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Jogos digitais e aprendizagem FUNDAMENTOS PARA UMA PRÁTICA BASEADA EM EVIDÊNCIAS LYNN ALVES ISA DE JESUS COUTINHO (ORGS.) >> http://www.papirus.com.br/ http://www.papirus.com.br/ SUMÁRIO APRESENTAÇÃO – GAMES E EDUCAÇÃO: NAS TRILHAS DA AVALIAÇÃO BASEADA EM EVIDÊNCIAS Lynn Alves e Isa de Jesus Coutinho 1. O CONCEITO ONTOLÓGICO DE JOGO Luís Carlos Petry 2. JOGOS DIGITAIS E APRENDIZAGEM: ALGUMAS EVIDÊNCIAS DE PESQUISAS Arlete dos Santos Petry 3. PESQUISA DA AVALIAÇÃO E da EFICÁCIA DA APRENDIZAGEM BASEADA EM JOGOS DIGITAIS: REFLEXÕES EM TORNO DA LITERATURA CIENTÍFICA Ruth S. Contreras-Espinosa e Jose Luis Eguia-Gómez 4. DESENHANDO HEALTH GAMES PARA NÃO GAMERS Ana Beatriz Bahia 5. OS DESAFIOS E AS POSSIBILIDADES DE UMA PRÁTICA BASEADA EM EVIDÊNCIAS COM JOGOS DIGITAIS NOS CENÁRIOS EDUCATIVOS Isa de Jesus Coutinho e Lynn Alves 6. ENSINO DE HISTÓRIA E VIDEOGAME: PROBLEMATIZANDO A AVALIAÇÃO DE JOGOS BASEADOS EM REPRESENTAÇÕES DO PASSADO Helyom Viana Telles e Lynn Alves 7. JOGO-SIMULADOR KIMERA: AVALIAÇÃO BASEADA EM PERSPECTIVAS André Luiz Andrade Rezende, Tania Maria Hetkowski e Josemeire Machado Dias 8. DESIGN METODOLÓGICO PARA AVALIAR O GAME ANGRY BIRDS RIO E EVIDÊNCIAS DA UTILIZAÇÃO EM SALA DE AULA Filomena M.G.S. Cordeiro Moita 9. AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM EM PROCESSOS GAMIFICADOS: DESAFIOS PARA APROPRIAÇÃO DO MÉTODO CARTOGRÁFICO Eliane Schlemmer e Daniel de Queiroz Lopes 10. JOGOS DIGITAIS, APRENDIZAGEM E DESEMPENHO ESCOLAR: O QUE PENSAM OS GAROTOS QUE JOGAM? Marcelo Silva de Souza Ribeiro e Rodrigo Clementino de Carvalho 11. O JOGO DA HISTÓRIA: APRENDIZAGENS SIGNIFICATIVAS E JOGOS ELETRÔNICOS NUMA ESCOLA MUNICIPA DO INTERIOR DA BAHIA Marcelo Souza Oliveira e Lucas Araújo da Paixão 12. GAMIFICAÇÃO EM APLICAtivos MÓVEIS PARA EDUCAR EM HÁBITOS DE VIDA SAUDÁVEIS Carina S. González González, Nazaret Gómez del Río, Raquel Martín González e Yeray del Cristo Barrios Fleitas 13. COMO PLANEJAR E AVALIAR INTERVENÇÕES COM JOGOS DIGITAIS NA EDUCAÇÃO ESPECIAL? Camila de Sousa Pereira-Guizzo 14. OS JOGOS DIGITAIS E A APRENDIZAGEM NOS IDOSOS: DESAFIOS E RECOMENDAÇÕES Ana Isabel Veloso e Liliana Vale Costa 15. JOGOS VIRTUAIS COMO MEDIADORES EM EDUCAÇÃO EM SAÚDE E PREVENÇÃO DE DOENÇAS CRÔNICAS Fernanda W.R. Camelier e Helena Fraga Maia NOTAS SOBRE OS AUTORES REDES SOCIAIS CRÉDITOS APRESENTAÇÃO GAMES E EDUCAÇÃO: NAS TRILHAS DA AVALIAÇÃO BASEADA EM EVIDÊNCIAS A discussão sobre games e educação tem crescido em todo o mundo, inclusive no Brasil,[1] mobilizando pesquisadores e desenvolvedores a construírem um sentido diferenciado para a presença desses artefatos culturais nos espaços escolares. A indústria brasileira de games, em 2013, produziu 621 jogos digitais para educação e 698 para entretenimento.[2] Esses dados evidenciam um crescimento do mercado de games para educação e consequentemente uma preocupação com a elaboração de produtos que contribuam para a aprendizagem dos jogadores. Contudo, nessa busca de construção de sentidos e de efetividade dos resultados, defrontamo-nos constantemente com um questionamento que emerge todas as vezes que escrevemos, publicamos e desenvolvemos games para os cenários escolares: como se dá a aprendizagem escolar mediada pelos games? Uma questão difícil de responder de forma objetiva, principalmente porque ainda não temos de forma consolidada os percursos realizados pelos players (pesquisadores e desenvolvedores) para evidenciar essa aprendizagem. Assim, objetivando socializar os diferentes caminhos trilhados pelos pesquisadores brasileiros, portugueses e espanhóis que, ao longo dos últimos 11 anos, estiveram presentes de diferentes formas no Seminário de Jogos Eletrônicos, Comunicação: Construindo novas trilhas, realizado pelo grupo de pesquisa Comunidades Virtuais/Rede Brasileira de Jogos Eletrônicos e Educação, da Universidade do Estado da Bahia, organizamos o livro Jogos digitais e aprendizagem: Fundamentos para uma prática baseada em evidências, que tem o objetivo de apresentar as distintas perspectivas que marcam as investigações, apontando os aportes metodológicos e seus instrumentos de pesquisa para responder à questão que emerge fortemente quando estabelecemos interlocução com os distintos espaços, sejam eles acadêmicos, escolares, midiáticos ou de financiamento, entre outros. Obviamente, não existe uma única resposta para esse questionamento, mas a construção de olhares e possibilidades que podem contribuir para o delineamento de um design metodológico que subsidie outras práticas de investigação e de desenvolvimento. A prática baseada em evidências está presente na área de saúde e mais recentemente na área de educação, mas, especialmente no Brasil, os desavisados tendem a relacioná-la com abordagens experimentais. No cenário das investigações que nascem no bojo das ciências humanas, a tradição é valorizar as pesquisas de base qualitativa que se centram na “escuta sensível”[3] dos sujeitos, utilizando instrumentos como as entrevistas em profundidade, as observações, a análise de conteúdos, entre outros, não cabendo generalizações, já que a singularidade dos sujeitos e de suas percepções em torno do fenômeno estudado deve ser revelada e respeitada. Contudo, acreditar que somente pesquisas de bases experimentais podem basear-se em evidências é um equívoco. Os vestígios, sinais, indícios, entre outros aspectos, que emergem do discurso dos sujeitos ao serem inquiridos por um pesquisador de base qualitativa, constituem evidências que compõem o cenário de investigação e que contribuem para compreender o fenômeno pesquisado. Tal perspectiva pode ser comprovada nas interlocuções e nas investigações registradas neste livro. Assim, tanto as pesquisas de bases experimentais como as qualitativas podem apresentar evidências fundamentais para analisar o objeto. Na área de games e educação no Brasil, em Portugal e na Espanha, encontramos uma perspectiva fortemente qualitativa, que se centra na mediação de técnicas de pesquisa como grupos focais, observações, estudo de caso, análise de conteúdo. Os resultados dessas investigações não possibilitam generalizações, mas permitem compreender os sentidos, significados e aprendizagens que emergem na interação dos sujeitos com os jogos digitais, sejam eles de fins educacionais ou comerciais. Portanto, este livro parte da compreensão de que a prática baseada em evidências consiste na busca, na clareza, na veracidade e na sustentabilidade das informações atreladas ao conhecimento tácito construído e desenvolvido junto com a informação. Um tipo de relação dialética entre arte e ciência, na busca da melhor evidência possível.[4] As reflexões aqui presentes baseiam-se nas investigações dos pesquisadores que têm os jogos como objeto de investigação e desejo, e, como interlocutores, desde as crianças até os idosos, bem como os jogos digitais que foram objeto de análise. Este livro traz 15 capítulos que consistem em interlocuções que discutem os conceitos e as perspectivas teórico-metodológicas. Os autores apresentam o estado da arte sobre o tema, apontando aspectos epistemológicos, possibilidades e limites, bem como os resultados de suas investigações, fundamentos em nível teórico-metodológico. O primeiro capítulo, “O conceito ontológico de jogo”, de Luís Carlos Petry, discute a perspectiva ontológica do jogo analógico ao digital, mediante a interlocução com autores como Heidegger (2001)[5] e outros, mais contemporâneos, que têm os games como objeto de análise. Arlete dos Santos Petry apresenta, no segundo capítulo, “Jogos digitais e aprendizagem: Algumas evidências de pesquisas”, o estado da arte das pesquisas realizadas na área de jogos digitais e aprendizagem, partindo das contribuições de pesquisadores como Greenfield (1984) e Turkle (1998), indicando as perspectivas dentro e fora do Brasil nos últimos anos. O olhar dos pesquisadores Ruth S. Contreras-Espinosa e Jose Luis Eguia-Gómez, no terceiro capítulo, “Pesquisa da avaliação e da eficácia da aprendizagem baseadaem jogos digitais: Reflexões em torno da literatura científica”, convida-nos a trilhar o estado da arte do tema jogos digitais e aprendizagem baseada em evidências, situando o leitor nas contribuições dos autores europeus e americanos. Pensar a relação entre jogos digitais e aprendizagem exige que tenhamos um olhar especial para o jogador, isto é, o gamer. Quem é esse sujeito que imerge no universo dos jogos digitais? Com base nessa discussão, a autora Ana Beatriz Bahia, no quarto capítulo, “Desenhando health games para não gamers”, fundamenta situações que envolvem os jogos desenvolvidos por ela. No quinto capítulo, denominado “Os desafios e as possibilidades de uma prática baseada em evidências com jogos digitais nos cenários educativos”, as autoras Isa de Jesus Coutinho e Lynn Alves apresentam e discutem o conceito de avaliação baseada em evidências, especialmente relacionada com a mediação dos jogos digitais. Os autores Helyom Viana Telles e Lynn Alves nos convidam a imergir no “Ensino de história e videogame: Problematizando a avaliação de jogos baseados em representações do passado”. Nesse capítulo, entra em cena a história, campo de conhecimento que subsidiou o desenvolvimento de quatro jogos pelo grupo de pesquisa Comunidades Virtuais. No texto, o jogo Civilization III é o objeto de análise. No sétimo capítulo, denominado “Jogo-simulador Kimera: Avaliação baseada em perspectivas”, de autoria de André Luiz Andrade Rezende, Tania Maria Hetkowski e Josemeire Machado Dias, é possível conhecer o processo de desenvolvimento do Kimera, a validação da perspectiva de avaliação construída por Dias e Hetkowski (2015) e escutar os especialistas que avaliaram o potencial do jogo. A pesquisadora Filomena M.G.S. Cordeiro Moita, no Capítulo 8, nos dá um significado diferenciado a um dos jogos casuais mais famosos no mundo. Assim, em “Design metodológico para avaliar o game Angry Birds Rio e evidências da utilização em sala de aula”, a autora leva o jogo para mediar a construção de conceitos da área de física, ratificando a premissa de que os jogos comerciais também constituem espaços de aprendizagem escolar. De uma perspectiva metodológica diferenciada, os autores Eliane Schlemmer e Daniel de Queiroz Lopes trazem para discussão uma categoria teórica bastante evidenciada nos últimos anos: a gamificação. Assim, no Capítulo 9, “Avaliação da aprendizagem em processos gamificados: Desafios para apropriação do método cartográfico”, podemos compreender as interfaces entre jogos digitais, gamificação e avaliação, tomando como interlocutores os alunos de cursos de graduação. No Capítulo 10, é a vez de escutar os pré-adolescentes de um condomínio na cidade de Juazeiro, Bahia. “Jogos digitais, aprendizagem e desempenho escolar: O que pensam os garotos que jogam?”, de autoria de Marcelo Silva de Souza Ribeiro e Rodrigo Clementino de Carvalho, permite-nos compreender a relação entre jogos digitais e aprendizagem do ponto de vista de quem mais entende esse universo e vive imerso nele: os jogadores. Marcelo Souza Oliveira e Lucas Araújo da Paixão refletem e discutem a interação entre os jogadores e os jogos com conteúdos históricos, dando origem ao Capítulo 11, “O jogo da história: Aprendizagens significativas e jogos eletrônicos numa escola municipal do interior da Bahia”. “Gamificação em aplicativos móveis para educar em hábitos de vida saudáveis”, de autoria dos pesquisadores da Universidade de La Laguna, em Tenerife, Espanha, constitui o Capítulo 12. O grupo, coordenado pela professora Carina S. González González, e tendo como pesquisadores Nazaret Gómez del Río, Raquel Martín González e Yeray del Cristo Barrios Fleitas, realizou a investigação com a mediação do Provitao App, um aplicativo para apoiar o tratamento da obesidade infantil. Esse capítulo dá início a uma discussão importante e contemporânea na área de jogos digitais: a interface desses artefatos culturais com a área de saúde. Camila de Sousa Pereira-Guizzo, no Capítulo 13, apresenta o delineamento metodológico planejado para duas pesquisas realizadas sob sua orientação, que tiveram como foco a educação inclusiva, não apenas nos espaços escolares, mas também na intervenção clínica. Assim, em “Como planejar e avaliar intervenções com jogos digitais na educação especial?”, é possível perceber a importância do método nas pesquisas que buscam investigar os efeitos dos jogos para crianças com paralisia cerebral. Os seniores, como são denominados os idosos em Portugal, são os sujeitos das pesquisas realizadas pelas autoras Ana Isabel Veloso e Liliana Vale Costa, no Capítulo 14, “Os jogos digitais e a aprendizagem nos idosos: Desafios e recomendações”. O grupo, coordenado pela professora Ana Isabel Veloso, desenvolve ambientes interativos, incluindo jogos digitais especialmente para os seniores, e acompanha o percurso desses sujeitos, investigando seus processos de aprendizagem. Concluindo o livro, o Capítulo 15, das autoras Fernanda W.R. Camelier e Helena Fraga Maia, convida-nos a dialogar sobre as possibilidades que podem emergir na relação saúde-educação-jogos digitais. Assim, em “Jogos virtuais como mediadores em educação em saúde e prevenção de doenças crônicas”, podemos ratificar que os jogos digitais constituem uma área de interface com distintos saberes. Em toda a obra, é possível perceber que os autores possuem uma base teórica semelhante, mas estabelecem relações e interlocuções de forma diferenciada, enriquecendo a discussão e possibilitando aos leitores a construção de novos sentidos. Os capítulos trazem sempre exemplos de jogos comerciais e com fins educacionais a fim de apontar o que já vem sendo realizado para delinear uma trilha de avaliação baseada em evidências. Portanto, este livro é um convite para que estudantes, pesquisadores, pais, legisladores e desenvolvedores possam dialogar e subsidiar novas práticas de avaliação de jogos digitais baseadas em evidências, bem como a definição de políticas que promovam a abertura de editais e linhas de financiamento que apoiem a produção de games voltados para os cenários escolares, bem como processos avaliativos baseados em evidências que retroalimentem não apenas a prática dos docentes e pesquisadores, mas também dos desenvolvedores.[6] Lynn Alves e Isa de Jesus Coutinho 1 O CONCEITO ONTOLÓGICO DE JOGO Luís Carlos Petry Introdução Em pesquisa, uma das questões metodológicas fundamentais consiste na capacidade de delimitarmos os contornos gerais do tema e do objeto pesquisado, a fim de dispormos claramente em nossa mente o tipo de objeto com o qual nos relacionamos, seu modo de ser, bem como a região temática que o abriga e lhe dá suporte. Conceituarmos uma região temática (ou área epistêmica) é uma das tarefas fundamentais da prática científica.[7] Uma área de conhecimento constitui uma dada região, que envolve elementos epistêmicos, objetos, métodos e consequentes aplicabilidades pragmáticas.[8] Assim, para qualquer área ou objeto que recaia sob seu domínio, devemos ser capazes de determinar os fundamentos conceituais, os limites críticos que o separam de outras áreas ou objetos, as propriedades, funções, finalidades e consequentes utensilidades. Entretanto, muitas vezes, um mesmo objeto pode recair sob o domínio de diversas áreas do conhecimento. Um notável exemplo é o corpo humano, pensado como objeto. Recortado por inúmeras áreas e disciplinas, o corpo humano é visto como algo que proporciona um olhar diferenciado para um mesmo e único objeto.[9] Cerca de três mil anos atravessam os estudos sobre o corpo humano como objeto fático, burilando seus contornos e equalizando as relações entre as pertinentes disciplinas que realizam discursos, pesquisas e produzem conhecimentos acerca dele. Alguns objetos recentes, que recebem a atenção da pesquisa científica, parecem iniciar o mesmo processo de refinamento progressivo, e esse parece ser o caso do objeto jogo digital. O conceito de jogo e a questão da classificação Os jogos digitais são tomados como novos objetos deuma cultura e uma sociedade designadas como pós-modernas. Esse é o ponto de vista de inúmeros teóricos.[10] Surgido no contexto da computação, o objeto jogo digital imediatamente extravasou seu campo de nascimento, organizando-se como um objeto-cultural-digital, de acordo com a descrição que lhe dá Manovich (2001), baseado numa leitura estruturalista referenciada em Michel de Certeau. Segundo esse ponto de vista, o jogo, como objeto digital da cultura pós-moderna, tem como característica inerente não somente participar da cultura, mas, sobretudo, ressignificá-la. Esse é um dos aspectos que torna esse objeto de nossa cultura tão enigmático, significativo e, ao mesmo tempo, de difícil apreensão. De certo modo, ele sofre do mesmo mal que afetou conceitos modernos como o de neurose e inconsciente: ao rapidamente passarem ao domínio da linguagem informal, receberam, pelo seu uso, as mais diversas interpretações, sentidos e usos. Em filosofia, diz-se que, quando isso acontece, o conceito que delimita o objeto adquire contornos elásticos ou maleáveis, dependendo de seu uso ou utilizador. Podemos, então, pensar que o objeto jogo digital, rapidamente apropriado pela linguagem informal, objeto reiteradamente evocado pela mídia, seja um objeto com contornos não muito bem definidos e, assim, afeito a inúmeras conceituações. Fenômeno facilmente verificável quando, ao entrarmos em contato com um utilizador do objeto jogo (o jogador) e, mesmo quando contatamos um produtor de jogos, somos rapidamente informados do fato de que cada interessado particular no objeto tem seu conceito próprio e particular do objeto. Diz o ditado: cada cabeça uma sentença. Baseados no senso comum, não é difícil constatarmos que cada jogador tem não somente uma visão do que seja o objeto de seu interesse, mas uma definição do que seja jogo e, mais intensamente, do que não seja jogo. Apesar de sermos reiteradamente advertidos pelos estudiosos da área de que o objeto jogo é um objeto multi e interdisciplinar, observamos que ele sempre é enfocado pelo utilizador (e não raras vezes pelo desenvolvedor, senão também pelo estudioso) de um modo particular, geralmente relacionado ao campo da doxa[11] básica e pessoal da formação do sujeito. Essa peculiaridade nos ofereceu, ao mesmo tempo, uma riqueza de abordagens (desde a década de 1980) e um debate acirrado, que se iniciou no final dos anos 1990 e somente nos últimos tempos tem se mostrado inócuo.[12] A solução do debate sobre a natureza do jogo (o que ele é em si e sua estrutura) entre ludologistas e narratologistas teve como resposta inúmeros desenvolvimentos positivos por parte de estudiosos que estavam mais interessados na construção de uma visão mais ampla do conceito de jogo e que fosse capaz de abrangê-lo em toda a sua riqueza e multiplicidade. Finalmente, observamos que um interessante exemplo dessa conjunção pode ser encontrado no relatório de 2008 da IGDA, [13] no qual o objeto jogo e sua tematização conceitual são tomados com base numa clara perspectiva multidisciplinar, na qual todas as partes que a constituem são postuladas como necessárias. O relatório trabalha o conceito e o campo do objeto, com base no qual buscaremos realizar a nossa abordagem reflexiva. As linhas gerais do campo dos jogos digitais De acordo com o relatório de 2008 da IGDA, o dramático crescimento dos cursos de jogos (nos Estados Unidos) e seu impacto coletivo, nos seis anos anteriores, mostrou a necessidade da formação de uma identidade compartilhada, na qual inúmeros atores se fizessem presentes, inicialmente os mais diretos, a academia e a indústria dos jogos.[14] Isso significa que, além de um conceito de jogo ser adotado de forma homogênea, também se fez necessária a adoção de um programa de formação que contemplasse elementos mínimos ou básicos compartilhados por todos os cursos de graduação que se dedicavam à formação em jogos. O relatório da IGDA trabalha com uma realidade detectada nos Estados Unidos, entretanto, sendo o campo dos jogos universal e diante de sua expansão global, situação similar é encontrada em toda parte e, no caso do Brasil, não se faz presente nenhuma exceção.[15] Seguindo essa perspectiva, bem como a conceituação apresentada por nós, que permite pensarmos objetos fáticos e objetos intencionais (Russell 2006; Granger 1998), organizamos a estrutura de uma possível identidade compartilhada do emergente campo cultural dos jogos, que implica os seguintes elementos: a) necessidade de um conceito que cubra o objeto epistêmica e materialmente, de forma a descrever a sua complexidade e a sua amplitude aberta, semipermeável e híbrida; b) metodêutica de acesso analítico ao objeto, que permita compreender tanto os seus fundamentos como as suas possibilidades e aplicações; c) campo diversificado de impacto/extensão prática (do objeto) dentro das diferentes e divergentes áreas da cultura e da sociedade: o entretenimento, a formação, a pesquisa, a poièsis/arte, a educação, os negócios etc.; d) entendimento do objeto como um objeto (digital) da cultura, diferenciando-o dos demais objetos culturais tradicionais e das mídias tradicionais, o que comporta um campo de novas possibilidades ainda a serem descobertas, diferenciando-o epistemicamente – e não o contrapondo ou antepondo – da literatura, do teatro, do cinema e dos demais jogos não digitais, por exemplo. A ideia de uma identidade de objeto compartilhada nos alerta para o fato de que, com tal fenômeno, temos um novo e rico campo de estudo, pertinente aos jogos digitais, com requisitos próprios de caráter interdisciplinar.[16] Isso significa que o campo de atuação e formação nos jogos digitais transcende as disciplinas particulares. Em sentido prático, os jogos digitais atravessam disciplinas e saberes, não se constituindo em monopólio de nenhum deles. Como objeto conceitual e como objeto de aprendizagem (no que diz respeito à formação), constitui-se em objeto genuinamente interdisciplinar ou transdisciplinar. Aarseth (2001), ao criar o site e journal Game Studies, inicialmente chamou a atenção para essa característica interdisciplinar do objeto de estudo jogos.[17] Nesse sentido, podemos considerar a situação particular e peculiar do objeto digital jogo. Essa observação se faz pertinente, em razão de o objeto jogo anteceder ao jogo digital,[18] na mesma medida em que a capacidade da linguagem precede a toda e qualquer língua em particular.[19] Muitas vezes, esquecemos isso quando enfatizamos algum aspecto do jogo digital em particular, em detrimento dos demais. Em computação, muitas vezes, dizemos que um jogo (digital) é um software. Ainda que um jogo partilhe com um software a ideia e o componente do código fonte, como tudo o mais dentro dos computadores, consoles e dispositivos digitais, o fato da existência de um código fonte, de serem necessárias grandes bases de modelagem e programação para termos um jogo digital, esse fato não o coloca no mesmo campo que outros softwares. Essa observação restritiva deve ser colocada para todas as demais áreas de trabalho que formem um jogo digital ou participem dele. Outro aspecto apresentado pelo relatório da IGDA diz respeito à formação colaborativa entre indústria e academia de um vocabulário de conceitos.[20] Caberia à indústria dos jogos, por meio do teste das boas práticas, fornecer feedback à academia, em um sistema de retroalimentação e inovação. A relação entre a construção conceitual, a formação continuada, o estabelecimento das boas práticas e o seu feedback constitui o binômio (interativo) teoria/prática, resultando na construção progressiva do objetivo, no que tange a melhoria e aprimoramento (falibilismo metodológico). Aspectos a serem considerados no conceito de jogo digital com base na ontologia O relatório de 2008 da IGDA buscou pensar o conceito de jogo em seu sentido mais amplo possível, o que podemos identificar como a busca de um conceito amplo ou estendido do objeto jogo (digital). Os próprios relatores advertem que qualquer definição se tornaria umelemento limitante e, enfatizando um dado aspecto, disciplina ou perspectiva, poderia colocar em risco a eficácia do conceito. Lembremo-nos do observado acima, de que é comum encontrarmos nos utilizadores de jogos digitais, e em muitos desenvolvedores, visões absolutamente particulares do que seja o jogo digital. Mesmo assim, os relatores dizem que, na maior parte das definições encontradas de jogos, constatamos que os jogos constituem sistemas que envolvem um jogador que realiza escolhas, as quais modificam o estado do sistema (jogo), o que correspondentemente leva a um resultado, determinado ou não de antemão. Uma definição de trabalho é oferecida por eles e a discutimos. Um jogo consiste em uma atividade com regras. Nem sempre, as regras do jogo são claras e visíveis para o jogador no início do jogo. Muitas vezes, elas precisam ser descobertas pelo jogador. Um jogo, muitas vezes, pode envolver conflitos (Ágon),[21] nos quais o antagonista pode ser representado pela IA (inteligência artificial) do motor de jogo; outras vezes, por outro jogador (como no caso de muitos MMORPG e FPS multijogador).[22] Um jogo pode também conter o conflito na forma de sua organização de eventos aleatórios ou de azar (acaso, como nos jogos de azar). A maioria dos jogos tem objetivos, mas não todos (por exemplo, The Sims 2000 e SimCity 1989). Os objetivos podem ser aparentes desde o começo do jogo ou ainda descobertos no desenrolar do jogo e da narrativa nele implícita (embutida). Objetivos podem também emergir no jogo, por parte do jogador, como tarefas que ele mesmo se coloca durante o jogo, tais como resolver um determinado enigma ou puzzle ou, de outro modo, superar um obstáculo não essencial para o seguimento da narrativa (mas fundamental para o jogador) etc. A maioria dos jogos define pontos inicial e final, mas não todos (por exemplo, World of Warcraft 2004 e Dungeons & Dragons 1974).[23] A maioria dos jogos envolve a tomada de decisões por parte dos jogadores, mas não todos (por exemplo, Myst 1993). Um jogo digital é um jogo (como definido acima), que utiliza uma tela de vídeo digital de algum tipo, de alguma forma. Todos os elementos presentes no jogo – regras, conflitos, objetivos, definição de pontos e tomadas de decisões – são elementos constituintes da vida humana em geral. Quando dizemos que o jogo digital constitui um objeto cultural, isso significa que ele integra a história dos objetos do Ocidente. Quer dizer que ele está submetido às regras que delimitam o conjunto dos objetos na cultura, na realidade, uma forma branda de dizermos que eles têm uma ontologia subjacente ou se fundam em uma ontologia, ainda que, na maioria das vezes, atencionada.[24] Isso não significa que um desenvolvedor de jogos deva proceder a um trabalho filosófico prévio para poder pensar, projetar e construir seu jogo. Significa, entretanto, que, quando operamos com qualquer elemento da cultura, forças e aspectos ontológicos sempre estão em operação, pois são eles que fornecem a própria base da cultura. Para que isso fique claro e possamos mostrar a sua relação com o objeto jogo digital, bem como sua relevância para os processos e métodos de pesquisa em jogos, necessitamos apresentar brevemente um conceito de ontologia e situá-lo no contexto do próprio objeto. Em uma linguagem sintética, dizemos que a ontologia é a parte da ciência que trata da natureza, da realidade e da existência dos entes (os objetos como objetos). Isso significa que a ontologia trabalha as propriedades (ou características) e finalidades gerais dos objetos e suas relações. A ontologia também organiza categorias ou classes, em que os agrupamentos e distinções permitem uma melhor delimitação dos entes compreendidos nelas. Aqui, entra em ação o que chamamos o importante processo da classificação dos objetos em classes e subclasses, em categorias e subcategorias, o que nos conduz a uma organização dos objetos – no caso, os jogos. Essa aplicação direta da ontologia nos leva a uma taxonomia[25] dos jogos, que pode ter inúmeras finalidades práticas. Por exemplo, ela permite a organização dos conceitos e objetos em sistemas agrupados por semelhanças (familiaridades), relações e dependências. Ela possibilita uma estruturação desses sistemas em hierarquias, seguindo critérios preestabelecidos e reconhecidos. Do ponto de vista do conteúdo, ela traz à luz os elementos que têm afinidades e é capaz de situá-los diante daqueles dos quais se diferencia ou se afasta, isso em um modelo de atração e repulsão, muitas vezes aplicável a personagens de jogos a serem construídos e a procedimentos lógicos da programação (presentes nos NPCs). Quando realizamos um fluxo de eventos com possibilidades condicionais em uma máquina de estados,[26] é justamente esse preceito lógico-filosófico de base ontológica que se encontra em operação. Os filósofos nos mostram que todos nós sempre operamos baseados numa ontologia, mesmo que atencionada, ou seja, não tematizada e operando de forma não estruturada, muitas vezes nos valendo do senso comum. Por outro lado, uma forma estruturada e metodológica de nos aproximarmos de um objeto é organizarmos sua estrutura ontológica. É o que será iniciado aqui com o objeto jogo (digital), organizando a sua ontologia com base em suas características fundamentais, e será nelas que os fins e limites se tornarão mais evidentes. Tal procedimento tem relevância para a pesquisa em jogos digitais, porque permite, baseado na organização ontológica do objeto e do espaço do jogo, situar mais clara e profundamente seus limites e sua pertinência. Características ontológicas do objeto jogo digital O que é um jogo? O que é um jogo digital? Quais são as suas características? Para podermos entender mais internamente as perguntas levantadas, necessitaremos apresentar o conceito de jogo como tal, posto que o jogo digital, como um caso particular do conceito de jogo, pode ser reduzido a este. Aqui, é necessário entendermos que o objeto jogo digital é subsumido por um conceito que o precede histórica e tematicamente e, ainda, que ele tem sua origem formal em uma discussão que remonta aos filósofos pré-socráticos. No Ocidente, o conceito de jogo vem sendo discutido pelos pensadores desde o século VI a.C., com base nas reflexões do filósofo grego Heráclito, que via no jogo um elemento mais elevado do que a administração e a política. Heráclito foi o primeiro a identificar o elemento de tensão presente no jogo baseando-se no conflito (Ágon) das partes que o compõem. Após Heráclito, o jogo foi objeto de reflexão por parte de inúmeros outros filósofos. Destacamos aqui as contribuições de Pascal, Kant, Schiller, Huizinga, Heidegger, Callois, Fink e Gadamer.[27] O pensamento fenomenológico nos mostra que todo jogo abre para o homem um espaço de movimento (em alemão Spielraum), dentro do qual os jogadores se encontram e se encontram com o jogo e seus objetos. Esse espaço do jogo produz uma situação especial de tempo e espaço unificado com características ou propriedades ontológicas fundamentais. O jogar um jogo se funda em uma livre disposição do homem: Característica da liberdade A primeira característica é que todo jogo e seu jogar somente podem acontecer dentro de um espaço de liberdade – a condição é que todo jogador entre livremente no espaço de jogo. É Heidegger (2001), em 1928-1929, o primeiro a evidenciar, no século XX, a característica fundamental da liberdade no jogo/jogar. Nessa direção, tudo o que ocorre no espaço do jogo deverá ter um caráter imprevisto ou aleatório, organizando-se com base em regras não mecânicas. Isso significa que o jogar não constitui uma sequência mecânica de processos físicos ou psíquicos. Todo processo físico ou psíquico de jogar deve aqui ser entendido como manifestação e não enômeno. O que se passa no jogo é livre e, segundo o filósofo, sempre estará submetido às regras – o que será explicitado logo adiante. Sendo livre, o jogo só pode ser jogo quando escolhido livre e espontaneamente; caso contrário, não se tratará de jogo.Huizinga (2008) chamou a isso de entrada no círculo mágico: quando o jogo começa e eu estou nele jogando. A liberdade de entrar no jogo também tem a estrutura de um ponto de entrada no jogo, mesmo quando ele for aleatório. Dentro do jogo temos sempre a produção de um determinado estado de ânimo variável Em segundo lugar, dentro do jogo, temos a produção de um estado de ânimo (Stimmung, Heidegger 2001). O que se passa, sucede ou acontece no jogo (em sua liberdade) consiste em que o essencial não é fazer ou atuar, mas, sim, o jogar, que é, precisamente, seu estado de ânimo, ou seja, o peculiar modo de se encontrar nele (de se encontrar dentro e em meio ao jogo). Todo jogo tem regras, mesmo que atencionadas ou formuladas pelo lado do jogador Em terceiro lugar, todo jogo tem regras que o jogador segue para que o jogo prospere. Heidegger nos diz que, justamente pelo fato de o essencial no jogar não ser o comportamento que nele se manifesta, as regras têm também um caráter distinto: surgem e se formam no jogo mesmo. Para o filósofo, essas regras que se formam no interior do exercício do jogo têm liberdade em um sentido especial. Isso pode ser afirmado da seguinte maneira: o jogar se exercita jogando. Quer dizer que é no acontecer de sua própria execução – posto que o jogo executa a si mesmo e jamais pode ser executado por outrem –, que é na liberdade do jogar que as regras se constituem e se transformam. Disso resulta que elas copertencem à liberdade constituinte do jogar. Ora, alguns jogos não são construídos com regras estipuladas a priori para o jogador (e.g., os sandbox), dentro dos quais ele tem uma grande liberdade, restringida somente pelos limites físico-lógicos do jogo e de suas construções. É nesse contexto que jogadores tendem a estabelecer no jogar determinados padrões eletivos, que são perseguidos e executados ao modo de algoritmos orgânico-sociais. Regras se formam e se modificam durante o jogar do jogo O quarto ponto, complementar e derivado do terceiro, mostra que a regra do jogo não pode ser uma norma fixa, tomada de algum lugar a ele externo, mas que é mutável pelopróprio exercício do jogar, pois o jogar se exercita no jogar. Isso deve ser compreendido como o jogo como execução de si mesmo, o que quer dizer o jogar o jogo no jogo. Énessa situação que temos o surgimento de algo como um jogo, o que não necessita começar constituindo, ou melhor, dando lugar a, ou ainda, cobrando a forma de um sistema de regras ou de instruções. As regras, por assim dizer, surgem e se formam dentro do espaço do próprio jogo, o que significa, também, que é no interior dele mesmo que elas podem vir a se modificar. Do contrário, a atividade perde a essência do próprio jogo e do jogar, desconsiderando seu ser-em-si e, assim, entificando-o, transformando-o numa determinada técnica de jogar ou de jogo. Se compararmos o apresentado por Heidegger, já na década de 1920, com o conceito de trabalho oferecido pelo relatório da IGDA, poderemos entendê-los como complementares. Conflitos são mediados por regras, as regras auto-organizadas pelo jogador se estruturam como objetivos ou metas dos quais ele recolhe conhecimento sobre o jogo e por meio dos quais ele conhece mais profundamente o jogo que joga. Nesse ponto, Wittgenstein (1987) tinha razão quando disse: se eu sei jogar este jogo, eu compreendo este jogo. Ao jogar um jogo, eu tomo decisões as mais diversas: uma decisão ou escolha de um pelo outro somente se faz possível dentro da liberdade que o processo do jogo e do jogar permitem. Somos levados a ver que todos os elementos presentes no jogo – regras, conflitos, objetivos, definição de pontos e tomadas de decisões são elementos constituintes da vida humana em geral, tal como já observado anteriormente.[28] Para Heidegger, como refere Ribeiro (2008, p. 77), o que dá vida à partida, ao jogo, são os lances “que nascem da tensão entre o saber prévio das regras desse jogo e o não saber acerca da situação que aindaestão por vir”. Ou seja, as regras do jogo somente tomam seu lugar, fazem sentido e começam a contar quando o jogo se inicia. Assim como na linguagem, somente quando a palavra é dita ou escrita, ela passa a gerar consequências. “Éna tensão entre o esperar e o inesperado que nasce toda regra de ação” (ibid.); portanto, é essa tensão o lócus de nossas tomadas de decisão. Esse é o lócus onde se dão o jogo e o jogar. Não seria o movimento do jogo, o jogo em ação, uma condição para que possamos fazer escolhas, tomar decisões? E, ao decidirmos, não estaríamos, querendo ou não, sabendo ou não, seguindo alguma regra? Ora, quando falamos de regras dentro do jogo temos dois subgrupos em operação. Em primeiro lugar, temos as regras colocadas pelo design do jogo e construídas pelos limites digitais do jogo e de sua programação. Nesse grupo, entra muitas vezes o que é chamado de inteligência do jogo, sua IA, que coloca desafios e questões ao jogador e igualmente responde aos seus comportamentos dentro do jogo. Em segundo lugar, há as regras formuladas dentro do jogo pelos jogadores, regras mutáveis e suscetíveis ao desenrolar dos acontecimentos do próprio jogo, e isso não somente em jogos do tipo multijogador, mas igualmente nos jogos monojogador, em que o comportamento, os pensamentos e o estado de ânimo do jogador se alteram no desenrolar da “partida”.[29] Com o observado até aqui, podemos fazer a pergunta: O que é um jogo e o que não é um jogo? Ora, de início, temos de observar que o escopo da presente reflexão incide, não sobre todo e qualquer jogo possível, mas, sim, sobre um caso particular de jogo: o jogo digital. Jogos digitais funcionam em sistemas computacionais do tipo computadores pessoais, quiosques, fliperamas, consoles, dispositivos móveis e tablets. Estas são perguntas importantes: O que é um jogo? Qual a sua natureza como produto (objeto) na sociedade e na vida humana? Que sentido e funções derivam em respostas simples e objetivas? Observamos que elas resultam em novos problemas e novas frentes de trabalho. O cineasta Steven Spielberg, fã declarado do jogo Myst (1993), afirmou que os jogos digitais poderiam ser igualados ao cinema e considerados obras de arte quando tivessem a capacidade de fazer o jogador se emocionar e chorar.[30] Os jogos digitais (tais como ICO 2001; Shadow of the Colossus 2005; Flower 2009; Heavy-Rain 2010 etc.) têm essa capacidade de construir junto com o jogador um universo de densidade psíquica tal que permite a experiência de emoções e sentimentos como alegria, tristeza, desencanto, frustração e, igualmente, o choro solidário num evento desenrolado dentro do jogo. Mas, se os jogos não são algo novo, se são também objeto do entretenimento, se podem ser pensados como brinquedos, se são capazes de contar histórias para nós, se nos oferecem a possibilidade de sair provisoriamente dos limites da vida fática e nos fazer vivenciar uma experiência sem o controle dela, se são capazes de nos fazer ingressar numa comunidade e manter uma relação comunitária, se ainda são capazes de serem nossos companheiros em aprendizagens e na mudança de hábitos e crenças, eles realmente são um objeto cultural complexo, polimorfo e em constante estado de mutação. Apresentamos, então, alguns desses aspectos (características verificáveis e reificantes)[31] relativos aos jogos que estão dentro de uma compreensão do que seja jogo e de como ele se insere na cultura contemporânea. Os jogos não são algo novo! Os jogos são a condensação e a potencialização de tudo o que existe e foi criado no Ocidente em um só objeto polimorfo, polissêmico e pluralista, conforme exposto acima. A característica de não ser algo novo mostra justamente a potência que os jogos têm em si mesmos. Eles recebem de outras áreas da cultura elementos que são incorporados e modificados de acordo com as características e possibilidades do seu meio digital interativo. Nesse aspecto, muitos elementos presentes nos jogos já eram encontrados no cinema, no teatro, na literatura, na pintura e no desenho. Essa é uma das propriedadesdos jogos digitais que os colocam como objetos culturais (digitais) multifacetados.[32] Em uma acepção mais atual dos estudos de comunicação (Jenkins 2010), podemos dizer que os jogos digitais representam o que há de mais contundente na fusão das mídias: todos os recursos técnicos e de linguagem das demais mídias podem se fazer presentes nos jogos, na promoção daquilo que o pesquisador da Universidade da Califórnia em Los Angeles chamou de reificação da transmídia. Os jogos são, por natureza, um objeto transmídia, dado que têm a capacidade de incorporar o todo da cultura humana, deslocando-se entre meios e ressituando-se de muitos modos. Nesse sentido, tanto a academia como a indústria têm a tarefa de compreender o mais profundamente possível esse objeto digital e delinear os seus contornos progressivos e mutantes. Mas como entender a sua relevância no panorama da sociedade pós-moderna? Do ponto de vista do sujeito consumidor (aquele que utiliza jogos, dispendendo ou não dinheiro comprando um jogo), um jogo tem muitos aspectos, desde a oportunidade de entretenimento, de lazer, que tem por finalidade o escoamento de tensões e a suspensão provisória da realidade fática, como outro lazer qualquer, até uma associação emocional e cultural com a temática ou o conteúdo do jogo, uma oportunidade de autodescoberta e de aprimoramento de habilidades. O produto (objeto) jogo como entretenimento Ao jogar um jogo, o sujeito se diverte de várias formas. Os jogos fazem parte do universo do entretenimento humano, como o cinema, a televisão e a literatura, por exemplo. Mas os jogos não são cinema, televisão ou literatura. Eles podem tomar conteúdos e elementos das linguagens de outras formas de arte e comunicação e transformá-los de acordo com as necessidades de seu próprio meio. Esse é um de seus aspectos fundamentais, fornecido pelos operadores de interatividade presentes no jogo: imersão, agência e transformação (Murray 2003). Ao jogar um jogo, o jogador, pela ação do círculo mágico, é tomado por um sentimento de imersão. No interior da cena de jogo, o jogador tem o poder de agência, a saber, o de realizar comportamentos que resultem em respostas do jogo e dentro do jogo, as quais podem acarretar transformações no ambiente do jogo e nas perspectivas e no contexto cognitivo e afetivo do próprio jogador (Souza 2012). Se a banda desenhada e o cinema foram paradigmáticos para cinco gerações, servindo de meio para a expressão de anseios e pensamentos, e se prestando a um laboratório da cultura, os jogos digitais atualmente potencializam essas possibilidades de forma particular, na qual cada sujeito humano que joga um jogo pode nele ter realmente uma experiência (interna e externa) particular e intrínseca (Gadamer 2008; Costa 2001). Essa é uma natureza do entretenimento que se modifica com a entrada do jogo digital, trazendo o entretenimento para mais perto do sujeito individual. O produto (objeto) jogo como brinquedo Como entretenimento, o jogo também tem uma qualidade associada de brinquedo e de objeto colecionável e seriável. Os jogos têm alguns elementos atrativos próprios dos brinquedos. Nesse sentido, os jogos são objetos evocativos.[33] Eles despertam no jogador (no jogo e para com o jogo) emoções, pensamentos, comportamentos, fantasias e têm a capacidade de colocar o ser humano em um mundo de fantasia, em uma realidade encapsulada. Se essa propriedade já havia sido pensada por Huizinga (2008) para o jogo em geral, no jogo digital, ela é potencializada pelos recursos de arte e pelo contexto interativo do jogo. Aliado a isso, temos o fato de que a estrutura evocativa do jogo se encontra associada à história que o jogo desenvolve com o jogador. O produto (objeto) jogo como histórias/narrativas Os jogos digitais têm a capacidade de contar histórias. Existem jogos que não têm nenhuma narrativa embutida (inerente e construída pelo processo de design). Exemplo disso é o jogo Tetris (1984), que se foca em operações lógico-espaciais. No entanto, um número expressivo de jogos digitais está associado a histórias e as desenvolvem com o auxílio do jogador. Esses jogos têm a capacidade de fazer com que o jogador participe da narrativa e se envolva nela como agente direto e com poderes de intervir em seu curso (em graus variáveis). Em jogos, muitas histórias têm características reticulares. Isso significa que permitem ao jogador muitos caminhos a serem percorridos; muitos objetos com os quais interagir (brincar/conhecer); possibilidade de finais diferentes, dependendo das ações e escolhas do jogador e das regras do jogo. Diferentemente do cinema e mais próximo do teatro moderno (mas com uma radicalidade mais acentuada), os jogos digitais que têm uma narrativa embutida podem permitir que uma mesma história seja vivenciada pelo jogador de diferentes modos. Nesse campo das histórias multilineares ou multimodais (Murray 2003), os jogos digitais oferecem ao jogador uma experiência estética que lhe permite vivenciar situações novas, impossíveis na vida fática e igualmente aleatórias. O produto (objeto) jogo como situar-se fora do controle Ao jogar um jogo, colocamo-nos em um campo (encapsulado e protegido) do qual não temos o controle nem mesmo de muitos de seus elementos. O jogo ocorre dentro de um controle variável (regras), em que não temos o controle da situação controlada. Entretanto, a regra geral do jogo é que o jogador deve ser capaz de intervir (e fazemos parte do acaso) no jogo de muitos modos, desde a configuração de personagens e objetos, a manipulação e interação, até o decurso da própria experiência e da narrativa do jogo. Esse é um dos aspectos que leva filósofos e designers a dizer que o jogo possibilita o exercício de uma experiência (no amplo sentido do termo).[34] Essa experiência de jogo é definida pela filosofia como uma experiência estética, com contornos igualmente conceituais e éticos. O produto (objeto) jogo como objeto educativo Ainda que os jogos digitais não sejam um objeto formalmente criado com a finalidade de educar, de produzir ou transmitir conhecimentos para o jogador, pesquisas (Tonéis 2010) mostram que os jogadores afirmam que aprendem muitas coisas com o jogar jogos; os jogos despertam e incentivam um comportamento de curiosidade, uma necessidade de informação, que produz comportamentos de pesquisa sobre o jogo, seu universo, seus personagens etc., para além do jogo (evocativo).[35] O produto (objeto) jogo como sentimento de comunidade Os jogos tendem a formar o que se chama uma comunidade de fãs – muito antes do advento da internet. Nas décadas de 1980 e 1990, no Brasil, jovens gastavam suas mesadas em telefonemas para poder jogar jogos do tipo Dungeons & Dragons. De modo similar, o jogo de tabuleiro xadrez foi intensamente jogado por carta, telefone, rádio – inclusive amador –, e, atualmente, comunidades inteiras jogam xadrez pela internet, em formato digital. Existem comunidades gigantescas ao redor dos jogos, entre as quais podemos citar a comunidade do Ragnarok e a comunidade do Myst. O produto (objeto) jogo como (psico)terapia Os jogos são utilizados para o controle de situações como pânico, fobia e outros (Murray 2003). Desde a primeira metade do século XX (em virtude do advento da psicanálise), os jogos (analógicos) são utilizados como elementos centrais para a terapia (p. ex.: o jogo da família). O psicodrama de Moreno (1997) tem a estrutura de um jogo com um master (terapeuta) mantendo relações com os jogos de RPG. Em sessões de terapia infantil, usam-se estruturas de jogo como (1) caixa de brinquedos, (2) jogo da família, e tantos outros. Jogos de simulação são utilizados no tratamento de sujeitos com fobias (de altura, animais etc.). Existem ainda jogos com funções fisioterápicas, socioterápicas etc. O produto (objeto) jogo como agente (ator) para a mudança de comportamento e opinião pública Quando o jogo digital é capaz de ser usado em procedimentos terapêuticos, ele mostra que tem potencial para trabalhar mudanças no comportamento humano. Ao jogarum jogo, temos a possibilidade de avaliar nosso comportamento e nossa percepção do mundo e da sociedade (Lewin 2013). Os jogos são usados para resolver situações complexas que dependam de mais de um sujeito. São usados para apresentar simulações relativas à ética de grupos e outros temas de interesse. Em 1988, a G&E patrocinou no Brasil uma equipe de pesquisadores que desenvolveu um jogo de ética monojogador que permitia o exercício de inúmeros comportamentos dentro de uma empresa. Esse jogo foi usado como um dos componentes principais da formação ética dos trabalhadores da G&E. Aqui, entra o trabalho desenvolvido pelo movimento Games for Change, iniciado nos Estados Unidos por Jane McGonigal (2011) e, no Brasil, liderado pelo pesquisador Gilson Schwartz.[36] Jogos são produtos do mercado com característica de outros produtos – Foi quando os jogos começaram a ser produzidos nos Estados Unidos como produtos de mercado, indo para os fliperamas e, depois, para os consoles, que eles começaram a mostrar seu perfil de entretenimento e se apresentar como objetos de mercado de uma sociedade de consumo. De acordo com um infográfico estimado pela Newzoo[37] para o ano de 2012, o Brasil contava com 40.200.000 gamers ativos no país. Essa quantidade é um pouco mais de 20% da população brasileira. Esse número de gamers ativos representa um aumento de 15% quando comparado ao ano de 2011. O desenvolvimento dos jogos como produtos de uma sociedade de mercado e consumo resultou no fato de que, nos últimos anos, eles ultrapassaram em faturamento o da multimilionária indústria do cinema. O produto (objeto) jogo como expansão do universo do consumo Os jogos produzem um universo de consumo paralelo e agregado ao jogo (aspecto iniciado por George Lucas quando desenvolveu a franquia de Star Wars: cartazes, botons, livros, bonecos etc.). Os objetos agregados participam ativamente do jogo como elementos materiais intrínsecos a eles, como seguimento do jogo e oportunidade lúdica. Materializam o conceito de Toffler (1974): o prosumer (produtor e consumidor em um só sujeito). Tal fenômeno nos leva à situação de que os jogos são utilizados como forma de estender as narrativas fílmicas, televisivas, literárias e atísticas (e vice-versa): transmídia (Jenkins 2010). O produto (objeto) jogo como propaganda e merchandising Os jogos são utilizados para divulgar produtos, marcas ou conceitos. A partir do momento em que isso acontece, temos o advento de uma forma de publicidade que foi chamada de advergames e que constitui uma modalidade particular e restrita dos jogos. Considerações finais Observamos que os jogos digitais podem se apresentar de múltiplas formas e assumir diferentes facetas na cultura contemporânea. Não constituindo um objeto novo, mas participando da história do desenvolvimento da cultura ocidental, eles recebem dessa mesma cultura a ênfase, o conteúdo e a força enunciativa. Estendendo as possibilidades do entretenimento, produzem novas e diversificadas oportunidades de experiências estéticas para os jogadores, tomados aqui como consumidores de objetos culturais na forma de entretenimento. Além disso, vimos que o jogo tem a estrutura do brinquedo, que permite a interação variável e controlada, deixando que seu utilizador, o jogador, adentre o círculo mágico da fantasia instaurado por ele. Vimos que será dentro dessa capacidade lúdica do jogo que ele introduzirá a possibilidade de ser um dos veículos das narrativas e histórias produzidas pela cultura e pela arte, contribuindo com uma nova característica: a de construir com o auxílio do jogador histórias multiformes e com contornos não definidos de antemão. Também observamos que o jogo digital permite ao jogador a vivência de situações que não seriam possíveis ou autorizáveis no mundo real, social. Ao mesmo tempo em que o jogo digital permite a experienciação de situações protegidas e encapsuladas, ele também oferece, do ponto de vista do jogar, a manifestação de eventos não controlados pelo jogador, que, depois de sua eclosão, tem de lidar com eles. Com isso, vimos que os jogos digitais também se mostram elementos propiciadores de situações de aprendizagem: como funciona o jogo e como ele reforça estruturas cognitivas que estão presentes em seu sistema e que podem ser generalizadas na vida prática do jogador. De outra parte, observamos que os jogos tendem a formar comunidades de usuários ao redor do jogo. Comunidades que interagem e formam regras comunitárias para gerenciar seus interesses, visando à promoção de suas necessidades, do jogo e da construção da oportunidade de jogar junto. Um dos aspectos derivados do jogo digital é ser incorporado como auxiliar em várias atividades humanas e de estabelecimento profissional. Jogos são usados em treinamentos em empresas e usados como auxiliares em processos de reabilitação psíquica e física. É nesse caminho que os jogos mostram um de seus efeitos secundários: têm a capacidade de mudar hábitos no jogador. Como produtos de um mercado de consumo, seria esperado que se tornassem objeto de interesse da publicidade e propaganda. Foi quando os jogos se tornaram realmente massivos e ocuparam lugar de destaque na web que eles sedimentaram os chamados advergames, jogos com a estrita função de promover um conceito ou produto do ponto de vista publicitário. Em meio a todos esses elementos, as características que formam o conceito de jogo digital – (1) liberdade, (2) regras, (3) produção de um estado de ânimo, (4) capacidade de modificação de regras durante o processo do jogo, (5) a possível existência de elementos antagônicos (conflitos) que estimulem os jogadores a superá-los, (6) objetivos intrínsecos ao jogo ou formulados pelos jogadores, (7) a circunscrição de pontos de partida e pontos de final do jogo, bem como (8) a possibilidade da tomada de decisões por parte do jogador – formam também uma estrutura ontológica que torna o jogo digital um objeto singular na cultura contemporânea, tal como se ele fosse uma espécie de condensado de seus elementos, às vezes, negativos, mas, em sua maioria esmagadora, positivos e indicativos da riqueza e grandiosidade do Homo ludens. Meu ser se joga dentro da noite escura do futuro do mundo na expectativa de seu porvir. Haverá, pois, uma medida na Terra? Se houver, ela deverá passar pelo cuidado que o amor ao outro propicia para cada um de nós. Isso é uma das coisas que os jogos nos ensinaram nesses anos que oscilaram entre a repressão de uma ditadura e a cultura pós-moderna estropiada. Como disse o psicanalista Jacques Lacan: por nossa condição de sujeito, somos todos responsáveis! Os jogos nos aproximaram, não é verdade? E aqui um pálido e singelo começo para a sua melhor conceituação em pesquisa. Na Pauliceia desvairada do Mário, junho de 2015. Referências bibliográficas AARSETH, E.J. (1997). Cybertext: Perspectives on ergodic literature. Baltimore: Johns Hopkins University Press. APEL, K.O. (2000). Transformação da filosofia, v. 1. Trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola. BATEMAN, C. (2011). Imaginary games. Alresford: Zero Books. BENVENISTE, E. (2008). Problemas de linguística geral I. Trad. Maria da Glória Novak e Maria Luisa Néri. Campinas: Pontes. CALLOIS, R. (1990). Os jogos e os homens. Trad. José Garcez Palha. 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Desde então, trata-se de consenso entre os estudiosos da cultura digital o significativo impacto que os computadores trouxeram para a vida de todos nós, ora como alvo de promessas de um futuro melhor para um maior número de pessoas, ora como foco de temores. Para além disso, nenhum artefato produzido com a linguagem dos computadores representa melhor essas promessas e os receios da utilização de suas tecnologias do que os jogos digitais, como muito bem retrata a análise dos filmes com personagens gamers das décadas de 1980 e 1990, realizada por Narine e Grimes (2009). Os primeiros pesquisadores que se entusiasmaram com a potência comunicativa e de aprendizagem dos videogames foram aqueles que já vinham pesquisando a influência das media na mudança de comportamento. Dentre eles, destaca-se Thomas Malone (1980), que, na primeira pesquisa sobre crianças e videogames, verificou que as crianças entre 5 e 13 anos preferiam os jogos de maior intensidade visual aos que tinham menos animações. A esse dado, Greenfield (1984) acrescentou a interatividade resultante das ações do jogador como um elemento forte de sua atratividade, nisso incluindo a importância da ação do jogador. No entanto, independentemente do apelo comunicacional dos jogos digitais, quando o interesse recaiu sobre seu possível potencial para aprendizagens, foi preciso perguntar se e quais habilidades são desenvolvidas ao se jogar e se e quais conteúdos são aprendidos. Nesse sentido, as pesquisas, e aqui os estudos de comunicação nos ajudam muito, tomaram dois caminhos. Um deles se refere aos estudos quantitativos cujo foco se volta ao potencial de emissão da mídia, fortemente desenvolvidos nos Estados Unidos; já o outro se refere às investigações qualitativas em torno dos estudos de recepção, o que caracteriza as pesquisas na América do Sul (Orozco 2014; Martín- Barbero 1999). Embora esses conceitos de emissor e receptor tenham se misturado com o advento da comunicação e da cultura digital desde a web 2.0, persistem as pesquisas que ou focam na mídia ou no modo como seu usuário a percebe. Essas perspectivas polarizadas em comunicação podem ser ainda mais questionadas quando estamos investigando jogos digitais, dadas as características do objeto de estudo. [38] Embora estejamos cientes de não fugirmos completamente dessa dicotomia no que apresentaremos neste capítulo, temos nos aproximado de uma perspectiva mais abrangente no projeto de pesquisa Fapesp 2011/09778-9, ao incluirmos técnicas de pesquisa contemplando tanto a análise de determinados jogos digitais (perspectiva do emissor) quanto entrevistas com os jogadores (perspectiva do receptor). Breves resultados parciais dessa pesquisa podem ser encontrados em Petry (2011) e Petry e Petry (2012). Revisão de pesquisas experimentais Nesta seção, apresentaremos um mapeamento de pesquisas quantitativas de cunho empírico experimental (Otani e Fialho 2011), tomando como centro uma recente revisão de literatura realizada por Sigmund Tobias, J. Dexter Fletcher e Alexander P. Wind (2014). Como indicado na revisão citada, várias pesquisas comparando videogames e jogos de computador com outros sistemas educacionais trazem evidências das qualidades motivacionais dos jogos digitais e, a nosso ver, foram essas que entusiasmaram os educadores a introduzir jogos na educação, pois uma das principais queixas das escolas é a falta de interesse dos alunos na aprendizagem escolar. Vale lembrar que a ideia de utilizar jogos na educação não é algo recente. Jean-Jacques Rousseau escreveu, em meados do século XVIII, em Emílio ou Da educação que, por meio de jogos, a criança realiza com vontade aquilo que não gostaria de realizar se fosse forçada. Também o filósofo Immanuel Kant afirmou, na mesma época, que o jogo auxilia o jovem a se disciplinar, segundo Duflo (1999). Pesquisas apontam que jogar videogames leva à melhora na capacidade perceptiva e na atividade de processamento cognitivo (Anderson e Bavelier, apud Tobias, Fletcher e Wind 2014), provoca reações mais rápidas (Karle, Watter e Shedden 2010), melhora a capacidade motora e a acuidade visual (Green e Bavelier 2003). Bailey, West e Anderson, citados por Tobias, Fletcher e Wind (2014), mediram a atividade cerebral por meio de eletroencefalograma e encontraram que jogadores que dedicam mais horas por semana jogando (média de 43,4 horas) apresentam maior atividade cognitiva do que aqueles que jogam menos horas por semana (média de 1,76 hora). Entretanto, estudo de Przybylski (2014) com crianças encontrou que aquelas que jogam mais de três horas por dia apresentam mais comportamentos antissociais quando comparadas com crianças que não jogam. Em contrapartida, encontrou que crianças que jogam menos de uma hora por dia estão associadas a comportamento pró-social e alta satisfação quando comparadascom crianças não jogadoras. Harris e Williams, citados por Tobias, Fletcher e Wind (2014), apontam correlação entre desempenho escolar baixo e maior tempo e dinheiro dispendido em videogames. Esses dados nos alertam para o distanciamento entre a escola e a desejada experiência de satisfação e proatividade proporcionada pelos jogos, sugerindo que, se os jogos fossem utilizados com objetivos educacionais, respeitando um tempo adequado e certa regularidade, benefícios poderiam ser encontrados. A pesquisa de Rosser Jr. et al. (2007) sugere que jogos digitais contribuem para a melhora em alguns processos cognitivos e psicomotores, o que pôde ser constatado comparando cirurgiões que tinham o hábito de jogar com aqueles que não jogavam. Karle, Watter e Shedden, citados por Tobias, Fletcher e Wind (2014), também encontraram menor tempo de reação em tarefas perceptivas naqueles que jogavam quando comparados com não jogadores. Ainda considerando que o que se quer quando se utiliza um jogo com finalidade educativa é que aqueles que jogam sejam capazes de levar a aprendizagem obtida no jogo para fora dele, Tobias e Fletcher (apud Tobias, Fletcher e Wind 2014) e Tobias et al. (apud Tobias, Fletcher e Wind 2014) analisaram os resultados divergentes de duas pesquisas que objetivaram verificar a transferência de aprendizagem proporcionada por jogos. Como conclusão, constataram que a tão desejada transferência pode ser esperada somente quando processos cognitivos semelhantes são encontrados nos jogos e nas tarefas externas a eles. Quando há pouca semelhança, a transferência parece improvável. Para verificar isso, o caminho sugerido pelos autores seria uma detalhada análise tanto do jogo quanto da habilidade cognitiva da tarefa externa a ele (Tobias, Fletcher e Wind 2014). Outro dado de pesquisa aponta que a utilização de agentes animados tende a aumentar o interesse e facilitar a transferência de aprendizagem, embora não ajude na retenção de conhecimentos, segundo Mayer, citado por Tobias, Fletcher e Wind (2014). Entretanto, Tobias, citado por Tobias, Fletcher e Wind (2014), baseado em outras evidências de pesquisa, sugere que também outras formas de suporte explicativas das tarefas esperadas dos jogadores podem auxiliar para que a desejada aprendizagem ocorra. Na recente revisão de Tobias, Fletcher e Wind (2014), também foi destacado que, quanto mais a situação tratada no jogo for parecida com aquela que se deseja que seja alvo de aprendizagem, mais provável será a transferência de aprendizagem, o que é claramente demonstrado nas pesquisas com simuladores. Estudo surpreendente de Sitzmann e Elly, também citado por Tobias, Fletcher e Wind (2014), encontrou que diversão parece não ser tão essencial quando se trata de provocar motivação e afetar a aprendizagem. O mais importante seria provocar o engajamento ativo e proporcionar espaço de liberdade para jogar com a frequência desejada pelos estudantes. Nessa direção, outro estudo de Tobias, Fletcher e Wind (2014) encontrou que estudantes gastam mais tempo jogando videogames e simuladores do que utilizando outros materiais instrucionais. Como o tempo gasto em atividades por meio de material instrucional favorece a aprendizagem (Fisher e Berliner, apud Tobias, Fletcher e Wind 2014; Suppes, Fletcher e Zanotti, apud Tobias, Fletcher e Wind 2014), ainda resta a dúvida se são os jogos e os simuladores que facilitam a aprendizagem ou a quantidade de tempo gasto. Para nós, essa resposta não tem grande relevância, pois os estudantes demonstraram claramente no estudo preferir os jogos e simuladores a outros materiais instrucionais. Se é o que preferem, é neles que devemos nos ater em uma análise dos designs instrucionais. Ainda um aspecto a considerar na revisão da literatura científica a respeito do uso de jogos na educação quando o objetivo são conteúdos específicos do currículo escolar são as atividades complementares. Tobias, Fletcher e Wind (2014) apontam que parece pouco evidente que somente os jogos sejam os responsáveis pela desejada aprendizagem de conteúdo escolar; o objetivo tem maior alcance quando se adicionam outros materiais, como pesquisas de links na web, exercícios em laboratório ou mesmo textos. Em outra interessante revisão de muitas pesquisas, Gentile (2011) alerta para uma possibilidade além da costumeira dicotomia sobre os jogos digitais comerciais, dizendo que não se trata de afirmar se eles são bons ou maus, trata-se de considerar algumas dimensões relativas ao seu uso, quais sejam: tempo de jogo, conteúdo, estrutura, contexto e mecânicas. Nessa direção, o autor alerta para a duração e a frequência com que se joga. Ainda, propõe atentar para os conteúdos dos jogos, buscando aqueles possíveis de levar a comportamentos socialmente mais positivos; para a estrutura dos jogos de ação e dos shooters, que proporcionam efeitos de acuidade visual nos jogadores e pode ser aplicada em jogos sem violência; para o jogo em grupos on-line ou com amigos, que pode ser melhor que solitariamente, pois proporciona a experiência de trabalho em equipe; para o tipo de controle de jogo utilizado, que influencia a aprendizagem motora (se teclado, mouse ou joystick). Como ponto destacado, especialmente quando pensamos em políticas públicas para a educação, é o custo-benefício proporcionado pelos jogos quando em comparação com outros sistemas instrucionais. Fletcher, citado por Tobias, Fletcher e Wind (2014), aponta algumas vantagens: 1) os estudantes persistem mais tempo em atividades de jogos do que em atividades instrucionais que não jogos; 2) se o jogo for relevante para aprendizagens, o tempo dispendido com ele aumentará a oportunidade de aprendizagem; 3) portanto, pode-se aprender mais com jogos do que com outros ambientes instrucionais sem aumentar os custos. Pesquisas realizadas e metodologia Duas pesquisas empíricas de natureza qualitativa e quantitativa foram realizadas por mim,[39] nas quais a questão da relação entre jogos digitais e aprendizagem foi abordada na perspectiva da percepção dos sujeitos pesquisados. A primeira foi aplicada entre os anos de 2010 e 2011,[40] e teve como recorte estudantes iniciantes (1º e 2º semestre) de um determinado curso de graduação em jogos digitais na cidade de São Paulo. A maioria desses discentes é jogadora de jogos digitais desde criança, portanto, conhecedora de muitos títulos de jogos e participante da cultura gamer. Além disso, a motivação para a entrada no curso foi o fato de gostarem de jogar. Nesse caso, a natureza do estudo se centrou em uma análise quantitativa, mas não deixando de considerar aspectos qualitativos das respostas dos estudantes. Aplicou-se como técnica um questionário (uma pergunta fechada e outras abertas) com uma amostra de 182 sujeitos, cujas perguntas relativas a aprendizagem, aplicadas com 108 estudantes, foram: 1) Você acredita que aprendeu algo jogando jogos digitais? e 2) Em caso afirmativo, o que você acha que aprendeu jogando? Para o levantamento e a análise das respostas foi projetada uma planilha Excel, na qual se inseriram as respostas. A planilha possibilitou a contagem das respostas e sua classificação por categorias de análise definidas com base nos temas mais frequentes nas respostas. Todas as respostas (palavras e expressões) foram analisadas no contexto das frases em que foram escritas. A outra pesquisa foi de natureza predominantemente qualitativa, levada a cabo utilizando um método de análise de jogos que desenvolvi em pesquisas anteriores. Trata-se do que denominei “jogo assistido”, uma espécie de observação participante em que o pesquisador/observador dá suporte à narrativa que vem se desenvolvendo nas ações do jogador, intervindo com perguntas surgidas na própria interação, a fim de compreender mais detalhadamente a experiência de jogar dos jogadores. Além disso, realizaram-se entrevistas semiestruturadas e questionamentos. As respostas a estes últimos foram situadas em uma escala de Likert. O contato se deu entre final de 2014 e início de 2015, em encontrosde cerca de uma hora e meia com cada uma de cinco crianças entre 6 e 12 anos. Seguiu os procedimentos éticos de pesquisa previstos no Canadá, passando pela aprovação de três níveis de conselhos de ética da Universidade de Toronto. Os pais das crianças assinaram o termo de consentimento, autorizando a participação dos filhos na pesquisa e as próprias crianças assinaram, assentindo em colaborar com a investigação. Para este capítulo, utilizarei os dados referentes à percepção dos jogadores com relação à aprendizagem no jogo digital Minecraft, obtidos da escala de Likert em confronto com respostas à entrevista. A pesquisa se desenrolou no contexto mais natural possível, resguardando a privacidade dos participantes. Os registros dos discursos foram gravados em áudio e, posteriormente, transcritos. Para o levantamento e a análise das questões em foco, gerou-se uma tabela para as respostas provenientes da escala de Likert e, para uma complementação abrangente das razões para essas respostas, empregou-se a análise de discurso de Pêcheux (Teixeira 2000) que, fortemente influenciada pela psicanálise, permitiu uma maior abertura interpretativa. Resultados das pesquisas O primeiro estudo trouxe 104 respostas positivas à pergunta 1) Você acredita que aprendeu algo jogando jogos digitais?, e somente quatro sujeitos afirmaram que não aprenderam nada jogando. Ou seja, 96% consideram que aprenderam jogando. Gráfico 1. Percepção dos sujeitos questionados sobre a possibilidade de terem aprendido por meio dos videogames Analisando as respostas da pergunta 2) Em caso afirmativo, o que você acha que aprendeu jogando?, organizamos quatro categorias: conteúdos escolares: conhecimentos escolares e idiomas; pensamento lógico-matemático; habilidades socioafetivas: interpessoais e intrapessoais; destreza motora. Na categoria conteúdos escolares, trabalhamos com duas subcategorias: conhecimentos escolares e idiomas estrangeiros. Dos 108 sujeitos da pesquisa, 33 disseram ter aprendido ou aperfeiçoado outro idioma, com 29 respostas relativas ao conhecimento de inglês, o que significa que 27% dos questionados afirmam terem feito aprendizagens de inglês ao jogar. Os conhecimentos escolares citados como aprendidos jogando videogames foram: mitologia; história; matemática; arte; literatura; e, destacando-se, cultura de outros países ou civilizações, totalizando 33 sujeitos ou 28% dos participantes. Em nova contagem, somando conhecimentos escolares e idiomas estrangeiros, encontraram- se 46 sujeitos que responderam terem aprendido um ou mais conteúdos que fazem parte do currículo de escolas jogando videogames, ou seja, um percentual de 43%. Do total de participantes, 35 estudantes ou 32% afirmaram terem desenvolvido habilidades relacionadas ao pensamento lógico- matemático. As palavras utilizadas que agrupamos nessa categoria foram: raciocínio, pensamento lógico, pensamento rápido, estratégia, lógica, analisar e pensar como escapar de armadilhas. Outra categoria encontrada com a análise das respostas se refere a habilidades socioafetivas, que se dividiu em habilidades interpessoais (voltadas ao relacionamento social) e em habilidades intrapessoais (voltadas a uma autocompreensão de seus afetos). Dos 108 sujeitos, 13 citaram que desenvolveram ou aprenderam habilidades como trabalhar em equipe, cooperar, ser mais sociável e desenvolver amizades. Outros 18 participantes deram respostas que convergiram para o que se categorizou como habilidades intrapessoais, afirmando, por exemplo, que aprenderam a ter autocontrole e paciência; a serem perseverantes; a serem mais confiantes em si mesmos; a buscar desafios; a lidar com suas qualidades e seus defeitos. Ou seja, as habilidades socioafetivas foram citadas por 29% dos sujeitos como tendo sido aprendidas por meio da experiência de jogar videogames. A categoria destreza motora (reflexo, coordenação, agilidade, destreza) foi citada por 11 sujeitos, o equivalente a 10% do total de questionados. Para uma melhor compreensão dos resultados, eles foram sintetizados na estrutura diagramática que se segue. Gráfico 2. Organização por categorias das respostas dos sujeitos participantes a respeito do que consideram que aprenderam por meio dos jogos digitais No segundo estudo, analisando a escala de Likert aplicada, 60% das crianças respondentes disseram que Minecraft e “aprender” combinam muito bem. Ninguém disse que Minecraft e aprender não têm nada em comum, não combinam. Para aquelas duas crianças que disseram que essas palavras apenas combinam, o comentário a respeito da resposta foi de que algumas pessoas aprendem, mas não são todas as que aprendem. Além disso, em uma questão anterior de entrevista a respeito desse tópico, duas crianças disseram que, jogando Minecraft, aprenderam criatividade. Uma dessas crianças acrescentou que também aprendeu sobre computação, pois teve de descobrir como operar com redstone. Três das crianças responderam que não aprenderam nada jogando Minecraft, apesar do fato de que, como respondeu um desses sujeitos: “Eu sei que construir coisas é duro e que é preciso planejar antes de construir” (menina, 10 anos). Nesse ponto, seria interessante compreender o que significa “aprender” para essas crianças: talvez um conteúdo escolar estruturado, não prontamente encontrado no mundo de Minecraft. Nesse sentido, um ponto a ponderar, já que esse estudo foi realizado com três sujeitos nascidos no Canadá, filhos de pais canadenses e falantes somente de língua inglesa, e duas crianças falantes de português, filhas de brasileiros. O ponto são as possíveis diferenças culturais, já que as três crianças que responderam que não aprenderam nada jogando Minecraft são as pertencentes ao primeiro grupo citado. Outro dado das respostas que converge com o foco deste capítulo é a compatibilidade percebida pelas crianças entre diversão e o emprego de esforço, tempo e o uso de habilidades. Gráfico 3. Representação da relação entre o jogo Minecraft e aprendizagem, segundo as crianças entrevistadas Discussão dos resultados Apesar das pesquisas, cujos dados apresentei, terem tido diferentes desenhos e terem investigado diferentes faixas etárias, ambas trazem resultados que contribuem para a discussão da aprendizagem por meio dos jogos digitais. A primeira pesquisa aponta para a percepção da relevância dos jogos digitais na aprendizagem dos jogadores, tanto no que se considerou, nessa pesquisa, como conteúdos escolares estruturados, quanto no que se entendeu como o desenvolvimento do pensamento lógico-matemático ou pensamento científico. Nessa direção, segundo Piaget e Inhelder (1975), o desenvolvimento do pensamento é condição para a compreensão de conteúdos escolares, ao passo que, para Vygotsky (1984), a aprendizagem dos conteúdos escolares seria propulsora do desenvolvimento do pensamento. Por uma ou por outra abordagem, é inegável a relevância dos jogos digitais para a educação. A diversidade de conteúdos escolares citados como aprendidos por meio dos jogos comerciais se mostrou surpreendente. Resta saber o quanto esses conhecimentos realmente se fazem úteis para os currículos escolares nacionais, com reflexos na educação formal de nossos estudantes. Para além do desenvolvimento de um pensamento que é diretamente demandado para a execução de atividades escolares e de uma bagagem de conhecimentos relacionados com os conteúdos escolares, os estudantes também destacam habilidades socioafetivas aprendidas por meio dos jogos. Como visto na revisão de Tobias, Fletcher e Wind (2014), os jogos mais efetivos para o processo de ensino-aprendizagem seriam aqueles cujas tarefas exigidas para sua execução demandassem o mesmo tipo de processo cognitivo que as tarefas desejadas externas ao jogo. Isso é interessante, se confrontamos esse dado com as duas pesquisas que realizei. Na primeira, os sujeitos são jogadores de muitos anos e jogam uma grande diversidade de jogos digitais; na segunda, apesar de as crianças recrutadas se considerarem boas jogadoras de Minecraft e jogarem
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