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Jogos digitais e aprendizagem

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Jogos digitais e aprendizagem
FUNDAMENTOS PARA UMA PRÁTICA BASEADA EM
EVIDÊNCIAS
LYNN ALVES 
ISA DE JESUS COUTINHO (ORGS.)
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO – GAMES E EDUCAÇÃO: NAS TRILHAS DA
AVALIAÇÃO BASEADA EM EVIDÊNCIAS
Lynn Alves e Isa de Jesus Coutinho
1. O CONCEITO ONTOLÓGICO DE JOGO
Luís Carlos Petry
2. JOGOS DIGITAIS E APRENDIZAGEM: ALGUMAS
EVIDÊNCIAS DE PESQUISAS
Arlete dos Santos Petry
3. PESQUISA DA AVALIAÇÃO E da EFICÁCIA DA
APRENDIZAGEM BASEADA EM JOGOS DIGITAIS:
REFLEXÕES EM TORNO DA LITERATURA CIENTÍFICA
Ruth S. Contreras-Espinosa e Jose Luis Eguia-Gómez
4. DESENHANDO HEALTH GAMES PARA NÃO GAMERS
Ana Beatriz Bahia
5. OS DESAFIOS E AS POSSIBILIDADES DE UMA PRÁTICA
BASEADA EM EVIDÊNCIAS COM JOGOS DIGITAIS NOS
CENÁRIOS EDUCATIVOS
Isa de Jesus Coutinho e Lynn Alves
6. ENSINO DE HISTÓRIA E VIDEOGAME: PROBLEMATIZANDO
A AVALIAÇÃO DE JOGOS BASEADOS EM
REPRESENTAÇÕES DO PASSADO
Helyom Viana Telles e Lynn Alves
7. JOGO-SIMULADOR KIMERA: AVALIAÇÃO BASEADA EM
PERSPECTIVAS
André Luiz Andrade Rezende, Tania Maria Hetkowski e Josemeire
Machado Dias
8. DESIGN METODOLÓGICO PARA AVALIAR O GAME ANGRY
BIRDS RIO E EVIDÊNCIAS DA UTILIZAÇÃO EM SALA DE
AULA
Filomena M.G.S. Cordeiro Moita
9. AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM EM PROCESSOS
GAMIFICADOS: DESAFIOS PARA APROPRIAÇÃO DO
MÉTODO CARTOGRÁFICO
Eliane Schlemmer e Daniel de Queiroz Lopes
10. JOGOS DIGITAIS, APRENDIZAGEM E DESEMPENHO
ESCOLAR: O QUE PENSAM OS GAROTOS QUE JOGAM?
Marcelo Silva de Souza Ribeiro e Rodrigo Clementino de Carvalho
11. O JOGO DA HISTÓRIA: APRENDIZAGENS SIGNIFICATIVAS
E JOGOS ELETRÔNICOS NUMA ESCOLA MUNICIPA DO
INTERIOR DA BAHIA
Marcelo Souza Oliveira e Lucas Araújo da Paixão
12. GAMIFICAÇÃO EM APLICAtivos MÓVEIS PARA EDUCAR
EM HÁBITOS DE VIDA SAUDÁVEIS
Carina S. González González, Nazaret Gómez del Río, Raquel
Martín González e Yeray del Cristo Barrios Fleitas
13. COMO PLANEJAR E AVALIAR INTERVENÇÕES COM
JOGOS DIGITAIS NA EDUCAÇÃO ESPECIAL?
Camila de Sousa Pereira-Guizzo
14. OS JOGOS DIGITAIS E A APRENDIZAGEM NOS IDOSOS:
DESAFIOS E RECOMENDAÇÕES
Ana Isabel Veloso e Liliana Vale Costa
15. JOGOS VIRTUAIS COMO MEDIADORES EM EDUCAÇÃO
EM SAÚDE E PREVENÇÃO DE DOENÇAS CRÔNICAS
Fernanda W.R. Camelier e Helena Fraga Maia
NOTAS
SOBRE OS AUTORES
REDES SOCIAIS
CRÉDITOS
APRESENTAÇÃO
GAMES E EDUCAÇÃO: NAS TRILHAS DA
AVALIAÇÃO BASEADA EM EVIDÊNCIAS
A discussão sobre games e educação tem crescido em todo o
mundo, inclusive no Brasil,[1] mobilizando pesquisadores e
desenvolvedores a construírem um sentido diferenciado para a presença
desses artefatos culturais nos espaços escolares.
A indústria brasileira de games, em 2013, produziu 621 jogos
digitais para educação e 698 para entretenimento.[2] Esses dados
evidenciam um crescimento do mercado de games para educação e
consequentemente uma preocupação com a elaboração de produtos que
contribuam para a aprendizagem dos jogadores.
Contudo, nessa busca de construção de sentidos e de efetividade
dos resultados, defrontamo-nos constantemente com um
questionamento que emerge todas as vezes que escrevemos, publicamos
e desenvolvemos games para os cenários escolares: como se dá a
aprendizagem escolar mediada pelos games? Uma questão difícil de
responder de forma objetiva, principalmente porque ainda não temos de
forma consolidada os percursos realizados pelos players (pesquisadores
e desenvolvedores) para evidenciar essa aprendizagem.
Assim, objetivando socializar os diferentes caminhos trilhados
pelos pesquisadores brasileiros, portugueses e espanhóis que, ao longo
dos últimos 11 anos, estiveram presentes de diferentes formas no
Seminário de Jogos Eletrônicos, Comunicação: Construindo novas
trilhas, realizado pelo grupo de pesquisa Comunidades Virtuais/Rede
Brasileira de Jogos Eletrônicos e Educação, da Universidade do Estado
da Bahia, organizamos o livro Jogos digitais e aprendizagem:
Fundamentos para uma prática baseada em evidências, que tem o
objetivo de apresentar as distintas perspectivas que marcam as
investigações, apontando os aportes metodológicos e seus instrumentos
de pesquisa para responder à questão que emerge fortemente quando
estabelecemos interlocução com os distintos espaços, sejam eles
acadêmicos, escolares, midiáticos ou de financiamento, entre outros.
Obviamente, não existe uma única resposta para esse questionamento,
mas a construção de olhares e possibilidades que podem contribuir para
o delineamento de um design metodológico que subsidie outras práticas
de investigação e de desenvolvimento.
A prática baseada em evidências está presente na área de saúde e
mais recentemente na área de educação, mas, especialmente no Brasil,
os desavisados tendem a relacioná-la com abordagens experimentais.
No cenário das investigações que nascem no bojo das ciências humanas,
a tradição é valorizar as pesquisas de base qualitativa que se centram na
“escuta sensível”[3] dos sujeitos, utilizando instrumentos como as
entrevistas em profundidade, as observações, a análise de conteúdos,
entre outros, não cabendo generalizações, já que a singularidade dos
sujeitos e de suas percepções em torno do fenômeno estudado deve ser
revelada e respeitada.
Contudo, acreditar que somente pesquisas de bases experimentais
podem basear-se em evidências é um equívoco.
Os vestígios, sinais, indícios, entre outros aspectos, que emergem
do discurso dos sujeitos ao serem inquiridos por um pesquisador de
base qualitativa, constituem evidências que compõem o cenário de
investigação e que contribuem para compreender o fenômeno
pesquisado. Tal perspectiva pode ser comprovada nas interlocuções e
nas investigações registradas neste livro.
Assim, tanto as pesquisas de bases experimentais como as
qualitativas podem apresentar evidências fundamentais para analisar o
objeto.
Na área de games e educação no Brasil, em Portugal e na Espanha,
encontramos uma perspectiva fortemente qualitativa, que se centra na
mediação de técnicas de pesquisa como grupos focais, observações,
estudo de caso, análise de conteúdo. Os resultados dessas investigações
não possibilitam generalizações, mas permitem compreender os
sentidos, significados e aprendizagens que emergem na interação dos
sujeitos com os jogos digitais, sejam eles de fins educacionais ou
comerciais.
Portanto, este livro parte da compreensão de que a prática baseada
em evidências consiste na busca, na clareza, na veracidade e na
sustentabilidade das informações atreladas ao conhecimento tácito
construído e desenvolvido junto com a informação. Um tipo de relação
dialética entre arte e ciência, na busca da melhor evidência possível.[4]
As reflexões aqui presentes baseiam-se nas investigações dos
pesquisadores que têm os jogos como objeto de investigação e desejo, e,
como interlocutores, desde as crianças até os idosos, bem como os jogos
digitais que foram objeto de análise. Este livro traz 15 capítulos que
consistem em interlocuções que discutem os conceitos e as perspectivas
teórico-metodológicas. Os autores apresentam o estado da arte sobre o
tema, apontando aspectos epistemológicos, possibilidades e limites,
bem como os resultados de suas investigações, fundamentos em nível
teórico-metodológico.
O primeiro capítulo, “O conceito ontológico de jogo”, de Luís
Carlos Petry, discute a perspectiva ontológica do jogo analógico ao
digital, mediante a interlocução com autores como Heidegger (2001)[5]
e outros, mais contemporâneos, que têm os games como objeto de
análise.
Arlete dos Santos Petry apresenta, no segundo capítulo, “Jogos
digitais e aprendizagem: Algumas evidências de pesquisas”, o estado da
arte das pesquisas realizadas na área de jogos digitais e aprendizagem,
partindo das contribuições de pesquisadores como Greenfield (1984) e
Turkle (1998), indicando as perspectivas dentro e fora do Brasil nos
últimos anos.
O olhar dos pesquisadores Ruth S. Contreras-Espinosa e Jose Luis
Eguia-Gómez, no terceiro capítulo, “Pesquisa da avaliação e da eficácia
da aprendizagem baseadaem jogos digitais: Reflexões em torno da
literatura científica”, convida-nos a trilhar o estado da arte do tema
jogos digitais e aprendizagem baseada em evidências, situando o leitor
nas contribuições dos autores europeus e americanos.
Pensar a relação entre jogos digitais e aprendizagem exige que
tenhamos um olhar especial para o jogador, isto é, o gamer. Quem é
esse sujeito que imerge no universo dos jogos digitais? Com base nessa
discussão, a autora Ana Beatriz Bahia, no quarto capítulo, “Desenhando
health games para não gamers”, fundamenta situações que envolvem os
jogos desenvolvidos por ela.
No quinto capítulo, denominado “Os desafios e as possibilidades de
uma prática baseada em evidências com jogos digitais nos cenários
educativos”, as autoras Isa de Jesus Coutinho e Lynn Alves apresentam
e discutem o conceito de avaliação baseada em evidências,
especialmente relacionada com a mediação dos jogos digitais.
Os autores Helyom Viana Telles e Lynn Alves nos convidam a
imergir no “Ensino de história e videogame: Problematizando a
avaliação de jogos baseados em representações do passado”. Nesse
capítulo, entra em cena a história, campo de conhecimento que
subsidiou o desenvolvimento de quatro jogos pelo grupo de pesquisa
Comunidades Virtuais. No texto, o jogo Civilization III é o objeto de
análise.
No sétimo capítulo, denominado “Jogo-simulador Kimera:
Avaliação baseada em perspectivas”, de autoria de André Luiz Andrade
Rezende, Tania Maria Hetkowski e Josemeire Machado Dias, é possível
conhecer o processo de desenvolvimento do Kimera, a validação da
perspectiva de avaliação construída por Dias e Hetkowski (2015) e
escutar os especialistas que avaliaram o potencial do jogo.
A pesquisadora Filomena M.G.S. Cordeiro Moita, no Capítulo 8,
nos dá um significado diferenciado a um dos jogos casuais mais
famosos no mundo. Assim, em “Design metodológico para avaliar o
game Angry Birds Rio e evidências da utilização em sala de aula”, a
autora leva o jogo para mediar a construção de conceitos da área de
física, ratificando a premissa de que os jogos comerciais também
constituem espaços de aprendizagem escolar.
De uma perspectiva metodológica diferenciada, os autores Eliane
Schlemmer e Daniel de Queiroz Lopes trazem para discussão uma
categoria teórica bastante evidenciada nos últimos anos: a gamificação.
Assim, no Capítulo 9, “Avaliação da aprendizagem em processos
gamificados: Desafios para apropriação do método cartográfico”,
podemos compreender as interfaces entre jogos digitais, gamificação e
avaliação, tomando como interlocutores os alunos de cursos de
graduação.
No Capítulo 10, é a vez de escutar os pré-adolescentes de um
condomínio na cidade de Juazeiro, Bahia. “Jogos digitais, aprendizagem
e desempenho escolar: O que pensam os garotos que jogam?”, de
autoria de Marcelo Silva de Souza Ribeiro e Rodrigo Clementino de
Carvalho, permite-nos compreender a relação entre jogos digitais e
aprendizagem do ponto de vista de quem mais entende esse universo e
vive imerso nele: os jogadores.
Marcelo Souza Oliveira e Lucas Araújo da Paixão refletem e
discutem a interação entre os jogadores e os jogos com conteúdos
históricos, dando origem ao Capítulo 11, “O jogo da história:
Aprendizagens significativas e jogos eletrônicos numa escola municipal
do interior da Bahia”.
“Gamificação em aplicativos móveis para educar em hábitos de
vida saudáveis”, de autoria dos pesquisadores da Universidade de La
Laguna, em Tenerife, Espanha, constitui o Capítulo 12. O grupo,
coordenado pela professora Carina S. González González, e tendo como
pesquisadores Nazaret Gómez del Río, Raquel Martín González e Yeray
del Cristo Barrios Fleitas, realizou a investigação com a mediação do
Provitao App, um aplicativo para apoiar o tratamento da obesidade
infantil. Esse capítulo dá início a uma discussão importante e
contemporânea na área de jogos digitais: a interface desses artefatos
culturais com a área de saúde.
Camila de Sousa Pereira-Guizzo, no Capítulo 13, apresenta o
delineamento metodológico planejado para duas pesquisas realizadas
sob sua orientação, que tiveram como foco a educação inclusiva, não
apenas nos espaços escolares, mas também na intervenção clínica.
Assim, em “Como planejar e avaliar intervenções com jogos digitais na
educação especial?”, é possível perceber a importância do método nas
pesquisas que buscam investigar os efeitos dos jogos para crianças com
paralisia cerebral.
Os seniores, como são denominados os idosos em Portugal, são os
sujeitos das pesquisas realizadas pelas autoras Ana Isabel Veloso e
Liliana Vale Costa, no Capítulo 14, “Os jogos digitais e a aprendizagem
nos idosos: Desafios e recomendações”. O grupo, coordenado pela
professora Ana Isabel Veloso, desenvolve ambientes interativos,
incluindo jogos digitais especialmente para os seniores, e acompanha o
percurso desses sujeitos, investigando seus processos de aprendizagem.
Concluindo o livro, o Capítulo 15, das autoras Fernanda W.R.
Camelier e Helena Fraga Maia, convida-nos a dialogar sobre as
possibilidades que podem emergir na relação saúde-educação-jogos
digitais. Assim, em “Jogos virtuais como mediadores em educação em
saúde e prevenção de doenças crônicas”, podemos ratificar que os jogos
digitais constituem uma área de interface com distintos saberes.
Em toda a obra, é possível perceber que os autores possuem uma
base teórica semelhante, mas estabelecem relações e interlocuções de
forma diferenciada, enriquecendo a discussão e possibilitando aos
leitores a construção de novos sentidos. Os capítulos trazem sempre
exemplos de jogos comerciais e com fins educacionais a fim de apontar
o que já vem sendo realizado para delinear uma trilha de avaliação
baseada em evidências.
Portanto, este livro é um convite para que estudantes,
pesquisadores, pais, legisladores e desenvolvedores possam dialogar e
subsidiar novas práticas de avaliação de jogos digitais baseadas em
evidências, bem como a definição de políticas que promovam a abertura
de editais e linhas de financiamento que apoiem a produção de games
voltados para os cenários escolares, bem como processos avaliativos
baseados em evidências que retroalimentem não apenas a prática dos
docentes e pesquisadores, mas também dos desenvolvedores.[6]
Lynn Alves e Isa de Jesus Coutinho
1
O CONCEITO ONTOLÓGICO DE JOGO
Luís Carlos Petry
Introdução
Em pesquisa, uma das questões metodológicas fundamentais
consiste na capacidade de delimitarmos os contornos gerais do tema e
do objeto pesquisado, a fim de dispormos claramente em nossa mente o
tipo de objeto com o qual nos relacionamos, seu modo de ser, bem
como a região temática que o abriga e lhe dá suporte.
Conceituarmos uma região temática (ou área epistêmica) é uma das
tarefas fundamentais da prática científica.[7] Uma área de
conhecimento constitui uma dada região, que envolve elementos
epistêmicos, objetos, métodos e consequentes aplicabilidades
pragmáticas.[8] Assim, para qualquer área ou objeto que recaia sob seu
domínio, devemos ser capazes de determinar os fundamentos
conceituais, os limites críticos que o separam de outras áreas ou objetos,
as propriedades, funções, finalidades e consequentes utensilidades.
Entretanto, muitas vezes, um mesmo objeto pode recair sob o domínio
de diversas áreas do conhecimento. Um notável exemplo é o corpo
humano, pensado como objeto. Recortado por inúmeras áreas e
disciplinas, o corpo humano é visto como algo que proporciona um
olhar diferenciado para um mesmo e único objeto.[9] Cerca de três mil
anos atravessam os estudos sobre o corpo humano como objeto fático,
burilando seus contornos e equalizando as relações entre as pertinentes
disciplinas que realizam discursos, pesquisas e produzem
conhecimentos acerca dele. Alguns objetos recentes, que recebem a
atenção da pesquisa científica, parecem iniciar o mesmo processo de
refinamento progressivo, e esse parece ser o caso do objeto jogo digital.
O conceito de jogo e a questão da classificação
Os jogos digitais são tomados como novos objetos deuma cultura e
uma sociedade designadas como pós-modernas. Esse é o ponto de vista
de inúmeros teóricos.[10] Surgido no contexto da computação, o objeto
jogo digital imediatamente extravasou seu campo de nascimento,
organizando-se como um objeto-cultural-digital, de acordo com a
descrição que lhe dá Manovich (2001), baseado numa leitura
estruturalista referenciada em Michel de Certeau. Segundo esse ponto
de vista, o jogo, como objeto digital da cultura pós-moderna, tem como
característica inerente não somente participar da cultura, mas,
sobretudo, ressignificá-la. Esse é um dos aspectos que torna esse objeto
de nossa cultura tão enigmático, significativo e, ao mesmo tempo, de
difícil apreensão. De certo modo, ele sofre do mesmo mal que afetou
conceitos modernos como o de neurose e inconsciente: ao rapidamente
passarem ao domínio da linguagem informal, receberam, pelo seu uso,
as mais diversas interpretações, sentidos e usos. Em filosofia, diz-se
que, quando isso acontece, o conceito que delimita o objeto adquire
contornos elásticos ou maleáveis, dependendo de seu uso ou utilizador.
Podemos, então, pensar que o objeto jogo digital, rapidamente
apropriado pela linguagem informal, objeto reiteradamente evocado
pela mídia, seja um objeto com contornos não muito bem definidos e,
assim, afeito a inúmeras conceituações.
Fenômeno facilmente verificável quando, ao entrarmos em contato
com um utilizador do objeto jogo (o jogador) e, mesmo quando
contatamos um produtor de jogos, somos rapidamente informados do
fato de que cada interessado particular no objeto tem seu conceito
próprio e particular do objeto. Diz o ditado: cada cabeça uma sentença.
Baseados no senso comum, não é difícil constatarmos que cada jogador
tem não somente uma visão do que seja o objeto de seu interesse, mas
uma definição do que seja jogo e, mais intensamente, do que não seja
jogo.
Apesar de sermos reiteradamente advertidos pelos estudiosos da
área de que o objeto jogo é um objeto multi e interdisciplinar,
observamos que ele sempre é enfocado pelo utilizador (e não raras
vezes pelo desenvolvedor, senão também pelo estudioso) de um modo
particular, geralmente relacionado ao campo da doxa[11] básica e
pessoal da formação do sujeito. Essa peculiaridade nos ofereceu, ao
mesmo tempo, uma riqueza de abordagens (desde a década de 1980) e
um debate acirrado, que se iniciou no final dos anos 1990 e somente nos
últimos tempos tem se mostrado inócuo.[12]
A solução do debate sobre a natureza do jogo (o que ele é em si e
sua estrutura) entre ludologistas e narratologistas teve como resposta
inúmeros desenvolvimentos positivos por parte de estudiosos que
estavam mais interessados na construção de uma visão mais ampla do
conceito de jogo e que fosse capaz de abrangê-lo em toda a sua riqueza
e multiplicidade. Finalmente, observamos que um interessante exemplo
dessa conjunção pode ser encontrado no relatório de 2008 da IGDA,
[13] no qual o objeto jogo e sua tematização conceitual são tomados
com base numa clara perspectiva multidisciplinar, na qual todas as
partes que a constituem são postuladas como necessárias. O relatório
trabalha o conceito e o campo do objeto, com base no qual buscaremos
realizar a nossa abordagem reflexiva.
As linhas gerais do campo dos jogos digitais
De acordo com o relatório de 2008 da IGDA, o dramático
crescimento dos cursos de jogos (nos Estados Unidos) e seu impacto
coletivo, nos seis anos anteriores, mostrou a necessidade da formação
de uma identidade compartilhada, na qual inúmeros atores se fizessem
presentes, inicialmente os mais diretos, a academia e a indústria dos
jogos.[14] Isso significa que, além de um conceito de jogo ser adotado
de forma homogênea, também se fez necessária a adoção de um
programa de formação que contemplasse elementos mínimos ou básicos
compartilhados por todos os cursos de graduação que se dedicavam à
formação em jogos. O relatório da IGDA trabalha com uma realidade
detectada nos Estados Unidos, entretanto, sendo o campo dos jogos
universal e diante de sua expansão global, situação similar é encontrada
em toda parte e, no caso do Brasil, não se faz presente nenhuma
exceção.[15]
Seguindo essa perspectiva, bem como a conceituação apresentada
por nós, que permite pensarmos objetos fáticos e objetos intencionais
(Russell 2006; Granger 1998), organizamos a estrutura de uma possível
identidade compartilhada do emergente campo cultural dos jogos, que
implica os seguintes elementos:
a) necessidade de um conceito que cubra o objeto epistêmica
e materialmente, de forma a descrever a sua complexidade
e a sua amplitude aberta, semipermeável e híbrida;
b) metodêutica de acesso analítico ao objeto, que permita
compreender tanto os seus fundamentos como as suas
possibilidades e aplicações;
c) campo diversificado de impacto/extensão prática (do
objeto) dentro das diferentes e divergentes áreas da cultura
e da sociedade: o entretenimento, a formação, a pesquisa,
a poièsis/arte, a educação, os negócios etc.;
d) entendimento do objeto como um objeto (digital) da
cultura, diferenciando-o dos demais objetos culturais
tradicionais e das mídias tradicionais, o que comporta um
campo de novas possibilidades ainda a serem descobertas,
diferenciando-o epistemicamente – e não o contrapondo
ou antepondo – da literatura, do teatro, do cinema e dos
demais jogos não digitais, por exemplo.
A ideia de uma identidade de objeto compartilhada nos alerta para o
fato de que, com tal fenômeno, temos um novo e rico campo de estudo,
pertinente aos jogos digitais, com requisitos próprios de caráter
interdisciplinar.[16] Isso significa que o campo de atuação e formação
nos jogos digitais transcende as disciplinas particulares. Em sentido
prático, os jogos digitais atravessam disciplinas e saberes, não se
constituindo em monopólio de nenhum deles. Como objeto conceitual e
como objeto de aprendizagem (no que diz respeito à formação),
constitui-se em objeto genuinamente interdisciplinar ou transdisciplinar.
Aarseth (2001), ao criar o site e journal Game Studies, inicialmente
chamou a atenção para essa característica interdisciplinar do objeto de
estudo jogos.[17]
Nesse sentido, podemos considerar a situação particular e peculiar
do objeto digital jogo. Essa observação se faz pertinente, em razão de o
objeto jogo anteceder ao jogo digital,[18] na mesma medida em que a
capacidade da linguagem precede a toda e qualquer língua em
particular.[19]
Muitas vezes, esquecemos isso quando enfatizamos algum aspecto
do jogo digital em particular, em detrimento dos demais. Em
computação, muitas vezes, dizemos que um jogo (digital) é um
software. Ainda que um jogo partilhe com um software a ideia e o
componente do código fonte, como tudo o mais dentro dos
computadores, consoles e dispositivos digitais, o fato da existência de
um código fonte, de serem necessárias grandes bases de modelagem e
programação para termos um jogo digital, esse fato não o coloca no
mesmo campo que outros softwares. Essa observação restritiva deve ser
colocada para todas as demais áreas de trabalho que formem um jogo
digital ou participem dele.
Outro aspecto apresentado pelo relatório da IGDA diz respeito à
formação colaborativa entre indústria e academia de um vocabulário de
conceitos.[20] Caberia à indústria dos jogos, por meio do teste das boas
práticas, fornecer feedback à academia, em um sistema de
retroalimentação e inovação. A relação entre a construção conceitual, a
formação continuada, o estabelecimento das boas práticas e o seu
feedback constitui o binômio (interativo) teoria/prática, resultando na
construção progressiva do objetivo, no que tange a melhoria e
aprimoramento (falibilismo metodológico).
Aspectos a serem considerados no conceito de jogo digital com
base na ontologia
O relatório de 2008 da IGDA buscou pensar o conceito de jogo em
seu sentido mais amplo possível, o que podemos identificar como a
busca de um conceito amplo ou estendido do objeto jogo (digital). Os
próprios relatores advertem que qualquer definição se tornaria umelemento limitante e, enfatizando um dado aspecto, disciplina ou
perspectiva, poderia colocar em risco a eficácia do conceito.
Lembremo-nos do observado acima, de que é comum encontrarmos nos
utilizadores de jogos digitais, e em muitos desenvolvedores, visões
absolutamente particulares do que seja o jogo digital.
Mesmo assim, os relatores dizem que, na maior parte das definições
encontradas de jogos, constatamos que os jogos constituem sistemas
que envolvem um jogador que realiza escolhas, as quais modificam o
estado do sistema (jogo), o que correspondentemente leva a um
resultado, determinado ou não de antemão. Uma definição de trabalho é
oferecida por eles e a discutimos.
Um jogo consiste em uma atividade com regras. Nem sempre, as
regras do jogo são claras e visíveis para o jogador no início do jogo.
Muitas vezes, elas precisam ser descobertas pelo jogador. Um jogo,
muitas vezes, pode envolver conflitos (Ágon),[21] nos quais o
antagonista pode ser representado pela IA (inteligência artificial) do
motor de jogo; outras vezes, por outro jogador (como no caso de muitos
MMORPG e FPS multijogador).[22] Um jogo pode também conter o
conflito na forma de sua organização de eventos aleatórios ou de azar
(acaso, como nos jogos de azar). A maioria dos jogos tem objetivos,
mas não todos (por exemplo, The Sims 2000 e SimCity 1989). Os
objetivos podem ser aparentes desde o começo do jogo ou ainda
descobertos no desenrolar do jogo e da narrativa nele implícita
(embutida). Objetivos podem também emergir no jogo, por parte do
jogador, como tarefas que ele mesmo se coloca durante o jogo, tais
como resolver um determinado enigma ou puzzle ou, de outro modo,
superar um obstáculo não essencial para o seguimento da narrativa (mas
fundamental para o jogador) etc. A maioria dos jogos define pontos
inicial e final, mas não todos (por exemplo, World of Warcraft 2004 e
Dungeons & Dragons 1974).[23] A maioria dos jogos envolve a
tomada de decisões por parte dos jogadores, mas não todos (por
exemplo, Myst 1993). Um jogo digital é um jogo (como definido
acima), que utiliza uma tela de vídeo digital de algum tipo, de alguma
forma. Todos os elementos presentes no jogo – regras, conflitos,
objetivos, definição de pontos e tomadas de decisões – são elementos
constituintes da vida humana em geral.
Quando dizemos que o jogo digital constitui um objeto cultural,
isso significa que ele integra a história dos objetos do Ocidente. Quer
dizer que ele está submetido às regras que delimitam o conjunto dos
objetos na cultura, na realidade, uma forma branda de dizermos que eles
têm uma ontologia subjacente ou se fundam em uma ontologia, ainda
que, na maioria das vezes, atencionada.[24] Isso não significa que um
desenvolvedor de jogos deva proceder a um trabalho filosófico prévio
para poder pensar, projetar e construir seu jogo. Significa, entretanto,
que, quando operamos com qualquer elemento da cultura, forças e
aspectos ontológicos sempre estão em operação, pois são eles que
fornecem a própria base da cultura. Para que isso fique claro e
possamos mostrar a sua relação com o objeto jogo digital, bem como
sua relevância para os processos e métodos de pesquisa em jogos,
necessitamos apresentar brevemente um conceito de ontologia e situá-lo
no contexto do próprio objeto.
Em uma linguagem sintética, dizemos que a ontologia é a parte da
ciência que trata da natureza, da realidade e da existência dos entes (os
objetos como objetos). Isso significa que a ontologia trabalha as
propriedades (ou características) e finalidades gerais dos objetos e suas
relações. A ontologia também organiza categorias ou classes, em que os
agrupamentos e distinções permitem uma melhor delimitação dos entes
compreendidos nelas. Aqui, entra em ação o que chamamos o
importante processo da classificação dos objetos em classes e
subclasses, em categorias e subcategorias, o que nos conduz a uma
organização dos objetos – no caso, os jogos. Essa aplicação direta da
ontologia nos leva a uma taxonomia[25] dos jogos, que pode ter
inúmeras finalidades práticas. Por exemplo, ela permite a organização
dos conceitos e objetos em sistemas agrupados por semelhanças
(familiaridades), relações e dependências. Ela possibilita uma
estruturação desses sistemas em hierarquias, seguindo critérios
preestabelecidos e reconhecidos. Do ponto de vista do conteúdo, ela traz
à luz os elementos que têm afinidades e é capaz de situá-los diante
daqueles dos quais se diferencia ou se afasta, isso em um modelo de
atração e repulsão, muitas vezes aplicável a personagens de jogos a
serem construídos e a procedimentos lógicos da programação (presentes
nos NPCs). Quando realizamos um fluxo de eventos com possibilidades
condicionais em uma máquina de estados,[26] é justamente esse
preceito lógico-filosófico de base ontológica que se encontra em
operação.
Os filósofos nos mostram que todos nós sempre operamos baseados
numa ontologia, mesmo que atencionada, ou seja, não tematizada e
operando de forma não estruturada, muitas vezes nos valendo do senso
comum. Por outro lado, uma forma estruturada e metodológica de nos
aproximarmos de um objeto é organizarmos sua estrutura ontológica. É
o que será iniciado aqui com o objeto jogo (digital), organizando a sua
ontologia com base em suas características fundamentais, e será nelas
que os fins e limites se tornarão mais evidentes. Tal procedimento tem
relevância para a pesquisa em jogos digitais, porque permite, baseado
na organização ontológica do objeto e do espaço do jogo, situar mais
clara e profundamente seus limites e sua pertinência.
Características ontológicas do objeto jogo digital
O que é um jogo? O que é um jogo digital? Quais são as suas
características? Para podermos entender mais internamente as perguntas
levantadas, necessitaremos apresentar o conceito de jogo como tal,
posto que o jogo digital, como um caso particular do conceito de jogo,
pode ser reduzido a este. Aqui, é necessário entendermos que o objeto
jogo digital é subsumido por um conceito que o precede histórica e
tematicamente e, ainda, que ele tem sua origem formal em uma
discussão que remonta aos filósofos pré-socráticos.
No Ocidente, o conceito de jogo vem sendo discutido pelos
pensadores desde o século VI a.C., com base nas reflexões do filósofo
grego Heráclito, que via no jogo um elemento mais elevado do que a
administração e a política. Heráclito foi o primeiro a identificar o
elemento de tensão presente no jogo baseando-se no conflito (Ágon) das
partes que o compõem. Após Heráclito, o jogo foi objeto de reflexão
por parte de inúmeros outros filósofos. Destacamos aqui as
contribuições de Pascal, Kant, Schiller, Huizinga, Heidegger, Callois,
Fink e Gadamer.[27]
O pensamento fenomenológico nos mostra que todo jogo abre para
o homem um espaço de movimento (em alemão Spielraum), dentro do
qual os jogadores se encontram e se encontram com o jogo e seus
objetos. Esse espaço do jogo produz uma situação especial de tempo e
espaço unificado com características ou propriedades ontológicas
fundamentais.
O jogar um jogo se funda em uma livre disposição do
homem: Característica da liberdade
A primeira característica é que todo jogo e seu jogar somente
podem acontecer dentro de um espaço de liberdade – a condição é que
todo jogador entre livremente no espaço de jogo. É Heidegger (2001),
em 1928-1929, o primeiro a evidenciar, no século XX, a característica
fundamental da liberdade no jogo/jogar. Nessa direção, tudo o que
ocorre no espaço do jogo deverá ter um caráter imprevisto ou aleatório,
organizando-se com base em regras não mecânicas. Isso significa que o
jogar não constitui uma sequência mecânica de processos físicos ou
psíquicos. Todo processo físico ou psíquico de jogar deve aqui ser
entendido como manifestação e não enômeno. O que se passa no jogo é
livre e, segundo o filósofo, sempre estará submetido às regras – o que
será explicitado logo adiante. Sendo livre, o jogo só pode ser jogo
quando escolhido livre e espontaneamente; caso contrário, não se tratará
de jogo.Huizinga (2008) chamou a isso de entrada no círculo mágico:
quando o jogo começa e eu estou nele jogando. A liberdade de entrar no
jogo também tem a estrutura de um ponto de entrada no jogo, mesmo
quando ele for aleatório.
Dentro do jogo temos sempre a produção de um
determinado estado de ânimo variável
Em segundo lugar, dentro do jogo, temos a produção de um estado
de ânimo (Stimmung, Heidegger 2001). O que se passa, sucede ou
acontece no jogo (em sua liberdade) consiste em que o essencial não é
fazer ou atuar, mas, sim, o jogar, que é, precisamente, seu estado de
ânimo, ou seja, o peculiar modo de se encontrar nele (de se encontrar
dentro e em meio ao jogo).
Todo jogo tem regras, mesmo que atencionadas ou
formuladas pelo lado do jogador
Em terceiro lugar, todo jogo tem regras que o jogador segue para
que o jogo prospere. Heidegger nos diz que, justamente pelo fato de o
essencial no jogar não ser o comportamento que nele se manifesta, as
regras têm também um caráter distinto: surgem e se formam no jogo
mesmo. Para o filósofo, essas regras que se formam no interior do
exercício do jogo têm liberdade em um sentido especial. Isso pode ser
afirmado da seguinte maneira: o jogar se exercita jogando. Quer dizer
que é no acontecer de sua própria execução – posto que o jogo executa a
si mesmo e jamais pode ser executado por outrem –, que é na liberdade
do jogar que as regras se constituem e se transformam. Disso resulta
que elas copertencem à liberdade constituinte do jogar. Ora, alguns
jogos não são construídos com regras estipuladas a priori para o
jogador (e.g., os sandbox), dentro dos quais ele tem uma grande
liberdade, restringida somente pelos limites físico-lógicos do jogo e de
suas construções. É nesse contexto que jogadores tendem a estabelecer
no jogar determinados padrões eletivos, que são perseguidos e
executados ao modo de algoritmos orgânico-sociais.
Regras se formam e se modificam durante o jogar do jogo
O quarto ponto, complementar e derivado do terceiro, mostra que a
regra do jogo não pode ser uma norma fixa, tomada de algum lugar a
ele externo, mas que é mutável pelopróprio exercício do jogar, pois o
jogar se exercita no jogar. Isso deve ser compreendido como o jogo
como execução de si mesmo, o que quer dizer o jogar o jogo no jogo.
Énessa situação que temos o surgimento de algo como um jogo, o que
não necessita começar constituindo, ou melhor, dando lugar a, ou ainda,
cobrando a forma de um sistema de regras ou de instruções. As regras,
por assim dizer, surgem e se formam dentro do espaço do próprio jogo,
o que significa, também, que é no interior dele mesmo que elas podem
vir a se modificar. Do contrário, a atividade perde a essência do próprio
jogo e do jogar, desconsiderando seu ser-em-si e, assim, entificando-o,
transformando-o numa determinada técnica de jogar ou de jogo.
Se compararmos o apresentado por Heidegger, já na década de
1920, com o conceito de trabalho oferecido pelo relatório da IGDA,
poderemos entendê-los como complementares. Conflitos são mediados
por regras, as regras auto-organizadas pelo jogador se estruturam como
objetivos ou metas dos quais ele recolhe conhecimento sobre o jogo e
por meio dos quais ele conhece mais profundamente o jogo que joga.
Nesse ponto, Wittgenstein (1987) tinha razão quando disse: se eu sei
jogar este jogo, eu compreendo este jogo. Ao jogar um jogo, eu tomo
decisões as mais diversas: uma decisão ou escolha de um pelo outro
somente se faz possível dentro da liberdade que o processo do jogo e do
jogar permitem. Somos levados a ver que todos os elementos presentes
no jogo – regras, conflitos, objetivos, definição de pontos e tomadas de
decisões são elementos constituintes da vida humana em geral, tal como
já observado anteriormente.[28]
Para Heidegger, como refere Ribeiro (2008, p. 77), o que dá vida à
partida, ao jogo, são os lances “que nascem da tensão entre o saber
prévio das regras desse jogo e o não saber acerca da situação que
aindaestão por vir”. Ou seja, as regras do jogo somente tomam seu
lugar, fazem sentido e começam a contar quando o jogo se inicia. Assim
como na linguagem, somente quando a palavra é dita ou escrita, ela
passa a gerar consequências. “Éna tensão entre o esperar e o inesperado
que nasce toda regra de ação” (ibid.); portanto, é essa tensão o lócus de
nossas tomadas de decisão. Esse é o lócus onde se dão o jogo e o jogar.
Não seria o movimento do jogo, o jogo em ação, uma condição para que
possamos fazer escolhas, tomar decisões? E, ao decidirmos, não
estaríamos, querendo ou não, sabendo ou não, seguindo alguma regra?
Ora, quando falamos de regras dentro do jogo temos dois subgrupos em
operação. Em primeiro lugar, temos as regras colocadas pelo design do
jogo e construídas pelos limites digitais do jogo e de sua programação.
Nesse grupo, entra muitas vezes o que é chamado de inteligência do
jogo, sua IA, que coloca desafios e questões ao jogador e igualmente
responde aos seus comportamentos dentro do jogo. Em segundo lugar,
há as regras formuladas dentro do jogo pelos jogadores, regras mutáveis
e suscetíveis ao desenrolar dos acontecimentos do próprio jogo, e isso
não somente em jogos do tipo multijogador, mas igualmente nos jogos
monojogador, em que o comportamento, os pensamentos e o estado de
ânimo do jogador se alteram no desenrolar da “partida”.[29]
Com o observado até aqui, podemos fazer a pergunta: O que é um
jogo e o que não é um jogo? Ora, de início, temos de observar que o
escopo da presente reflexão incide, não sobre todo e qualquer jogo
possível, mas, sim, sobre um caso particular de jogo: o jogo digital.
Jogos digitais funcionam em sistemas computacionais do tipo
computadores pessoais, quiosques, fliperamas, consoles, dispositivos
móveis e tablets.
Estas são perguntas importantes: O que é um jogo? Qual a sua
natureza como produto (objeto) na sociedade e na vida humana? Que
sentido e funções derivam em respostas simples e objetivas?
Observamos que elas resultam em novos problemas e novas frentes de
trabalho. O cineasta Steven Spielberg, fã declarado do jogo Myst
(1993), afirmou que os jogos digitais poderiam ser igualados ao cinema
e considerados obras de arte quando tivessem a capacidade de fazer o
jogador se emocionar e chorar.[30] Os jogos digitais (tais como ICO
2001; Shadow of the Colossus 2005; Flower 2009; Heavy-Rain 2010
etc.) têm essa capacidade de construir junto com o jogador um universo
de densidade psíquica tal que permite a experiência de emoções e
sentimentos como alegria, tristeza, desencanto, frustração e, igualmente,
o choro solidário num evento desenrolado dentro do jogo.
Mas, se os jogos não são algo novo, se são também objeto do
entretenimento, se podem ser pensados como brinquedos, se são
capazes de contar histórias para nós, se nos oferecem a possibilidade de
sair provisoriamente dos limites da vida fática e nos fazer vivenciar uma
experiência sem o controle dela, se são capazes de nos fazer ingressar
numa comunidade e manter uma relação comunitária, se ainda são
capazes de serem nossos companheiros em aprendizagens e na mudança
de hábitos e crenças, eles realmente são um objeto cultural complexo,
polimorfo e em constante estado de mutação. Apresentamos, então,
alguns desses aspectos (características verificáveis e reificantes)[31]
relativos aos jogos que estão dentro de uma compreensão do que seja
jogo e de como ele se insere na cultura contemporânea.
Os jogos não são algo novo!
Os jogos são a condensação e a potencialização de tudo o que existe
e foi criado no Ocidente em um só objeto polimorfo, polissêmico e
pluralista, conforme exposto acima. A característica de não ser algo
novo mostra justamente a potência que os jogos têm em si mesmos.
Eles recebem de outras áreas da cultura elementos que são incorporados
e modificados de acordo com as características e possibilidades do seu
meio digital interativo. Nesse aspecto, muitos elementos presentes nos
jogos já eram encontrados no cinema, no teatro, na literatura, na pintura
e no desenho. Essa é uma das propriedadesdos jogos digitais que os
colocam como objetos culturais (digitais) multifacetados.[32] Em uma
acepção mais atual dos estudos de comunicação (Jenkins 2010),
podemos dizer que os jogos digitais representam o que há de mais
contundente na fusão das mídias: todos os recursos técnicos e de
linguagem das demais mídias podem se fazer presentes nos jogos, na
promoção daquilo que o pesquisador da Universidade da Califórnia em
Los Angeles chamou de reificação da transmídia. Os jogos são, por
natureza, um objeto transmídia, dado que têm a capacidade de
incorporar o todo da cultura humana, deslocando-se entre meios e
ressituando-se de muitos modos.
Nesse sentido, tanto a academia como a indústria têm a tarefa de
compreender o mais profundamente possível esse objeto digital e
delinear os seus contornos progressivos e mutantes. Mas como entender
a sua relevância no panorama da sociedade pós-moderna? Do ponto de
vista do sujeito consumidor (aquele que utiliza jogos, dispendendo ou
não dinheiro comprando um jogo), um jogo tem muitos aspectos, desde
a oportunidade de entretenimento, de lazer, que tem por finalidade o
escoamento de tensões e a suspensão provisória da realidade fática,
como outro lazer qualquer, até uma associação emocional e cultural
com a temática ou o conteúdo do jogo, uma oportunidade de
autodescoberta e de aprimoramento de habilidades.
O produto (objeto) jogo como entretenimento
Ao jogar um jogo, o sujeito se diverte de várias formas. Os jogos
fazem parte do universo do entretenimento humano, como o cinema, a
televisão e a literatura, por exemplo. Mas os jogos não são cinema,
televisão ou literatura. Eles podem tomar conteúdos e elementos das
linguagens de outras formas de arte e comunicação e transformá-los de
acordo com as necessidades de seu próprio meio. Esse é um de seus
aspectos fundamentais, fornecido pelos operadores de interatividade
presentes no jogo: imersão, agência e transformação (Murray 2003). Ao
jogar um jogo, o jogador, pela ação do círculo mágico, é tomado por um
sentimento de imersão. No interior da cena de jogo, o jogador tem o
poder de agência, a saber, o de realizar comportamentos que resultem
em respostas do jogo e dentro do jogo, as quais podem acarretar
transformações no ambiente do jogo e nas perspectivas e no contexto
cognitivo e afetivo do próprio jogador (Souza 2012). Se a banda
desenhada e o cinema foram paradigmáticos para cinco gerações,
servindo de meio para a expressão de anseios e pensamentos, e se
prestando a um laboratório da cultura, os jogos digitais atualmente
potencializam essas possibilidades de forma particular, na qual cada
sujeito humano que joga um jogo pode nele ter realmente uma
experiência (interna e externa) particular e intrínseca (Gadamer 2008;
Costa 2001). Essa é uma natureza do entretenimento que se modifica
com a entrada do jogo digital, trazendo o entretenimento para mais
perto do sujeito individual.
O produto (objeto) jogo como brinquedo
Como entretenimento, o jogo também tem uma qualidade associada
de brinquedo e de objeto colecionável e seriável. Os jogos têm alguns
elementos atrativos próprios dos brinquedos. Nesse sentido, os jogos
são objetos evocativos.[33] Eles despertam no jogador (no jogo e para
com o jogo) emoções, pensamentos, comportamentos, fantasias e têm a
capacidade de colocar o ser humano em um mundo de fantasia, em uma
realidade encapsulada. Se essa propriedade já havia sido pensada por
Huizinga (2008) para o jogo em geral, no jogo digital, ela é
potencializada pelos recursos de arte e pelo contexto interativo do jogo.
Aliado a isso, temos o fato de que a estrutura evocativa do jogo se
encontra associada à história que o jogo desenvolve com o jogador.
O produto (objeto) jogo como histórias/narrativas
Os jogos digitais têm a capacidade de contar histórias. Existem
jogos que não têm nenhuma narrativa embutida (inerente e construída
pelo processo de design). Exemplo disso é o jogo Tetris (1984), que se
foca em operações lógico-espaciais. No entanto, um número expressivo
de jogos digitais está associado a histórias e as desenvolvem com o
auxílio do jogador. Esses jogos têm a capacidade de fazer com que o
jogador participe da narrativa e se envolva nela como agente direto e
com poderes de intervir em seu curso (em graus variáveis). Em jogos,
muitas histórias têm características reticulares. Isso significa que
permitem ao jogador muitos caminhos a serem percorridos; muitos
objetos com os quais interagir (brincar/conhecer); possibilidade de
finais diferentes, dependendo das ações e escolhas do jogador e das
regras do jogo. Diferentemente do cinema e mais próximo do teatro
moderno (mas com uma radicalidade mais acentuada), os jogos digitais
que têm uma narrativa embutida podem permitir que uma mesma
história seja vivenciada pelo jogador de diferentes modos. Nesse campo
das histórias multilineares ou multimodais (Murray 2003), os jogos
digitais oferecem ao jogador uma experiência estética que lhe permite
vivenciar situações novas, impossíveis na vida fática e igualmente
aleatórias.
O produto (objeto) jogo como situar-se fora do controle
Ao jogar um jogo, colocamo-nos em um campo (encapsulado e
protegido) do qual não temos o controle nem mesmo de muitos de seus
elementos. O jogo ocorre dentro de um controle variável (regras), em
que não temos o controle da situação controlada. Entretanto, a regra
geral do jogo é que o jogador deve ser capaz de intervir (e fazemos
parte do acaso) no jogo de muitos modos, desde a configuração de
personagens e objetos, a manipulação e interação, até o decurso da
própria experiência e da narrativa do jogo. Esse é um dos aspectos que
leva filósofos e designers a dizer que o jogo possibilita o exercício de
uma experiência (no amplo sentido do termo).[34] Essa experiência de
jogo é definida pela filosofia como uma experiência estética, com
contornos igualmente conceituais e éticos.
O produto (objeto) jogo como objeto educativo
Ainda que os jogos digitais não sejam um objeto formalmente
criado com a finalidade de educar, de produzir ou transmitir
conhecimentos para o jogador, pesquisas (Tonéis 2010) mostram que os
jogadores afirmam que aprendem muitas coisas com o jogar jogos; os
jogos despertam e incentivam um comportamento de curiosidade, uma
necessidade de informação, que produz comportamentos de pesquisa
sobre o jogo, seu universo, seus personagens etc., para além do jogo
(evocativo).[35]
O produto (objeto) jogo como sentimento de comunidade
Os jogos tendem a formar o que se chama uma comunidade de fãs –
muito antes do advento da internet. Nas décadas de 1980 e 1990, no
Brasil, jovens gastavam suas mesadas em telefonemas para poder jogar
jogos do tipo Dungeons & Dragons. De modo similar, o jogo de
tabuleiro xadrez foi intensamente jogado por carta, telefone, rádio –
inclusive amador –, e, atualmente, comunidades inteiras jogam xadrez
pela internet, em formato digital. Existem comunidades gigantescas ao
redor dos jogos, entre as quais podemos citar a comunidade do
Ragnarok e a comunidade do Myst.
O produto (objeto) jogo como (psico)terapia
Os jogos são utilizados para o controle de situações como pânico,
fobia e outros (Murray 2003). Desde a primeira metade do século XX
(em virtude do advento da psicanálise), os jogos (analógicos) são
utilizados como elementos centrais para a terapia (p. ex.: o jogo da
família). O psicodrama de Moreno (1997) tem a estrutura de um jogo
com um master (terapeuta) mantendo relações com os jogos de RPG.
Em sessões de terapia infantil, usam-se estruturas de jogo como (1)
caixa de brinquedos, (2) jogo da família, e tantos outros. Jogos de
simulação são utilizados no tratamento de sujeitos com fobias (de
altura, animais etc.). Existem ainda jogos com funções fisioterápicas,
socioterápicas etc.
O produto (objeto) jogo como agente (ator) para a
mudança de comportamento e opinião pública
Quando o jogo digital é capaz de ser usado em procedimentos
terapêuticos, ele mostra que tem potencial para trabalhar mudanças no
comportamento humano. Ao jogarum jogo, temos a possibilidade de
avaliar nosso comportamento e nossa percepção do mundo e da
sociedade (Lewin 2013). Os jogos são usados para resolver situações
complexas que dependam de mais de um sujeito. São usados para
apresentar simulações relativas à ética de grupos e outros temas de
interesse. Em 1988, a G&E patrocinou no Brasil uma equipe de
pesquisadores que desenvolveu um jogo de ética monojogador que
permitia o exercício de inúmeros comportamentos dentro de uma
empresa. Esse jogo foi usado como um dos componentes principais da
formação ética dos trabalhadores da G&E. Aqui, entra o trabalho
desenvolvido pelo movimento Games for Change, iniciado nos Estados
Unidos por Jane McGonigal (2011) e, no Brasil, liderado pelo
pesquisador Gilson Schwartz.[36]
Jogos são produtos do mercado com característica de outros
produtos – Foi quando os jogos começaram a ser produzidos nos
Estados Unidos como produtos de mercado, indo para os fliperamas e,
depois, para os consoles, que eles começaram a mostrar seu perfil de
entretenimento e se apresentar como objetos de mercado de uma
sociedade de consumo. De acordo com um infográfico estimado pela
Newzoo[37] para o ano de 2012, o Brasil contava com 40.200.000
gamers ativos no país. Essa quantidade é um pouco mais de 20% da
população brasileira. Esse número de gamers ativos representa um
aumento de 15% quando comparado ao ano de 2011. O
desenvolvimento dos jogos como produtos de uma sociedade de
mercado e consumo resultou no fato de que, nos últimos anos, eles
ultrapassaram em faturamento o da multimilionária indústria do cinema.
O produto (objeto) jogo como expansão do universo do
consumo
Os jogos produzem um universo de consumo paralelo e agregado
ao jogo (aspecto iniciado por George Lucas quando desenvolveu a
franquia de Star Wars: cartazes, botons, livros, bonecos etc.). Os objetos
agregados participam ativamente do jogo como elementos materiais
intrínsecos a eles, como seguimento do jogo e oportunidade lúdica.
Materializam o conceito de Toffler (1974): o prosumer (produtor e
consumidor em um só sujeito). Tal fenômeno nos leva à situação de que
os jogos são utilizados como forma de estender as narrativas fílmicas,
televisivas, literárias e atísticas (e vice-versa): transmídia (Jenkins
2010).
O produto (objeto) jogo como propaganda e merchandising
Os jogos são utilizados para divulgar produtos, marcas ou
conceitos. A partir do momento em que isso acontece, temos o advento
de uma forma de publicidade que foi chamada de advergames e que
constitui uma modalidade particular e restrita dos jogos.
Considerações finais
Observamos que os jogos digitais podem se apresentar de múltiplas
formas e assumir diferentes facetas na cultura contemporânea. Não
constituindo um objeto novo, mas participando da história do
desenvolvimento da cultura ocidental, eles recebem dessa mesma
cultura a ênfase, o conteúdo e a força enunciativa. Estendendo as
possibilidades do entretenimento, produzem novas e diversificadas
oportunidades de experiências estéticas para os jogadores, tomados aqui
como consumidores de objetos culturais na forma de entretenimento.
Além disso, vimos que o jogo tem a estrutura do brinquedo, que permite
a interação variável e controlada, deixando que seu utilizador, o jogador,
adentre o círculo mágico da fantasia instaurado por ele. Vimos que será
dentro dessa capacidade lúdica do jogo que ele introduzirá a
possibilidade de ser um dos veículos das narrativas e histórias
produzidas pela cultura e pela arte, contribuindo com uma nova
característica: a de construir com o auxílio do jogador histórias
multiformes e com contornos não definidos de antemão.
Também observamos que o jogo digital permite ao jogador a
vivência de situações que não seriam possíveis ou autorizáveis no
mundo real, social. Ao mesmo tempo em que o jogo digital permite a
experienciação de situações protegidas e encapsuladas, ele também
oferece, do ponto de vista do jogar, a manifestação de eventos não
controlados pelo jogador, que, depois de sua eclosão, tem de lidar com
eles. Com isso, vimos que os jogos digitais também se mostram
elementos propiciadores de situações de aprendizagem: como funciona
o jogo e como ele reforça estruturas cognitivas que estão presentes em
seu sistema e que podem ser generalizadas na vida prática do jogador.
De outra parte, observamos que os jogos tendem a formar
comunidades de usuários ao redor do jogo. Comunidades que interagem
e formam regras comunitárias para gerenciar seus interesses, visando à
promoção de suas necessidades, do jogo e da construção da
oportunidade de jogar junto.
Um dos aspectos derivados do jogo digital é ser incorporado como
auxiliar em várias atividades humanas e de estabelecimento
profissional. Jogos são usados em treinamentos em empresas e usados
como auxiliares em processos de reabilitação psíquica e física. É nesse
caminho que os jogos mostram um de seus efeitos secundários: têm a
capacidade de mudar hábitos no jogador. Como produtos de um
mercado de consumo, seria esperado que se tornassem objeto de
interesse da publicidade e propaganda. Foi quando os jogos se tornaram
realmente massivos e ocuparam lugar de destaque na web que eles
sedimentaram os chamados advergames, jogos com a estrita função de
promover um conceito ou produto do ponto de vista publicitário.
Em meio a todos esses elementos, as características que formam o
conceito de jogo digital – (1) liberdade, (2) regras, (3) produção de um
estado de ânimo, (4) capacidade de modificação de regras durante o
processo do jogo, (5) a possível existência de elementos antagônicos
(conflitos) que estimulem os jogadores a superá-los, (6) objetivos
intrínsecos ao jogo ou formulados pelos jogadores, (7) a circunscrição
de pontos de partida e pontos de final do jogo, bem como (8) a
possibilidade da tomada de decisões por parte do jogador – formam
também uma estrutura ontológica que torna o jogo digital um objeto
singular na cultura contemporânea, tal como se ele fosse uma espécie de
condensado de seus elementos, às vezes, negativos, mas, em sua
maioria esmagadora, positivos e indicativos da riqueza e grandiosidade
do Homo ludens.
Meu ser se joga dentro da noite escura do futuro do mundo na
expectativa de seu porvir. Haverá, pois, uma medida na Terra? Se
houver, ela deverá passar pelo cuidado que o amor ao outro propicia
para cada um de nós. Isso é uma das coisas que os jogos nos ensinaram
nesses anos que oscilaram entre a repressão de uma ditadura e a cultura
pós-moderna estropiada. Como disse o psicanalista Jacques Lacan: por
nossa condição de sujeito, somos todos responsáveis! Os jogos nos
aproximaram, não é verdade? E aqui um pálido e singelo começo para a
sua melhor conceituação em pesquisa.
Na Pauliceia desvairada do Mário, junho de 2015.
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2
JOGOS DIGITAIS E APRENDIZAGEM:
ALGUMAS EVIDÊNCIAS DE PESQUISAS
Arlete dos Santos Petry
Introdução
Especialmente desde os anos 1980, pesquisadores interessados em
melhor compreender os fenômenos das mídias, voltaram-se para
investigar a influência dos computadores na vida de seus usuários
(Greenfield 1984; Turkle 1984). Desde então, trata-se de consenso entre
os estudiosos da cultura digital o significativo impacto que os
computadores trouxeram para a vida de todos nós, ora como alvo de
promessas de um futuro melhor para um maior número de pessoas, ora
como foco de temores. Para além disso, nenhum artefato produzido com
a linguagem dos computadores representa melhor essas promessas e os
receios da utilização de suas tecnologias do que os jogos digitais, como
muito bem retrata a análise dos filmes com personagens gamers das
décadas de 1980 e 1990, realizada por Narine e Grimes (2009).
Os primeiros pesquisadores que se entusiasmaram com a potência
comunicativa e de aprendizagem dos videogames foram aqueles que já
vinham pesquisando a influência das media na mudança de
comportamento. Dentre eles, destaca-se Thomas Malone (1980), que, na
primeira pesquisa sobre crianças e videogames, verificou que as
crianças entre 5 e 13 anos preferiam os jogos de maior intensidade
visual aos que tinham menos animações. A esse dado, Greenfield
(1984) acrescentou a interatividade resultante das ações do jogador
como um elemento forte de sua atratividade, nisso incluindo a
importância da ação do jogador.
No entanto, independentemente do apelo comunicacional dos jogos
digitais, quando o interesse recaiu sobre seu possível potencial para
aprendizagens, foi preciso perguntar se e quais habilidades são
desenvolvidas ao se jogar e se e quais conteúdos são aprendidos.
Nesse sentido, as pesquisas, e aqui os estudos de comunicação nos
ajudam muito, tomaram dois caminhos. Um deles se refere aos estudos
quantitativos cujo foco se volta ao potencial de emissão da mídia,
fortemente desenvolvidos nos Estados Unidos; já o outro se refere às
investigações qualitativas em torno dos estudos de recepção, o que
caracteriza as pesquisas na América do Sul (Orozco 2014; Martín-
Barbero 1999). Embora esses conceitos de emissor e receptor tenham se
misturado com o advento da comunicação e da cultura digital desde a
web 2.0, persistem as pesquisas que ou focam na mídia ou no modo
como seu usuário a percebe. Essas perspectivas polarizadas em
comunicação podem ser ainda mais questionadas quando estamos
investigando jogos digitais, dadas as características do objeto de estudo.
[38]
Embora estejamos cientes de não fugirmos completamente dessa
dicotomia no que apresentaremos neste capítulo, temos nos aproximado
de uma perspectiva mais abrangente no projeto de pesquisa Fapesp
2011/09778-9, ao incluirmos técnicas de pesquisa contemplando tanto a
análise de determinados jogos digitais (perspectiva do emissor) quanto
entrevistas com os jogadores (perspectiva do receptor). Breves
resultados parciais dessa pesquisa podem ser encontrados em Petry
(2011) e Petry e Petry (2012).
Revisão de pesquisas experimentais
Nesta seção, apresentaremos um mapeamento de pesquisas
quantitativas de cunho empírico experimental (Otani e Fialho 2011),
tomando como centro uma recente revisão de literatura realizada por
Sigmund Tobias, J. Dexter Fletcher e Alexander P. Wind (2014).
Como indicado na revisão citada, várias pesquisas comparando
videogames e jogos de computador com outros sistemas educacionais
trazem evidências das qualidades motivacionais dos jogos digitais e, a
nosso ver, foram essas que entusiasmaram os educadores a introduzir
jogos na educação, pois uma das principais queixas das escolas é a falta
de interesse dos alunos na aprendizagem escolar. Vale lembrar que a
ideia de utilizar jogos na educação não é algo recente. Jean-Jacques
Rousseau escreveu, em meados do século XVIII, em Emílio ou Da
educação que, por meio de jogos, a criança realiza com vontade aquilo
que não gostaria de realizar se fosse forçada. Também o filósofo
Immanuel Kant afirmou, na mesma época, que o jogo auxilia o jovem a
se disciplinar, segundo Duflo (1999).
Pesquisas apontam que jogar videogames leva à melhora na
capacidade perceptiva e na atividade de processamento cognitivo
(Anderson e Bavelier, apud Tobias, Fletcher e Wind 2014), provoca
reações mais rápidas (Karle, Watter e Shedden 2010), melhora a
capacidade motora e a acuidade visual (Green e Bavelier 2003).
Bailey, West e Anderson, citados por Tobias, Fletcher e Wind
(2014), mediram a atividade cerebral por meio de eletroencefalograma e
encontraram que jogadores que dedicam mais horas por semana
jogando (média de 43,4 horas) apresentam maior atividade cognitiva do
que aqueles que jogam menos horas por semana (média de 1,76 hora).
Entretanto, estudo de Przybylski (2014) com crianças encontrou que
aquelas que jogam mais de três horas por dia apresentam mais
comportamentos antissociais quando comparadas com crianças que não
jogam. Em contrapartida, encontrou que crianças que jogam menos de
uma hora por dia estão associadas a comportamento pró-social e alta
satisfação quando comparadascom crianças não jogadoras. Harris e
Williams, citados por Tobias, Fletcher e Wind (2014), apontam
correlação entre desempenho escolar baixo e maior tempo e dinheiro
dispendido em videogames. Esses dados nos alertam para o
distanciamento entre a escola e a desejada experiência de satisfação e
proatividade proporcionada pelos jogos, sugerindo que, se os jogos
fossem utilizados com objetivos educacionais, respeitando um tempo
adequado e certa regularidade, benefícios poderiam ser encontrados.
A pesquisa de Rosser Jr. et al. (2007) sugere que jogos digitais
contribuem para a melhora em alguns processos cognitivos e
psicomotores, o que pôde ser constatado comparando cirurgiões que
tinham o hábito de jogar com aqueles que não jogavam. Karle, Watter e
Shedden, citados por Tobias, Fletcher e Wind (2014), também
encontraram menor tempo de reação em tarefas perceptivas naqueles
que jogavam quando comparados com não jogadores.
Ainda considerando que o que se quer quando se utiliza um jogo
com finalidade educativa é que aqueles que jogam sejam capazes de
levar a aprendizagem obtida no jogo para fora dele, Tobias e Fletcher
(apud Tobias, Fletcher e Wind 2014) e Tobias et al. (apud Tobias,
Fletcher e Wind 2014) analisaram os resultados divergentes de duas
pesquisas que objetivaram verificar a transferência de aprendizagem
proporcionada por jogos. Como conclusão, constataram que a tão
desejada transferência pode ser esperada somente quando processos
cognitivos semelhantes são encontrados nos jogos e nas tarefas externas
a eles. Quando há pouca semelhança, a transferência parece improvável.
Para verificar isso, o caminho sugerido pelos autores seria uma
detalhada análise tanto do jogo quanto da habilidade cognitiva da tarefa
externa a ele (Tobias, Fletcher e Wind 2014).
Outro dado de pesquisa aponta que a utilização de agentes
animados tende a aumentar o interesse e facilitar a transferência de
aprendizagem, embora não ajude na retenção de conhecimentos,
segundo Mayer, citado por Tobias, Fletcher e Wind (2014). Entretanto,
Tobias, citado por Tobias, Fletcher e Wind (2014), baseado em outras
evidências de pesquisa, sugere que também outras formas de suporte
explicativas das tarefas esperadas dos jogadores podem auxiliar para
que a desejada aprendizagem ocorra.
Na recente revisão de Tobias, Fletcher e Wind (2014), também foi
destacado que, quanto mais a situação tratada no jogo for parecida com
aquela que se deseja que seja alvo de aprendizagem, mais provável será
a transferência de aprendizagem, o que é claramente demonstrado nas
pesquisas com simuladores.
Estudo surpreendente de Sitzmann e Elly, também citado por
Tobias, Fletcher e Wind (2014), encontrou que diversão parece não ser
tão essencial quando se trata de provocar motivação e afetar a
aprendizagem. O mais importante seria provocar o engajamento ativo e
proporcionar espaço de liberdade para jogar com a frequência desejada
pelos estudantes. Nessa direção, outro estudo de Tobias, Fletcher e
Wind (2014) encontrou que estudantes gastam mais tempo jogando
videogames e simuladores do que utilizando outros materiais
instrucionais. Como o tempo gasto em atividades por meio de material
instrucional favorece a aprendizagem (Fisher e Berliner, apud Tobias,
Fletcher e Wind 2014; Suppes, Fletcher e Zanotti, apud Tobias, Fletcher
e Wind 2014), ainda resta a dúvida se são os jogos e os simuladores que
facilitam a aprendizagem ou a quantidade de tempo gasto. Para nós,
essa resposta não tem grande relevância, pois os estudantes
demonstraram claramente no estudo preferir os jogos e simuladores a
outros materiais instrucionais. Se é o que preferem, é neles que
devemos nos ater em uma análise dos designs instrucionais.
Ainda um aspecto a considerar na revisão da literatura científica a
respeito do uso de jogos na educação quando o objetivo são conteúdos
específicos do currículo escolar são as atividades complementares.
Tobias, Fletcher e Wind (2014) apontam que parece pouco evidente que
somente os jogos sejam os responsáveis pela desejada aprendizagem de
conteúdo escolar; o objetivo tem maior alcance quando se adicionam
outros materiais, como pesquisas de links na web, exercícios em
laboratório ou mesmo textos.
Em outra interessante revisão de muitas pesquisas, Gentile (2011)
alerta para uma possibilidade além da costumeira dicotomia sobre os
jogos digitais comerciais, dizendo que não se trata de afirmar se eles são
bons ou maus, trata-se de considerar algumas dimensões relativas ao
seu uso, quais sejam: tempo de jogo, conteúdo, estrutura, contexto e
mecânicas. Nessa direção, o autor alerta para a duração e a frequência
com que se joga. Ainda, propõe atentar para os conteúdos dos jogos,
buscando aqueles possíveis de levar a comportamentos socialmente
mais positivos; para a estrutura dos jogos de ação e dos shooters, que
proporcionam efeitos de acuidade visual nos jogadores e pode ser
aplicada em jogos sem violência; para o jogo em grupos on-line ou com
amigos, que pode ser melhor que solitariamente, pois proporciona a
experiência de trabalho em equipe; para o tipo de controle de jogo
utilizado, que influencia a aprendizagem motora (se teclado, mouse ou
joystick).
Como ponto destacado, especialmente quando pensamos em
políticas públicas para a educação, é o custo-benefício proporcionado
pelos jogos quando em comparação com outros sistemas instrucionais.
Fletcher, citado por Tobias, Fletcher e Wind (2014), aponta algumas
vantagens: 1) os estudantes persistem mais tempo em atividades de
jogos do que em atividades instrucionais que não jogos; 2) se o jogo for
relevante para aprendizagens, o tempo dispendido com ele aumentará a
oportunidade de aprendizagem; 3) portanto, pode-se aprender mais com
jogos do que com outros ambientes instrucionais sem aumentar os
custos.
Pesquisas realizadas e metodologia
Duas pesquisas empíricas de natureza qualitativa e quantitativa
foram realizadas por mim,[39] nas quais a questão da relação entre
jogos digitais e aprendizagem foi abordada na perspectiva da percepção
dos sujeitos pesquisados.
A primeira foi aplicada entre os anos de 2010 e 2011,[40] e teve
como recorte estudantes iniciantes (1º e 2º semestre) de um determinado
curso de graduação em jogos digitais na cidade de São Paulo. A maioria
desses discentes é jogadora de jogos digitais desde criança, portanto,
conhecedora de muitos títulos de jogos e participante da cultura gamer.
Além disso, a motivação para a entrada no curso foi o fato de gostarem
de jogar. Nesse caso, a natureza do estudo se centrou em uma análise
quantitativa, mas não deixando de considerar aspectos qualitativos das
respostas dos estudantes. Aplicou-se como técnica um questionário
(uma pergunta fechada e outras abertas) com uma amostra de 182
sujeitos, cujas perguntas relativas a aprendizagem, aplicadas com 108
estudantes, foram: 1) Você acredita que aprendeu algo jogando jogos
digitais? e 2) Em caso afirmativo, o que você acha que aprendeu
jogando? Para o levantamento e a análise das respostas foi projetada
uma planilha Excel, na qual se inseriram as respostas. A planilha
possibilitou a contagem das respostas e sua classificação por categorias
de análise definidas com base nos temas mais frequentes nas respostas.
Todas as respostas (palavras e expressões) foram analisadas no contexto
das frases em que foram escritas.
A outra pesquisa foi de natureza predominantemente qualitativa,
levada a cabo utilizando um método de análise de jogos que desenvolvi
em pesquisas anteriores. Trata-se do que denominei “jogo assistido”,
uma espécie de observação participante em que o
pesquisador/observador dá suporte à narrativa que vem se
desenvolvendo nas ações do jogador, intervindo com perguntas surgidas
na própria interação, a fim de compreender mais detalhadamente a
experiência de jogar dos jogadores. Além disso, realizaram-se
entrevistas semiestruturadas e questionamentos. As respostas a estes
últimos foram situadas em uma escala de Likert. O contato se deu entre
final de 2014 e início de 2015, em encontrosde cerca de uma hora e
meia com cada uma de cinco crianças entre 6 e 12 anos. Seguiu os
procedimentos éticos de pesquisa previstos no Canadá, passando pela
aprovação de três níveis de conselhos de ética da Universidade de
Toronto. Os pais das crianças assinaram o termo de consentimento,
autorizando a participação dos filhos na pesquisa e as próprias crianças
assinaram, assentindo em colaborar com a investigação. Para este
capítulo, utilizarei os dados referentes à percepção dos jogadores com
relação à aprendizagem no jogo digital Minecraft, obtidos da escala de
Likert em confronto com respostas à entrevista. A pesquisa se
desenrolou no contexto mais natural possível, resguardando a
privacidade dos participantes. Os registros dos discursos foram
gravados em áudio e, posteriormente, transcritos. Para o levantamento e
a análise das questões em foco, gerou-se uma tabela para as respostas
provenientes da escala de Likert e, para uma complementação
abrangente das razões para essas respostas, empregou-se a análise de
discurso de Pêcheux (Teixeira 2000) que, fortemente influenciada pela
psicanálise, permitiu uma maior abertura interpretativa.
Resultados das pesquisas
O primeiro estudo trouxe 104 respostas positivas à pergunta 1)
Você acredita que aprendeu algo jogando jogos digitais?, e somente
quatro sujeitos afirmaram que não aprenderam nada jogando. Ou seja,
96% consideram que aprenderam jogando.
Gráfico 1. Percepção dos sujeitos questionados sobre a
possibilidade de terem aprendido por meio dos videogames
Analisando as respostas da pergunta 2) Em caso afirmativo, o que
você acha que aprendeu jogando?, organizamos quatro categorias:
conteúdos escolares: conhecimentos escolares e idiomas; pensamento
lógico-matemático; habilidades socioafetivas: interpessoais e
intrapessoais; destreza motora.
Na categoria conteúdos escolares, trabalhamos com duas
subcategorias: conhecimentos escolares e idiomas estrangeiros. Dos 108
sujeitos da pesquisa, 33 disseram ter aprendido ou aperfeiçoado outro
idioma, com 29 respostas relativas ao conhecimento de inglês, o que
significa que 27% dos questionados afirmam terem feito aprendizagens
de inglês ao jogar. Os conhecimentos escolares citados como aprendidos
jogando videogames foram: mitologia; história; matemática; arte;
literatura; e, destacando-se, cultura de outros países ou civilizações,
totalizando 33 sujeitos ou 28% dos participantes. Em nova contagem,
somando conhecimentos escolares e idiomas estrangeiros, encontraram-
se 46 sujeitos que responderam terem aprendido um ou mais conteúdos
que fazem parte do currículo de escolas jogando videogames, ou seja,
um percentual de 43%.
Do total de participantes, 35 estudantes ou 32% afirmaram terem
desenvolvido habilidades relacionadas ao pensamento lógico-
matemático. As palavras utilizadas que agrupamos nessa categoria
foram: raciocínio, pensamento lógico, pensamento rápido, estratégia,
lógica, analisar e pensar como escapar de armadilhas.
Outra categoria encontrada com a análise das respostas se refere a
habilidades socioafetivas, que se dividiu em habilidades interpessoais
(voltadas ao relacionamento social) e em habilidades intrapessoais
(voltadas a uma autocompreensão de seus afetos). Dos 108 sujeitos, 13
citaram que desenvolveram ou aprenderam habilidades como trabalhar
em equipe, cooperar, ser mais sociável e desenvolver amizades. Outros
18 participantes deram respostas que convergiram para o que se
categorizou como habilidades intrapessoais, afirmando, por exemplo,
que aprenderam a ter autocontrole e paciência; a serem perseverantes; a
serem mais confiantes em si mesmos; a buscar desafios; a lidar com
suas qualidades e seus defeitos. Ou seja, as habilidades socioafetivas
foram citadas por 29% dos sujeitos como tendo sido aprendidas por
meio da experiência de jogar videogames.
A categoria destreza motora (reflexo, coordenação, agilidade,
destreza) foi citada por 11 sujeitos, o equivalente a 10% do total de
questionados.
Para uma melhor compreensão dos resultados, eles foram
sintetizados na estrutura diagramática que se segue.
Gráfico 2. Organização por categorias das respostas dos sujeitos
participantes a respeito do que consideram que aprenderam por
meio dos jogos digitais
No segundo estudo, analisando a escala de Likert aplicada, 60% das
crianças respondentes disseram que Minecraft e “aprender” combinam
muito bem. Ninguém disse que Minecraft e aprender não têm nada em
comum, não combinam. Para aquelas duas crianças que disseram que
essas palavras apenas combinam, o comentário a respeito da resposta foi
de que algumas pessoas aprendem, mas não são todas as que aprendem.
Além disso, em uma questão anterior de entrevista a respeito desse
tópico, duas crianças disseram que, jogando Minecraft, aprenderam
criatividade. Uma dessas crianças acrescentou que também aprendeu
sobre computação, pois teve de descobrir como operar com redstone.
Três das crianças responderam que não aprenderam nada jogando
Minecraft, apesar do fato de que, como respondeu um desses sujeitos:
“Eu sei que construir coisas é duro e que é preciso planejar antes de
construir” (menina, 10 anos). Nesse ponto, seria interessante
compreender o que significa “aprender” para essas crianças: talvez um
conteúdo escolar estruturado, não prontamente encontrado no mundo de
Minecraft.
Nesse sentido, um ponto a ponderar, já que esse estudo foi realizado
com três sujeitos nascidos no Canadá, filhos de pais canadenses e
falantes somente de língua inglesa, e duas crianças falantes de
português, filhas de brasileiros. O ponto são as possíveis diferenças
culturais, já que as três crianças que responderam que não aprenderam
nada jogando Minecraft são as pertencentes ao primeiro grupo citado.
Outro dado das respostas que converge com o foco deste capítulo é
a compatibilidade percebida pelas crianças entre diversão e o emprego
de esforço, tempo e o uso de habilidades.
Gráfico 3. Representação da relação entre o jogo Minecraft e
aprendizagem, segundo as crianças entrevistadas
Discussão dos resultados
Apesar das pesquisas, cujos dados apresentei, terem tido diferentes
desenhos e terem investigado diferentes faixas etárias, ambas trazem
resultados que contribuem para a discussão da aprendizagem por meio
dos jogos digitais.
A primeira pesquisa aponta para a percepção da relevância dos
jogos digitais na aprendizagem dos jogadores, tanto no que se
considerou, nessa pesquisa, como conteúdos escolares estruturados,
quanto no que se entendeu como o desenvolvimento do pensamento
lógico-matemático ou pensamento científico. Nessa direção, segundo
Piaget e Inhelder (1975), o desenvolvimento do pensamento é condição
para a compreensão de conteúdos escolares, ao passo que, para
Vygotsky (1984), a aprendizagem dos conteúdos escolares seria
propulsora do desenvolvimento do pensamento. Por uma ou por outra
abordagem, é inegável a relevância dos jogos digitais para a educação.
A diversidade de conteúdos escolares citados como aprendidos por
meio dos jogos comerciais se mostrou surpreendente. Resta saber o
quanto esses conhecimentos realmente se fazem úteis para os currículos
escolares nacionais, com reflexos na educação formal de nossos
estudantes.
Para além do desenvolvimento de um pensamento que é
diretamente demandado para a execução de atividades escolares e de
uma bagagem de conhecimentos relacionados com os conteúdos
escolares, os estudantes também destacam habilidades socioafetivas
aprendidas por meio dos jogos.
Como visto na revisão de Tobias, Fletcher e Wind (2014), os jogos
mais efetivos para o processo de ensino-aprendizagem seriam aqueles
cujas tarefas exigidas para sua execução demandassem o mesmo tipo de
processo cognitivo que as tarefas desejadas externas ao jogo. Isso é
interessante, se confrontamos esse dado com as duas pesquisas que
realizei. Na primeira, os sujeitos são jogadores de muitos anos e jogam
uma grande diversidade de jogos digitais; na segunda, apesar de as
crianças recrutadas se considerarem boas jogadoras de Minecraft e
jogarem

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