primárias do próprio instinto e orientar sua vontade para a virtude. Uma pessoa madura e livre está à altura de perseguir sua felicidade a seu modo, porém respeitada uma escala de valores discutida e aprovada por todos, ou seja, ela deve reconhecer sua responsabilidade em relação ao seu próprio destino e ao objetivo da felicidade coletiva em sua comunidade ou nação. Será contraditório que alguém ou algum grupo tenha naturalmente poderes para cercear essa liberdade sem que parta do próprio indivíduo uma concordância para tal. Uma excelente definição é a de Fernando Pessoa, que definiu o liberalismo como: a doutrina que mantém que o indivíduo tem o direito de pensar o que quiser, de exprimir o que pensa como quiser, e de pôr em prática o que pensa como quiser, desde que essa expressão ou essa prática não infrinja diretamente a igual liberdade de qualquer outro indivíduo. 5.2 Liberalismo e o Estado Assim como os liberais têm suas próprias ideias sobre a economia, também possuem sua visão particular do Estado: os liberais são, inequivocamente, democratas, acreditando no governo eleito pela maioria dentro de parâmetros jurídicos que respeitem os direitos inalienáveis das minorias. Tal democracia, para que faça jus ao nome, deve ser multipartidária e organizar-se de acordo com o princípio da divisão de poderes. O Estado liberal espera que as coisas se modifiquem sem uma intervenção individual, ou de grupo, e ao mesmo tempo se ajustem de tal forma que as coisas se relacionem de forma natural, sem que o Estado tenha a sua intromissão direta no processo de produção, como também no consumo, visto que as liberdades individuais devem ser respeitadas para que tudo se acomode de forma comum e simples. Embora esta não seja uma condição indispensável, os liberais preferem o sistema parlamentar de governo porque este reflete melhor a diversidade da sociedade e é mais flexível no que se refere à possibilidade de mudanças de governo quando a opinião pública assim o exigir. Neste sistema, a autoridade do Homem, isto é, o poder pessoal é substituído pela autoridade da Lei, constituindo um dos aspectos essenciais do Estado Liberal: o princípio da legalidade. 5.3 Consequências do liberalismo O liberalismo tem três enfoques: político, ético e econômico. O político constitui-se contra o absolutismo e busca nas teorias contratualistas, a legitimação do poder, que não deve ficar sob o direito 48 Unidade II dos reis, mas no consentimento dos cidadãos. O ético, com a garantia dos direitos individuais: liberdade de pensamento e expressão, religião e estado de direito e que rejeita todo tipo de arbitrariedades. O econômico se opõe a intervenção do poder nos negócios, exercida com procedimentos típicos da economia mercantilista, como a concessão de monopólios e privilégios. Essas ideias foram desenvolvidas, na defesa da propriedade privada dos meios de produção baseada na livre iniciativa e competição. “Temos por testemunho as seguintes verdades: todos os homens são iguais. Foram aquinhoados pelo Criador com direitos inalienáveis e entre eles o da vida, da liberdade e da busca da felicidade” (Trecho da Declaração da Independência dos Estados Unidos, de 1776, que foi baseada em fundamentos iluministas.) Porém, essa liberdade do homem, defendida pelos liberalistas, não pode ser ilimitada, pois isso significa a anarquia. A lei é o meio de conciliar a autonomia individual com a disciplina exigida pela sociedade. Portanto, o Estado Liberal é o Estado limitado pela lei. Daí a expressão pela qual também é conhecido: Estado de Direito. O liberalismo e, por conseguinte, o Estado Liberal, é o coroamento de toda luta do indivíduo contra a tirania. Ele tem dois fundamentos básicos. O primeiro é a história política da Inglaterra, principalmente, quando ocorre a eliminação do absolutismo através Revolução Gloriosa em 1668, onde Guilherme III é proclamado rei, após aceitar a Declaração de Direitos que limitava sua autoridade dando mais poderes ao parlamento e exigia do rei a convocação regular do parlamento, sem o qual ele não pode fazer leis ou revogá-las, cobrar impostos ou manter o exército. Outro fundamento é o iluminismo francês do século XVIII, que defendia os princípios “igualdade, liberdade e fraternidade”, servindo como filosofia para muitas revoluções e movimentos por todo o mundo, como vimos, por exemplo, no parágrafo antecedente, a Declaração de Independência dos Estados Unidos. 5.4 Consequências reais do liberalismo O liberalismo que se apresenta perfeito em suas ideias e em sua teoria se tornou irrealizável. Tendo em vista a solução dos problemas reais e sociais da sociedade, é inadequado.O Estado liberal perdeu de vista a realidade da sociedade. A estratégia excessivamente liberal, delegava ao mercado a capacidade de se “autogerir” sem qualquer intromissão por partes dos governantes, de acordo com as teses defendidas por Adam Smith e David Ricardo, criadores dessa doutrina econômica. Um Estado limitado pela lei, no qual o governo não poderia intervir nas negociações. Dentro dos instrumentos desse Estado de Direito está a constituição e a divisão dos poderes. O homem é livre, porém este é submetido à lei. A lei seria a expressão da vontade de cada cidadão. Mas não é o que ocorria na prática, na sociedade liberal daquela época. Os governantes de então ignoraram a revolução industrial, sendo esta considerada uma das mais importantes revoluções da história política. Foi na Revolução industrial que surgiram os operários de 49 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO fabricas, em sua maioria pessoas que vinham de uma vida camponesa para trabalhar na cidade. Com o surgimento das fabricas, surgia então uma nova classe social: o proletariado. Sem qualquer forma de proteção, essa classe viva à mercê dos grandes capitalistas. E não raras vezes viam seus sonhos desabarem por falta de empregabilidade, principalmente com o surgimento das máquinas. A cada máquina nova que uma fábrica adquiria, milhares de pessoas eram postas na rua, em nome da produtividade e do lucro. Para produzir mais as fábricas necessitavam de contratar uma grande quantidade de mão de obra e encontravam o contingente que precisavam nas cidades, que passaram a receber um número cada vez maior de camponeses que vinham do campo para a cidade em busca de um sustento para si e para seus familiares. Para que houvesse aumento de lucros era necessário que a fábrica tivesse um padrão organizacional, para que o trabalho dos operários rendesse o máximo possível. Funcionários eram designados nas fábricas com o objetivo de vigiar o restante, infligindo penas e castigos àqueles que se portassem de maneira considerada fora dos padrões de trabalho na fábrica. Até os corpos dos funcionários eram vigiados, cada movimento era controlado1. O trabalho humano passou então a ser menosprezado e negociado, submetido assim à lei da oferta e da procura. Trabalhadores operários sendo possuíam salários mínimos e altíssimas jornadas, mulheres eram obrigadas a deixar seus lares para tentar suprir o que o salário do marido não cobria, crianças não frequentavam escolas e também eram atiradas ao trabalho indevido, muitas vezes prejudicial ao seu corpo ainda não formado. As más condições de trabalho prejudicavam a saúde dos trabalhadores e somada ao cansaço dos mesmos só poderia resultar em queda de rendimento. A solução encontrada pelos capitalistas era de contratar ainda mais funcionários, tornando o ambiente de trabalho insuportavelmente cheio e sufocante. Eu tive frequentes oportunidades de ver pessoas saindo das fábricas e ocasionalmente às atendi como pacientes. No último verão eu visitei três fábricas de algodão com o Dr. Clough, da cidade de Preston, e com o sr. Barker, de Manchester e nós não pudemos ficar mais do que dez minutos na fábrica sem arfar para respirar. Como é possível para aquelas pessoas que ficam lá por doze ou quinze horas aguentar essa situação? Se levarmos em conta a alta temperatura e também a contaminação do ar; é alguma 1 Cf. PINA, A.; SOARES, B.; RODRIGUES, M. Os miseráveis do século XIX: cotidiano e condições de trabalho da classe operária na Revolução Industrial. Hi7. [s.d.]. Disponível em: http://historia-do-brasil-e-do-mundo.hi7.co/os-miseraveis-do-seculo-xix--cotidiano- e-condicoes-de-trabalho-da-classe-operaria-na-revolucao-industrial-56c655d431085.html. Acesso em: 2 mar. 2021. 50 Unidade II coisa que me surpreende: como os trabalhadores aguentam o confinamento por tanto tempo (Depoimento de Dr. Ward, de Manchester, entrevistado a respeito da saúde dos trabalhadores do setor têxtil em março de 1919). No que diz respeito às crianças, sabemos que eram colocadas para trabalhar em minas menores onde os adultos não conseguiam entrar. Nas fábricas ocupavam funções nas quais delicadeza era necessária. Suas pequenas mãos eram usadas para alcançar recantos de máquinas onde outros não conseguiriam atingir2. Com isso, o liberalismo trouxe consigo a desintegração familiar e também o descontentamento da população prejudicada. Por outro lado a riqueza se concentrava nas mãos dos poucos dirigentes do poder econômico. A vontade que ganhar cada vez mais criou o conflito entre as distintas classes sociais dos patrões e dos assalariados, vindo a causar um total desequilíbrio social. 5.5 A decadência do liberalismo O principal fator da queda do liberalismo se deu por causa das falhas que suas consequências geraram por causa da baixa presença do Estado na economia. No liberalismo, o Estado não podia sequer interferir na relação entre patrão e empregado, isso produziu um dos mais importantes fatores para sua queda: a extrema desigualdade social e o abuso de poder. O capital surgia como uma nova forma de propriedade, e o trabalho passou a ser considerado como mera mercadoria, sujeito à lei da oferta e da procura, cujo preço era ajustado sem se levar em conta o mínimo necessário para o sustento do trabalhador e de sua família. Caso fosse obtido um emprego, as regras seriam a da efetividade e da produção, visando ao lucro, sem levar em conta a capacidade e os limites humanos da mão de obra. E caso a pessoa não conseguisse “vender” essa “mercadoria”, não teria nenhuma forma de auxilio, tendo inclusive que enfrentar a ameaça da fome e da penúria. A base da mentalidade dos burgueses de tal época era a exploração máxima da classe trabalhadora, o proletariado, de maneira que pudessem garantir o lucro e manter a massa operária dependente. Os trabalhadores, submetidos a esta nova ordem, muito sofreram em busca de melhorias de vida que nunca chegavam, devido ao salário extremamente baixo. Acabavam, assim, realizando seus serviços pela própria subsistência, sob péssimas condições de trabalho, em jornadas extremamente longas (chegando até 16 horas diárias) trabalhando até o limite das forças e, não raro, tidos por negligentes e insubordinados pelos seus empregadores, ainda que tal se desse pela exaustão física. Ademais, tiveram que aprender a trabalhar de maneira regular e ininterrupta, de forma que o trabalho rendesse. Dessa forma, a miséria e a fome não tardaram a aparecer, assim como doenças como a cólera e o tifo nas humildes regiões habitacionais, devido às péssimas condições de higiene, escassez do fornecimento de água e pelo fato de não terem como se protegerem do frio. Tal quadro levou à morte inúmeros trabalhadores pobres. 2 Idem. 51 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO Apesar de todos esses fatores, a classe dominante mantinha-se insensível, ignorando fatos que pareciam não atingi-los e tratando seus trabalhadores como se não fossem ser humanos. A natureza verdadeiramente catastrófica da Revolução Industrial, que se concretizava na exploração econômica e na opressão política, tem grande peso no processo de formação da classe operária. Essas formas de ataque ao trabalhador (exploração econômica e opressão política) estavam intimamente ligadas. O caráter da exploração se dá a partir das novas formas de relação de trabalho, que se tornam mais duras e impessoais. A opressão política por sua vez, se dava no momento que o operário tentava de alguma forma resistir às formas de exploração apresentadas anteriormente. Os principais agentes dessa eram os próprios patrões e o Estado3. O fim de tanta desigualdade acabou em revolta e rebeliões. Fizeram-se greves, formaram-se sindicatos em busca de melhores condições de emprego juntamente com a melhoria da vida. Quando tomam consciência do seu papel na sociedade, reconhecessem-se como agentes sociais e transformadores, ou seja, não seria mais ou “pobre” enfrentando o “rico”, e sim a classe operária explorada e consciente enfrentandoo seu explorador. Com base nos resultados, sem dúvida, os conceitos liberais de igualdade eram anti-humanos. Em menos tempo do que se esperava, tudo o que o liberalismo pregava e defendia, sucumbiu e apenas a classe economicamente superior conquistou e obteve privilégios. A sociedade ficou dividida em duas classes, separadas por um abismo. Isso ocasionou o surgimento de ideologias radicais visando à solução, mas por meios conflituosos, o que por sinal era extremamente perigoso justamente porque não existiam regras nem diretrizes que conduzissem a bom termo qualquer querela. E por mais que a crise ameaçasse a ordem por toda a parte, o Estado liberal assistia a tudo de braços cruzados, inerte, apenas se limitando a solucionar tumultos por meio da polícia, caracterizando assim o dito “L’Etat Gendarme”, ou Estado-polícia. Nos dizeres de Sahid Maluf, “eram anti-humanos os conceitos liberais de igualdade e liberdade. Era como se o Estado reunisse num vasto anfiteatro lobos e cordeiros, declarando-os livres e iguais perante a lei, e propondo-se a dirigir a luta como árbitro, completamente neutro”. 5.6 Considerações sobre o liberalismo Não se pode negar e ignorar a importância da teoria liberal no estudo da Teoria Geral do Estado. Ela foi revolucionária, pois era a realização plena do direito natural, do humanismo e do igualitarismo político e jurídico, fatos antes praticamente inexercidos nas diversas nações. 3 Ibidem. 52 Unidade II No entanto, tal teoria não atendia devidamente a realidade. Era como se o Estado liberal fosse realizável em uma coletividade de deuses, nunca numa coletividade de homens. Isso porque a principal ideia pregada pelo liberalismo era a da igualdade entre os homens. Mas, por natureza, os indivíduos são desiguais. Como no caso de animais em uma floresta. Nele é natural a existência de seres mais fortes que dominam os mais fracos, ficando os primeiros no topo da cadeia alimentar. No caso humano, a força é medida pela riqueza e status social. Há aqueles mais poderosos que detêm a economia de seus países, e também aqueles que dominam politicamente, ficando no topo da pirâmide social. É em função disso que os Estados devem tratar seus súditos com desigualdade, em função do justo objetivo de igualá-los no plano jurídico. Além disso, não basta ele somente proclamar o direito de liberdade, como também deve proporcionar aos cidadãos a possibilidade de serem livres. A Constituição Federal de 1988 preceitua várias normas em favor da igualdade jurídica e da solidariedade. Dentre os princípios fundamentais, estabelece a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Dentre os objetivos fundamentais, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a promoção do bem de todos, sem distinção. E no caput do artigo 5º, estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Sem dúvida, nossa Lei Maior é um fruto indireto das questões morais que convulsionaram o século XIX. Assim, nosso estudo se finaliza em duas grandes conclusões, quais sejam: da gratidão que se deve dar à memória de Leão XIII devido à sua atitude com a “Rerum Novarum”, e da necessidade de um estado que interfere, em favor da justiça, nas relações social-econômicas de sua população. A primeira conclusão se fundamenta no fato de tal Encíclica ter apontado, “com segurança e descortínio, os rumos pelos quais se salvaria a nau do Estado democrático prestes a naufragar em mar tempestuoso”. Foi sem dúvida utilizada como fundamento na elaboração de constituições e legislações, e hoje ainda possui uma forte importância, em decorrência de ter feito surgir a forma social-democrática de governo. Nos lugares onde os preceitos dessa carta foram menosprezados, viu-se surgir mais tarde aquilo que conhecemos como “Estados totalitários”, que foram frutos de uma reação antiliberal, porém com traços desumanos e radicais. Nesses casos, o remédio foi pior do que a doença. Os principais exemplos dentre estes são a Alemanha nazista e a Rússia comunista. A segunda conclusão, por sua vez, se fundamenta no fracasso da teoria do liberalismo quando posta em prática. Isso porque um Estado que vise realmente ao Bem comum, não pode somente policiar a ordem pública, assistido a tudo com braços cruzados. Deve-se ter em mente que esse tipo de Estado procura harmonizar as verdades parciais e inegáveis que existem tanto o individualismo como no socialismo. A dignidade do ser humano concretiza-se na promoção da justiça, e esta nunca poderá se realizar se aquele necessitado for visto como um peso a ser carregado. Só esta consciência dará a coragem para enfrentar o risco e a mudança implícita em toda a tentativa de ir em socorro do outro homem. De fato, não se trata apenas de “dar o supérfluo”, mas de ajudar 53 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO povos inteiros, que dele estão excluídos ou marginalizados, a entrarem no círculo do desenvolvimento econômico e humano. Isto será possível não só fazendo uso do supérfluo, que o nosso mundo produz em abundância, mas sobretudo alterando os estilos de vida, os modelos de produção e de consumo, as estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades. Não se trata de destruir instrumentos de organização social que deram boa prova de si, mas principalmente de orientá-los segundo uma concepção adequada do bem comum dirigido a toda a família humana. Hoje está-se a verificar a denominada “mundialização da economia”, fenômeno este que não deve ser desprezado, porque pode criar ocasiões extraordinárias de maior bem-estar. Mas é sentida uma necessidade cada vez maior de que a esta crescente internacionalização da economia correspondam válidos organismos internacionais de controle e orientação que encaminhem a economia para o bem comum, já que nenhum Estado por si só, ainda que fosse o mais poderoso da terra, seria capaz de o fazer. Quadro 2 – O liberalismo e seus críticos: fases do liberalismo I – Protoliberalismo (1690-1780) II – Liberalismo clássico (ético) (1780-1860) T. Hobbes (1588-1679) J. Locke (1632-1704) B. Spinoza (1632-1677) J.-J. Rousseau (1712-1778) I. Kant (1721-1804) A. Humboldt (1767-1835) Montesquieu (1689-1755) B. Constant (1767-1830) A. Tocqueville (1805-1859) Condorcet (1743-1794) D. Hume (1711-1776) A. Smith (1723-1790) S. Mill (1806-1873) J. Bentham (1748-1873) III – Liberalismo conservador (social) (1860-1945) IV – Neoliberalismo (1945-) E. Burke (1729-1787) T. Green (1836-1882) H. Spencer (1820-1903) L. Hobhouse (1864-1929) E. Durkheim (1858-1914) M. Weber (1864-1920) J. M. Keynes (1883-1946) J. Dewey (1859-1952) H. Kelsen (1881-1973) F. Hayek (1899-1992) Von Mises (1881-1973) K. Popper (1902-1994) M. Friedmann (1912-) I. Berlin (1909-) R. Aron (1905-1984) J. Rawls (1921-2002) N. Bobbio (1909-) R. Nozick (1938-) Liberalismo clássico (1780/1860) – principais teses • Liberdade individual – individualismo. • Igualitarismo (de direitos). • Contratualismo. 54 Unidade II • Utilitarismo. • Não intervenção do Estado. • Limitação do poder (legalismo/constitucionalismo). • Livre-mercado (ordem espontânea). • Contratos livremente elaborados. • Pluralismo nas concepções do bem. • Neutralidade do Estado. • Representação política. Liberalismo conservador (social) – 1860/1945 • Propõe uma sociedade cooperativa de indivíduos mutuamente desenvolvendo-se: dá lugar a grupos com interesses conflitantes. • A busca sem limites do lucro permite a existência de monopólios que destroem a competitividade e a liberdade de mercado. • Reconhecem a necessidade de um Estado ético. • Pluralismo. Neoliberalismo (1954 -) Sob a sua forma contemporânea, o liberalismo inclinou-se para a defesa da atividade econômica dos agentes sociais segundo a ótica da liberdade econômica e da eficácia das soluções de mercado. Sem menosprezar as teses políticas, mas relegando-as à interpretação do utilitarismo e do pragmatismo, o liberalismo econômico acabou dando prioridade à atividade econômica como instrumento derealização e consolidação dos ideais políticos de uma sociedade liberal regulada pela liberdade do mercado. Liberalismo econômico • Defesa da propriedade privada. • Não intervenção do Estado. • Defesa da livre-iniciativa/empresa/concorrência. 55 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO • Crença no mercado (espontaneísmo). • Lucro como motor da economia. Liberalismo político • Liberdade individual. • Valorização do progresso. • Antropocentrismo universalista. • Multiculturalismo. • Constitucionalismo/legalismo. • Pluripartidarismo. • Valorização da sociedade civil. • Valorização do contrato. • Distinção público/privado. O liberalismo político de J. Rawls De acordo com Rawls, o liberalismo político caracteriza uma concepção política da justiça por três aspectos: • Aplica-se, em primeira instância, à estrutura básica da sociedade. Esta estrutura consiste nas principais instituições políticas, econômicas e sociais, e como elas se organizam entre si para constituir um sistema unificado de cooperação social. • Ele pode ser formulado independentemente de qualquer doutrina compreensiva de caráter filosófico, religioso ou moral. • Suas ideias fundamentais – tais como a de uma sociedade política entendida como um sistema equitativo de cooperação social, ou a ideia de entender os cidadãos como racionais e razoáveis, livres e iguais – pertencem à categoria do político e são familiares à cultura política de uma sociedade democrática e às suas tradições de interpretação da constituição e das leis básicas, bem como a seus documentos históricos capitais e a seus mais conhecidos escritos políticos. 56 Unidade II Principais elementos do liberalismo político • A limitação do Estado e sua subordinação aos interesses dos indivíduos da sociedade civil. — Legitimidade e a extensão do poder da sociedade política, vinculando a sua finalidade à questão do alcance da ação livre dos homens diante desse poder. — O fundamental para o liberalismo não é tanto a análise da natureza do poder e da política, mas o seu alcance. — O que é essencial é a vida privada dos indivíduos que necessitam organizar uma sociedade adequada aos seus fins. — o abandono do ideal de comunidade política de indivíduos que compartilham fins últimos. — Depreciação o valor político e cívico do homem em favor em favor da existência social e econômica (como proprietário, produtor e consumidor de mercadorias) que se desenvolve na esfera da sociedade civil burguesa. • O contratualismo e a representação política. — A ideia básica do contratualismo é a de que os princípios que devem regular a vida política são legítimos apenas quando eles podem racionalmente ser validados e consentidos por todos os indivíduos que a eles se vinculam. — Uma teoria do contrato social encara o pacto original como o estabelecimento de um sistema de leis públicas comuns que define e regula a autoridade política e se aplica a todos os cidadãos. — A ideia de que o interesse privado deve buscar a sua proteção na esfera pública reduz a dimensão política à noção de representação dos cidadãos, os quais, em troca da estabilidade do poder e da paz, delegam ao Estado as ações políticas. • A concepção (negativa) da liberdade individual como direito subjetivo. — Os indivíduos serão livres se forem deixadas para si a escolha das suas decisões, definidas e decididas num campo não arbitrário de interferência. — A liberdade passa a ser chamada de negativa: a ausência de ações que podem criar impedimentos arbitrários e indevidos à livre atividade dos sujeitos. — A relação entre a lei e a liberdade é externa, pois a primeira não promove a última. Ela é apenas um instrumento de proteção da liberdade como direito fundamental. 57 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO • Individualismo, pluralismo e neutralidade do poder político. — A constituição de mecanismos (políticos, institucionais) de defesa e proteção do indivíduo contra o Estado e, também, contra as massas ou grupos, ou mesmo outros indivíduos. — Em razão do fato do pluralismo ético, cultural e religioso, as leis tornam-se neutras, e o Estado surge como instância imparcial para arbitrar conflitos que resultam de interesses e de direitos divergentes, mediante uma concepção pública da justiça. — Uma sociedade concebida de forma pluralista ampara a diversidade de concepções sobre a ideia de melhor vida e diferentes estilos de comportamento. — Essa sociedade pode cumprir as exigências de um sistema político aberto e democrático, no qual vários modos de vida competem. • A cidadania como intitulação de direitos. — O cidadão é designado pelo seu status de pertencimento ao Estado como indivíduo portador de direitos, anteriores à esfera política. — A cidadania é um meio pelo qual o indivíduo faz valer esses bens jurídicos e a sua condição de titular dos mesmos, sobretudo, frente ao Estado. — Regramento adequado da ação segundo a regras jurídicas. — O indivíduo passa a usufruir direitos na sua condição de homem visando à garantia da sua pessoa com privilégios e imunidades como forma de compensação pela renúncia ao político, o qual passa a ser instrumento para a proteção dos direitos naturais ou morais. Críticas ao liberalismo Hegel chamou atenção para a confusão, presente nas teorias contratualistas do seu tempo, entre a sociedade civil-burguesa - regida pelos princípios do contrato do direito privado, subordinada à lógica da associação contingente de pessoas voltadas para os interesses particulares -, e o Estado governado pelo princípio da universalidade e da necessidade do direito público que transcende os interesses privados e independe da vontade associativa e contratual dos indivíduos. A autoridade pública deve intervir na sociedade civil-burguesa para assegurar os direitos da pessoa (universalmente estatuídos como pressupostos emanados da ideia de liberdade) e o bem-estar daqueles que são prejudicados pelo funcionamento “liberal” do sistema econômico desta sociedade. A sociedade liberal burguesa contém o núcleo mistificador da opressão econômica, razão pela qual a crítica da economia política revela-se, também, como uma crítica da política. 58 Unidade II A crítica comunitarista À doutrina política do individualismo ou do atomismo liberal, Taylor opõe a tese do concernimento social que remonta a Aristóteles e a Hegel. O liberalismo político desconsidera a presença subjacente de valores comunitários historicamente construídos e de necessários pressupostos culturais. Para o comunitarismo, as capacidades propriamente humanas são desenvolvidas apenas em sociedade, condição necessária para o desenvolvimento da racionalidade, ou uma condição necessária para tornar-se um agente moral no sentido pleno do termo, ou para tornar-se um ser autônomo e plenamente responsável. 5.7 A reação antiliberal 5.7.1 O socialismo e a Revolução Russa A primeira reação antiliberal organizada foi o socialismo. Sua doutrinação começou no campo literário, no século XVIII, intensificando-se logo depois da implantação do Estado liberal, a par com a crítica da revolução francesa, até atingir o seu clímax com o Manifesto comunista de Marx e Engels, em 1848. Até então, as ideias socialistas ou comunistas (ambas tinham o mesmo sentido) permaneciam no plano literário. Era o socialismo utópico, como agora se denomina. No terreno político, confundiam-se socialistas e anarquistas, por esposarem a mesma ideia da extinção do Estado, tanto que os principais líderes socialistas que doutrinaram em Paris nos meados do século XIX foram Louis Blanc, Joseph Proudhon, Miguel Bakunin, Natal Babeuf e outros qualificados por alguns autores como expoentes do anarquismo. Desse mesmo grupo heterogêneo, aliás, saíram Marx e Engels. A partir da segunda metade do século XIX as correntes socialistas se cristalizaram no marxismo, que dá início ao chamado socialismo científico. A obra de Marx, intitulada O Capital, condensa a doutrina marxista, enquanto o Manifesto comunista, assinado por Marx eEngels, foi o grito de guerra que ecoou pelo mundo inteiro, inspirando o socialismo revolucionário, e com este o socialismo de Estado. As ideias marxistas proliferaram como sementeira lançada em terreno fértil. O Estado liberal, eivado de erros doutrinários, superado pelas realidades sociais, se tornara impotente para resolver o conflito, cada vez mais grave, entre as classes obreiras e patronais. Tal situação se agravara de maneira alarmante nos primeiros anos do século XX, ameaçando a estabilidade dos governos democráticos, os quais passaram a adotar medidas excepcionais de autodefesa. A guerra de 1914-1918, chamando aos setores da defesa externa as forças militares e as atenções dos estadistas, criou ambiente propício à transformação violenta da ordem constituída. Foi o que ocorreu na Rússia: enquanto o grosso do exército se desviara para as frentes de batalha, sofrendo os reveses 59 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO impostos pelas armas alemãs, encontrando-se o país desorganizado, debatendo-se numa tremenda crise social e econômica, valeu-se a corrente socialista da confusão reinante, para suprimir a velha autocracia dos Czares. A revolução que se desencadeia nos centros industriais de Petrogrado e Moscou é inspirada no Manifesto comunista, tendo por objetivo a inversão fundamental da ordem política, com a destruição da sociedade burguesa, a abolição da propriedade privada, a nacionalização das fontes de produção e a instauração da ditadura do proletariado. Vitoriosa a revolução, abdicou o Czar em 15 de março de 1917. De acordo com o Comitê Executivo, a Duma nomeou o governo provisório, composto de representantes de todos os partidos. Tal solução de emergência, porém, não contentou o Conselho de Operários e Soldados, o que levou a assumir o poder o chefe do Partido Socialista Revolucionário, Kerenski, que foi um dos vultos mais proeminentes e de real mérito em toda a história da revolução russa. A princípio a revolução socialista caminhava num sentido mais ou menos horizontal, tendendo para a estruturação de um Estado liberal proletarista, mas o governo provisório era idealista e fraco, o que permitiu que as correntes extremistas desfechassem a contrarrevolução e organizassem o sovietismo. Contra o Partido Socialista Revolucionário levantara-se o Partido Operário Russo Social Democrático, que desde logo se viu dividido em duas facções: Menchevique e Bolchevique. O grupo Bolchevique (maioria), dirigido por Wladimir Ilitch Ulianov, conhecido mundialmente pelo nome de Lenin, apoderou-se do governo através da sua Guarda Vermelha, sob o comando de Trotsky, em novembro de 1917. Assumiu o poder o Conselho de Operários, sob a denominação Congresso Nacional de Operários, Camponeses e Soldados, confiando-se o poder executivo a um Conselho de Comissários do Povo, sob a presidência de Lenin. O Estado, que se diz comunista, anuncia a nova ordem como ditadura do proletariado. Em verdade, porém, é a ditadura do Partido Bolchevista que se instaura, inaugurando o reino do terror: eliminação sumária dos adversários, luta feroz pelo extermínio da religião, estatização da economia, subordinação da justiça ao controle do executivo, concentração de poderes nas mãos do Presidente do Conselho e um simulacro de representação, consistente em conselhos, comitês, comissariados etc., cujos membros são eleitos segundo a vontade do partido único. A convocação de uma Assembleia Constituinte, prevista e anunciada pela revolução bolchevista, realizou-se efetivamente, logo em dezembro de 1917, mas como Kerensky obtivesse esmagadora maioria, a Constituinte foi dissolvida por decreto de Lenin, em 18 de janeiro de 1918. O comunismo de guerra, que se instaura, passa por sucessivas modificações, para dar lugar à chamada Nova Política Econômica, cujo arcabouço vem delineado nas Leis Fundamentais de 1918, 1925 e 1936. Sucederam-se as medidas governamentais de alcance econômico, tais como a abolição da propriedade da terra, a nacionalização dos bancos, a organização do comércio privado etc. 60 Unidade II Em fevereiro de 1918 foi criado o Exército Vermelho de Operários e Camponeses. Em março foi transladada a capital, de Petrogrado para Moscou. Em julho o Partido Bolchevista determinou a execução do Czar e de toda a família imperial. Durante o período do comunismo de guerra, Lenin enfrentou com pulso de aço a guerra civil, o bloqueio estrangeiro, a desarticulação completa da indústria, do comércio, da lavoura, de todas as fontes de produção, sobretudo a calamidade da fome. Depois de 1921 entra o país numa fase de recuperação nacional, com o renascimento da indústria, a organização dos sindicatos, a fundação do Banco do Estado etc. Na ordem jurídica, foi promulgada a Declaração de Direitos do Povo Operário e Explorado, publicado o Código Civil, sendo ainda elaboradas diversas leis fundamentais. Saiba mais Para conhecer melhor detalhes sobre a Revolução Russa, leia: SOUSA, R. G. Antecedentes da Revolução Russa. Brasil Escola. [s.d.]. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/historiag/antecedentes-revolucao -russa.htm. Acesso em: 17 fev. 2020. 5.8 Considerações finais sobre o Estado Socialista Russo Segundo o ideal comunista, o Estado seria um mal necessário, uma organização transitória, devendo extinguir-se por etapas. Atingido o estágio superior da ordem comunista, extinguir-se-ia o governo de pessoas, para dar lugar a um sistema de simples administração das coisas comuns. Até 1936, pelos menos, essa era a doutrina. O Estado desapareceria como consequência do nivelamento das classes. Suprimidas estas, ao ser atingido o estágio superior da ordem comunista, cessariam as lutas, e com elas, a razão de ser do Estado. Posteriormente, porém, o bolchevismo resolveu cancelar essa parte programática, mandando liquidar sumariamente os que a defendiam, notadamente o líder Pashunkanis, que foi um dos mais destacados teóricos do comunismo. Assim, o sovietismo, firmando-se como uma ditadura classista, é uma negação do ideal comunista. Tornou-se ainda uma negação do marxismo, desde que se degenerou num sistema de capitalismo de Estado e numa ditadura que Marx só previa como período de transição para a implantação da ordem socialista ideal. A ideologia soviética se diz essencialmente dinâmica; seria uma Revolução em marcha. Por isso mesmo estaria sujeita a contínuas transformações, para atender aos novos fatores e adaptar-se aos novos fenômenos sociais. A tática de recuos, disse Lenin, faz parte dessa revolução em marcha para a conquista do mundo. O Estado soviético era essencialmente ecumênico, transcendendo do campo interno para o internacional; pregava a união dos trabalhadores do mundo inteiro, açulando as reivindicações proletárias 61 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO além das suas fronteiras e criando uma atmosfera de instabilidade e de agitação social, como convinha aos seus objetivos de expansão. Nos últimos anos, porém, a história registrou a falência do modelo marxista corporificado pela extinta URSS. Mikhail Gorbachev assumiu em março de 1985 a secretaria geral do Partido Comunista, disposto a modernizar o modelo então vigente, cujos sinais de exaustão já eram mais do que visíveis. Lançou, logo nos meses seguintes, o programa da “Perestroika” (reestruturação) e da “Glasnost” (transparência), compromissos de reforma da economia e das estruturas políticas. Em outubro de 1988, ampliou o seu poder político e foi eleito Presidente da URSS, cargo que em maio de 1989 acumulou com a presidência do novo Parlamento Soviético. Em fevereiro de 1990, o Partido Comunista da União Soviética (PCUS) renuncia ao monopólio do poder, ao mesmo tempo em que começam a cair governos comunistas de países vizinhos do Leste Europeu. Em 19 de agosto de 1991 ocorre uma tentativa frustrada de golpe por parte dos setores militaristas ortodoxos da URSS. Esse golpe frustrado acaba por consolidar os poderes políticos dos reformistas mais radicais, liderados por Boris Yeltsin, primeiro presidenteda Rússia eleito por voto direto em junho de 1991, e precipita irremediavelmente o fim do modelo marxista então praticado e da própria URSS. 5.9 Reação antiliberal e antimarxista 5.9.1 O fascismo e a sua doutrina O fascismo italiano, depois do comunismo russo, foi a mais notável tentativa levada a efeito no sentido de reformar as bases do Estado moderno. Apresentou-se como um movimento de dupla reação: contra a desintegração socioeconômica do liberalismo decadente e contra a infiltração do comunismo internacionalista. No campo da filosofia política situou-se numa posição intermediária, entre o coletivismo e o individualismo, formulando a concepção de que o Estado é união de grupos ou corporações. Eminentemente nacionalista, apresentou-se com as características do velho cesarismo romano, sonhando com o restabelecimento das glórias do passado imperial. Mais radical do que o bonapartismo, amparou-se na teoria do poder absoluto, segundo a fórmula do Leviatã de Hobbes. Colocando-se, portanto, em posição diametralmente oposta à concepção liberal proclama Mussolini que a nação não é elemento integrante do Estado. Ao revés, é criada pelo Estado, cabendo a este dar ao povo, consciente da sua unidade moral, uma vontade, consequentemente, uma existência efetiva. Nos termos da filosofia alemã hegeliana, afirmou que o Estado é o absoluto, diante do qual, indivíduos e grupos são o relativo. Daí a sua célebre divisa: Tudo dentro do Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado. A esse extremismo monista Pio XI deu a denominação de estatolatria — endeusamento do Estado. É evidente a afinidade entre o fascismo e a doutrina do famoso secretário florentino, exposta no livro 62 Unidade II O príncipe, tanto que o próprio Mussolini, escrevendo Prelúdios a Maquiavel, em 1924, mencionou que na atualidade italiana o maquiavelismo estava mais vivo do que na época do seu aparecimento. Na ordem econômica o fascismo condenou formalmente o liberalismo e o socialismo marxista. Pretendeu pôr fim à luta de classes pela organização sindicalista, agrupando nas mesmas corporações todos os membros de cada ramo da produção, sem distinção entre patrões e operários. Esse corporativismo mussoliniano lançava suas raízes nas antigas corporações medievais e seguia, particularmente, a teoria de Georges Sorel, de quem Mussolini se dizia discípulo. O sistema permitia um rígido controle partidário, pois as corporações funcionavam como órgãos do partido único e ninguém poderia exercer uma atividade qualquer sem prévia autorização corporativa. Entretanto, não correspondia a uma doutrina preestabelecida: o sistema corporativo fascista foi idealizado e posto em prática posteriormente, isto é, no período de adaptação e consolidação da ordem revolucionária. Observação Fascismo é uma ideologia política ultranacionalista e autoritária caracterizada por poder ditatorial, repressão da oposição por via da força e forte arregimentação da sociedade e da economia. O fascismo é definitivamente e absolutamente oposto às doutrinas do liberalismo, tanto na esfera econômica quanto na política, sustenta Mussolini positivamente. Desdenhando dos profetas liberais dos últimos séculos, ele chama o liberalismo de “religião desconhecida” e enaltece Bismarck e o estatismo como vitoriosos; para ele, o século XX assistia aos templos do liberalismo se fechando, aos fiéis desertando, e ao alvorecer glorioso da alternativa fascista. 5.10 Organização do Estado fascista Mantém o fascismo como órgãos constitucionais a Coroa, o Chefe do Governo, o Grande Conselho do Fascismo, o Senado, a Câmara e os Ministros. A Câmara de representação nacional, que aceitara a nova ordem fascista, transforma-se em Câmara Corporativa, órgão técnico e consultivo, constituído de 400 membros eleitos pelas associações profissionais. Toda a organização estatal, porém, se apoiava na milícia civil e voluntária, mantida pelo Partido, que lhe deu a denominação ORDEM pela lei de 9 de dezembro de 1928. Aliás, como cita Pedro Calmon, quando em 1924 se falou na Câmara sobre a conveniência de dissolver a milícia de Camisas Negras, advertiu o Duce em tom enérgico: quem tocar nas milícias receberá chumbo. No tocante ao Rei, agiu o fascismo com inteligência e perspicácia. Não convinha ao Partido, certamente, romper de pronto com as tradições monárquicas imanentes na consciência do povo. Por isso, a exemplo do Parlamento inglês que se harmonizou perfeitamente 63 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO com a monarquia segundo o princípio de que o rei reina mas não governa, o Estado fascista manteve a Coroa como um símbolo, fato que lhe valeu, sem dúvida, o apoio da população italiana e lhe possibilitou a realização pacífica de uma notável obra social e econômica. 5.11 O Estado Nazista Alemão Assim como o fascismo italiano, surgiu o nazismo na Alemanha com o duplo objetivo de combater o liberalismo democrático decadente e de reagir contra a infiltração comunista. Duas outras finalidades integravam o programa de ação do Partido Nacional Socialista: desvencilhar a Alemanha das cláusulas asfixiantes do Tratado de Versalhes e impor a supremacia da raça ariana. Desenvolveu-se o nazismo à sombra das instituições democráticas, sob a égide da Constituição de Weimar, ascendendo ao poder através das eleições de maio de 1933. A república alemã de Weimar era excessivamente liberal, o que propiciou o rápido desenvolvimento de um partido declaradamente subversivo, totalitarista e revestido de caráter militar. Aliás, a corrente nazista exaltava as tradições e reunia os expoentes do antigo militarismo prussiano. Por decreto de 6 de fevereiro de 1933, o governo da federação alemã dissolveu o Landtag (câmara de deputados) da Prússia, província que já se encontrava sob intervenção federal. Consequentemente, o Comissário do Reich foi investido de plenos poderes para realizar ali novas eleições, conjuntamente com as do Reichtag. Na renovação de ambas as assembleias o Partido Nacional Socialista, liderado por Adolph Hitler, obteve esmagadora vitória. Diante do triunfo dos nacional-socialistas, o Presidente Hindenburg nomeou Hitler Chanceler do Reich, iniciando-se uma profunda transformação política. Foram desde logo elaboradas pelo novo governo diversas leis de uniformização, pelas quais se extinguiram os laços da antiga federação, tornando-se os Estados-Membros simples províncias diretamente subordinadas ao governo central. O sistema republicano parlamentarista, regido pela famosa Constituição de Weimar, de 1919, foi abolido por etapas, rapidamente, caminhando o Estado a passos largos para a plena integração da ditadura hitleriana. Investido de poderes ditatoriais, Hitler extinguiu os demais partidos políticos, dissolveu todos os grupos nacionais considerados perigosos, subordinando-os à disciplina férrea do Partido Nacional Socialista e lançou as bases estruturais do Terceiro Reich, que iria reconstruir a Grande Alemanha sobre os escombros da primeira grande guerra mundial. Adolph Hitler, antigo oficial subalterno, de nacionalidade austríaca, iniciara a luta pela posse do governo fundando um partido militarizado à maneira fascista com a sua milícia de Camisas Pardas. Possuindo extraordinário poder de domínio sobre as massas, adquiriu imenso prestígio e tornou-se um semideus, aureolado pela pretensão de um destino místico, qual fosse o de realizar o pangermanismo pregado pelas teorias caducas de Chamberlain e Gobineau. 64 Unidade II O Regime Nazista durou de 1933 a 1945, e foi instituído por Hitler por meio do Terceiro Império – ou Reich. Foi marcado por uma série de características muito próprias da filosofia política nazista. Uma das questões mais importantes do regime era a propaganda feita pelo Nazismo, dentro e fora da Alemanha. Como em todo regime autoritário, o governo censurava e controlava emissoras de rádio, a imprensa, produtos artísticos – músicas, artes visuais, teatro – e buscava também utilizar esses meios como uma forma de impulsionara imagem do próprio regime. O famoso ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, foi utilizado como referência para diversos regimes totalitários que vieram depois do nazista. Uma das maiores características do nazismo foi a militarização. Acreditava-se no uso do poder militar, que era assumido pela polícia, chamada SS, e pela Gestapo, uma polícia secreta do regime. A Gestapo era uma polícia política que decidia as penas que iria aplicar, sem o intermédio de um tribunal. Investigavam também possíveis afrontas ao regime por meio de agentes infiltrados em fábricas e lugares comuns e, quando queriam descobrir certas informações úteis ao regime ou mesmo sabiam de pessoas que eram ideologicamente contra ele, essas pessoas eram presas e torturadas. É importante salientar que no início do regime, o povo alemão apoiava o regime nazista e acreditava na ideologia pregada por Hitler – que sempre entoava um discurso de salvação nacional, de melhorias na economia, de superioridade racial e cultural germânica. Portanto, quanto à perseguição da polícia com comunistas e judeus, a própria população por vezes contribuía ao delatar uma ou outra pessoa. Conforme os anos foram evoluindo, principalmente no início da Segunda Guerra Mundial, o terror gerado pela polícia foi generalizado. As características do nazismo O nazismo é considerado um regime fascista por contar uma série de similaridades, como: ser autoritário, prever a concentração total do poder, glorificação de um líder, exaltação da coletividade nacional, expansão de territórios, controle dos meios de comunicação. O nazismo é, portanto, uma forma de manifestação do fascismo. Algumas das principais características da filosofia nazista desenvolvida por Hitler era o racismo, a xenofobia, o nacionalismo e o antissemitismo. Vamos entender como e por quê? 1) Unidade nacional Por meio do nazismo, buscava-se uma unidade nacional, contendo também características do nacionalismo. Criaram uma “comunidade do povo”, com o intuito de unir todos os alemães e excluir os povos estrangeiros. Essa ideia se aplicava a todas as pessoas que não fossem germânicas e, por isso, ela era xenofóbica: visava a afastar todas as pessoas, culturas, ideais e pensamentos diferentes do germânico. Buscava-se a criação de uma sociedade homogênea. Além disso, defendia-se uma hierarquia racial, em que povos germânicos eram vistos como uma “raça superior”, a chamada “raça ariana”. 65 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO 2) Antissemitismo Outro ponto elementar para entendermos o nazismo é compreender a importância do antissemitismo dentro desse regime, isto é, o preconceito e ódio contra judeus. Uma lei que separava os “arianos” dos judeus foi criada, chamada Leis de Nuremberg, que determinavam institucionalmente essa segregação racial. O regime perseguiu, torturou, expulsou do território alemão e matou judeus – além de muitas outras pessoas, como homossexuais, ciganos e pessoas com deficiência. Os negros, alemães ou não, mas residentes no país, também sofreram com a segregação, foram hostilizados e expulsos. Essa perseguição se tornou um extermínio sistemático organizado pelo regime nazista na Alemanha, que veio a se chamar Holocausto – o assassinato de milhões de judeus num verdadeiro genocídio. Na época do nazismo, foram criados campos de concentração para colocar quem se opunha ao regime e para lá foram muitos judeus, mortos então pela polícia. Durante a Segunda Guerra Mundial, milhares de judeus foram deportados do país para guetos e campos de extermínio. Lá, eram levados a câmaras de gás, em que morriam por asfixia. Em 1945, dois em cada três judeus europeus tinham sido mortos, em torno de 6 milhões de pessoas. Foram assassinadas mais de 1,5 milhão de crianças com idade inferior a 12 anos, sendo mais de 1,2 milhões de crianças judias, dezenas de milhares de crianças ciganas e milhares de crianças deficientes. 3) Teoria do Espaço Vital A Teoria do Espaço Vital é uma ideia que surgiu da revolta pela Alemanha ter perdido territórios depois da Primeira Guerra Mundial. É uma ideia relacionada a todas as outras, de que a raça ariana deveria ter um único território e expandi-lo ao máximo, formando “um guia, um império, um povo”, conforme dizia Hitler. Foi um dos pontapés para a invasão da Polônia em 1939, fato que eclodiu na Segunda Guerra Mundial. O nazismo é de direita ou de esquerda? No blog do jornalista Guga Chacra no site do Estadão, o professor Michel Gherman, da Universidade Hebraica de Jerusalém e coordenador do Centro de Estudos Judaicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, escreveu a respeito, buscando esclarecer dúvidas das redes sociais acerca do espectro ideológico do Nazismo. Confira um trecho da coluna que resume bem essa questão! O Nazismo não acreditava em políticas universalistas e descentralizadas. O Estado Nazista, contrário a (sic) luta de classes, se aproximava de grandes empresas, tinha um discurso antiespeculativo (sic) e tinha como objetivo a expansão racial, militar e territorial. 66 Unidade II Mais uma vez, ao contrário de perspectivas socialdemocratas, socialistas ou marxistas, a centralização estatal não tinha intenções distributivas, não pretendia combater a desigualdade econômica ou diferenças sociais. Ao contrário, a razão de existência do Estado era manter as diferenças, diferenças raciais. Estabelecer um estado racialmente hegemônico, escravizar e eliminar raças inferiores. Combater e exterminar a oposição que falava em classes sociais. (…) Mas não se enganem, nada mais distante, também, de qualquer posição de direita liberal. O nazismo era um movimento de extrema–direita, o que em sua natureza é distinto da direita liberal e democrática. Depois de polêmicas nas redes sociais, a BBC Brasil fez uma reportagem buscando elucidar essa questão: afinal, o nazismo é de esquerda ou de direita? Em entrevista para o veículo, a professora de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), Denise Rollemberg, afirma o seguinte: Não era que o nazismo fosse à esquerda, mas tinha um ponto de vista crítico em relação ao capitalismo que era comum à crítica que o socialismo marxista fazia também. O que o nazismo falava é que eles queriam fazer um tipo de socialismo, mas que fosse nacionalista, para a Alemanha. Sem a perspectiva de unir revoluções no mundo inteiro, que o marxismo tinha. (…) Eles rejeitavam o que era a direita tradicional da época e também a esquerda que estava se estabelecendo. Eles procuravam se mostrar como um terceiro caminho. Na mesma reportagem da BBC Brasil, há também o ponto de vista da antropóloga Adriana Dias, da Unicamp, que estuda os movimentos neonazistas. Os comícios hitleristas eram profundamente antimarxistas. (…) O nazismo e o fascismo diziam que não existia a luta de classes – como defendia o socialismo – e, sim, uma luta a favor dos limites linguísticos e raciais. As escolas nacional-socialistas que se espalharam pela Alemanha ensinavam aos jovens que os judeus eram os criadores do marxismo e que, além de antimarxistas, deveriam ser antissemitas. Mas o nome do partido nazista não é Nacional-Socialista? Não seria, portanto, de uma ideologia de esquerda? Bom, na reportagem da BBC Brasil, Izidoro Blikstein, professor de Linguística e Semiótica da USP e especialista em análise do discurso nazista e totalitário, busca responder essa indagação: “Me parece que isso é uma grande ignorância da História e de como as coisas aconteceram. (…) O que é fundamental aí é o termo ‘nacional’, não o termo ‘socialista’. Essa é a linha de força fundamental do nazismo – a defesa daquilo que é nacional e ‘próprio dos alemães’.” 67 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO Sobre essa questão, Thiago Tanji, editor na revista Galileu, escreve um texto sobre o fenômeno de notícias falsas, da pós-verdade e de como é importante conhecer a história por trás do regime nazista. Um trecho sobre a dicotomia esquerda x direita: E é justamente a partir desse ponto que desfazemos onó entre a ideologia nazista e sua associação às palavras “socialista” e “trabalhadores”. Inspirado em ideias ultra-nacionalistas e de supremacia racial, Adolf Hitler se mostrava como a figura política que lutava “contra tudo o que está aí”. Ao mesmo tempo em que expunha as ameaças de uma revolução comunista em território alemão, atacava o sistema financeiro e a ganância dos bancos — personificados na população judaica (MERELES, 2017). 5.12 O totalitarismo do tipo fascista O Estado fascista criado por Benito Mussolini, na Itália, em 1922, foi o ponto de partida do chamado totalitarismo da direita, que teve notável incremento na Europa depois da primeira guerra mundial (1914-1918) e atingiu a América Latina a par dos movimentos de exaltação nacionalista. A liberal democracia, em franca decomposição, não podia fazer face à terrível crise social que assolava o mundo, nem podia oferecer resistência eficaz à ameaça do imperialismo russo. Nessa conjuntura perigosa para a liberdade dos povos e para a sobrevivência da civilização ocidental, foi que se deu o aparecimento dos homens providenciais, ousados condutores das massas que sabiam explorar não só o descontentamento do proletariado como também os sentimentos nacionalistas, arvorando-se em salvadores das nações. Como bem acentuou Pedro Calmon, em todas as épocas a ruptura do equilíbrio entre um método clássico de governo e a inquietação social que impõe outras formas políticas, proporcionou o advento de homens providenciais. As novas organizações políticas que surgem, inspiradas pela vontade onipotente desses líderes ou detentores eventuais do poder, constituem esse conjunto heterogêneo de Estados Novos, no panorama confuso do após-guerra, todos eles adaptados arbitrariamente, em cada país, às contingências transitórias de um dado momento histórico. São todos galhos de um mesmo tronco, que é o fascismo, do qual recebem a seiva de que precisam para a sua floração doutrinária. 6 FORMAS DE ESTADO Como fato social o Estado caracteriza-se pela reunião dos seus três elementos morfológicos — população, território e governo. As variações típicas de cada um desses elementos sugerem diversas classificações do Estado. Assim, quanto ao seu primeiro elemento — população —, o Estado pode ser nacional, como o Japão, ou plurinacional, como a Grã-Bretanha. Quanto ao seu segundo elemento — território —, levando em conta a sua posição geográfica, o Estado pode ser central, como o Paraguai, ou marítimo, como o Chile. 68 Unidade II 6.1 Estados imperfeitos e perfeitos Primeiramente, cumpre-nos avisar que afastamos de cogitação a classificação dos Estados em soberanos e semissoberanos, precisamente porque não admitimos a existência de semissoberania. O conceito de soberania, já exposto, não admite meio-termo: a soberania é ou não é soberania. O Estado semissoberano, admitido por muitos autores, provavelmente pela maioria, equivale a um Estado não soberano. E chegamos à conclusão de que essa figura esdrúxula de Semiestado entra como cavalo de Troia no recinto do direito público para provocar sérias confusões. Para que se enquadre como objeto de estudo esse Estado não soberano, criado para servir como moeda de troca nos negócios das grandes potências, abrimos aqui uma classificação de Estados em perfeitos e imperfeitos. Estado perfeito é aquele que reúne os três elementos constitutivos — população, território e governo —, cada um na sua integridade. O elemento governo entende-se como poder soberano irrestrito. É característica do Estado perfeito, sobretudo, a plena personalidade jurídica de direito público internacional. Estado imperfeito é aquele que, embora possuindo os três elementos constitutivos, sofre restrição em qualquer deles. Essa restrição se verifica, com maior frequência, sobre o elemento governo. O Estado imperfeito pode ter administração própria, poder de auto-organização, mas não é Estado na exata acepção do termo enquanto estiver sujeito à influência tutelar de uma potência estrangeira. Não sendo soberano, não é pessoa jurídica de direito público internacional. Logo, não é Estado perfeito. São tipos de Estados imperfeitos os vassalos e os protegidos. Os Estados-vassalos existiram em toda a Idade Média, principalmente sob o império turco. Os Estados protegidos, chamados protetorados, foram criados pela diplomacia de após-guerra, no jogo das grandes potências vitoriosas. O Pacto da Sociedade das Nações, de 1919, criou diversos protetorados, notadamente a Síria e a Palestina. Foi a França o país que mais se valeu desse processo para manter o seu vasto império colonial, abrangendo Taiti, Madagascar, Tunísia, Marrocos, Tonkin etc. Estado imperfeito é também aquele que, num dado momento, perde o seu território, mas subsiste pelo reconhecimento do direito internacional. Essa figura de Estado sui generis foi criada pela diplomacia do século XX, principalmente nos casos da Abissínia e dos outros Estados invadidos pelo chamado eixo Roma-Berlim, cujos governos se refugiaram em Londres, onde continuaram a exercer as suas prerrogativas de Estado soberano. 6.2 Estados simples e compostos No plano do direito público internacional os Estados se dividem em simples e compostos. Note-se que o direito público interno dá outra divisão (unitários e federais) porque vê o Estado por dentro, na sua estrutura interna, enquanto o direito público internacional vê o sujeito como unidade ou pluralidade, isto é, como Estado único ou como união de Estados. 69 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO Observação Estado simples é aquele que corresponde a um grupo populacional homogêneo, com o seu território tradicional e seu poder público constituído por uma única expressão, que é o governo nacional. Exemplos: França, Portugal, Itália, Peru etc. Estado composto é uma união de dois ou mais Estados, apresentando duas esferas distintas de poder governamental, e obedecendo a um regime jurídico especial, variável em cada caso, sempre com a predominância do governo da união como sujeito de direito público internacional. É uma pluralidade de Estados, perante o direito público interno, mas no exterior se projeta como uma unidade. São tipos característicos de Estado composto: • união pessoal; • união real; • união incorporada; • confederação. A federação é Estado simples perante o direito público internacional. União pessoal É uma forma própria da monarquia, que ocorre quando dois ou mais Estados são submetidos ao governo de um só monarca. Resulta esse fato, em regra geral, do direito de sucessão hereditária, pois um mesmo Príncipe, descendente de duas ou mais dinastias, poderá herdar duas ou mais Coroas. Entretanto, pode resultar também de eleição ou de acordo internacional. Na união pessoal os Estados conservam a sua autonomia interna e internacional, esta última personificada no Rei. Ligam-se apenas pela pessoa física do imperante. Como ensina Pedro Calmon, a união pessoal é um acidente de ordem dinástica: segue a sorte das famílias reais. Cessada a razão política ou jurídica que determinou a união, cessa o fato. Foram exemplos deste tipo de união: Espanha e Portugal, sob Felipe d’Áustria; Inglaterra e Hanover, sob Jorge I; Inglaterra e Escócia, sob Jayme I; Castela e Aragão, sob D. Joana, a louca. 70 Unidade II União real É também uma forma tipicamente monárquica. Consiste na união íntima e definitiva de dois ou mais Estados, conservando cada um a sua autonomia administrativa, a sua existência própria, mas formando uma só pessoa jurídica de direito público internacional. Foram exemplos de união real: Escócia, Irlanda e Inglaterra, até 1707; Suécia e Noruega; Áustria e Hungria. União incorporada É uma união de dois ou mais Estados distintos para a formação de uma nova unidade. Neste caso, os Estados se extinguem; são completamente absorvidos pela nova entidade resultante da incorporação. A Grã-Bretanha é exemplo clássico de união incorporada. Os reinos, outrora independentes, Inglaterra, Escócia e Irlandado Norte, formaram união pessoal, depois união real, e, finalmente, fundiram-se formando um só Estado com a denominação de Grã-Bretanha. Confederação É uma reunião permanente e contratual de Estados independentes que se ligam para fins de defesa externa e paz interna (Jellinek). Esta forma de Estado composto requer maior explicação. Na união confederativa os Estados confederados não sofrem qualquer restrição à sua soberania interna, nem perdem a personalidade jurídica de direito público internacional. A par dos Estados soberanos, unidos pelos laços da união contratual, surge a Confederação, como entidade supraestatal, com as suas instituições e as suas autoridades constituídas. Nos tempos antigos, existiram as Confederações dos pequenos Estados gregos — Alianças panhelênicas, Ligas Anfitionais, Ligas Hanseáticas etc. — com os objetivos de realizarem conjuntamente o culto dos deuses ou jogos olímpicos. Tais confederações, porém, eram provisórias; faltava-lhes o requisito de durabilidade por tempo indeterminado, que caracteriza os contratos dessa natureza no direito público atual. Conquanto fossem as uniões confederativas contratadas em caráter permanente, eram instáveis, de fato, notadamente pela inconstância dos motivos que determinavam a união. A Suíça foi uma das mais antigas Confederações. Conserva ainda a denominação histórica de Confederação Helvética, mas evoluiu para a estrutura federativa. O mesmo fato ocorreu nos Estados Unidos da América do Norte e na Alemanha, o que vem confirmar que a tendência da Confederação é caminhar para uma penetração mais íntima, sob a forma federativa, ou dissolver-se. 6.3 Estado federal Sob o ponto de vista do direito público interno, mais precisamente do Direito Constitucional, os Estados dividem-se em unitários e federais. 71 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO Estado unitário É aquele que apresenta uma organização política singular, com um governo único de plena jurisdição nacional, sem divisões internas que não sejam simplesmente de ordem administrativa. O Estado unitário é o tipo normal, o Estado padrão. A França é um Estado unitário. Portugal, Bélgica, Holanda, Uruguai, Panamá, Peru são Estados unitários. Embora descentralizados em municípios, distritos ou departamentos, tais divisões são de direito administrativo. Não têm esses organismos menores uma autonomia política. 6.3.1 Estado federal É aquele que se divide em províncias politicamente autônomas, possuindo duas fontes paralelas de direito público, uma nacional e outra provincial. Brasil, Estados Unidos da América do Norte, México, Argentina e República Bolivariana da Venezuela são Estados federais. O que caracteriza o Estado federal é justamente o fato de, sobre o mesmo território e sobre as mesmas pessoas, se exercer, harmônica e simultaneamente, a ação pública de dois governos distintos: o federal e o estadual. Estado unitário Sociedade de Estados Puro Descentralizado administrativamente Descentralizado administrativa e politicamente Confederação Federação Formas de Estado Figura 3 O Estado federal — define Queiroz Lima — é um Estado formado pela união de vários Estados; é um Estado de Estados. Denominam-no os alemães staatenstaat. A forma federativa moderna não se estruturou sobre bases teóricas. Ela é produto de uma experiência bem-sucedida — a experiência norte- americana. As federações ensaiadas na antiguidade, todas elas, foram instáveis e efêmeras. Os exemplos históricos foram experiências de descentralização administrativa, não de descentralização política, que é característica primacial do sistema federativo. A simples descentralização administrativa consistente na autonomia de circunscrições locais (províncias, comunas, conselhos, municípios, cantões, departamentos ou distritos), como ocorria na Grécia antiga e ocorre na Espanha atual, é sistema municipalista, e não federativo. 72 Unidade II Características do Estado Federal São características fundamentais do sistema federativo, segundo o modelo norte-americano: • Distribuição do poder de governo em dois planos harmônicos: federal e provincial (ou central e local): o governo federal exerce todos os poderes que expressamente lhe foram reservados na Constituição Federal, poderes esses que dizem respeito às relações internacionais da união ou aos interesses comuns das unidades federadas. Os Estados-Membros exercem todos os poderes que não foram expressa ou implicitamente reservados à União, e que lhes não foram vedados na Constituição Federal. Somente nos casos definidos de poderes concorrentes, prevalece o princípio da superioridade hierárquica do Governo Federal. • Sistema judiciarista: consistente na maior amplitude de competência do Poder Judiciário, tendo este, na sua cúpula, um Supremo Tribunal Federal, que é órgão de equilíbrio federativo e de segurança da ordem constitucional. • Composição bicameral do Poder Legislativo: realizando-se a representação nacional na Câmara dos Deputados e a representação dos Estados-membros no Senado, sendo esta última representação rigorosamente igualitária. d) Constância dos princípios fundamentais da Federação e da República, sob as garantias da imutabilidade desses princípios, da rigidez constitucional e do instituto da intervenção federal. 6.4 O federalismo no Brasil O federalismo brasileiro é diferente; é muito mais rígido. O nosso sistema é de federalismo orgânico. Essa diversidade tem um fundamento histórico. O Brasil-Império era um Estado juridicamente unitário, mas, na realidade, era dividido em províncias. O ideal da descentralização política, no Brasil, vem desde os primórdios da nossa existência, desde os tempos coloniais. Os primeiros sistemas administrativos adotados por Portugal, as governadorias gerais, as feitorias, as capitanias, traçaram os rumos pelos quais a nação brasileira caminharia fatalmente para a forma federativa. A enormidade do território, as variações climáticas, a diferenciação dos grupos étnicos, toda uma série imensa de fatores naturais ou sociológicos tornaram a descentralização política um imperativo indeclinável da realidade social, geográfica e histórica. Quadro 3 - Comparativo: federalismos norte-americano x brasileiro Americano Brasileiro Ponto de partida Separação para União União para autonomia Motivação Defesa comum Sentimento de autonomia Sentido Concentração Dispersão Situação das partes Simetria (relativa) Assimetria 73 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO Características da federação Guardião da Constituição Repartição de receitas Descentralização política Repartição de competências Constituição rígida como base jurídica Inexistência de direito de sucessão Soberania do Estado Federal Intervenção Auto-organização dos Estados-membros Órgão representativo dos Estados-membros Figura 4 Pontos comuns em toda federação: • Descentralização política: a própria constituição prevê núcleos de poder político, concedendo autonomia para os referidos entes. • Constituição rígida como base jurídica: tal constituição visa garantir a distribuição de competências entre os entes autônomos, surgindo, então, uma verdadeira estabilidade institucional. • Inexistência do direito de secessão: não se permite, uma vez criado o pacto federativo, o direito de separação, de retirada. A título de exemplo, a CF/88 estabeleceu em seu art. 34, I, que a tentativa de retirada ensejará a decretação da intervenção federal no Estado “rebelante”. Eis o princípio da indissolubilidade do vínculo federativo. Ademais, a forma federativa de Estado é cláusula pétrea. • Soberania do Estado federal: a partir do momento em que os Estados ingressam na federação, perdem a soberania, passando a ser autônomos. A soberania é característica do todo, do país, do Estado Federal no caso do Brasil, a República Federativa do Brasil. 74 Unidade II • Auto-organização dos Estados-membros: através da elaboração das constituições estaduais (art. 25, CF/88). • Órgão representativo dos Estados-membros: no Brasil,de acordo com o art. 46 da CF/88, a representação se dá através do Senado Federal. No caput do art. 1º da CF, temos que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituindo-se em Estado Democrático de Direito, sendo que o caput de seu art. 18 complementa, estabelecendo que a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. A constituição aí quis destacar as entidades que integram a estrutura federativa brasileira: os componentes do nosso Estado Federal. O art. 1º enumera os fundamentos da República Federativa do Brasil. O art. 2º trata da separação dos poderes. O art. 3º traça os objetivos fundamentais e o art. 4º, os princípios que regem o Brasil nas relações internacionais. Vejamos: Constituição da República Federativa do Brasil TÍTULO I Dos Princípios Fundamentais Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. 75 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I – independência nacional; II – prevalência dos direitos humanos; III – autodeterminação dos povos; IV – não intervenção; V – igualdade entre os Estados; VI – defesa da paz; VII – solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X – concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. O idioma oficial da República Federativa do Brasil é a língua portuguesa, e os símbolos são: a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais, podendo ainda os Estados, Distrito Federal e os Municípios ter seus símbolos próprios (art. 13, §§ 1º e 2º). 76 Unidade II Saiba mais Consulte a Constituição Federal, uma das principais leis de nosso ordenamento jurídico: BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Supremo Tribunal Federal, Secretaria de Documentação, 2019. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoConstituicao/anexo/CF.pdf. Acesso em: 2 mar. 2021. 6.5 Entes federativos 6.5.1 União A União possui “dupla personalidade”, pois assume papel interno e outro internacionalmente. Internamente, ela é uma pessoa jurídica de direito público interno, componente da Federação Brasileira e autônoma na medida em que possui capacidade de auto-organização, autogoverno, autolegislação e autoadministração, configurando-se assim, autonomia financeira, administrativa e política. Internacionalmente, a União representa a República Federativa do Brasil. Observe-se que a soberania é da República Federativa do Brasil, representada pela União Federal. Observação Brasília é a capital federal (art. 18, § 1º, da CF/88). • Bens da União: o art. 20 da CF/88 define os bens da união. Dentre os bens, o inciso mais relevante atualmente é o que fala sobre as ilhas, inciso IV, inovação de emenda constitucional de 2005. O inciso citado menciona que são bens da União as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países, as praias marítimas, as ilhas oceânicas e costeiras, excluídas destas, as que contenham sede de Municípios, exceto aquelas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II. • Competências da União: — Competência não legislativa (administrativa ou material): exclusiva – art. 21 da CF, e comum (cumulativa, concorrente) – art. 23 da CF. — Competência legislativa: privativa – art. 22 da CF, e concorrente – art. 24 da CF. 77 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO De acordo com o parágrafo único do art. 22, à União pode, por meio de lei complementar, autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias previstas no art. 22. Tal possibilidade também se estende ao Distrito Federal, por força do art. 32, § 1º, CF. A competência concorrente do art. 24, por sua vez, define as matérias de competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal (não Municípios), limitando-se a União a estabelecer normas gerais. 6.5.2 Estados-membros Constituem pessoas jurídicas de direito público interno, autônomos, dotados de auto-organização (25 caput) se organizando e sendo regidos pelas leis e constituições que adotarem, observando sempre as regras estabelecidas na CF; autogoverno (27,28 e 125 CF), estabelecendo regras para a estruturação dos poderes e autoadministração (18 e 25 a 28 CF) regras de competência legislativa e não legislativa. Formação do Estado-membro A formação do Estado-membro pode realizar-se como indicado a seguir: • Fusão: incorporar-se entre si. • Cisão: um Estado que já existe subdivide-se, formando dois ou mais Estados-membros novos, com personalidades distintas. • Desmembramento: os estados podem ceder uma parte de seu território geográfico para formar um novo Estado ou Território que não existia ou se anexar (a parte desmembrada) a outro Estado que já existia. Observação Os bens dos Estados-membros estão listados no art. 26 da CF/88. 6.5.3 Municípios Podem ser definidos como pessoas jurídicas de direito público interno, ademais são autônomos nos termos e de acordo com a CF. São dotados de autonomia própria, materializada na sua capacidade de auto-organização, autogoverno, autoadministração e autolegislação. Ainda mais diante do art. 34, VII, c, que estabelece a intervenção federal na hipótese de o Estado não respeitar a autonomia municipal. • Auto-organização: segundo art. 29, caput, da CF, os municípios organizam-se através de Lei Orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços 78 Unidade II dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos na CF, na Constituição do Estado e os preceitos estabelecidos nos incisos I a XIV do art. 29, CF/88. • Autogoverno: incisos do art. 29, elege diretamente prefeito, vice-prefeito e vereadores. • Autoadministração e autolegislação: art. 30, CF. • Formação dos Municípios: art. 18, § 4º, CF. • Competências não legislativas: comum, art. 23; privativa, art. 30, III a IX, da CF/88. • Competências legislativas: expressa, art. 29, caput; interesse local, art. 30, I; suplementar, art. 30, II; e plano diretor, art. 182, § 1º. 6.5.4 Distrito Federal Na atual Constituição não é mais capital federal, vez que a capital é Brasília. É unidade federada autônoma, visto que possui capacidade de auto-organização, autogoverno e autolegislação. • Auto-organização: art. 32, caput, se rege por lei orgânica. • Autogoverno: art. 32, §§ 2º e 3º, eleição de governador, vice e deputados distritais. Ademais é impossível sua divisão em municípios, art. 32, caput. • Tem sua autonomia parcialmente tutelada pela União: art. 32, § 4º. • Competências não legislativas: art. 23, CF. • Competência legislativa: expressa,art. 32, caput; residual, art. 25, § 1º; delegada, art. 22, parágrafo único; concorrente, art. 24; suplementar, 24, §§ 1º a 4º; interesse local, art. 30, I; e competência tributária expressa, art. 155. 6.6 Territórios Apesar de ter personalidade, o território não é dotado de autonomia política, trata-se de mera descentralização administrativo-territorial da União. Não existem mais territórios federais no Brasil. Até 1988 existiam três: Roraima, Amapá e Fernando de Noronha. 6.7 Intervenção Federal (União para os Estados, Distrito Federal e municípios) Excepcionalmente a Constituição prevê situações de anormalidade em que poderá haver intervenção, suprimindo-se temporariamente a autonomia dos entes da federação, tais situações estão previstas no art. 34 da CF: 79 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO • Manter a Integridade Nacional. • Repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da federação em outra. • Pôr termo a grave comprometimento da ordem pública. • Garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação. • Reorganizar as finanças da unidade da Federação que: suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior ou deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei. • Prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial. • Assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: forma republicana, sistema representativo e regime democrático; direitos da pessoa humana; autonomia municipal; prestação de contas da administração pública, direta e indireta. Aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde. A decretação de intervenção é de competência privativa do Presidente da República (art. 84, X, da CF/88). Embora não haja vinculação, o presidente deve ouvir o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional antes de optar por editar o decreto presidencial de intervenção, que especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e, quando couber, nomeará o interventor. 6.8 Intervenção Estadual (Estados nos Municípios) A Intervenção Estadual está taxativamente prevista no Art. 35 da CF/88, sendo cabíveis quando: • deixar de ser paga, sem motivo de força maior, por dois anos consecutivos, a dívida fundada; • não forem prestadas contas devidas, na forma da lei; • não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde; • o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial. A decretação ocorre por Decreto de Intervenção de competência privativa do Governador do Estado, que deverá submeter o referido expediente a controle político da Assembleia Legislativa, no prazo de 24 horas. Acaso o Decreto se restrinja a suspender a execução do ato impugnado, o controle é dispensado. 80 Unidade II 6.9 Formas de governo Governo é o conjunto das funções pelas quais, no Estado, é assegurada a ordem jurídica (Queiroz Lima). Este elemento estatal apresenta-se sob várias modalidades, quanto à sua origem, natureza e composição, do que resultam as diversas formas de governo. Preliminarmente, há três aspectos de direito público interno a considerar: • segundo a origem do poder, o governo pode ser de direito ou de fato; • pela natureza das suas relações com os governados, pode ser legal ou despótico; e • quanto à extensão do poder, classifica-se como constitucional ou absolutista. Governo de direito é aquele que foi constituído de conformidade com a lei fundamental do Estado, sendo, por isso, considerado como legítimo perante a consciência jurídica da nação. Governo de fato é aquele implantado ou mantido por via de fraude ou violência. Governo legal é aquele que, seja qual for a sua origem, se desenvolve em estrita conformidade com as normas vigentes de direito positivo. Subordina-se ele próprio aos preceitos jurídicos, como condição de harmonia e equilíbrio sociais. Governo despótico (ao contrário do governo legal) é aquele que se conduz pelo arbítrio dos detentores eventuais do poder, oscilando ao sabor dos interesses e caprichos pessoais. Governo constitucional é aquele que se forma e se desenvolve sob a égide de uma Constituição, instituindo a divisão do poder em três órgãos distintos e assegurando a todos os cidadãos a garantia dos direitos fundamentais, expressamente declarados. Governo absolutista é o que concentra todos os poderes num só órgão. O regime absolutista tem suas raízes nas monarquias de direito divino e se explicam pela máxima do cesarismo romano que dava a vontade do príncipe como fonte da lei — voluntas principis suprema lex est; quod principi placuit legis habet vigorem; sic volo, sic jubeo, sit pro ratione voluntas... 6.9.1 Formas de governo no pensamento de Aristóteles Na antiguidade, já Aristóteles enquadrava em dois grupos as formas de governo: • Normais (aquelas que têm por objeto o bem da comunidade). • Anormais (aquelas que visam somente vantagens para os governantes). As formas normais, também denominadas formas puras, segundo a classificação de Aristóteles, ainda geralmente aceita, são as seguintes: 81 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO • Monarquia: governo de uma só pessoa. • Aristocracia: governo de uma classe restrita. • Democracia: governo de todos os cidadãos. A essas formas normais de governo correspondem, respectivamente, as três seguintes formas anormais: tirania, oligarquia e demagogia. São as chamadas formas degeneradas. A classificação de Aristóteles, portanto, resume-se no seguinte esquema: Para se saber se a forma de governo é normal ou anormal o critério proposto pelo Estagirita é essencialmente ético, ou seja, de ordem moral: se o monarca ou os governantes atendem ao interesse geral, a forma de governo é normal; se procuram só a satisfação dos seus próprios interesses e a obtenção de vantagens pessoais, a forma é anormal. Coube a Montesquieu trazer à doutrina aristotélica os retoques da metafísica: a monarquia caracteriza-se pela Honra, a aristocracia pela Moderação e a democracia pela Virtude. Faltando a qualquer das formas normais de governo o respectivo princípio básico, ela se degenera, caindo na forma anormal correspondente. Alguns escritores acrescentaram à tríade aristotélica uma quarta expressão: a Teocracia, tendo por forma anormal correspondente a Clerocracia (governo despótico dos sacerdotes). Entendemos, porém, que a teocracia é simplesmente uma modalidade de aristocracia ou oligarquia, assim como a chamada plutocracia. A classe governante pode ser formada por nobres, sacerdotes, detentores do poder econômico ou qualquer outro grupo social privilegiado, formando uma aristocracia dominante (v. adiante o conceito “aristocracia”). Qual a melhor forma de governo? Esta pergunta, formulada em todos os tempos, jamais terá uma resposta definitiva e satisfatória. Fenelon sintetizou nesta sentença lapidar o pensamento dominante no espaço e no tempo: “a corrupção pode ser idêntica em todas as formas de governo; o principal não é o regime em si, mas a virtude na execução dele”. 6.9.2 Monarquia e República Maquiavel, consagrado como fundador da ciência política moderna, substituiu a divisão tríplice do filósofo grego pela divisão dualista das formas de governo: Monarquia e República (governo da minoria ou da maioria). Colocou o problema nos seus exatos termos o sábio secretário florentino, pois aristocracia e democracia não são propriamente formas de governo, mas, sim, modalidades intrínsecas de qualquer das duas formas. Em poucas e incisivas palavras dá Maquiavel a distinção fundamental: o governo renova-se mediante eleições periódicas — estamosdiante da forma republicana; o governo é hereditário e vitalício — está caracterizada a monarquia. Queiroz Lima enumera as seguintes características da forma monárquica: 82 Unidade II • autoridade unipessoal; • vitaliciedade; • hereditariedade; • ilimitabilidade do poder e indivisibilidade das supremas funções de mando; • irresponsabilidade legal, inviolabilidade corporal e sua dignidade. Evidentemente, essas são as características das monarquias absolutas; mas há também as monarquias limitadas, como adiante veremos. Características essenciais comuns, das monarquias, são apenas duas: • hereditariedade; • vitaliciedade. A forma monárquica não se refere apenas aos soberanos coroados; nela se enquadram os consulados e as ditaduras (governo de uma só pessoa). Por outro lado, as características essenciais da forma republicana são: • eletividade; • temporariedade. Subdivisões das Formas de Governo: A – Monarquia Absoluta é aquela em que todo o poder se concentra na pessoa do monarca. Exerce ele, por direito próprio, as funções de legislador, administrador e supremo aplicador da justiça. Age por seu próprio e exclusivo arbítrio, não tendo que prestar contas dos seus atos senão a Deus. O monarca absolutista justifica-se pela origem divina do seu poder. O Faraó do Egito, o Tzar da Rússia, o Sultão da Turquia, o Imperador da China, diziam-se representantes ou descendentes dos deuses. Na crença popular da origem sobrenatural do poder exercido pelos soberanos coroados repousou a estabilidade das instituições monárquicas desde a mais remota antiguidade até ao limiar da Idade Moderna. Entre as monarquias absolutistas se incluem o cesarismo romano, o consulado napoleônico e certas ditaduras latino-americanas. São limitadas as monarquias onde o poder central se reparte admitindo órgãos autônomos de função paralela, ou se submete esse poder às manifestações da soberania nacional. Destacam-se três tipos de Monarquias Limitadas: • de estamentos; • constitucional; • parlamentar. 83 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO B – Monarquia de Estamentos, também denominada por alguns autores monarquia de braços, é aquela onde o Rei descentraliza certas funções que são delegadas a elementos da nobreza reunidos em Cortes, ou órgãos semelhantes que funcionam como desdobramento do poder real. Geralmente, eram delegadas a tais órgãos estamentários funções de ordem tributativa... A monarquia de estamentos é forma antiga, típica do regime feudal. Os exemplos mais recentes foram a Suécia e o Mecklemburgo, tendo esta última perdurado até 1918. C – Monarquia Constitucional É aquela em que o Rei só exerce o poder executivo, ao lado dos poderes legislativo e judiciário, nos termos de uma Constituição escrita. Exemplos: Bélgica, Holanda, Suécia, Brasil-Império. D – Monarquia Parlamentar Monarquia Parlamentar é aquela em que o Rei não exerce função de governo — o Rei reina mas não governa, segundo a fórmula dos ingleses. O poder executivo é exercido por um Conselho de Ministros (Gabinete) responsável perante o Parlamento. Ao Rei se atribui um quarto poder — Poder Moderador — com ascendência moral sobre o povo e sobre os próprios órgãos governamentais, um “símbolo vivo da nação”, porém sem participação ativa no funcionamento da máquina estatal. É exatamente a forma decorrente da adoção do sistema parlamentarista no Estado monárquico. O Rei preside a Nação; não propriamente o Governo. E - República República é o governo temporário e eletivo. “Existirá República toda vez que o poder, em esferas essenciais do Estado, pertencer ao povo ou a um Parlamento que o represente” (Prof. Machado Paupério). A República pode ser aristocrática ou democrática. República Aristocrática é o governo de uma classe privilegiada por direitos de nascimento ou de conquista. É o governo dos melhores, no exato sentido do termo, pois a palavra aristoi não corresponde, especificamente, a nobreza, mas a escol social, isto é, os melhores da sociedade. Atenas e Veneza foram Repúblicas aristocráticas. A República Aristocrática pode ser direta ou indireta, conforme seja o poder de governo exercido diretamente pela classe dominante, em assembleias gerais, ou por delegados eleitos, em assembleia representativa. Teoricamente, admite-se também a forma semidireta. República Democrática é aquela em que todo poder emana do povo. Pode ser direta, indireta ou semidireta. Na República Democrática Direta governa a totalidade dos cidadãos, deliberando em assembleias populares, como faziam os gregos no antigo Estado ateniense. O governo popular direto se reduz atualmente a uma simples reminiscência histórica. Está completamente abandonado, em face da evolução social e da crescente complexidade dos problemas governamentais. 84 Unidade II A República Democrática Indireta ou Representativa É a solução racional, apregoada pelos filósofos dos séculos XVII e XVIII e concretizada pela Revolução Francesa. Firmado o princípio da soberania nacional e admitida a impraticabilidade do governo direto, apresentou-se a necessidade irrecusável de se conferir, por via do processo eleitoral, o poder de governo aos representantes ou delegados da comunidade. É o que se denomina sistema representativo, que estudaremos nos pontos seguintes, quanto às suas diversas modalidades. Na República Democrática Indireta (ou Representativa) o poder público se concentra nas mãos de magistrados eletivos, com investidura temporária e atribuições predeterminadas. Sob este ponto de vista, definiu Rui Barbosa: “República não é coexistência de três poderes, mas a condição que, sobre existirem os três poderes constitucionais, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, os dois primeiros derivam, realmente, de eleição popular”. Efetivamente, os órgãos componentes dos Poderes Legislativo e Executivo devem ser eleitos pelo povo, por via de sufrágio universal. No tocante ao Poder Judiciário, sua composição tem obedecido ao princípio da nomeação, pelos dois outros poderes de natureza eletiva, sob o fundamento, de certo modo razoável, de que os atos desse poder, mais do que os dos dois outros, são essencialmente funcionais, isto é, decorrem da vontade da lei e não do arbítrio dos magistrados. Não obstante, o provimento das magistraturas componentes do poder judiciário é assunto que merece destaque. A eletividade é a regra, em face da verdadeira doutrina republicana democrática. As mais adiantadas democracias do mundo adotam, pelo menos em parte, o princípio da eletividade. Isso ocorreu aqui mesmo no Brasil, ao tempo do segundo Império, contribuindo para o conceito de que o Império foi mais democrático do que a República. A eletividade dos magistrados implica a temporariedade das funções. A temporariedade, por sua vez, leva a uma eficiência constante, afastando em grande parte os inegáveis inconvenientes da vitaliciedade. República Democrática Semidireta Entre a solução originária da democracia direta e o regime representativo, surge uma terceira expressão denominada democracia semidireta ou mista. Consiste esse sistema em restringir o poder da assembleia representativa, reservando-se ao pronunciamento direto da assembleia geral dos cidadãos os assuntos de maior importância, particularmente os de ordem constitucional. Esse sistema é adotado atualmente na Suíça e em alguns Estados da federação norte-americana. A Constituição da República alemã de Weimar, de 11 de agosto de 1919, que foi imitada pela Prússia, Áustria e Checoslováquia, antes do advento dos “Estados Novos” de feição autocrática, foi um modelo do sistema semidireto. A delegação de poderes, neste sistema, é feita com as devidas restrições, de tal sorte que os problemas considerados de vital importância nacional são decididos pelo próprio povo por processos típicos de democracia direta, como o referendum, a iniciativa popular, o veto popular etc. Em todos os casos de conflito entre os poderes do Estado, reforma constitucional, ratificação de tratados ou convenções internacionais,empréstimos externos, modificações territoriais, declaração de guerra ou 85 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO tratado de paz, leis de magno interesse nacional etc. decide o povo em última instância. Sem embargo das objeções de ordem técnica que pesam em contrário, o sistema misto se apresenta na atualidade qual porto de salvação no mar encapelado em que navega o barco da democracia representativa. Os Estados Unidos da América do Norte introduzem cada vez mais no sistema institutos de democracia direta. O Brasil mesmo, pela Constituição de 1946, adotou o plebiscito, em tudo semelhante ao referendum, para a solução dos casos de divisas internas, administrativas ou judiciárias, subordinando as decisões das câmaras representativas ao pronunciamento das populações interessadas. E a excelência teórica da medida foi confirmada pela prática. Para melhor compreensão deste e de outros pontos seguintes, passaremos a analisar, de modo sucinto (com exceção dos sistemas eleitorais, que serão objetos de outro capítulo), os institutos de manifestação da soberania nacional, que integram a doutrina republicana. F - Referendum As repúblicas modernas têm lançado mão do referendum como instrumento de limitação do poder das assembleias representativas. Na prática, o referendum não tem o mesmo alcance das assembleias populares: o povo não formula soluções; apenas se manifesta sobre o problema que lhe é submetido, aprovando ou desaprovando a solução proposta. A votação se dá por meio de cédulas com a palavra escrita Sim ou Não. Em se admitindo a participação dos cidadãos analfabetos, as cédulas usadas são de cores diversas — brancas ou pretas. Queiroz Lima aponta as seguintes razões em prol desse instituto, como fator de equilíbrio democrático: • O regime de referendum está indiscutivelmente em harmonia com os mais puros princípios democráticos. Preuss, o sábio autor da Constituição alemã de 1919, considera o governo semidireto um postulado da democracia. • O referendum constitui um poderoso obstáculo ao despotismo possível das assembleias. • O referendum assegura perfeita concordância de vistas entre a maioria parlamentar e a opinião dominante no país. • O referendum é um valiosíssimo instrumento de pacificação e estabilidade. G - Plebiscito O plebiscito tem sido instituído, como na Constituição Brasileira de 1946, para os casos de alteração das divisas interestaduais ou intermunicipais, criação de Distritos, Municípios, Comarcas ou Estados, casos em que as deliberações das assembleias representativas ficavam condicionadas à aprovação das populações interessadas. Embora dependente de resolução das respectivas assembleias, o plebiscito é consulta feita a priori, e a solução obtida sobrepõe-se à vontade das assembleias representativas. 86 Unidade II No plano internacional o plebiscito, fundado na doutrina do livre-arbítrio dos povos, tem sido adotado como meio eficiente para a solução de contendas, quer quanto à criação ou supressão de Estados por divisão ou união, quer quanto à fixação das linhas divisórias nas zonas contestadas. Como individualização do direito geral que tem cada povo de dispor de si mesmo, o plebiscito, tanto no direito internacional quanto no direito público interno, é uma afirmação solene do princípio da soberania nacional e um instrumento de contenção dos desmandos das assembleias representativas. H – Outros Institutos Além do referendum e do plebiscito, merecem destaque a iniciativa popular, o veto popular e o recall. A Iniciativa popular consiste no direito assegurado à população de formular projetos de lei e submetê-los ao Parlamento. Esse instituto foi adotado pela Constituição alemã de 1919, sendo ainda admitido em alguns Estados da Federação norte-americana e no Brasil pela Constituição de 1988. O projeto de lei, uma vez assinado por determinado número de eleitores, será obrigatoriamente recebido e considerado como objeto de deliberação pela assembleia legislativa. O Veto popular, também adotado pela Constituição de Weimar, consiste na faculdade concedida ao povo de recusar uma lei emanada do Parlamento. Embora aprovada, sancionada e promulgada, a lei será anulada se contra ela manifestar-se a maioria do corpo eleitoral. O Recall é um instituto tipicamente norte-americano surgido nos últimos tempos, precisamente quando a Suprema Corte se arvorou em superpoder, passando a anular as leis que consubstanciavam a nova política social do Presidente Theodore Roosevelt. Pelo recall, que é um processo de pronunciamento popular, de natureza plebiscitária, dirigido pela assembleia representativa, o povo recusava a decisão judicial e fazia prevalecer a lei declarada inconstitucional. Reafirmou-se através desse instituto o princípio verdadeiramente democrático de que a vontade soberana do povo deve prevalecer, inclusive, sobre as decisões do poder judiciário. Poder Constituinte O Poder Constituinte é uma função da soberania nacional. É o poder de constituir e reconstituir ou reformular a ordem jurídica estatal. A Constituição, lei fundamental do Estado, provém de um poder soberano (a nação ou o povo, nas democracias) que não podendo elaborá-la diretamente, em face da complexidade do Estado moderno, o faz através de representantes eleitos e reunidos em Assembleia Constituinte. Esse poder que ela exerce em determinados momentos chama-se Poder Constituinte. Tanto pode ser exercido para a organização originária de um agrupamento nacional ou popular quanto para constituir, reconstituir ou reformular a ordem jurídica de um Estado já formado. Suprime, por exemplo, uma forma monárquica para estabelecer uma forma republicana; afasta uma organização republicana liberal para instituir uma república socialista; ou simplesmente revoga uma Constituição para elaborar outra. Frequentemente, surge o Poder Constituinte em função da derrogação da lei fundamental por um 87 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO movimento revolucionário, impondo-se, consequentemente, a tarefa de reconstituir em novas bases o ordenamento jurídico estatal. O Poder Constituinte, portanto, é um poder ilimitado, em regra. A influência de qualquer poder mais alto para lhe traçar linha de competência ou programa de ação tende a desfigurá-lo, por desfigurar a soberania no seu exato conceito. Só a própria Assembleia Constituinte, em deliberação preliminar, atenta aos princípios de direito natural e histórico, ou a um eventual condicionamento estabelecido na eleição dos seus componentes, poderá limitar o seu procedimento. Poder Reformador Em geral, os poderes constituídos conservam uma parcela do Poder Constituinte, permanentemente, para reformas ou emendas da Constituição, no curso das legislaturas, dentro dos limites estabelecidos no próprio texto. Essa função, chamada de poder reformador, poder constituinte secundário ou poder constituinte derivado, coloca-se numa posição intermediária entre o poder constituinte originário e o poder constituído ordinário. Consiste na competência para reformar parcialmente ou emendar a Constituição, que não é um código estático, mas dinâmico, devendo acompanhar a evolução da realidade social, econômica e ético-jurídica. O Preâmbulo nas Constituições O preâmbulo é um enunciado solene do espírito de uma Constituição, do seu conteúdo ideológico e do pensamento que orientou os trabalhos da Assembleia Constituinte. É o pórtico da Constituição e chama-se também introdução ou prólogo. Apresenta o preâmbulo uma relevante importância para o estudo das Constituições, como síntese inseparável da interpretação sistemática dos textos. Story considera o preâmbulo como verdadeira chave do pensamento das constituintes. Escreveu ele em Comentários sobre a Constituição dos Estados Unidos que a importância do exame do preâmbulo, para chegar-se à verdadeira interpretação das cláusulas da Constituição, foi sempre compreendida e conhecida em todas as decisões judiciais. “É uma máxima admitida no curso ordinário da Justiça que o preâmbulo de um estatuto revelaa intenção do legislador, faz conhecer os males que quis remediar e o fim que quer alcançar. Encontramos essa máxima recomendada e posta em prática pelas nossas mais antigas autoridades em direito comum.” O preâmbulo enfático da Constituição Federal norte-americana, refletindo a declaração de direitos redigida por Jefferson em 1776, contém uma síntese de todas as aspirações nacionais, senão mesmo o enunciado de uma doutrina: Nós, o povo dos Estados Unidos, com o objetivo de formar uma união mais perfeita, estabelecer a justiça, assegurar a tranquilidade doméstica, promover a defesa comum, promover o bem-estar geral e assegurar os benefícios da liberdade para nós e para a nossa posteridade, ordenamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América. Nós, o povo dos Estados Unidos ... 88 Unidade II Isto é, a própria nação, entidade soberana, organizada em poder constituinte, é quem elabora e promulga a Constituição. Essa declaração da origem do poder tem um sentido mais alto e fiel. Já a Constituição francesa — nós, os representantes do povo ... — dá a ideia de um agrupamento de políticos que age em nome próprio. Também a Constituição Federal brasileira de 1946 começava o preâmbulo com a expressão nós, os representantes do povo..., o que se não harmoniza com a boa doutrina. Melhor redigido estava o preâmbulo da Constituição paulista: “O povo paulista, invocando a proteção de Deus, inspirado nos princípios da democracia e pelo ideal de a todos assegurar o bem-estar social e econômico, decreta e promulga, por seus representantes, a Constituição do Estado de São Paulo”. A Carta Constitucional brasileira de 1988 adotou o sistema da Constituição norte-americana. Mais extenso que o preâmbulo que constava da Constituição anterior, contém os princípios que serão encontrados no texto: Nós, representantes do povo brasileiro , reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem- estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. O preâmbulo não tem caráter normativo, mas é um instrumento para que o intérprete conheça a orientação seguida pelo texto constitucional no trato dos problemas internos e das relações internacionais. Os constituintes, geralmente, invocam no preâmbulo o nome de Deus. Essa invocação, diz Pedro Calmon, tem a força de uma preferência religiosa, na exaltação preliminar dos sentidos conservadores da assembleia afastada da indiferença laicista e da hostilidade ao culto abraçado pela maioria da população nacional. Constitiuição O termo Constituição deriva do prefixo cum e do verbo stituire, stituto — compor, organizar, constituir. No seu sentido comum indica o conjunto dos caracteres morfológicos, físicos ou psicológicos de cada indivíduo ou a formação material de cada coisa. Na Ciência do Estado essa palavra tem dupla acepção: lato sensu, é o conjunto dos elementos estruturais do Estado, sua composição geográfica, política, social, econômica, jurídica e administrativa; e, stricto sensu, é a lei fundamental do Estado, ou seja, segundo a definição de Pedro Calmon, o corpo de leis que rege o Estado, limitando o poder de governo e determinando a sua realização. 89 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO Neste sentido estrito e formal, como lei que define e regulamenta a estrutura jurídico-política de um Estado, a palavra Constituição implica, como afirmou Lassale: “Um documento, sobre uma folha de papel, estabelecendo todas as instituições e princípios de governo de um país”. Sempre que a empregarmos no sentido de lei fundamental ou lei máxima do Estado, escreveremos com inicial maiúscula, assim como fazemos com a palavra Estado (entidade de direito público) em todos os pontos do nosso programa. Divisão Formal das Constituições A - Quanto à Origem • Promulgada É aquela que conta com a participação popular seja para elaborá-la, seja para escolher seus representantes para a feitura da Lei Maior. • Outorgadas São fruto de um ato unilateral de poder. Nascem em regimes ditatoriais, sem a participação do povo. • Cesaristas (Bonapartistas) São elaboradas unilateralmente, mas submetem-se à ratificação por meio de referendo. Não são nem promulgadas (democráticas) nem outorgadas. • Pactuada Surge de um acordo (pacto) entre uma realeza decadente, de um lado, e uma burguesia em ascensão, de outro. B - Quanto ao Conteúdo • Formal Nessa classificação, leva-se em conta apenas o modo de elaboração da norma. Se ela passou por um processo mais solene, mais dificultoso de formação (constituição rígida), será formalmente constitucional, não importando de que matéria venha a tratar. • Material Por sua vez, para serem consideradas materialmente constitucionais é completamente irrelevante o modo como as normas foram elaboradas. Tratando de matéria essencialmente constitucional (estabelecimento de poder e sua limitação – através de divisão de poderes e de estabelecimento de direitos fundamentais, por exemplo) será norma materialmente constitucional. 90 Unidade II C - Quanto à Extensão • Sintética É aquela Constituição que versa apenas de normas essenciais à estruturação do Estado, sua organização e funcionamento, bem como da divisão de Poderes e dos direitos fundamentais. • Analítica De conteúdo extenso, a constituição analítica (prolixa, desenvolvida) trata de temas estranhos ao funcionamento do Estado, trazendo minúcias que encontrariam maior adequação fora da Constituição, em normas infraconstitucionais. D - Quanto ao Modo de Elaboração • Dogmáticas Elaboradas em um momento determinado, refletem os valores (dogmas) daquela época. Podendo ser classificadas em sua ideologia como ecléticas ou ortodoxas. São sempre escritas. • Históricas Formam-se a partir do lento evoluir da sociedade, dos seus costumes (daí serem chamadas de costumeiras). Em razão desse lento processo de formação e sedimentação dos valores, são sempre não escritas. E - Quanto à Ideologia • Ecléticas (Pragmáticas) Também chamadas de compromissórias, são Constituições dogmáticas que se fundam em várias ideologias. • Ortodoxas São fundadas em uma só ideologia. F - Quanto à finalidade • Constituição-Garantia De texto reduzido (sintética), busca precipuamente garantir a limitação dos poderes estatais frente aos indivíduos. 91 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO • Constituição Dirigente Caracterizada pela existência, em seu texto, de normas programáticas (de cunho eminentemente social), dirigindo a atuação futura dos órgãos governamentais. • Constituição-Balanço Destinada a registrar um dado estágio das relações de poder no Estado. Sua preocupação é disciplinar a realidade do Estado num determinado período, retratando o arranjo das forças sociais que estruturam o Poder. Faz um “balanço” entre um período e outro. G - Quanto à Ontologia (Correspondência com a realidade) • Normativas Estão em plena consonância com a realidade social, conseguindo regular os fatos da vida política do Estado. • Nominativas (Nominalistas) São elaboradas com a finalidade de, efetivamente, regular a vida política do Estado. Mas, não alcança o seu objetivo. • Semântica São criadas apenas para legitimar o poder daqueles que já o exercem. Nunca tiveram o desiderato de regular a vida política do Estado. É típica de regimes autoritários. H - Quanto à Alterabilidade • Imutável Não prevê mecanismos para sua alteração. Tem a pretensão de ser eterna. • Rígida Prevê um procedimento solene, mais dificultoso do que o previsto para alteração das leis ordinárias. Fundamenta-se no princípio da Supremacia Formal da Constituição. • Flexível O procedimentopara alterar a Constituição é o mesmo processo legislativo de elaboração e alteração das leis ordinárias. 92 Unidade II • Semirrígida É em parte rígida e noutra parte flexível. Desse modo, algumas normas da Constituição só podem ser modificadas por um procedimento mais dificultoso, enquanto que as outras se submetem ao mesmo processo legislativo das leis infraconstitucionais. I - Quanto à Forma • Escritas Formadas por um conjunto de regras formalizadas por um órgão constituinte, em documentos escritos solenes. Podem ser (a) codificadas, quando sistematizadas em um único texto, ou (b) legais, quando se apresentam esparsas ou fragmentadas. • Não Escritas (Costumeiras ou Consuetudinárias) Não são solenemente elaboradas por órgão encarregado especialmente desse fim. São sedimentadas pelos usos, costumes, jurisprudência etc. Observação A Constituição Federal de 1988 classifica-se como promulgada, formal, analítica, dogmática, eclética (pragmática), dirigente, normativa (ou tendente a sê-la), rígida e escrita codificada. Divisão de Poder A divisão do poder de Estado em três órgãos distintos (Legislativo, Executivo e Judiciário), independentes e harmônicos entre si, representa a essência do sistema constitucional. Uma Constituição que não contenha esse princípio não é Constituição, como afirmaram os teóricos do liberalismo. Diga-se inicialmente, por conveniente dizê-lo, que se não trata aqui da divisão material do poder de governo em vários departamentos (Ministérios da Justiça, da Fazenda, da Agricultura etc.), pois tal divisão é de natureza burocrática e pertinente ao direito administrativo. Objeto deste ponto é o princípio da divisão funcional do poder de soberania em três órgãos, pelos quais ela se manifesta na sua plenitude: um que elabora a lei (Poder Legislativo), outro que se encarrega da sua execução (Poder Executivo) e o terceiro (Poder Judiciário), que soluciona os conflitos, pronuncia o direito e assegura a realização da justiça. A Doutrina de Montesquieu Somente no século XVIII, porém, Montesquieu, autor da obra famosa O Espírito das Leis (1748), que alcançou 22 edições em 18 meses, sistematizou o princípio com profunda intuição. Coube-lhe a glória 93 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO de erigir as divagações filosóficas dos seus predecessores em uma doutrina sólida, que foi desde logo acolhida como dogma dos Estados liberais e que permanece até hoje sem alterações substanciais. Antes mesmo dos Estados europeus, a América do Norte acolheu com entusiasmo a fórmula do genial escritor. A primeira Constituição escrita que adotou integralmente a doutrina de Montesquieu foi a de Virgínia, em 1776, seguida pelas Constituições de Massachussetts, Maryland, New Hampshire e pela própria Constituição Federal de 1787. Reafirmaram os constitucionalistas norte-americanos, de modo categórico, que a concentração dos três poderes num só órgão de governo representa a verdadeira definição de tirania: Quando na mesma pessoa ou corporação, o poder legislativo se confunde com o executivo, não há mais liberdade. Os três poderes devem ser independentes entre si, para que se fiscalizem mutuamente, coíbam os próprios excessos e impeçam a usurpação dos direitos naturais inerentes aos governados. O Parlamento faz as leis, cumpre-as o executivo e julga as infrações delas o tribunal. Em última análise, os três poderes são os serventuários da norma jurídica emanada da soberania nacional. Assim, o princípio de Montesquieu, ratificado e adaptado por Hamilton, Madison e Jay, foi a essência da doutrina exposta no Federalist, de contenção do poder pelo poder, que os norte-americanos chamaram sistema de freios e contrapesos. A revolução francesa proclamou o princípio nos seguintes termos: “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não estiver assegurada, nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição” (Declaração dos Direitos do Homem, art. 16). No Brasil, onde o constitucionalismo surgiu concomitantemente com a independência, foi sempre observada a divisão tríplice do poder. Aliás, a Constituição Imperial de 1824 anunciou o princípio de modo enfático, declarando no seu artigo 9º que “a divisão e harmonia dos poderes políticos é o princípio conservador dos direitos dos cidadãos, e o mais seguro meio de fazer efetivas as garantias que a Constituição oferece”. Essa separação de poderes não pode ser entendida da maneira absoluta como pretendiam, nos primeiros tempos, os teóricos do “presidencialismo puro” norte-americano. Nem decorre da doutrina de Montesquieu que cada um dos três clássicos poderes deva funcionar com plena independência e plena autonomia, fechado em departamento estanque. Melhor será falar-se em separação de funções. A divisão é formal, não substancial. O poder é um só; o que se triparte em órgãos distintos é o seu exercício. Democracia e Igualdade O princípio da igualdade, que é um dos pilares que sustentam o arcabouço doutrinário da democracia, nasceu com esta; e, assim, estende suas raízes à antiga Grécia, onde foi objeto das elucubrações filosóficas de Heródoto, Péricles, Eurípedes, e particularmente de Aristóteles, que lhe deu maior amplitude. Denominaram-no os filósofos helênicos princípio da isonomia. 94 Unidade II O Estado antigo, porém, não chegou a praticar realmente o princípio da igualdade. As próprias Repúblicas gregas e romanas dos tempos clássicos admitiram a divisão da sociedade em castas e toleraram a escravidão. A República idealizada por Platão previa a divisão social, de maneira semelhante ao sistema de quatro castas, que na Índia até agora se conserva. O próprio Aristóteles admitia a escravatura, considerando-a como consequência das desigualdades que existem entre os homens. Afirmou que alguns homens possuem apenas a compreensão que lhes permite serem guiados pela inteligência dos outros, e que “a reunião da força material do escravo com a inteligência do patrão seria vantajosa para ambos” O humanismo político do século XVIII erigiu o princípio em postulado básico da democracia. Segundo a expressão de Montesquieu, o liberalismo fez desse princípio o verdadeiro amor da democracia. Deve-se notar que as aspirações igualitárias defendidas por Rousseau e pelos demais teóricos da revolução francesa, eram formuladas em caráter negativo, isto é, dirigidas precisamente contra os odiosos privilégios medievais, que, nos Três Estados de França, particularmente, assumiram proporções absolutamente incompatíveis com a dignidade natural da pessoa humana. As antigas colônias britânicas da América do Norte, antes da revolução francesa, justificaram a guerra pela independência invocando os princípios de liberdade e igualdade apregoados pela filosofia política do século XVIII e pelo próprio liberalismo inglês. A Declaração de Virgínia, em 1776, proclamou que all men are by nature equally free and independent. E as declarações constitucionais posteriores deram a esse princípio uma expressão mais completa e de maior conteúdo jusnaturalista: all men are born free and equal and have certain natural, essential and inalienable rights. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotada pela Assembleia Nacional Constituinte de 1789, partiu da afirmação de que “os homens nascem e se conservam livres e iguais em direitos; as distinções sociais só podem ter por fundamento o proveito comum”. E a Declaração votada pela Convenção Nacional, em 1793, salientou que légalité consiste à ce que chacum puisse jouir des mêmes droits. A Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU), de 6 de dezembro de 1948, formulou o mesmo princípio em bases positivistas. Rejeitada a emenda do Delegado brasileiro, que definia o homem como criatura de Deus, aprovou o plenário a seguinte fórmula em que transparece um acentuado conteúdo agnóstico-materialista: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos; são dotados de razão e consciência, e devem comportar-se, uns em relação aos outros, com espíritofraternal. Nas modernas Constituições democráticas, o velho princípio da isonomia vem encimando o capítulo da declaração dos direitos fundamentais do homem, sendo enunciado, geralmente, de modo conciso: Todos são iguais perante a lei. 95 ORGANIZAÇÃO DO ESTADO Resumo Estamos nesta presente unidade temas pertinentes à Organização do Estado trazendo questões fundamentais para a nossa reflexão acerca de conceitos como, Democracia, República, Parlamentarismo, Presidencialismo e outros temas afins, buscando identificar a definição etimológica da palavra, bem como a construção histórica e social desses termos. O desafio da presente disciplina reside em o estudante apropriar-se desses conceitos históricos e compreender a conjuntura social , político e econômica de cada realidade de um município, estados e União alinhado com a legislação vigente a partir de sua Carta Magna (A Constituição), e ainda o sistema jurídico, político partidário e eleitoral vigente a partir do sistema eleitoral constituído para que de fato a democracia seja uma constante e referência numa sociedade plural e marcada pelas liberdades civis, os direitos humanos, e os direitos sociais que garantam aos seus cidadãos as condições para uma dignidade humana a ser observada em seu cotidiano. De fato, o mundo moderno tem desenvolvido práticas discursivas a partir de seus governantes e conjunturas sociais e econômicas que ora nos assaltam na conquista e retrocesso dos direitos humanos, ora no radicalismo de práticas conservadoras extremistas que desconsideram as minorias e os grupos sociais marginalizados. Uma disciplina como essa reforça a tese que a democracia e as liberdades civis mediante um Estado democrático de Direito precisam estar em constante vigilância e alvo de nossa sensibilidade para não perdermos de vista as conquistas até aqui estabelecidas em momentos cruciais do passado e singulares da humanidade que não podem ser desconsiderados. Para o estudante de Direito é mister considerar que esse Estado democrático de Direito exigirá de cada cidadão e cidadã, a contínua busca e dinâmica de pesos e contrapesos para que os três poderes na pessoa de seus representantes eleitos pelo povo, venha a cumprir de fato, a célebre frase de nosso Artigo 1º de nossa Constituição Federal de 1988: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada 96 Unidade II na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.