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1 CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI POLÍTICA SOCIAL GUARULHOS – SP 2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 3 2 Os teóricos do absolutismo ..................................................................................... 4 3 Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes ..................................................................... 7 3.1 Nicolau Maquiavel ................................................................................ 7 3.2 Thomas Hobbes ................................................................................... 9 4.1 Jacques Bossuet ................................................................................ 12 4.2 Jean Bodin ......................................................................................... 14 5 Estado como sociedade política ............................................................................ 16 5.1 Formação do Estado .......................................................................... 17 5.2 Teorias naturalistas ............................................................................ 18 5.3 Teorias contratualistas ....................................................................... 19 6 O Estado e os seus papéis ................................................................................... 23 7 O Serviço Social e a divisão de classes ................................................................ 26 8 O materialismo histórico: concepção marxista da história .................................... 29 8.1 A concepção de história de Marx ....................................................... 33 8.2 O que os historiadores devem a Karl Marx? ...................................... 36 8.3 A influência de Marx na historiografia brasileira ................................. 37 9 A Questão Social e os movimentos de resistência ............................................... 41 10.1 Império (1822–1889) .......................................................................... 43 10.2 República Velha (1889–1930) ............................................................ 44 10.3 Era Vargas (1930–1945) .................................................................... 44 10.4 República Populista (1945–1964) ...................................................... 44 10.5 Ditadura Militar (1964–1985) .............................................................. 45 10.6 Nova República ou redemocratização (a partir de 1985) ................... 45 10.7 Formas de exercício do poder ............................................................ 46 11.1 A sociologia e o exercício do poder .................................................... 48 12 Modelos de democracia: democracia direta, representativa e participativa .......... 51 12.1 Democracia direta e as suas principais características ...................... 51 12.2 Modelo da democracia representativa e a sua aplicação ................... 53 12.3 Especificidades da democracia participativa ...................................... 56 3 13 Política contemporânea ........................................................................................ 58 13.1 Liberalismo social ............................................................................... 58 13.2 Neoliberalismo .................................................................................... 60 14 Cenário democrático contemporâneo ................................................................... 62 15.1 A educação como instrumento ideológico do Estado ......................... 64 15.2 Mecanismos adotados pelo Estado para transformar a educação em um instrumento ideológico......................................................................................... 66 15.3 Os efeitos da transformação da educação no Brasil .......................... 69 BIBLIOGRAFIA BÁSICA: .......................................................................................... 73 bibliografia complementar: ........................................................................................ 73 3 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta , para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 4 2 OS TEÓRICOS DO ABSOLUTISMO www.todamateria.com.br/absolutismo Antes de contextualizarmos a produção dos chamados “teóricos do Absolutismo”, compreendendo suas obras em suas conjunturas de produção e circulação, acreditamos ser importante buscarmos uma definição de Absolutismo e entender como esse conceito foi forjado para se referir ao sistema monárquico do Antigo Regime. Isso porque existe uma diferença entre o emprego historiográfico do termo e os significados que foram atribuídos ao conceito no vocabulário político de determinadas conjunturas. Do ponto de vista da historiografia, Silva e Silva (2009, p. 11) apresentam uma síntese do que costuma ser entendido como “Absolutismo” ou “monarquia absolutista”: Absolutismo é um conceito histórico que se refere à forma de governo em que o poder é centralizado na figura do monarca, que o transmite hereditariamente. Esse sistema foi específico da Europa nos séculos XVI a XVII. [...] O surgimento do Absolutismo se deu com a unificação dos Estados nacionais na Europa ocidental no início da Idade Moderna, e foi realizada com a centralização de territórios, criação de burocracias, ou seja, centralização de poder nas mãos dos soberanos. [...]. O Estado centralizado surgiu, assim, interligado aos conflitos políticos entre nobreza e burguesia, característicos desse momento histórico, além das disputas políticas entre os príncipes e a Igreja Católica, visto que o Papado durante toda a Idade Média foi uma considerável força internacional. [...]Assim sendo, percebemos que o Absolutismo se liga a um determinado momento da história das nações europeias, o momento em que uma monarquia fortalecida com os conflitos políticos internos entre diferentes grupos sociais, e apoiada por justificativas filosóficas, controla e consolida o Estado nacional. http://www.todamateria.com.br/absolutismo 5 O sistema monárquico absolutista foi uma forma de organização política forjada para conformar as instâncias de privilégios e as relações de poder às novas demandas econômicas, políticas e sociais, emergentes com as transformações ocorridas nos séculos XV, XVI e XVII. Ou seja, houve uma exigência de um poder central e soberano para se adequar às exigências daquele período, marcado por guerras civis, enfrentamentos entre a burguesia e a nobreza e de mudanças significativas do aspecto econômico. Lembremos que a definição de “Absolutismo” para as monarquias do século XVI e XVII não é contemporânea a esses acontecimentos, sendo um termo difundindo no vocabulário político francês ao final do século XVIII e, na Inglaterra,em começos do século XIX, em função da adoção de uma nova forma de estado, o liberal: [...] para se contrapor aos ‘riscos de absolutismo’ – i.e., a concentração do poder soberano de decisão numa autoridade executiva –, dever-se-ia formar um sistema cameral permanente (autoridade legislativa) e conferir independência institucional e poder fiscalizador para a justiça sobre os demais poderes, de modo que o poder limitasse o poder (VIANNA, 2008, documento on-line). Os chamados “teóricos do Absolutismo” procuraram entender e, em certos casos, justificar, o processo de centralização política e a concentração de poder no monarca por meio de teorias que opusessem o caos e a ordem, sendo a ordem entendida como o bom funcionamento da sociedade. Uma corrente procurou explicar o poder a partir do direito natural, os jusnaturalistas, recuperando ideias da antiguidade romana. Segundo esses pensadores, existiriam leis universais que baseariam a relação entre o monarca e seus súditos, bem como a relação entre os Estados. Outra corrente argumentava sobre o direito divido dos reis, herdeira de crenças medievais da ligação do monarca com Deus. Ambas as concepções, a do jusnaturalismo e do contrato social e a assentada no poder divino dos reis, defendem um Estado unificado na mão do rei, em um sistema autocrático, com poderes incontestes. E como podemos definir o contexto de produção das obras dos “teóricos do Absolutismo”? É preciso lembrar que esses pensadores estavam inseridos em uma profunda discussão sobre o poder e a política, cujo objetivo era delinear, em diferentes pontos de vista, o que seria uma sociedade justa, ordenada e virtuosa. A monarquia era o regime político de predileção (em função da concentração do poder de forma autocrática), e um dos temas de que se ocuparam foi a ideia de soberania. 6 Do ponto de vista das tradições intelectuais, as obras renascentistas que se dedicam a refletir sobre a política e o poder ainda operam em um mundo cristão, ou seja, a relação entre a política e a religião está presente de alguma maneira. Conforme Chauí (2000, documento on-line), as teorias medievais são teocráticas, enquanto as da renascença buscam outras explicações sore o poder para além da noção do divino; “[...] no entanto, embora recusem a teocracia, não podem recusar uma outra ideia cristã, qual seja, a de que o poder político só é legítimo se for justo e só será justo se estiver de acordo com a vontade de Deus e a Providência divina. Assim, elementos de teologia continuam presentes nas formulações teóricas da política”. Temos, então, um pensamento político na modernidade constituído por duas vertentes: aqueles teóricos que buscavam legitimar a autoridade do soberano a partir de fundamentos religiosos, tais como o direito divino, e aqueles que se apoiam em argumentos lógicos e racionais, afastando a moral da política. Tomadas em conjunto, e levando-se em consideração sua conjuntura de produção, as obras dos “teóricos absolutistas” podem ser caracterizadas, de acordo com Marilena Chauí (2000), a partir de dois elementos: as mudanças ocorridas na cultura, na economia, na política e na sociedade evidenciaram a existência de grupos (burgueses, assalariados, camponeses) que não podiam invocar noções de dinastia, família, linhagem ou sangue para explicar por que existiam e por que haviam mudado de posição social, mas só podiam invocar a si mesmos como indivíduos; a existência de conflitos entre esses indivíduos e entre eles e os demais estamentos da sociedade moderna demonstravam que a imagem de uma comunidade cristã, fraterna, una e indivisível eram uma construção que não correspondia à realidade. Essas mudanças na percepção de si mesmo e do mundo fizeram com que os “teóricos do Absolutismo” precisassem explicar quem eram os indivíduos e por que existiam os conflitos, bem como propor soluções para esses enfrentamentos e guerras civis. De acordo com Chauí (2000, documento on-line), “[...] foram forçados a indagar qual é a origem da sociedade e da política. Por que indivíduos isolados formam uma sociedade? Por que indivíduos independentes aceitam submeter-se ao poder político e às leis? A resposta a essas duas perguntas conduz às ideias de Estado de Natureza 7 e Estado Civil”. É nessa grande mudança cultural, que atingiu a Europa Ocidental de formas e em períodos distintos, que se insere o pensamento de Maquiavel, que, em sua obra O Príncipe, traz reflexões sobre a possível separação entre moral e política; de Thomas Hobbes, autor de Leviatã, que lança as bases da teoria contratualista para a superação do estado de natureza; de Jean Bodin e sua obra, República, teórico da origem divina do monarca; e de Jacques Bossuet, autor de Política Segundo a Sagrada Escritura, que afirmava que todo o poder é legítimo e que rebelar-se contra ele seria um sacrilégio. Vamos estudar um pouco mais sobre o pensamento desses autores e as diferenças entre eles a seguir. 3 NICOLAU MAQUIAVEL E THOMAS HOBBES Ainda que Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes tenham vivido em locais e momentos diferentes, suas preocupações intelectuais são semelhantes no que diz respeito ao Estado como gestor dos conflitos inerentes à política, evitando as facções políticas, como no caso de Maquiavel, ou a guerra de todos contra todos, como afirmado por Hobbes. A seguir, veremos um pouco mais sobre o pensamento de ambos os autores. 3.1 Nicolau Maquiavel Fonte: filosofianaescola.com/filosofos/maquiavel/ 8 Maquiavel nasceu em Florença, em 1469. Naquele momento, a Península Itálica encontrava-se dividida em uma série de pequenos Estados, com diferenças signifi cativas em relação à sua cultura e seus regimes políticos e, por consequência, sujeitos a confl itos e invasões estrangeiras. Até 1494, graças aos esforços de Lourenço, o Magnífico, a península experimentou uma certa tranquilidade. Cinco grandes Estados dominavam o mapa político: ao sul, o reino de Nápoles, nas mãos dos Aragão; no centro, os Estados papais controlados pela Igreja e a república de Florença, presidida pelos Médicis; ao norte, o ducado de Milão e a república de Veneza (SADEK, 2011, p. 14). Contudo, na passagem do século XV para o XVI, essa situação modificou- -se em função de aspectos internos e externos. Nesse contexto, Maquiavel passou sua infância e adolescência. Teóricos do Absolutismo 5 Em função de disputas políticas, principalmente da rivalidade adquirida com a família Médici, Maquiavel é impedido de exercer cargos públicos, depois de ter trabalhado como chanceler. É torturado, preso e condenado a pagar multa. Ao ser libertado da prisão, passou a escrever suas obras, sendo O Príncipe escrita entre 1512 e 1513. no território da Itália, que se encontrava dividida em ducados, reinos, repúblicas e convivia com o poder da Igreja. Veja, a seguir, os pontos em que seu pensamento é inovador, rompendo com a tradição da filosofia política. Não existiria um fundamento anterior e exterior à política (como Deus, a natureza ou a razão). A política nasce das divisões e lutas sociais na busca de unidade e identidade. 9 Maquiavel, diferentemente dos pensadores da Antiguidade clássica e dos cristãos, não concebe a política como uma realização do bem comum e da justiça, mas como tomada e manutenção do poder. A política não seria regida por uma moral cristã, mas por uma virtude propriamente política, não necessariamente boa ou má. Isso não significa que o príncipe deva ser odiado, mas temido e respeitado. Por fim, Maquiavel rejeita a divisão clássica dos três regimes políticos (monarquia, aristocracia, democracia) e suas formas corruptas ou ilegítimas (tirania, oligarquia, demagogia/anarquia), assim como não aceita que o regime legítimo seja o hereditário e o ilegítimo, o usurpado por conquista. Qualquer regime político — tenha a forma e a origemque tiver — poderá ser legítimo ou ilegítimo. O critério de avaliação, ou o valor que mede a legitimidade e a ilegitimidade, é a liberdade. 3.2 Thomas Hobbes Fonte: www.arqnet.pt/portal/teoria/hobbes O pensamento político de Hobbes parte do pressuposto da existência de uma situação “pré-social”, em que as pessoas vivem em um “Estado de natureza”, isoladas 10 em luta permanente, vigorando a guerra de todos contra todos, que deu origem à expressão “o homem é o lobo do homem”. Nessa situação, o medo é imperativo, já que a vida não tem garantias, principalmente o medo da morte violenta. Como forma de cessar essa situação de ameaça, estabelece-se um “contrato” entre os seres humanos, passando-se à sociedade civil, isto é, ao Estado Civil, criando o poder político e as leis. O “contrato social” estabelece que os indivíduos renunciam à liberdade natural e à posse natural de bens, riquezas e armas e concordam em transferir a um terceiro — o soberano — o poder para criar e aplicar as leis, tornando- se autoridade política. O contrato social funda a soberania. Aqui, há um retorno ao direito romano e ao direito natural, principalmente na ideia de que todo indivíduo, por natureza, tem direito à vida e à liberdade. “Por natureza, todos são livres, ainda que, por natureza, uns sejam mais fortes e outros mais fracos. Um contrato ou um pacto, dizia a teoria jurídica romana, só tem validade se as partes contratantes forem livres e iguais e se voluntária e livremente derem seu consentimento ao que está sendo pactuado” (CHAUÍ, 2000, documento on-line). Outro dos grandes defensores do Estado contratual foi Thomas Hobbes, que em sua obra Leviatã afirmou que todo Estado nasce do contrato mútuo entre os homens. Estes, quando em estado de natureza, viveriam em constante conflito e situação de guerra. Assim sendo, para garantir a ordem, considerada a única forma de a sociedade prosperar, os indivíduos faziam um acordo em que todos abdicavam de suas liberdades em favor de um representante, o rei, que, por sua vez, se encarregaria de garantir a ordem. Nessas teses, que explicam o Estado a partir de acordos e da concordância entre reis e povo, todavia, a vontade do rei e do Estado sempre é superior à do povo e, logo, deve ser obedecida sem resistência. Somente com a Ilustração, no século XVIII, essas teorias seriam revistas para apresentar o governo como representante da vontade popular. No Absolutismo, todavia, rei e Estado se sobrepõem ao povo (SILVA; SILVA, 2009, p. 12). Assim, para Hobbes, o poder do soberano superaria os indivíduos e as coletividades, estabelecendo a paz e trazendo segurança para todos. O fundamento do poder não estaria na tradição (família, linhagens, sangue), mas na conveniência de se ter um soberano absoluto, para o bem de todos. Ainda que no pensamento de Hobbes o Estado seja visto como uma forma de superação do medo reinante na condição de Estado de natureza, o medo não desaparece na constituição da sociedade civil e da configuração do Estado. A capa da primeira edição de sua obra Leviatã, publicada em 1651, apresenta a figura ameaçadora de um monarca, e o próprio nome “Leviatã” foi retirado de um monstro presente na Bíblia (Figura 1). Nessa 11 obra, Hobbes mostra os fundamentos e as razões pelas quais o monarca absoluto deve exercer força, autoridade, influência, juízo, poder sobre os súditos, porque, sem esse exercício de poder coercitivo pelo Estado, haveria um estado de guerra constante. 4 JACQUES BOSSUET E JEAN BODIN Nesta parte, estudaremos dois teóricos do Absolutismo cujas reflexões foram permeadas por questões religiosas. Seja por aspectos ligados à trajetória de Jacques Bossuet e Jean Bodin ou por suas convicções e crenças, suas concepções de Estado e poder estão relacionadas a uma dimensão divina. Vejamos mais sobre suas biografias e obras a seguir. 12 4.1 Jacques Bossuet Fonte: www.grupoescolar.com/pesquisa/jacques-bossuet Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704) foi um religioso francês que procurou na religião católica uma solução para os problemas políticos enfrentados no século XVII. Desde a infância e adolescência de Bossuet sua família sempre mostrou fidelidade absoluta ao rei, e sempre se colocou ao seu serviço. A desordem e a miséria que assolaram a França, causadas pelas perturbações da Fronda, ficaram gravadas na memória de um jovem destinado a defender vigorosamente a soberania indivisível na pessoa do príncipe. Neste sentido, podemos afirmar que a doutrina de Bossuet formou-se a partir de confrontos com problemas concretos; constituiu-se em respostas aos fatos reais que surgiram diante dele (BARBOSA, 2007, documento on-line). Assim, concebeu sua teoria afirmando que o poder absoluto dos reis remontaria a Davi e Salomão, que teriam sido ungidos por Deus, ou seja, os monarcas seriam reis por direito divino. De acordo com seu pensamento, rebelar-se contra o poder do monarca equivaleria a revoltar-se contra Deus. Bossuet escreveu os seis primeiros livros da Política de 1677 a 1679, após a Revolução Inglesa de 1640 e a Fronda (1648- 1653). Nessas guerras civis, os revoltosos defendiam a limitação da soberania real a partir da ideia contratualista e, quando os reis deixavam de agir corretamente, o 13 contrato poderia ser anulado. A preocupação de Bossuet, portanto, reside na condenação das guerras civis, na eliminação de qualquer direito de resistência dos súditos perante os governantes estabelecidos e no reforço à soberania dos reis. (OLIVEIRA, 2009) Não somente nas obras em que aborda diretamente as questões políticas, mas também nas obras de cunho histórico, existe uma justificativa na fundação do Estado como um ato de Deus de manifestação de sua vontade, e são citados como exemplos os impérios chinês, egípcio e pérsio. A ideia de providência divina perpassa toda a obra e o rei é apresentado, ao mesmo tempo, como governador civil e sumo-sacerdote, representante de Deus na Terra. De acordo com Chevallier (1999 apud LIMA, 2015, documento on-line): Ao falar da origem do governo civil, primeiramente Bossuet partiu da tese aristotélica da natureza política do homem (o homem como animal político), para depois chegar à tese hobbesiana do homem lobo do homem, que, segundo ele, teve origem a partir do acontecimento bíblico do pecado original, praticado por Adão e Eva. Para Bossuet, o pecado original foi o responsável por ter transformado a vida numa verdadeira anarquia, fazendo prevalecer àinsociabilidade entre os homens. Desse modo, ele acreditava que apenas com a constituição de um governo civil seria possível garantir o estabelecimento da paz e da segurança. Para melhor cumprir esta função, Bossuet defendeu a monarquia absolutista como a forma mais adequada de governo, já que qualquer tipo de divisão, no exercício do poder, era considerado por ele como o principal mal dos Estados. Assim, esta forma de governo defendida por Bossuet, estava fundamentada inteiramente na sagrada escritura, com os monarcas reconhecidos como verdadeiros ministros de Deus, ao deter todo poder necessário a manutenção da ordem e da paz social. Ao longo de sua trajetória, Bossuet teve um papel importante na vida e na corte de Luis XIV — Bossuet foi seu tutor —, realizando diversos cultos realizados no Palácio Real e proferindo orações fúnebres nas cortes francesa e britânica. A partir dessa circulação em altos estratos do poder político, elaborou suas reflexões sobre o Estado, o poder e a política, que serviram como forma de instrução a Luís XIV, e nos demonstra como construiu a argumentação sobre a origem e o fundamento do poder divino do rei. Os livros destinados à educação de Luís XVI, escritos entre 1677 e 1679, “[...] inserem-se nesse movimento de exaltação à glória monárquica. Bossuet dedicou- os para falar da origem do poder e da autoridade do príncipe. Com isso, a teoria do direitodivino, justificadora do Absolutismo, que se conhece já há tempo, atinge o seu ponto culminante” (BARBOSA, 2007, documento on-line). Suas obras mais importantes foram Discurso sobre a História Universal, publicada em 1681, e Política tirada das Santas Escrituras, lançada em 1708. Bossuet morreu em Paris, em 1704. 14 4.2 Jean Bodin Fonte: www.todamateria.com.br/jean-bodin Jean Bodin nasceu na França por volta de 1530, em uma família burguesa, de prósperos artesãos. Formou-se em direito, dedicando-se ao direito civil, e, em Paris, trabalhou como advogado da corte. Suas obras são reflexões jurídicas, que versam sobre a separação entre Estado e governo e apresentam como inovação a sistematização da noção de soberania. O problema para Bodin estaria na confusão feita até então entre Estado e governo. O termo “Estado” designa as três formas de ordenamento político que uma República pode assumir com base no número de pessoas que detém a soberania. Já o governo indica a maneira pela qual esse poder é exercido – assumindo as formas legítima, despótica ou tirânica, de acordo com a relação do soberano com as leis e com seus súditos – e a maneira pela qual esse poder é conferido – assumindo as formas aristocrática, democrática ou harmônica, conforme o grau de participação dos súditos nos cargos públicos. As diversas combinações dessas possibilidades resultariam na grande variedade de formas de governo que têm sido confundidas com as formas de Estado (VIANNA, 2010, p. 65-66). Bodin, no século XVI, foi o primeiro teórico a afirmar que no Estado deve haver um poder soberano, isto é, um foco de autoridade que possa resolver todas as pendências e arbitrar qualquer decisão. Sua obra Da República, publicada em 1576, 15 aborda muitos temas de teoria política, incluindo as discussões sobre o direito divino dos reis e a soberania, temas pelos quais a obra de Bodin costuma ser recuperada como uma “teoria” sobre o Absolutismo. Da República costuma ser utilizada para comparar a situação da Inglaterra e da França absolutista, já que, quando Bodin a escreve, “[...] o reino da França estava fraturado devido às facções nobiliárquicas das guerras confessionais, cada uma das quais tentando impor as suas prerrogativas locais ou regionais de poder, respeitando ou não as deliberações régias conforme os seus interesses e conveniências particulares e, portanto, estavam desviadas de qualquer princípio de bem comum” (VIANNA, 2010, documento on-line). Dessa forma, era imperativo ratificar o poder do rei, acima de qualquer facção. Diferentemente de Bossuet, Hobbes ou Maquiavel, para Bodin, a centralização do poder e o fortalecimento da figura do monarca ocorre por meio do direito, com a entrega pelos indivíduos de seus direitos individuais a um “Deus mortal”, o Estado. Para ele, esse estado é regido por três conjuntos de leis: a lei moral (ou seja, os valores do indivíduo), a lei doméstica (aplicada pelo chefe da família) e a lei civil, à qual todos os membros da sociedade civil devem obediência. De acordo com Barros (2009, documento on-line): [...] não basta para Bodin a simples união de vários grupos sociais, nem a comunhão de bens e de interesses, nem a existência das mesmas leis e de instituições dirigidas pelo princípio da justiça. São condições necessárias, sem dúvida, mas não suficientes. É preciso acima de tudo o estabelecimento de um poder capaz de assegurar a coesão entre os membros da sociedade, reunindo-os e integrando-os num só corpo. Contudo, o elemento mais importante do Estado é a soberania, entendida como o poder supremo e inalienável do soberano sobre os súditos, que era concedida ao rei por Deus. Para Bodin, ser soberano significava estar acima das leis civis: [...] soberano deve estar livre diante das leis que estabeleceu, porque ninguém pode obrigar-se a si mesmo, e das leis que foram estabelecidas por seus predecessores, porque, se fosse obrigado a cumpri-las, seu poder não seria absoluto. O soberano deve ter o poder de criar, corrigir e anular as leis civis de acordo unicamente com sua vontade. Como a lei imposta por Deus à natureza tem seu fundamento na livre vontade divina, a lei civil, embora possa estar fundamentada em boas razões, retira também sua autoridade da livre vontade do soberano (BARROS, 2009, documento on-line). 16 Além da construção dessa definição de soberania, Bodin legou aos seus contemporâneos uma justificativa para a monarquia como melhor forma de sistema político para o exercício da soberania, que se fundamenta em três pontos: a monarquia é o melhor sistema político para o exercício da soberania a partir de uma análise histórica, que evidenciou a predileção dessa forma de governo pelos povos da antiguidade; a monarquia é a melhor forma de governo pelas leis de Deus; a monarquia, por ter apenas um soberano, facilita o exercício e o direito à soberania. 5 ESTADO COMO SOCIEDADE POLÍTICA A origem da sociedade revela que o indivíduo se reúne em torno de determinados objetivos de forma organizada e, para atingir tais finalidades, aceita ou se submete a um poder de caráter social. Assim, revelam-se os elementos geralmente presentes na sociedade: finalidade, ordem e poder social. Em uma perspectiva ampla, quando a finalidade almejada reside na criação de condições gerais para a realização dos objetivos individuais, essa sociedade é considerada política (DALLARI, 2013). Fonte: brasilescola.uol.com A sociedade política comunga interesses gerais e individuais, na medida em que proporciona, a um só tempo, a consecução de fins próprios e de objetivos comuns para todos os seus integrantes. É frequente, inclusive, que se refira à busca do bem 17 comum como a finalidade última de uma sociedade política considerada na perspectiva mais ampla de participantes. Nessa percepção mais ampla, quando aceita uma autoridade superior que estabeleça as regras de convivência em torno desse objetivo comum, surge a primeira concepção de Estado. De fato, o Estado é uma espécie de sociedade política. A expressão Estado, porém, é reveladora de momento histórico determinado e específico. Coube a Maquiavel o seu emprego na obra O príncipe (1513). Diante da importância da obra, que apontava as características para um governo de sucesso no contexto político da Itália, o termo se difundiu ao longo do século XVII, superando concepções mais tradicionais que faziam alusão ao “estado” como grande propriedade particular (estados na Espanha e states na Inglaterra) (DALLARI, 2013). Mais adiante, a expressão passou a ser empregada apenas quando estivessem presentes algumas características específicas. Foi então que surgiu, no século XVIII, o chamado Estado moderno (DALLARI, 2013). A dificuldade em identificar uma exata conceituação sobre o que se entende por Estado deságua em similar desafio para encontrar as suas origens. Assim, uma primeira corrente defende que a figura do Estado, associada a uma sociedade organizada, sempre existiu. Não seria concebível uma sociedade sem Estado. Nesse sentido, o Estado seria justamente o princípio organizador de toda a humanidade. Por outro lado, uma segunda corrente afirma que o aparecimento do Estado depende das conveniências e oportunidades de cada grupo social, dependendo das condições concretas de cada agrupamento em cada localidade. Por fim, uma terceira corrente destaca que somente pode ser considerado Estado aquela sociedade política com características próprias e nascida na metade do século XVII. Para essa concepção, a definição de Estado não é generalizável, mas um produto histórico decorrente do reconhecimento da ideia de soberania, isto é, a concentração de poder em determinado território e sobre uma determinada comunidade — o que somente teria ocorrido no século XVII (MORAIS; STRECK, 2010). 5.1 Formação do Estado A formação do Estado é tema que suscitadivergências. Variadas seriam as possíveis causas para o surgimento dessa sociedade política, sendo frequente a 18 classificação entre formação originária e formação derivada (AZAMBUJA, 2008). A primeira estaria relacionada ao avanço na organização de um agrupamento pela primeira oportunidade, isto é, sem que houvesse uma ordem política anterior. A segunda diz respeito a situações em que novos Estado surgem a partir de outros já existentes. Nesse caso, falamos em fracionamento (quando uma parte do território de um Estado é desmembrada e se constitui um novo Estado) ou em união (quando dois ou mais Estados se reúnem para formar um novo Estado). 5.2 Teorias naturalistas As teorias naturalistas buscam explicar a formação originária do Estado a partir de uma condição espontânea do ser humano. Segundo essas teorias, haveria uma formação espontânea do Estado, que dispensa qualquer ato voluntário da comunidade. Assim, o surgimento do Estado não depende de qualquer ato específico do homem, mas seria produto da sua natural caminhada em sociedade. Trata-se, portanto, de uma formação natural e, dessa forma, não contratual do Estado. A formação natural do Estado é assim defendida por Darcy Azambuja: [...] só um fato é permanente e dele promanam outros fatos permanentes: o homem sempre viveu em sociedade. A sociedade só sobrevive pela organização, que supõe a autoridade e a liberdade como elementos essenciais; a sociedade que atinge determinado grau de evolução passa a constituir um Estado. Para viver fora da sociedade, o homem precisaria estar abaixo dos homens ou acima dos deuses, como disse Aristóteles, e vivendo em sociedade ele natural e necessariamente cria a autoridade e o Estado (AZAMBUJA, 2008, p. 109). As principais causas não contratuais para o surgimento do Estado são sistematizadas por Dalmo de Abreu Dallari da seguinte forma (DALLARI, 2013): Origem familiar — considera que o núcleo familiar é a célula-mãe da sociedade política. De fato, a partir da reunião de diversas famílias, a complexidade do grupo social aumenta e, assim, surge o Estado enquanto figura de reunião da comunidade. Essa foi a proposta de Fustel de Coulanges ao tratar do surgimento do Estado grego e do Estado romano. Origem violenta — considera que o Estado é o resultado da natural superioridade de força de determinado grupo sobre outro. Assim, lembra Darcy Azambuja que o Estado é, durante os seus primeiros estágios, uma organização 19 imposta pelo vencedor para manter a dominação do vencido (AZAMBUJA, 2008). É também denominada teoria da violência ou teoria da conquista. Origem econômica — considera que a reunião do sujeito em torno de um aparato de poder organizado decorre de motivos econômicos. Assim, o Estado proporciona a reunião de variados interesses, já que ninguém é bastante em si. Mais do que isso, essa teoria destaca que o Estado proporciona a divisão do trabalho e a integração de diversas atividades diferentes. Alguns autores, como Marx e Engels, vão ao extremo dessa teoria para explicar as razões pelas quais o Estado autoriza tantas desigualdades: na sua origem econômica, ele institucionalizou a propriedade privada, o acúmulo de patrimônio, a divisão de classe e, por consequência, a luta entre elas. Sobre o tema, confira a crítica de Darcy Azambuja (2008, p. 103): Quanto à luta de classes, o que a história e a sociologia têm demonstrado é que ela sempre existiu como também sempre existiu a cooperação entre as classes; que o Estado possa ser frequentemente instrumento dessa luta é demonstrável; mas, que ele tenha nela sua origem, é história distorcida e sociologia para propaganda política. Origem no desenvolvimento interno — considera que toda sociedade humana tem um Estado em potencial que surgirá à medida que a sua complexidade aumentar. Assim, uma sociedade pouco desenvolvida dispensa a figura do Estado, mas uma sociedade com maior desenvolvimento tem por necessidade o surgimento do Estado. Há, em razão disso, um surgimento do Estado naturalmente decorrente do progresso de uma sociedade. 5.3 Teorias contratualistas As teorias contratualistas buscam explicar a formação originária do Estado a partir de um ato voluntário do ser humano. Segundo essas teorias, a formação do Estado depende de uma convenção expressa realizada entre os integrantes de uma sociedade. Assim, em linhas gerais, o surgimento do Estado dependeria de um ato concreto de reunião e aceitação, por alguns denominado contrato social. Trata-se, portanto, de uma formação contratual do Estado. Para o pensamento contratualista, a sociedade e o Estado são criações artificiais da razão humana, derivadas de um consenso, tácito ou expresso, da maioria dos indivíduos para encerrar o estado de natureza e iniciar o estado civil. Assim, a 20 origem e a legitimação do Estado são uma decorrência do contrato entre os indivíduos (MORAIS; STRECK, 2010). O pensamento contratualista, entretanto, não é uniforme, merecendo especial atenção as ideias de Hobbes, Locke e Rousseau. Fonte: conversadeportugues.com.br Nesse sentido, Hobbes destaca que, antes da vida em sociedade, o homem se encontrava em uma fase primitiva, caracterizada pela insegurança e incerteza constantes. No estado de natureza, para ele, haveria uma eterna guerra de todos contra todos, derivada do caráter eminentemente negativo do homem — que não possui uma natureza boa. Assim, com o intuito de preservar a própria vida, o ser humano lança mão de um pacto em que se despoja dos seus direitos em detrimento de segurança. Entretanto, como a transgressão é ínsita ao homem, para garantir o cumprimento do pacto social, o grupo entrega o poder social para um novo sujeito, que é justamente o Estado. Por essa razão, a teoria contratualista de Hobbes justifica, a um só tempo, o surgimento da sociedade organizada (estado civil) e do Estado. Curiosamente, a figura é chamada, por Hobbes, de Leviatã (“metade monstro e metade deus mortal”), ente capaz de garantir a paz e a defesa da vida dos seus súditos (MORAIS; STRECK, 2010, p. 32). O pensamento do autor inglês traz amplos poderes para o soberano, já que não há parâmetros naturais para a ação estatal, uma que pelo contrato o homem se despoja de tudo, exceto da vida, transferindo o asseguramento dos interesses à sociedade política, especificamente ao soberano. O Estado e o Direito se constroem pela demarcação de limites pelo soberano que, por não ser partícipe na convenção instituidora e, recebendo por todo 21 desvinculado o poder dos indivíduos, tem aberto o caminho para o arraigamento de sua soberania (MORAIS; STRECK, 2010, p. 34). Assim, em Hobbes, o Estado “já nasce com poderes supremos” (DINIZ, 2001, p. 152). Reafirmamos que, para Hobbes, é a manutenção do pacto social que possibilita a existência de paz entre o grupo social. As condições para o cumprimento do contrato, por sua vez, são uma providência do soberano — autorizado a “velar para que o temor ao castigo seja uma força maior que o fascínio exercido pelo desejo de qualquer vantagem possa esperar de uma violação do contrato” (DINIZ, 2010, p. 161). Com efeito, para Hobbes, a submissão absoluta é o preço a ser pago pelo súdito pela salvação trazida pelo Estado (DIAS, 2013). Por essa razão, o seu pensamento é inspiração do modelo absolutista. Ao pensamento de Hobbes, contrapõe-se Locke — defensor das liberdades individuais e fervoroso antagonista do modelo absolutista. Para ele, no estado de natureza, o homem já possui um domínio racional de suas paixões e seus interesses, de modo que não se pode considerar a existência de uma guerra potencial. Pelo contrário, nesse estágio inicial da sociedade, há uma paz relativa que permite ao homem identificar os seus limites e reconhecer a existência de alguns direitos. De fato, no pensamento de Locke, existem diversos direitos inatos aohomem, como a vida, a liberdade e a propriedade. Falta, porém, uma força coercitiva apta a solucionar conflitos que possam surgir (MORAIS; STRECK, 2010). A necessidade de uma força coercitiva para assegurar a proteção dos direitos inatos ao homem conduz à elaboração de um pacto entre os integrantes da sociedade. Surge, então, o contrato social como ferramenta de legitimação do poder e de manutenção dos direitos naturais. Assim, o pacto se sustenta na necessidade de proteção de direitos previamente existentes e na sua proteção contra possíveis conflitos. Surgem, assim, o estado civil e a fonte da autoridade estatal. Verificamos, nesse panorama, o caráter individualista de Locke: o surgimento do estado civil se dá para resguardar os direitos naturais de cada sujeito (MORAIS; STRECK, 2010), em especial, a propriedade (APPIO, 2005). O poder do Estado, nessa linha, já surge limitado aos direitos naturais antes existentes. Como podemos perceber, enquanto Hobbes via no Estado um ente plenipotente, Locke identifica no Estado um ente com poder delimitado. Por essa razão, defende ele que os sujeitos do contrato podem se opor ao Estado quando houver violação a direitos naturais. Existe, pois, direito de resistência na sociedade 22 política defendida por Locke (MORAIS; STRECK, 2010). Ainda, para ele, quando já instaurados a sociedade e o Estado, além do limite inicial decorrente dos direitos naturais, deverá ser observado o princípio da maioria. Assim, haverá uma proeminência do Poder Legislativo sobre o Poder Executivo (MORAIS; STRECK, 2010). Além disso, a observância da lei é impositiva, porque é fundada no próprio contrato social — o deixar de seguir a lei criado pelo Poder Legislativo é o mesmo que querer retornar ao estado natural (APPIO, 2005). O pensamento de Rousseau também é digno de referência, já que confirma a evolução da origem do Estado de um modelo absolutista para um modelo democrático. Com Rousseau, a tese do estado de natureza apenas facilita o entendimento da sociedade. Na realidade, a formação de uma sociedade teria maior caráter histórico. É célebre a sua afirmação de que, quando o primeiro homem reivindicou propriedade e os demais, ingênuos, aceitaram, teria surgido a sociedade. Assim, a noção de estado de natureza é emprestada apenas para ilustrar o contrato social e a legitimidade do poder social. Na compreensão de Rousseau, para manter a liberdade e a igualdade do indivíduo, propõe-se que o contrato social seja uma entrega do particular (vontade individual) para o geral (vontade geral), de modo que, quando ocorre a incursão no estado civil, não há uma abdicação da liberdade, mas sim uma entrega dela para toda a comunidade. E, como o sujeito faz parte do grupo social, não há qualquer perda. Pelo contrário, no pacto social, o indivíduo mantém a sua condição de liberdade e igualdade. É, pois, no princípio da vontade geral que reside a legitimidade do poder em Rousseau (MORAIS; STRECK, 2010). Nessa linha de entendimento, o poder não decorre da submissão a um terceiro, mas da união havida entre iguais. Trata-se de concepção na qual cada um renuncia a seus interesses particulares em detrimento da coletividade. Confira: Enfim, dando-se cada um a todos, não se dá a ninguém, e como não haverá nenhum associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se cedeu, ganha-se o equivalente a tudo que se perde e mais força para se conservar aquilo que se tem. Se, afinal, retira-se do pacto social aquilo que não pertence à sua essência, veremos que ele se reduz aos seguintes termos: cada um põe em comum sua pessoa e todo seu poder sob suprema direção da vontade geral; e enquanto corpo, recebe-se cada membro como parte indivisível do todo (ROUSSEAU, 2017, p. 24). 23 A primordial contribuição desse pensamento é o tom democrático: é indispensável o respeito à vontade geral encarnada na maioria. O poder, nessa passagem, não mais pertence a um príncipe ou oligarca, mas à própria comunidade. Traz, por outro lado, a problemática reversa: Rousseau consagra o despotismo da maioria e sufoca qualquer pensamento político contrário à voz dominante (MORAIS; STRECK, 2010). Seja como for, no seu pensamento, há uma inegável proposta de limitação do Estado, já que o soberano não tem o direito de sobrecarregar um indivíduo em detrimento do outro (DIAS, 2013): Assim, fica claro que o poder soberano, por mais que seja totalmente absoluto, sagrado e inviolável, não ultrapassa nem pode ultrapassar os limites das convenções gerais, e que todo homem pode dispor plenamente dos seus bens e da sua liberdade naquilo que foi estipulado por essas convenções; de modo que o soberano nunca tem direito de sobrecarregar mais um súdito que o outro, uma vez que seu poder não é mais competente, quando o assunto se torna particular” (ROUSSEAU, 2017, p. 40). A importância da teoria contratualista da formação do Estado é inegável, já que não apenas revela a proteção de direitos do indivíduo como também enuncia que o Estado, desde a sua origem, é limitado. 6 O ESTADO E OS SEUS PAPÉIS A fim de compreender a formação do Estado na atualidade, você deve refletir sobre os pressupostos ontológicos que pontuam a constituição dessa instância, que é um marco na história das sociedades. O homem, em seu estado de natureza, possui sua liberdade natural e a protege com sua força física. Como disse Thomas Hobbes (1588–1679) “o homem é o lobo do homem”, ou seja, o homem é seu próprio inimigo. Essa premissa levou as sociedades primitivas a criarem a ordem em meio ao caos. 24 Fonte: mundoeducacao.uol.com.br/geografia/conceito-estado A sociedade que surge do estado de natureza se constitui por meio de um contrato social. Quando a força física já não é mais suficiente para a manutenção da ordem, é necessária uma força superior. Nesse sentido, o homem sai de seu estado natural para o estado civil e perde a liberdade natural. Em uma sociedade, existe a liberdade política, que é garantida pelo Estado e não mais pela força física. Assim, ela se iguala à liberdade natural — desde que o homem não deixe de exercer as suas vontades. Rousseau explica que o homem possui duas vontades: uma pública e outra particular. Sendo a vontade pública uma vontade geral, ela se sobrepõe à vontade particular de cada um. Em um Estado legítimo, a vontade particular deve se adaptar à vontade geral. Caso contrário, ocorre o fim do Estado. A vontade geral leva os homens a se tornarem um só corpo e a terem uma única direção política. O corpo político possui caráter moral e se torna existente a partir do pacto social. Ele só existe se todos dispuserem de tudo para toda a comunidade, porque um corpo não pode denegrir a si mesmo. Veja: Se a vontade do corpo político é feita, tem-se um Estado legítimo. Estado esse que é guiado pela vontade geral, e preza pela preservação da liberdade e dos bens de cada associado. O homem natural, que vivia isolado e bastava a si mesmo, agora, através do pacto, faz parte de um todo maior, o corpo político. No corpo político, sua liberdade é ainda mais assegurada, já que não depende de sua força física. O que limita essa liberdade é a vontade geral, que, por sua vez, está diretamente ligada à criação e observância das leis (SILVA; CUNHA, 2013, p. 218). 25 Nesse contexto, é importante você notar a compreensão que se tem das leis, que são uma declaração geral sobre um interesse comum. Elas existem a fim de garantir a liberdade e a igualdade entre os homens. Além disso, a lei é sempre justa, pois o homem não pode ser injusto consigo mesmo. Assim, “Se quisermos saber no que consiste, precisamente, o maior de todos os bens, qual deva ser a finalidade de todos os sistemas de legislação, verificar-se-á que se resume nestes dois objetivos principais: a liberdade e a igualdade [...]” (ROUSSEAU, 1999, p. 127 apud SILVA; CUNHA, 2013, p. 219).O que fundamenta e garante que a finalidade do Estado se cumpra é a preservação da liberdade e da igualdade entre os homens. Esse também é o fundamento da vontade geral, das leis e do corpo político. Segundo Silva e Cunha (2013, p. 220), “[…] A vontade do corpo político é a vontade geral. Por meio dela o homem continua a ser livre, e por ser membro deste corpo ele é igual a todos os demais membros […] o Estado dirigido pela vontade geral é um Estado social legítimo [...]”. Segundo Pereira (2009), três elementos constituem o Estado. Veja a seguir. 1. Um conjunto de instituições e prerrogativas, entre as quais o poder coercitivo, que só o Estado possui, por delegação da própria sociedade. 2. O território, isto é, um espaço geograficamente delimitado onde o poder estatal é exercido. Muitos denominam esse território de “sociedade”, ressaltando a sua relação com o Estado, embora este mantenha relações com outras sociedades, para além de seu território. 3. Um conjunto de regras e condutas reguladas dentro de um território, o que ajuda a criar e manter uma cultura política comum a todos os que fazem parte da sociedade nacional ou do que muitos chamam de “nação”. O Estado é um fenômeno histórico e relacional. Portanto, deve ser tratado como processo. Afinal, ele não existe de forma absoluta nem é inalterável. Veja: Por ser um processo histórico, que contempla passado, presente e futuro, bem como a coexistência de antigos e novos elementos e determinações, a relação praticada pelo Estado tem caráter dialético — no sentido de que propicia um incessante jogo de oposições e influências entre sujeitos com interesses e objetivos distintos. Ou, em outros termos, a relação dialética realizada pelo Estado comporta igualmente antagonismos e reciprocidades e, por isso, permite que forças desiguais e contraditórias se confrontem e se integrem a ponto de cada uma deixar sua marca na outra e ambas contribuírem para um resultado final (PEREIRA, 2009, p. 345). É nessa relação com a sociedade que o Estado abrange toda a dimensão da vida social, indivíduos e classes, assumindo diferentes responsabilidades. Entre elas, 26 a de atender às demandas e reivindicações da sociedade como um todo e não apenas de uma classe. Mesmo possuindo um poder coercitivo, o Estado também exerce funções protetoras, sendo pressionado e controlado pela sociedade. Pereira (2009) ainda afirma que o Estado não é uma entidade desgarrada da sociedade. Ele não é a única força organizada e autossuficiente na sociedade e não é um instrumento exclusivo da classe dominante. É uma instituição constituída e dividida por interesses diversos, que possui a tarefa primordial de administrar tais interesses sem neutralidade. O Estado deve se relacionar com todas as classes para se legitimar e construir sua base material de sustentação, e não apenas com a classe com que mais se identifica. O Estado é a expressão de todas as classes. Embora zele pelos interesses da classe dominante, acata outros interesses para manter a classe dominada afastada do bloco de poder. Segundo Pereira (2009, p. 346), é “relacionando-se com todas as classes que o Estado assume caráter de poder público e exerce o controle político e ideológico sobre todas elas [...]”. Se o Estado se exime de suas responsabilidades com certos grupos ou classes, pode perder o seu apoio ou a sua confiança. Isso abre brechas para a sociedade se organizar autonomamente por meio de movimentos. Além disso, isso põe em risco o bloco de poder e possibilita o surgimento de poderes paralelos. É por isso que o Estado é, por um lado, uma relação de dominação (ou a expressão política da dominação de quem está no poder) e, por outro, um conjunto de instituições mediadoras e reguladoras dessa dominação. Como você pode notar, o Estado exerce uma forma de controle sobre a sociedade, mas também possui a função de protegê-la e está estruturado de forma a garantir o seu poder e a sua autonomia. Na atualidade, se vive sob os mandos do Estado neoliberal, que interfere de forma parcial na economia e visa a proteger as classes mais desfavorecidas por meio de políticas sociais paliativas, ofertando o mínimo para sobreviverem. Em tempos de capital, o que se vê é o Estado atuando a favor de determinados grupos em vez de cumprir o seu papel de protetor de toda a sociedade. 7 O SERVIÇO SOCIAL E A DIVISÃO DE CLASSES Segundo Marx e Engels (2008, p. 8), “A história de todas as sociedades até agora tem sido a história das lutas de classe [...]”. A concepção de classe social 27 adotada pelo Serviço Social está fundamentada na teoria social de Marx. Ela parte do pressuposto de que nos primórdios do capitalismo havia duas classes fundamentais: a dos proprietários e a dos proletários. A primeira detinha os meios de produção e a segunda vendia a sua força de trabalho em troca de um salário, que em parte também era apropriado pela primeira classe. A divisão da sociedade em classes permite a concorrência e a liberdade econômica que geram lucratividade e consumo. Com a ascensão da burguesia no período do declínio da sociedade feudal, o antagonismo de classes foi ficando cada vez mais aparente. Nesse contexto, as contradições não eram eliminadas; pelo contrário, surgiam novas classes e novas condições de opressão. Para compreender isso melhor, considere o seguinte: A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção e, por conseguinte, todas as relações sociais. A conservação inalterada dos antigos modos de produção era a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. A transformação contínua da produção, o abalo incessante de todo o sistema social, a insegurança e o movimento permanente distinguem a época burguesa de todas as demais. As relações rígidas e enferrujadas, com suas representações e concepções tradicionais, são dissolvidas, e as mais recentes tornam-se antiquadas antes que se consolidem. Tudo o que era sólido desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas (MARX; ENGELS, 2008, p. 14). A burguesia expandiu o mercado por meio dos oceanos a fim de que o comércio chegasse a todos os cantos do mundo, criando uma interdependência geral entre os países. Com o passar do tempo, as duas classes fundamentais foram se estratificando, ganhando novas conotações, mas, em suma, se resumem à burguesia e ao proletariado. Segundo Marx e Engels (2008, p. 29–30), “[...] a condição essencial para a existência e a dominação da classe burguesa é a concentração de riqueza nas mãos de particulares, a formação e a multiplicação do capital; a condição de existência do capital é o trabalho assalariado [...]”. 28 Fonte: mundoeducacao.uol.com.br/sociologia/classe-social. Via de regra, a burguesia (ou classe dominante) não se preocupa em retirar da classe proletária o pouco que ela possui. A burguesia utiliza a propriedade privada, a apropriação dos meios de produção, a apropriação da riqueza socialmente produzida e a extração da mais-valia para manter o seu status quo. Entretanto, no decorrer da história, a classe trabalhadora sempre demonstrou o seu descontentamento com a condição de vida e de trabalho que lhe foi imposta. Ela tem encontrado nos movimentos de oposição uma forma de lutar por seus direitos. Toda luta de classes é, portanto, uma luta política (MARX; ENGELS, 2008). Assim, você pode considerar que a divisão de classes sociais existe apenas no modo de produção capitalista e que, portanto, é produto consolidado da lógica capitalista. Segundo Frederico (2009, p. 1), classes sociais “[...]são entendidas como um componente estrutural da sociedade capitalista e, ao mesmo tempo, como sujeitos coletivos que têm suas formas de consciênciae de atuação determinadas pela dinâmica da sociedade [...]”. Em suma, a conformação das classes sociais depende do desenvolvimento da sociedade capitalista. Nesse sentido, Duriguetto (2013) destaca a relação orgânica entre a sociedade civil e o mundo das relações sociais de produção. É a partir dela que se desenvolvem as classes sociais, bem como seus interesses conflitantes, suas expressões organizativas, suas formas de consciência e até mesmo a função do Estado. A sociedade é uma esfera em que as classes lutam pela hegemonia, e há aquelas que transitam na contra hegemonia, buscando aliados, articulando interesses e necessidades. O Serviço Social, em seu Código de Ética (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 1993), assume o compromisso de atuar juntamente à classe 29 trabalhadora, lutando pelos interesses dos menos favorecidos. O projeto ético-político definido no seio da profissão visa ao fortalecimento das lutas a favor da classe trabalhadora, o que a leva a fazer alianças com os sujeitos coletivos. Percebe-se que aumenta cada vez mais o nível de divisão entre as classes. Isso remonta ao conceito de Antunes (2008): “classe que vive do trabalho”. Tal conceito exprime e dá relevância àqueles que não têm acesso aos bens produzidos pela sociedade, mas que têm no trabalho o motivo da sua existência e da sua sobrevivência. Na medida em que o capital vai se complexificando, a divisão de classes vai ficando também cada vez mais complexa. O Serviço Social, com base nos pressupostos teóricos da profissão, assume a posição política de voltar suas ações para a defesa dos direitos da classe trabalhadora. A ideia é fortalecer vínculos, estreitar laços com as lideranças dos movimentos e contribuir para a construção de sujeitos coletivos, visando à emancipação política dessa classe. Em seu Código de Ética, está expressa a “[...] opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação/exploração de classe, etnia e gênero [...]” (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2013, p. 24). Além disso, está prevista a “[...] articulação com os movimentos de outras categorias profissionais que partilhem dos princípios deste Código e com a luta geral dos trabalhadores [...]” (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 1993, p. 24). Assim, como evidenciam o Código de Ética do Serviço Social, a lei de regulamentação da profissão e o seu projeto ético-político, o Serviço Social serve como um mecanismo para a concretização das políticas públicas. Ele atua no enfrentamento das manifestações da Questão Social e a favor da classe trabalhadora (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 1993). 8 O MATERIALISMO HISTÓRICO: CONCEPÇÃO MARXISTA DA HISTÓRIA Principais conceitos O pensamento marxista se consolidou em torno do materialismo dialético e do materialismo histórico. Esta última terminologia é, em geral, a mais empregada para designar a teoria marxista da história. Além disso, Barros (2011) chama a atenção para que não se confunda ou se sobreponha materialismo histórico e marxismo, que muitas vezes são utilizados como sinônimos. Nesse sentido, o autor propõe uma diferenciação entre o marxismo-leninismo, como 30 programa de ação política, e o materialismo histórico, como um paradigma, um método e uma abordagem teórica para a compreensão dos processos históricos. O materialismo histórico enquanto paradigma foi forjado por Karl Marx (1818–1883) e Friedrich Engels (1820–1895) em diálogo com o campo historiográfico e com demais produções das ciências humanas realizadas ao longo do século XIX. Suas obras reúnem os conceitos e a teoria que sustentam o materialismo histórico. Além disso, em diversas análises os autores colocaram em prática essa leitura da realidade. Para Barros (2011), o materialismo histórico possui um núcleo conceitual mínimo, composto pelas ideias de dialética, de materialismo e de historicidade, além de três conceitos incontornáveis (práxis, luta de classes e modo de produção). Contudo, outros conceitos também aparecem seguidamente na obra de Marx. A seguir, você vai conhecer algumas definições elaboradas a partir do Dicionário de Conceitos Históricos (2009). Dialética: é um método de análise, fundamentado na contradição, que organiza o raciocínio para a busca da verdade, analisando uma situação contraditória de dada realidade. Para comprovar uma tese, o investigador usa uma antítese, ou seja, a negação da própria tese original. Mas a negação não é suficiente para a compreensão do fenômeno investigado, pois toda negação, em si mesma, contém alguma positividade (não se pode negar sem afirmar alguma coisa). É preciso então aproveitar as contribuições positivas que existem na tese e na antítese para se chegar a uma síntese dos dados conseguidos. De forma simples, a síntese seria o conjunto de conclusões às quais o investigador chega por meio da análise dialética, mas que não se apresenta como definitivo, visto que toda realidade está sujeita ao princípio da contradição. Começa então uma nova situação em que o movimento tese–antítese–síntese ressurge, dando origem a outra situação, que pode ser observada pelo movimento tese–antítese–síntese. Marx construiu uma dialética em torno da matéria, formulando o materialismo dialético em oposição à dialética dos idealistas Hegel e Fichte. Luta de classes: Marx definiu classe social como a posição comum de um conjunto de indivíduos no interior das relações sociais de produção. Para ele, classe era um grupo social com uma função específica no 31 processo produtivo. Por exemplo, os proprietários de terra, os capitalistas e os trabalhadores constituem classes distintas. Cada um deles ocupa um lugar específico no processo de produção: alguns possuem a terra, outros, o capital; e os trabalhadores, a habilidade de trabalho. As diferentes funções dão a cada classe interesses conflitantes, além de ideias e maneiras de agir diferentes. A história, por sua vez, seria o relato desses conflitos. Nesse sentido, a tradição marxista tende a conceituar classe com base no lugar que cada grupo ocupa na economia. Os estudos de Marx e Engels estiveram voltados principalmente para as estruturas de classe das sociedades capitalistas, não dando muita atenção às relações de classe em outras sociedades. Por um lado, ao afirmarem que a história de todas as sociedades tinha sido até então a história da luta de classes, os autores deram a entender que houve classes sociais em vários períodos históricos. Por outro lado, defenderam que a classe era uma característica específica das sociedades capitalistas. Modos de produção: é uma das formulações do materialismo histórico que divide a história (sobretudo a história europeia) em épocas distintas e sucessivas. Para Marx, os modos de produção correspondem a estágios específicos das forças e relações de produção de dada formação social. O modo de produção, em linguagem menos teórica, seria o modo pelo qual determinada sociedade organiza a sua vida econômica, o trabalho, as estruturas políticas e jurídicas e mesmo as manifestações culturais. Todos os aspectos da vida em sociedade (desde os aspectos materiais até os mentais) estariam determinados pelo modo de produção da vida material. Para o materialismo histórico, é a maneira concreta de uma sociedade organizar sua produção que dá forma a todo o edifício social existente nela. Os modos de produção identificados por Marx correspondem, em linhas gerais, à história do mundo europeu, desde as comunidades primitivas até a última fase, o comunismo. As seis épocas históricas ou modos de produção concebidos por Marx são: comunismo primitivo; sociedade escravocrata antiga; feudalismo; capitalismo; socialismo e comunismo. O 32 funcionamento da economia, em cada um desses estágios, apresenta níveis de tecnologia e de relações deprodução particulares. Materialidade: para o materialismo dialético, as condições materiais de existência (a economia) são o verdadeiro móvel das ações humanas. Assim, a dialética seria o método para se perceber e superar as contradições sociais e históricas frequentes nas diversas sociedades humanas ao longo da história. O pensamento de Marx consiste em partir do real (dos homens reais e de suas contradições) e não das ideias ou da mente, como faz Hegel. De acordo com o materialismo dialético, o desenvolvimento histórico da humanidade não se dá pela sucessão de fatos isolados, mas por um processo que envolve movimento e mudança (que, por sua vez, implicam contradições). Práxis: a teoria marxista, de profunda inspiração filosófica, trouxe inovações para se pensar o homem e o mundo no século XIX. Marx foi o primeiro a mostrar que o significado de uma teoria só pode ser compreendido em relação à prática histórica correspondente. Uma teoria não pode ser pensada e entendida sem correspondência com o contexto histórico. Toda teoria deve, portanto, estar enraizada na realidade histórica e dizer alguma coisa que possa transformá-la. Dessa forma, Marx buscou conciliar reflexão filosófica e prática política, teoria e práxis (entendida como a ação humana que transforma o mundo e a si mesma). 33 8.1 A concepção de história de Marx Fonte: www.gazetadopovo.com.br/rodrigo-constantino/artigos O historiador espanhol Pierre Vilar afirmou, certa vez, que muitos se intitulam “historiadores marxistas”, mas poucos se dedicam à “[...] estrita aplicação de um método de análise teoricamente elaborado para a mais complexa das matérias de ciência: as relações sociais entre os homens e as modalidades de suas mudanças” (VILAR, 1995, p. 146). Vilar (1995) afirma que Marx se preocupou com a formulação de uma ciência: coerente, dotada de um esquema teórico sólido; total, do ponto de vista de recobrir a totalidade de uma análise; e dinâmica, passível de ser debatida a partir das mudanças que se sucedem. Nesse sentido, os questionamentos levantados pelo historiador espanhol são bastante pertinentes para você compreender a concepção de história de Marx: teria sido Marx um historiador marxista? Marx desejou alguma vez ser historiador, ou tentou alguma vez escrever história? (VILAR, 1995). Sem dúvidas, em sua vasta produção, Marx escreveu “história” tal como é concebida nos dias de hoje, mas talvez não como era entendida naquele momento, em que o campo recém começava a ganhar contornos disciplinares. Seu “raciocínio histórico” ia da teoria à empiria e vice-versa, questão que foi colocada pela historiografia apenas na década de 1960. Em seus trabalhos sobre a França, segundo Vilar (1995), é possível encontrar, além da “aplicabilidade” da leitura da sociedade 34 francesa por meio do materialismo histórico, questões fundamentais para a história, como reflexões sobre as estruturas da sociedade e as noções de atualidades e de acontecimentos. Entretanto, Hobsbawm (1998, p. 172–173) adverte que esses trabalhos não podem ser considerados “históricos”: O desenvolvimento dessa influência de Marx na literatura histórica não é evidente por si mesma, pois, embora a concepção materialista da história seja o cerne do marxismo e embora tudo o que Marx escreveu esteja impregnado de história, ele próprio não escreveu muita história tal como os historiadores a entendem. Nesse sentido, Engels era mais historiador, escrevendo mais obras que poderiam ser razoavelmente catalogadas nas bibliotecas como “história”. [...] O que chamamos de escritos históricos de Marx consistem quase exclusivamente de análise política corriqueira e comentários jornalísticos, associados a um certo grau de contexto histórico. Suas análises políticas usuais, como Lutas de classes na França e O 18 Brumário de Luís Bonaparte, são realmente notáveis. Seus volumosos escritos jornalísticos, ainda que de interesse irregular, contêm análises do maior interesse — entre os quais seus artigos sobre a Índia — e, em todo caso, são exemplos de como Marx aplicava seu método a problemas concretos, tanto de história quanto de um período que depois se converteu em história. Mas não eram escritos como história, tal como a entendem aqueles que se dedicam ao estudo do passado. Por fim, o estudo de Marx sobre o capitalismo contém uma quantidade enorme de material histórico, exemplos históricos e outros materiais relevantes para o historiador. Aqui reside uma das grandes diferenças entre a obra de Marx e a daqueles que se apropriaram dela para conformar o marxismo dogmático: Marx valorava muito a “fase de investigação” de suas pesquisas, ou seja, a empiria possuía uma importância muito grande. Assim, a utilização de seu arcabouço conceitual e teórico como uma “doutrina” é um reducionismo de seu método de análise, pois a empiria está diretamente em diálogo com as fontes utilizadas por Marx (VILAR, 1995). A explicitação desse método não está contida em sua obra, mas é realizada por seus comentadores. Contudo, Marx inaugurou uma leitura da realidade que ele chamava de sócio histórica, encontrando nas contradições sociais, nas lutas de classe e nos modos de produção uma interpretação sobre as sociedades. Assim, o conceito fundamental para compreender a interpretação de história de Marx é o conceito de modo de produção enquanto estrutura determinada e determinante das relações sociais. De acordo com Vilar (1995, p. 155), a originalidade dessa formulação assenta-se em três pontos: Mas sua originalidade não é a de ser um objeto teórico. É a de ter sido, e continuar sendo, o primeiro objeto teórico a exprimir um todo especial, enquanto os primeiros esboços de teoria, nas ciências humanas, se limitavam ao econômico e tinham visto nas relações sociais dados imutáveis (a propriedade da terra para os fisiocratas) ou condições ideais a serem 35 preenchidas (liberdade e igualdade jurídicas para os liberais). A segunda originalidade, como objeto teórico, do modo de produção é ser uma estrutura de funcionamento e de desenvolvimento, nem formal nem estática. A terceira é que essa estrutura implica o princípio (econômico) da contradição (social), contudo a necessidade de sua destruição como estrutura, de sua desestruturação. Para analisar, na prática, a compreensão de Marx sobre a história, leia, a seguir, um trecho de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, que hoje pode ser considerada uma obra de história do tempo presente, já que Marx a escreveu no calor dos acontecimentos: Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar- -se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar nessa linguagem emprestada. Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789–1814 vestiu-se alternadamente como a república romana e como o império romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793–1795. De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela (MARX, 2003, p. 7). Barros (2011, p. 91) interpretou da seguinte forma o trecho anterior de Marx: A história [...] mostra suasduas facetas: aquilo que se impõe sobre os homens a partir de condições objetivas herdadas das gerações anteriores, e aquilo que vai sendo transformado por sua ação, por seu confronto através das lutas sociais. A história é para ele espaço de aprisionamentos e de liberdades. Há épocas em que a história parece se impor tiranicamente sobre esses homens, deixando-lhes margens estreitas, no interior das quais, contudo, eles se movimentam; e há épocas em que esses mesmos homens parecem tomar para si a tarefa de revolucionar seus destinos. Essas ideias são retomadas por Marx em outra obra, A Ideologia Alemã: A história nada mais é do que a sucessão das diferentes gerações, cada uma das quais explora os materiais, capitais e as forças de produção a ela transmitidos pelas gerações anteriores; ou seja, de um lado prossegue em condições completamente diferentes a atividade precedente, enquanto de outro lado modifica as circunstâncias através de uma atividade totalmente diferente (MARX, 2001, p. 70). 36 8.2 O que os historiadores devem a Karl Marx? O título desta seção também é o título de um artigo escrito por Eric Hobsbawm em que o historiador avalia a contribuição da obra de Marx para a história. De acordo com Hobsbawm, Marx rompe com as práticas historiográficas hegemônicas do século XIX, dedicadas ao estudo da diplomacia e do político, das guerras e dos grandes líderes. Ao proporem que a história é a história da luta de classes ou que é a história dos modos de produção, Marx e Engels sugeriam uma inversão da perspectiva de análise, deslocando os interesses para as bases econômico-sociais das sociedades. Para Hobsbawm (1998), é necessário separar o que foi a contribuição de Marx para a historiografia do que ele chamou de “marxismo vulgar”, uma apropriação sem critérios de algumas ideias do pensamento do filósofo alemão. Segundo o autor britânico, o “marxismo vulgar” pode ser compreendido como: 1. A “interpretação econômica da história”, ou seja, a crença de que “o fator econômico é o fator fundamental do qual dependem os demais”; e, mais especificamente, do qual dependiam fenômenos até então não considerados com muita relação com questões econômicas. Nesse sentido, essa interpretação se superpunha ao 2. Modelo da “base e superestrutura” (utilizado mais amplamente para explicar a história das ideias). A despeito das próprias advertências de Marx e Engels e das observações sofisticadas de alguns marxistas, esse modelo era usualmente interpretado como uma simples relação de dominância e dependência entre a “base econômica” e a “superestrutura”, na maioria das vezes mediada pelo 3. “Interesse de classe e a luta de classes”. Tem-se a impressão de que diversos historiadores marxistas vulgares não liam muito além da primeira página do Manifesto Comunista, e da frase: “a história [escrita] de todas as sociedades até agora existentes é a história das lutas de classes”. 4. “Leis históricas e inevitabilidade histórica”. Acreditava-se, acertadamente, que Marx insistira sobre um desenvolvimento sistemático e necessário da sociedade humana na história, a partir do qual o contingente era em grande parte excluído, de qualquer maneira, ao nível de generalização sobre os movimentos de longo prazo. Daí a constante preocupação nos escritos históricos dos primeiros marxistas com problemas como o papel do indivíduo ou do acidente na história. Por outro lado, isso podia ser — e em grande parte era — interpretado como uma regularidade rígida e imposta, como, por exemplo, na sucessão das formações socioeconômicas, ou mesmo como um determinismo mecânico que às vezes se aproximava da sugestão de que não havia alternativas na história. 5. Temas específicos de investigações históricas derivavam dos próprios interesses de Marx, por exemplo, na história do desenvolvimento capitalista e da industrialização, mas também, por vezes, de comentários mais ou menos casuais. 6. Temas específicos de investigação não derivavam tanto de Marx quanto do interesse dos movimentos associados a sua teoria, por exemplo, nas agitações das classes oprimidas (camponeses, operários), ou nas revoluções. 37 7. Várias observações sobre a natureza e limites da historiografia derivavam principalmente do elemento número 2 e serviam para explicar as motivações e métodos de historiadores que afirmavam não estarem fazendo mais que a busca imparcial da verdade [...] (HOBSBAWM, 1998, documento on-line). Para Hobsbawm (1998), a contribuição de Marx para a historiografia residiria, então, em outro âmbito, não nesse do “marxismo vulgar”. O marxismo não seria a única teoria estrutural-funcionalista da sociedade, embora possa ser considerada a primeira delas. Ele é distinto de grande parte das outras teorias de duas formas. Primeiro, porque hierarquiza os fenômenos sociais (tais como infraestrutura e superestrutura). Depois, porque afirma que toda sociedade vive tensões internas (contradições) que se contrapõem à tendência do sistema de se manter como um interesse vigente. Ainda de acordo com Hobsbawm (1998), a relevância desses aspectos do marxismo se relaciona ao campo da história. Afinal, são tais aspectos que permitem explicar por que de que maneira as sociedades se alteram, ou seja, os fatos da evolução social. Portanto, de acordo com o historiador, a força de Marx está em sua insistência tanto na existência da estrutura social quanto na sua historicidade. Atualmente, afirma Hobsbawm (1998, documento on-line), “[...] quando a existência de sistemas sociais é geralmente aceita, mas à custa de sua análise a-histórica, quando não anti-histórica, a ênfase de Marx na história como dimensão necessária talvez seja mais essencial do que nunca”. Assim, como você pode notar, a influência de Marx sobre os historiadores, e não somente os historiadores marxistas, deu-se não apenas pela concepção materialista da história, mas também em relação a suas observações sobre aspectos, períodos e problemas específicos do passado. É importante, dessa forma, não cometer o erro de compreender o pensamento de Marx a partir de fórmulas concisas que foram popularizadas e frequentemente aceitas como um “resumo” da teoria marxista. 8.3 A influência de Marx na historiografia brasileira De acordo com os historiadores Malerba e Jesus (2016), existem alguns indícios da presença do pensamento de Marx em materiais produzidos no Brasil desde o final do século XIX. Porém, sua influência se tornou notória nas primeiras décadas do século XX. Primeiramente, a obra de Marx foi utilizada como um corpo doutrinário que orientou o ativismo político e funcionou como uma inspiração teórica para 38 reflexões sobre a sociedade, com influências nas ciências humanas e sociais. No Brasil, a virada do século XIX para o XX, mais precisamente a década de 1930, representa um momento de elaboração de muitas análises que problematizavam a realidade nacional. Veja o que afirmam Malerba e Jesus (2016, p. 144): Neste período decisivo da história brasileira, jovens ativistas e intelectuais de esquerda que se destacariam como protagonistas do pensamento político e acadêmico nas décadas seguintes estiveram envolvidos em uma atmosfera de mudança coletiva quanto à sua percepção sobre o país e, especialmente, na forma como avaliaram o papel do Brasil no cenário geopolítico global. A partir de tais diagnósticos, eles produziram diferentes projetos para o futuro do país. No conjunto desses pensadores, destaca-se Caio Prado Júnior (1907–1990), a quem pode ser atribuído o título de “[...] fundador da historiografia marxista no Brasil” (MALERBA; JESUS, 2016, p. 143). Na impossibilidade de abarcar aqui todos os historiadores marxistas brasileiros e os debates desenvolvidos por eles, a seguir você vai conhecer melhor a produção de Caio Prado Júnior e o debate empreendido por ele sobre o “sentido” da colonização no Brasil. Contudo, você deve ter
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