Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA, AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA Celiane Ferreira da Costa Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Relacionar os diferentes tipos de escravidão que ocorreram na África. Analisar as relações entre a expansão marítima portuguesa e os con-tatos estabelecidos com o Reino do Congo. Discutir o papel do catolicismo no processo de colonização das di-ferentes regiões africanas. Introdução O ponto de partida da presença portuguesa na África foi a tomada de Ceuta, em 1415. A conquista desse importante entreposto comercial no norte do continente inaugurou uma série de viagens em busca do ouro africano e, mais tarde, das especiarias asiáticas. Nessas expedições marítimas, os portugueses descobriram o potencial do comércio de escravos africanos e deram início a outro longo e lucrativo negócio: o tráfico de escravos. O escravo, por definição, é aquele que perdeu a liberdade ou que já nasceu sem ela. O escravo não é livre para escolher o seu trabalho, deslocar-se livremente e decidir sobre a sua vida. Logicamente, a condi- ção do escravo variou de uma sociedade para outra e mesmo em uma mesma sociedade, dependendo deste ou daquele senhor. Mas, a rigor, a escravidão é o extremo da violência contra um indivíduo, pois retira dele a soberania sobre a sua própria vida. A escravidão produziu sofrimento, mortes e um legado de preconceito difícil de superar. Porém, ela também promoveu encontros e trocas entre diversas sociedades e culturas, ocorridos tanto nos navios negreiros como nos espaços que os sujeitos escravizados encontraram fora da África. Neste capítulo, você vai estudar dois tipos de escravidão que existiram na África antes da chegada dos portugueses: a escravidão doméstica e a escravidão islâmica. Você vai verificar também de que forma se deram os contatos entre os portugueses e o reino do Congo. A partir dessa relação, você vai analisar a influência do catolicismo no processo de colonização portuguesa no Congo. A escravidão na África A historiografi a ainda não chegou a um consenso sobre o surgimento da escravidão. Estudos referentes à Antiguidade Clássica revelam que gregos e romanos escravizavam os prisioneiros de guerra. Por sua vez, mesopotâmicos e egípcios contavam com escravos na base de suas pirâmides sociais. Silva (2002) aponta que uma campanha militar do faraó Esneferu, realizada por volta de 2.680 a.C., retornou da Núbia com 7 mil prisioneiros, no que pode ser considerada uma bem-sucedida operação de captura de escravos. Portanto, as expedições militares egípcias à Núbia tinham entre os seus objetivos a captura de escravos. Silva (2002) avalia que durante 4 mil anos, cerca de 500 escravos por ano eram traficados da Núbia para o Egito. Veja o que afirma Souza (2003, p. 13): Existe uma íntima conexão entre o fenômeno da escravidão e o continente africano, não apenas como um cenário das mais antigas regiões onde a es- cravidão era habitual, mas como a principal fonte de escravos para o mundo islâmico, para a Índia e para as Américas. Com a expansão marítima europeia, capitaneada por Portugal, a África passou a ser vista como o centro fornecedor de escravos para suprir a demanda de mão de obra na América. A partir dos séculos XV e XVI, o tráfico de es- cravos realizado por meio do Oceano Atlântico foi responsável pela diáspora africana, o movimento de migração forçada mais intenso e volumoso de que se tem notícia. Durante quatro séculos, o tráfico de escravos foi responsável pelo deslocamento forçado de cerca de 11 milhões de africanos para a América, dos quais aproximadamente 4 milhões desembarcaram no Brasil. Considerando a vasta extensão territorial da África, é correto afirmar que os escravos não eram tratados da mesma forma em todas as regiões. Da mesma forma, a escravidão desempenhou papéis diversos ao longo do continente. Ki-Zerbo (2010) defende que a escravidão possuía um papel marginal nas Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos2 sociedades africanas, em que o escravo não era visto como uma propriedade do seu senhor. Já Silva (2002, p. 87) aponta que em determinadas regiões o escravo era tratado com rigor, sofria injúrias e castigos cruéis e era desprezado por ser “[...] preguiçoso, desasseado, curto de ideias, inepto e tonto [...]”. O processo de escravização na África variava de acordo com a região, a cultura e o povo dominante. É preciso considerar o contexto histórico e as características de cada grupo ou povo. Para compreender melhor as formas de escravidão que se desenvolveram na África, aqui você vai estudar a escra- vidão doméstica e a escravidão islâmica. A escravidão cristã, por sua vez, se relaciona à presença dos portugueses na África e será analisada na próxima seção. Na Figura 1, você pode ver o mapa político da África. Ele vai ajudar você a compreender melhor o conteúdo a seguir. Figura 1. Mapa político da África. Fonte: Guia Geográfico (2019, documento on-line). 3Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos Características e definições da escravidão em território Africano De acordo com Albuquerque (2006), a organização social e econômica dos africanos girava em torno de vínculos de parentesco em famílias extensas, de espaços que eram coabitados por diferentes povos e da exploração de um povo por outro. A identidade de alguém se definia a partir da vinculação de parentesco com um grupo. “Isto quer dizer que o lugar social das pessoas era dado pelo seu grau de parentesco em relação ao patriarca ou à matriarca da linhagem familiar [...]” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 13). Dessa relação de parentesco, surge a escravidão de linhagem ou linhageira, também conhecida como “escravidão doméstica”. De acordo com Marzano (2013a), as sociedades linhageiras eram organizadas em torno da noção de linhagem. Um grupo de pessoas possuía uma única linha de descendência (patrilinear ou matrilinear), traçada a partir de um antepassado comum. Em uma mesma sociedade, podiam conviver diferentes linhagens, sendo as diferenças entre elas elementos essenciais para a definição do “lugar social” de cada um. Essas sociedades podiam ser organizadas em “reinos”, “impérios” ou simples aldeias sem poder político centralizado, onde os conflitos eram resolvidos por conselhos de anciãos. Havia diversas formas de alguém se tornar escravo. A mais comum era sendo prisioneiro de guerra. Contudo, em muitas sociedades, a escravização era uma forma de punição por um crime cometido (roubo, assassinato e até adultério). Pessoas acusadas de feitiçaria também podiam ser escravizadas. Albuquerque (2006, p. 15) indica outras formas de se tornar escravo: A penhora, o rapto individual, a troca e a compra eram outras maneiras de se tornar escravo. As pessoas podiam ser penhoradas como garantia para o pagamento de dívidas. Nesta situação, caso seus parentes saldassem o débito, extinguia-se o cativeiro. Tais formas de aquisição de cativos foram mais ou menos comuns em diferentes períodos e lugares da África. O rapto e o ataque a vilas se tornaram mais frequentes quando o tráfico de escravos tomou grandes proporções. Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos4 A escravidão era vista também como uma estratégia de sobrevivência quando a fome e a seca assolavam um povo. Dessa forma, uma pessoa do grupo podia ser vendida ou trocada para garantir a sobrevivência dos demais. Essa forma de escravização era, no entanto, um recurso extremo, pois se tornar escravo numa sociedade estruturada por laços de parentesco era visto como uma desonra (ALBUQUERQUE, 2006). Em comunidades pequenas, os escravos domésticos eram pouco numerosos e havia a preferência por mulheres e crianças. A posse desses escravos assegu- rava prestígio a seus senhores. Considerando isso, a procriação das escravas era estimulada pelos senhores, que chegavam atomá-las como concubinas: “[...] assim o grupo podia crescer com o nascimento de escravos, fortalecendo as relações de parentesco e aumentando o número de subordinados ao senhor [...]” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 14). A escravidão doméstica não era uti- lizada apenas por pequenos grupos. Grandes reinos e impérios africanos se consolidaram explorando esse tipo de mão de obra para formar exércitos que poderiam garantir a dominação de povos vizinhos e a expansão do território. A mão de obra dos escravos domésticos era normalmente usada na agri- cultura familiar, para garantir o sustento de uma família ou de um grupo. Mas o uso do escravo doméstico podia variar de acordo com o interesse do senhor em aumentar o seu poder político: Nas sociedades linhageiras, a escravidão era fundamentada na relação ex- tremamente pessoal entre senhor e escravo, da qual derivava toda a inserção social deste último. O escravo seria, basicamente, um dependente do senhor; até podia servir como mercadoria, podendo ser trocado ou vendido; até podia exercer atividades produtivas, como agricultor, mineiro, carregador, artesão, mas, em essência, era uma fonte de prestígio social e poder político para o seu senhor (MARZANO, 2013a, p. 143). Vista como uma forma mais branda entre as modalidades de escravização africanas, a escravidão doméstica implica, contudo, as marcas de sofrimento que qualquer escravidão causa. Apesar de ter sido mais benévola do que a escravidão praticada no sul dos Estados Unidos e no Brasil, a escravidão doméstica não deve ser romantizada. Conforme alerta Silva (2002, p. 85), “[...] não devemos nos iludir com os eufemismos (o dono, por exemplo, ser chamado de ‘pai’, e o escravo, de ‘filho’) que dissimulavam, em várias regiões do continente, a dureza da realidade [...] Com a expansão do islamismo, a partir do século VII, os árabes ocupa-ram o Egito e o norte da África. A partir de então, a escravidão doméstica, 5Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos praticada em pequena escala, passou a conviver com o intenso comércio de escravos. Segundo Albuquerque (2006), a ofensiva muçulmana transformou significativamente a escravidão na África, que passou a ser organizada e praticada como empreendimento comercial em grande escala. Os escravos africanos eram comercializados por toda a África, no mundo árabe e, a partir dos séculos XV e XVI, na América, como você vai ver adiante. A escravidão islâmica Nos anos que se seguiram à morte do profeta Maomé, em 632, o islamismo expandiu os seus domínios por quase todo o Oriente Médio e pela Ásia Menor; na África, dominou o Egito e os litorais do norte, até a Tunísia. Ainda no século VII, os muçulmanos “[...] acrescentariam o Afeganistão a seus domínios, ca- minhariam para a Índia e se fariam senhores de quase todo o norte da África [...]” (SILVA, 2002, p. 31). Para os muçulmanos, a jihad (guerra santa) tinha como objetivo ampliar os territórios sob a lei divina, e a conversão dos povos infi éis fazia parte dessa expansão. Durante esse processo, os povos que não aceitavam a conversão podiam ser escravizados. Acesse o link a seguir para verificar conceitos-chave para a compreensão do mundo muçulmano. https://qrgo.page.link/T4iWr A primeira área de expansão do islã fora da Ásia foi a região do Magreb, na África, que corresponde aos atuais Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia. Os berberes, do norte da África, foram um dos primeiros povos africanos a se converterem ao islamismo. As grandes caravanas que percorriam o deserto do Saara eram compostas por berberes islamizados. Seguindo essas rotas, o islamismo foi ganhando adeptos na região sudanesa e na região do Sahel (extensa faixa de terra situada imediatamente ao sul do deserto do Saara). Utilizando os camelos como meio de transporte, os berberes percorriam lon- gas distâncias, cruzando o deserto. As rotas percorridas ligavam a região do Magreb e o Egito às margens dos rios Senegal e Níger, ao sul da Mauritânia Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos6 e ao lago Chade. No século IX, cerca de 300 mil pessoas eram transportadas por essas rotas na condição de escravos (ALBUQUERQUE, 2006). As caravanas que partiam do norte da África em direção ao Sahel leva- vam artefatos de metal, como utensílios de cobre, bronze e estanho, além de ferramentas, tecidos, adornos e pedras preciosas que vinham do Egito, do Oriente Médio e da Europa. Também transportavam: burros e cavalos; produtos alimentícios, como tâmaras, passas e raízes, bastante apreciadas pelas comunidades islâmicas do Sahel; e sal, produto essencial para a conser- vação dos alimentos nas áreas tropicais e que também servia de moeda nas trocas comerciais. Da região do Sahel, essas caravanas traziam ouro, peles, marfim, noz-de-cola (fruto utilizado pelas sociedades africanas tradicionais em cerimônias e rituais e para controlar o cansaço e a fome) e principalmente escravos, que eram enviados para trabalhar nas salinas do Saara, nas sociedades islâmicas do norte da África e nos países europeus, sobretudo na Península Ibérica muçulmana. Segundo Albuquerque (2006, p. 16), entre os anos 650 e 1800, calcula-se que o tráfico transaariano tenha vitimado “[...] 7 milhões de pessoas, sendo que 20 por cento delas morreram no deserto [...]”. A conversão ao Islã não se deu de forma homogênea na África. Algumas regiões foram receptivas à nova crença, mas outras seguiam fiéis às crenças tradicionais e eram mais resistentes. Em alguns lugares, o islamismo e as crenças tradicionais coexistiram; em outras regiões, “[...] a conversão ficou restrita ao soberano e à aristocracia, enquanto as pessoas comuns continuavam a professar as crenças herdadas dos antepassados”. Houve também regiões em que toda a população se converteu “para escapar do risco do cativeiro”, uma vez que “apenas os infiéis podiam ser escravizados [...]” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 18). Mas como o islamismo encarava a escravização? O Alcorão não justifica nem condena a escravidão. Tem-na como natural. Se dela fala em algumas passagens, é para recomendar, como obra pia, reparadora ou expiatória, a manumissão [alforria] dos escravos, preceituar que devem ser tratados com bondade e estabelecer regras de comportamento entre os escravos e entre eles e seus senhores. Em outros textos [...] preceitua-se que o senhor abrigue, vista e alimente de forma correta o escravo e o poupe de trabalhos excessivos. [...] Para o islã, a condição normal do homem é a liber- dade. Foi a partir desse princípio que as várias escolas jurídicas muçulmanas [...] compuseram doutrinas, leis e jurisprudência sobre a escravidão. Nenhuma pessoa livre podia ser escravizada por crime, dívida ou indigência. Não era lícito, como na Grécia ou em Roma, fazer escrava, por exemplo, a criança abandonada. Escravo era quem nascia nessa condição ou era a ela reduzido em guerra santa. Ou, ainda, quem era importado de terras de infiéis (SILVA, 2002, p. 32). 7Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos Para o Islã, havia apenas dois grupos de pessoas: os fiéis, que seguiam as leis divinas, e os infiéis. Quem não se convertera ao islamismo no primeiro chamado poderia ser salvo por meio da escravidão. Dessa forma, o jihad contribuía para a purificação do mundo, “[...] eliminando fisicamente o infiel, ou lhe arrancando, pela escravização, a existência legal e moral. A essência humana do escravizado não lhe seria devolvida senão com a alforria, para o que era indispensável que antes se houvesse convertido [...]” (SILVA, 2002, p. 33). A conversão, no entanto, não garantia necessariamente a liberdade do escravo: Havia razões bem mais comerciais e bem menos altruístas a justificar o cres- cimento do número de escravos no mundo muçulmano. Primeiro, porque uma vez escravizado o indivíduo nem sempre dispunha de tempo e condições para ser educado de acordo com as leis islâmicas, e segundo, porque o trabalhador escravo era fundamental para a viabilidadedo comércio dos mercadores muçulmanos (ALBUQUERQUE, 2006, p. 18). No mundo islâmico, os escravos tinham várias funções. Mulheres e crianças eram destinadas ao serviço doméstico. As mulheres consideradas bonitas eram as mais caras e podiam ser incorporadas aos haréns. Os homens adultos eram utilizados como carregadores nas longas viagens percorridas pelas rotas transaarianas, mas podiam ocupar funções administrativas. Os meninos eram destinados ao treinamento militar ou a trabalhos domésticos. “Alguns deles, transformados em eunucos, eram incorporados aos exércitos (havia exércitos específicos de eunucos) ou alocados nos haréns, como vigilantes. Muitos eunucos ocupavam, também, cargos administrativos e funções de governo [...]” (MARZANO, 2013a, p. 138). O comércio de escravos na África foi intensificado pela presença muçulmana, como pontua Silva (2002, p. 35): Com a ocupação do Egito e do norte da África, multiplicaram-se os escravos pretos. Em pouco tempo, os árabes e seus correligionários organizaram e desenvolveram o comércio a distância de negros, dando-lhe uma dimensão que jamais tivera. Partiram para isso dos pequenos mercados já existentes no Egito e no Magrebe, de rotas milenárias, como as da Núbia, ou de itinerários que datavam dos primeiros séculos de nossa era, de quando a adoção do camelo permitiu aos berberes que atravessassem regularmente o Saara e fossem pilhar as estepes e as savanas ao sul do deserto e ali prear negros, para pô-los nos oásis, a cultivar cereais e tâmaras, e talvez para vendê-los na África do Norte. Os muçulmanos exploravam a mão de obra escrava não só da África, mas também da China, da Índia, do sudeste da Ásia e da Europa Oriental. Mas a África acabou se tornando uma das principais fornecedoras de escravos. De Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos8 acordo com Albuquerque (2006), ainda no século IX, em Bagdá, existiam cerca de 45 mil escravos negros. Já no século seguinte, os escravos africanos eram numericamente superiores aos escravos turcos e eslavos. “Esse tráfico voraz de gente de cor preta explica a presença de negros nas populações árabes [...]” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 19). Com a presença muçulmana, a escravidão na África foi se transformando de escravidão doméstica em escravização em larga escala. Os portugueses na África Com a presença europeia no continente africano, a partir do século XV, a escravização adotou características intercontinentais e a África passou a ser o principal fornecedor de escravos do mundo moderno. As grandes nações europeias do período se envolveram no tráfi co de escravos, principalmente o Império Português. A expansão marítima portuguesa começa em 1415, com a conquista de Ceuta, um importante entreposto comercial no norte da África. Nessa região, os portugueses ouviram falar que no interior do continente havia regiões muito ricas, abundantes em ouro e pedras preciosas. Após conquistar Ceuta e tomar a ilha da Madeira, em 1419, e o arquipélago dos Açores, em 1431, no Oceano Atlântico, os portugueses foram margeando o litoral africano, seguindo para o sul. Os primeiros contatos entre portugueses e africanos se deram na região do rio Senegal, em terras que faziam parte do Império Jalofo (ALBUQUER- QUE, 2006). Logo, os portugueses começaram a comercializar escravos entre os portos africanos. O comércio de escravos não foi, no entanto, o primeiro interesse dos portugueses na África, como indica Marzano (2013b, p. 159): Segundo vários autores, a intenção dos portugueses era contornar a costa da África Ocidental para atingir as minas de ouro localizadas no Gana atual. Apenas após perceberem a presença da escravidão e o dinamismo do comércio de escravos no continente africano é que os europeus teriam se dedicado a vender cativos, primeiro de um porto africano para outro, em troca de ouro. O transporte de escravos africanos para as ilhas atlânticas — Madeira, Açores e Cabo Verde ainda no século XV e São Tomé no século XVI — só teria início algum tempo depois. A intenção dos portugueses não era apenas ter acesso ao mercado do ouro, mas chegar ao centro produtor do metal precioso e eliminar os intermediários. Assim, em 1445, os portugueses iniciaram a construção da fortaleza e da 9Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos feitoria de Arguim (ilha situada na costa da Mauritânia atual), “[...] para onde pretendiam desviar o comércio transaariano [...]” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 22). Aos poucos, os portugueses foram se apropriando, com suas caravelas, de parte do transporte que até então era feito com camelos; assim, os negócios com os africanos da região do rio Gâmbia, perto do poderoso Império do Mali, foram crescendo. Por volta de 1460, os portugueses mantinham boas relações comerciais com os malineses. Contudo, o principal objetivo, atingir as ricas minas de ouro, ainda não havia sido atingido. Embora o comércio de escravos não fosse o seu principal objetivo, os portugueses passaram a lucrar com ele. Esse lucro representou a desgraça de alguns povos, pois a captura de escravos estimulava as guerras entre os afri- canos. “A presença portuguesa redimensionou a vida de populações litorâneas que, até então, não tinham poder econômico e político significativo e que passaram a ter na captura de cativos uma atividade corriqueira, sistemática [...]” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 24). A prosperidade dos negócios portugueses fez surgir a necessidade de esta- belecer mais feitorias no litoral africano. Dessa forma, em 1482, os portugueses construíram a feitoria de São Jorge da Mina (Figura 2), na Costa do Ouro (atual Gana). A construção imponente demonstrava que os portugueses pretendiam ficar por muito tempo na região, pois, de acordo com Silva (2002, p. 212), “[...] não se tratava de um simples entreposto, mas, sim, de uma fortaleza, que se erguia a quase quatro mil quilômetros da pátria dos que a levantavam [...]”. A partir de São Jorge da Mina, os portugueses conseguiram interceptar quase todo o metal transportado pelo Saara. De posse do ouro, puderam negociar com vantagens nos mercados africanos e, com os lucros, obter mercadorias sofisticadas que não eram fabricadas em Portugal. Figura 2. Castelo de São Jorge da Mina. Fonte: Wikimedia (2006, documento on-line). Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos10 Na feitoria de São Jorge da Mina, concentrou-se o embarque de escravos para a América — Brasil, Caribe e América Inglesa — até 1637, quando o local foi tomado pelos holandeses. São Jorge da Mina foi a principal feitoria na costa africana e a mais importante fonte de lucros para a economia portuguesa até o início do ciclo de comércio com a Índia. Concomitantemente à construção da feitoria de São Jorge da Mina, outro importante fato aconteceu: o navegador português Diogo Cão chegou ao reino do Congo. Relações entre Portugal e Congo Por volta do século XIV, comunidades que viviam na África centro-ocidental foram unifi cadas, formando o reino do Congo, que abrangeu territórios que hoje correspondem a Angola, República do Congo, República Democrática do Congo e Gabão. Nesse reino, o poder era exercido pelo manicongo, que governava com o auxílio de um conselho real, cujos membros eram represen- tantes destacados de cada comunidade, formando uma espécie de nobreza. Manicongo era o rei, ou seja, quem governava o reino do Congo. Já os mani eram os governantes das províncias, enquanto as mbanza eram as cidades que pertenciam ao reino do Congo. O reino do Congo era próspero. O seu solo era fértil e havia bons supri- mentos de água, que favoreciam a agricultura e a criação de animais. Os rios forneciam peixes e, nas savanas, a caça era abundante. Para garantir a continuidade das atividades agrícolas, o manicongo procurava ampliar as suas terras produtivas, o que fazia por meio de guerras com povos vizinhos ou associando-se a eles por meio de casamentos. A escravidão praticada no reino era do tipodoméstica, “[...] embora nas cidades fosse comum que um número significativo de prisioneiros de guerra estivesse a serviço da nobreza [...]” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 32). O navegador português Diogo Cão aportou na foz do rio Zaire em 1483. Logo se espalhou pela região a notícia de que grandes barcos, que se asseme- lhavam a pássaros gigantes, haviam chegado ao litoral. Os habitantes locais ficaram espantados com os homens que saíam das embarcações: “[...] pensava- 11Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos -se que os europeus vinham de outro mundo, que eram seres sobrenaturais [...]” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 29). Os portugueses foram recebidos pelo mani de Sônio, província do noroeste do reino. Alguns mensageiros portugueses foram enviados à Mbanza Congo, cidade real onde vivia o manicongo. Curioso com a presença dos homens brancos que diziam ter cruzado o oceano, o manicongo resolveu manter os mensageiros em seu palácio. Como os mensageiros tardavam a retornar, “Diogo Cão tomou por reféns quatro congueses que visitavam, atentos para todas as novidades, um de seus navios e os levou consigo para Portugal [...]”, com a promessa de trazê-los de volta depois de 15 luas (SILVA, 2002, p. 361). Os mensageiros portugueses puderam conhecer um pouco da organização admi- nistrativa complexa e centralizada do reino do Congo. Já os quatro africanos levados por Diogo Cão retornaram “[...] vestidos como europeus e falando português [...]” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 30). Tanto os mensageiros tinham muito para contar a Diogo Cão como os africanos tinham muito a narrar para o manicongo: O manicongo Nzinga a Nkuwa ouviu cuidadosamente o que lhe narraram os quatro súditos que tinham passado vários meses em Portugal. Não só de seus relatos, das entrevistas concedidas a Diogo Cão e dos mimos que recebeu, mas também do que vieram os seus dizer-lhe sobre as bombardas, os arcabuzes, os machados, as bestas e o tamanho dos barcos portugueses, é provável que tenha concluído que aqueles estrangeiros dispunham de recursos técnicos muito maiores e mais eficazes do que os conhecidos pela sua gente. E que contavam com um deus poderosíssimo. Se os congos pudessem captar tudo aquilo, tornar-se-iam muito mais fortes do que os demais reinos vizinhos e teriam condições de fazer face aos novos desafios que certamente surgiriam da presença dos que haviam chegado do oceano (SILVA, 2002, p. 361). Ainda na década de 1480, os monarcas de ambos os reinos estreitaram as suas relações trocando presentes e emissários. Em 1489, o manicongo Nzinga a Nkuwa enviou para Portugal uma comitiva, da qual faziam parte um dos afri- canos “sequestrados” por Diogo Cão e o mani Cabunda, sacerdote de Mbanza Congo. A comitiva levou presentes para serem entregues ao rei português D. João II, entre os quais destacam-se “[...] dentes de elefante, objetos de marfim e panos de ráfia congueses, que eram como brocado, damasco, seda acetinada ou tecido de Ormuz [...]” (SILVA, 2002, p. 361). A comitiva levava também algumas solicitações: “[...] autorização para que rapazes do reino africano Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos12 pudessem ser educados na Europa, conseguir que padres católicos fossem enviados ao Kongo, assim como mestres no ofício da carpintaria, pedraria e agricultura [...]” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 30). O rei português acatou as solicitações, pois era de interesse de Portugal estabelecer uma aliança sólida com um soberano de um reino próspero que se mostrava disposto a se converter ao cristianismo. Em 1491, o manicongo Nzinga a Nkuwa se converteu ao cristianismo e promoveu algumas mudanças na estrutura política de seu reino, inspirando-se no modelo europeu. A capital Mbanza Congo teve o nome mudado para São Salvador, e foi iniciada no reino uma linhagem de reis católicos. No entanto, como destaca Albuquerque (2006), nem todos os congoleses aceitavam a conversão; um filho do manicongo, Mpanzu a Kitima, se negou a aderir ao catolicismo e foi vencido por Afonso, que herdou o trono. Afonso I governou o Congo entre 1506 e 1543. Ao longo desse período, o comércio do próspero reino com os portugueses expandiu-se e a venda de escravos tornou-se mo- nopólio real. Aos poucos, porém, esse monopólio foi sendo quebrado. Desrespeitando as regras estabelecidas pelo rei, os mercadores promoviam capturas ilegais (no Congo, só era permitida a escravização de prisioneiros de guerra e de pessoas endividadas) e transportavam escravos por rotas alternativas para fugir da fiscalização e não recolher os impostos devidos aos cofres reais, o que causou grande prejuízo ao governo do Congo. Afonso I tam- bém enfrentou disputas pela sucessão do trono e revoltas de chefes das províncias do reino que discordavam do controle excessivo do governo sobre seus territórios. Em paralelo a isso, os portugueses intensificaram o comércio de escravos com povos vizinhos subordinados ao Congo, como Angola, sem contar com o intermédio de Afonso I. Ao estreitar relações com esses povos vizinhos, os portugueses almejavam encontrar minas de prata na região. Quando as pretensões colonialistas dos portugueses tornaram-se evidentes, os africanos resistiram. Além de confrontar os africanos, os portugueses tinham de enfrentar outros inimigos: “[...] as febres, a escassez de comida, os insetos, a estiagem e a frustração diante da inexistência de prata e ouro nas proximidades. Os portugueses concluiriam, então, que a empreitada conquistadora não valia a pena e resolveram concentrar suas forças no comércio de escravos [...]”, atividade mais lucrativa e que demandava menos trabalho (ALBUQUERQUE, 2006, p. 33). 13Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos Um exemplo de resistência ao avanço português foi protagonizado pela rainha Nzinga Mbandi, que durante 13 anos combateu o avanço dos portugueses em Angola. Veja: Em 1621, a rainha Jinga de Mutamba, seguida por uma vistosa comitiva, propôs uma aliança aos portugueses. Em troca da paz aceitou certas condições, inclusive a conversão ao catolicismo. Ela foi batizada com o nome de Dona Ana de Souza, na igreja matriz de Luanda, em 1622, mas não aceitou pagar tributos como exigiam os lusitanos. No ano seguinte, empreendeu outra guerra contra os portugueses e mandou uma embaixada ao Papa Alexandre VII pedindo o reconhecimento do seu reino. Esquecendo o padroado, o papa enviou-lhe uma carta com orientações para que seu reino fosse cristão, junto com vários missioná- rios capuchinhos italianos. Mas a rainha foi derrotada à frente de suas tropas, e suas duas irmãs, as princesas Cambe e Funge, foram levadas para Luanda e batizadas com os nomes de Bárbara e Engrácia. Quando, em 1641, os holandeses saíram do norte do Brasil e ocuparam Luanda, Jinga aliou-se a eles contra os portugueses. Mas em 1648, Salvador Correa de Sá retomou Luanda dos holandeses, com uma armada saída do Rio de Janeiro. A rainha Jinga morreu em 17 de dezembro de 1663, quando teria cerca de 80 anos. A memória dos cortejos e lutas das suas tropas continua presente nos congados brasileiros (ALBUQUERQUE, 2006, p. 33). No início do século XVII, o contato entre os reinos de Portugal e do Congo diminuiu. O Congo se mantinha como um reino autônomo e estabelecia rela- ções políticas e comerciais com a Holanda. O catolicismo permaneceu como religião oficial da monarquia congolesa e padres italianos e espanhóis foram enviados diretamente pelo papado para prosseguir o trabalho missionário no reino, como você vai ver a seguir. O reino do Congo manteve-se unificado e autônomo até 1665, quando o rei Antônio I morreu numa batalha travada contra os portugueses, agora estabelecidos em Angola. A derrota nos campos de batalha e a morte do rei abriram caminho para a fragmentação do reino do Congo. Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos14 A dominação pela cruz: o papel do catolicismo na colonização da África O sucesso de Portugal e da Espanha nas viagensmarítimas e na exploração dos territórios coloniais motivou o papa a colocar nas mãos dos reis ibéricos e das autoridades eclesiásticas dos dois países a responsabilidade pela expansão do catolicismo nos novos territórios. Para isso, os reis deveriam construir igrejas e mosteiros e enviar sacerdotes para evangelizar os habitantes das novas possessões. A conversão dos africanos ao catolicismo desempenhou um papel muito importante no processo de expansão portuguesa na África. A presença do catolicismo na África acompanhava a colonização portuguesa em território africano por meio da instalação de dioceses. De acordo com Marcussi (2012), as ordens religiosas enviadas à África tinham como objetivo específico a transmissão da mensagem religiosa aos povos com os quais os portugueses faziam contatos comerciais. A mesma Igreja Católica que procurava converter os africanos usava argumentos teológicos para justificar a escravidão. Para legitimar a prática da escravidão sob o ponto de vista moral e jurídico, os europeus procuravam justificativas no pensamento de juristas cristãos e pensadores da Igreja, nos textos de Aristóteles e no direito romano. Em outras palavras, os europeus criaram um discurso que transformava um ato cruel e hediondo em uma prática justa, natural e necessária. Um dos discursos criados pelos europeus para justificar a escravidão consistia em associar os negros aos descendentes de Caim, personagem bíblico que assassinou o seu irmão Abel e por isso foi amaldiçoado por Deus. Os africanos seriam os descendentes de Caim, e, portanto, trazendo ainda na carne o sinal da maldição divina imposta ao primeiro homicida, segundo a narrativa bíblica. De fato, ao amaldiçoar Caim, Deus lhe colocou um signo na carne, para que não fosse morto e vivesse continu- amente expiando seu crime. Na tradição popular, os negros passaram a ser considerados como raça maldita de Caim, sendo a negritude de sua pele um sinal imposto pelo próprio Deus (AZZI, 2005, p. 98). 15Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos O início do contato entre os africanos e o catolicismo se deu nas ilhas da costa africana, onde os portugueses mantinham seus entrepostos comerciais. Marcussi (2012, p. 39–40) apresenta um panorama da inserção do catolicismo na África a partir da presença portuguesa: Na costa da Senegâmbia, ao norte, a Igreja nunca chegou a ter grande pene- tração no território continental antes do século XIX, permanecendo restrita ao arquipélago de Cabo Verde e a algumas poucas feitorias portuguesas na costa, para além das missões esparsas realizadas pelas ordens religiosas, sobretudo os jesuítas. Na costa da Mina, sob jurisdição da diocese de São Tomé, também houve poucas incursões católicas, limitadas à missionação das ordens religiosas, incluindo uma mal sucedida missão ao reino do Benim em 1515, um breve período de atuação jesuítica em Serra Leoa entre 1604 e 1617 [...]. A costa de Moçambique, sob administração eclesiástica da diocese de Goa, também recebeu algumas missões, a maior parte das quais jesuíticas e dominicanas, mas de penetração igualmente escassa, restringindo-se ao batismo de alguns reis locais e à assistência de comunidades portuguesas. Porém, no caso da costa centro-africana ocidental (compreendendo as regiões do Congo, Angola e Benguela), houve um relativo adensamento e disseminação das instituições clericais a partir do arquipélago de São Tomé. Quando os portugueses chegaram ao litoral do reino do Congo, os nativos daquela região pensaram estar diante de seres sobrenaturais. Isso porque, segundo Albuquerque (2006), na região do Congo-Angola os africanos acre- ditavam que existia uma linha divisória chamada Calunga, que separava o mundo dos vivos do mundo dos mortos. “Quando alguém morria o seu espírito atravessava a fronteira entre a vida e a morte navegando numa zona transitória que seria o oceano. Para eles [os africanos], os homens brancos que desembarcaram com Diogo Cão podiam ser espíritos de antepassados voltando para casa [...]” (ALBUQUERQUE, 2006, p. 29). Devido a essa crença, os portugueses foram recebidos de forma calorosa pelo mani de Sônio e pelos habitantes do litoral. Como você viu anteriormente, em 1483, Diogo Cão “sequestrou” quatro africanos e levou-os para Portugal, onde ficaram até 1485. Ao retornarem, os africanos descreveram para o ma- nicongo o que viram em Portugal e afirmaram que os portugueses tinham um “deus poderosíssimo”. Quem pudesse contar com os recursos técnicos dos portugueses e com esse “deus poderosíssimo” seria capaz de enfrentar os novos desafios que estavam por vir. Entusiasmado com os relatos, o manicongo enviou uma comitiva à Portugal com uma solicitação clara: que os portugueses enviassem padres para instruir os congos na religião. Um dos primeiros congos a se converter foi o mani de Sônio, batizado “[...] com o nome de Manuel, em Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos16 missa cantada, numa igreja de madeira construída para a ocasião. Depois, ordenou que se queimassem todos os fetiches e, possivelmente, as imagens dos ancestrais [...]” (SILVA, 2002, p. 363). O manicongo ordenou que fosse construída uma igreja de pedra e cal para nela os fiéis receberem o batismo. Devido a uma campanha militar contra povos inimigos, o manicongo não pôde esperar a conclusão da igreja e recebeu o batismo, em 1491, num altar improvisado. Seguiram o seu exemplo uma de suas esposas e um filho, que, após serem batizados, receberam nomes latinos. O manicongo passou a se chamar D. João I (mesmo nome do rei de Portugal na época); sua esposa, Leonor; e seu filho, Afonso. “Para a guerra, da qual saiu vitorioso, o manicongo levou, benta pelo papa Inocêncio VIII, uma bandeira de cruzado que lhe mandara o rei de Portugal, além de barcos e arcabuzeiros portugueses [...]” (SILVA, 2002, p. 363). Sobre a conversão dos congos ao cristianismo, Silva (2002, p. 364) apresenta as várias interpretações dadas pela historiografia: Assim começa a história fascinante e controvertida do cristianismo no reino do Congo. Alguns consideram que não houve uma conversão verdadeira, pois fundada num “mal-entendido colossal”: os portugueses teriam conquistado os ouvidos dos congueses porque eram brancos vindos do mar e, como tais, seres sacrossantos. Outros julgam que o cristianismo do rei e das elites teria sido superficial ou apenas de fachada, para ganhar audiência nas cortes europeias, subsistindo entre os congos a religião tradicional, ainda que incorporasse alguns rituais e objetos de culto católico às suas cerimônias e aos seus altares. Não falta quem acrescente que a conversão dos manicongos foi um expediente de política interna: como o rei não controlava o culto dos antepassados, nem o dos espíritos das águas e da terra, [...] percebeu que poderia ter no cristianismo uma fonte de legitimidade independente do beneplácito, da sagração ou do apoio dos chefes das candas (ou clãs e linhagens matrilineares) [...]. Houve também quem julgasse que o cristianismo teria sido, desde o início, apropriado pela religião local, que o reinterpretou segundo o seu sistema de crenças e o acomodou à sua concepção do universo e do sagrado. Para outros, o chamado catolicismo dos congos não seria sequer um culto híbrido, pois tinha por base uma visão do mundo que era inteiramente africana. De acordo com Silva (2002), a conversão dos congos teria se dado para alguns pela fé e, para outros, por conveniência. O autor cita como exemplo o caso do manicongo, que teria se convertido por impulso, imaginando que sem a conversão não haveria aliança com os portugueses. 17Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos O governo de D. Afonso foi de suma importância para a consolidação do cristianismo no Reino do Congo e serviu para estabelecer as bases da organização política que vigoraria pelos séculos subsequentes. O cristianismo sustentou politicamente a conquista do poder, a sua consolidaçãoe a sua ampliação. Ainda de acordo com Souza (2016, p. 453), “[...] a elite conguesa refundiu ideias heterogêneas, locais e estrangeiras, em novas partes inter-relacionadas, em uma visão de mundo que constituiu o cristianismo congo: um novo sistema de pensamento religioso, expressão artística e organização política [...]”. As ações de D. Afonso foram fundamentais para o fortalecimento do cristianismo no Congo, que serviu para os portugueses, sustentarem o comércio de escravos e suplantarem a autoridade dos reis congos, que controlavam, além do comércio, o cristianismo. Souza (2016) defende que as redes comerciais estabelecidas e a adoção do cristianismo deram ao Congo uma posição de destaque no mundo atlântico entre os séculos XVII e XVIII. O cristianismo já era conhecido em algumas regiões da África antes da chegada dos portugueses. A Etiópia foi o primeiro e mais antigo reino africano a adotá-lo como religião oficial do Estado. Desde o século IV, o reino da Abissínia, depois chamado de Etiópia, tornou-se cristão ortodoxo. No século XII, espalhou-se pela Europa a lenda de um reino cristão no Extremo Oriente, governado por um rei conhecido como Preste João. Segundo a lenda, Preste João teria mais de 500 anos de idade, pois em seu reino havia uma fonte da eterna juventude. No século XV, um reino cristão foi descoberto pelos portugueses na região da Etiópia, na África oriental. Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos18 Ao tomarem contato com esse Reino Cristão, os lusitanos acreditaram ter encontrado a mítica terra de Preste João, o soberano que lhes ajudaria a combater os muçulmanos que controlavam as rotas comerciais no Oceano Índico; porém, foram os portugueses que acabaram enviando tropas para auxiliar o reino africano no combate às investidas turcas na região do Mar Vermelho. Tanto o papa quanto Alfonso de Aragão [nobre espanhol] enviaram missões à Etiópia. [...] Não se sabe se todas chegaram ao seu destino. De qualquer forma, ao iniciar-se a segunda metade do século XV, algumas conexões com a Europa haviam rompido o isolamento dos etíopes, e a Abissínia [...] deixara de ser uma terra desconhecida para os euro- peus. [...] Para os portugueses, que aspiravam ao domínio do Índico, a Etiópia desenhava-se como parceiro ideal. Desde muito, Preste João e seus exércitos frequentavam a imaginação lusitana. Tanto que [o rei português] D. João II, em 1487, mandara [o explorador] Pero da Covi- lhã em busca das terras do Preste, para alcançar uma aliança. Pero da Covilhã só chegou à Etiópia após seis anos de longa e intricada viagem. De lá nunca mais sairia, para dizer a seu rei o que fizera e vira. Mas as notícias que deu de Portugal à rainha [etíope] Eleni influenciaram-na profundamente e a convenceram de que os portugueses eram os aliados naturais da Etiópia (SILVA, 1996, p. 601). ALBUQUERQUE, W. R. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais, 2006. AZZI, R. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Petrópolis: Vozes, 2005. GUIA GEOGRÁFICO. Mapa físico da África. 2018. Disponível em: https://www.guiageo. com/africa.htm. Acesso em: 22 ago. 2019. KI-ZERBO, J. Da natureza bruta à humanidade liberada. In: KI-ZERBO, J. (ed.). História geral da África I: Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010. p. 833–851. MARCUSSI, A. A. A formação do clero africano nativo no Império Português nos sé- culos XVI e XVII. Temporalidades, Belo Horizonte, v. 4, n. 2, p. 38–61, 2012. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/temporalidades/article/view/5448. Acesso em: 22 ago. 2019. MARZANO, A. A escravidão na África. In: MARZANO, A.; BITTENCOURT, M. História da África. Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2013a. p. 131–156. 19Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos MARZANO, A. O comércio atlântico de escravos e seus efeitos nas sociedades africa- nas. In: MARZANO, A.; BITTENCOURT, M. História da África. Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2013b. p. 157–182. SILVA, A. C. A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. SOUZA, M. M. O cristianismo congo e as relações atlânticas. Revista de História, São Paulo, n. 175, p. 451–463, 2016. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/ article/view/115126. Acesso em: 22 ago. 2019. SOUZA, T. T. B. A. Escravidão interna na África, antes do tráfico negreiro. Vértices, Campos dos Goytacazes, v. 5, n. 2, p. 11–23, 2003. Disponível em: http://essentiaeditora.iff.edu. br/index.php/vertices/article/view/1809-2667.20030007/115. Acesso em: 22 ago. 2019. WIKIMEDIA. St Jago. 2006. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/w/index. php?curid=736445. Acesso em: 22 ago. 2019. Leituras recomendadas COSTA, J. P. Vocabulário de conceitos para o estudp do Islã e dos muçulmanos. Caxias do Sul: UCS, 2016. Disponível em: https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/o-isla.pdf. Acesso em: 22 ago. 2019. OLIVEIRA, C. A prole de Caim e os descendentes de Cam: legitimação da escravidão em Portugal e a influência das Bulas Dum diversas (1452 e Romanus Pontífex (1455). 2017. Dissertação (Mestrado em História Ibérica) – Programa de Pós-graduação em Histó- ria Ibérica, Instituto de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal de Alfenas, Alfenas, 2017. Disponível em: https://bdtd.unifal-mg.edu.br:8443/handle/tede/1161. Acesso em: 22 ago. 2019. SANTOS, D. L. Conhecer para catequisar e dominar: colonialismo, visões sobre o outro e missões católicas. Moçambique (1885-1940). In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 29., 2017, Brasília. Anais [...]; Brasília: [s. n.], 2017. Disponível em: https://www.snh2017. anpuh.org/resources/anais/54/1504544996_ARQUIVO_Denilson_Lessa_dos_Santos. pdf. Acesso em: 22 ago. 2019. SILVA, A. C. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. SILVA, J. O. A comunidade dos Missionários da África e a introdução do catolicismo na Rodésia do Norte. Afro-Ásia, Salvador, n. 52, p. 107–136, 2015. Disponível em: https:// portalseer.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/21881. Acesso em: 22 ago. 2019. SOUZA, M. M. Além do visível: poder, catolicismo e comércio no Congo e em Angola (séculos XVI e XVII). São Paulo: EDUSP, 2018. Colonialismo na África: a escravidão e o tráfico de escravos20
Compartilhar