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CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS - LIBRAS GUARULHOS – SP SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 3 2 ASPECTOS CLÍNICOS DA SURDEZ .................................................................. 4 2.1 O que é a surdez? .......................................................................................... 4 2.2 Graus de Perda Auditiva ................................................................................ 5 2.3 Causas da Perda Auditiva .............................................................................. 7 2.4 Tipos de Surdez ou Perda Auditiva ................................................................ 8 2.5 Identidades Surdas ........................................................................................ 9 3 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DOS SURDOS ...................................................... 10 3.1 A História da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) ..................................... 11 3.2 Metodologia Oralista .................................................................................... 12 3.3 Comunicação Total ...................................................................................... 13 3.4 Bilinguismo ................................................................................................... 13 4 NOÇÕES DE LIBRAS ........................................................................................ 14 4.1 Competências Linguísticas, Discursivas e Sociolinguísticas da Libras ........ 14 4.2 Recepção e Produção da Libras .................................................................. 17 4.3 A Libras nas escolas .................................................................................... 17 4.4 (In)conclusões .............................................................................................. 20 5 A PRÁTICA DE LIBRAS ..................................................................................... 21 5.1 Experiências Visuais: Formas de Interagir e Se Constituir Com o Outro ..... 22 5.2 Língua de Sinais: Artefato Cultural e Social ................................................. 26 5.3 Influências Da Linguagem Visual Para o Desenvolvimento Cognitivo Da Criança Com Surdez ............................................................................................. 29 5.4 Algumas Considerações .............................................................................. 31 6 NOÇÕES DE LÉXICO, DE MORFOLOGIA E DE SINTAXE COM APOIO DE RECURSOS AUDIOVISUAIS .................................................................................... 33 6.1 Libras e Sua Estrutura: Léxico, Morfologia e Sintaxe ................................... 33 6.2 Fonologia ou Léxico ..................................................................................... 34 6.3 Morfologia .................................................................................................... 36 6.4 Sintaxe ......................................................................................................... 37 6.5 Estrutura Gramatical: Aspectos Próprios da Libras ...................................... 38 6.6 Expressões Não-Manuais ............................................................................ 39 6.7 Advérbios temporais..................................................................................... 39 6.8 Verbos .......................................................................................................... 40 6.9 Tópicos ......................................................................................................... 40 6.10 Sintaxe espacial ........................................................................................ 41 6.11 Recursos Audiovisuais No Ensino De Libras ............................................ 42 7 CARACTERÍSTICAS FONOLÓGICAS .............................................................. 46 7.1 Léxico, Vocabulários Icônicos, Arbitrários e Soletrados ............................... 47 7.2 Sinais Icônicos ............................................................................................. 49 7.3 Sinais Arbitrários .......................................................................................... 50 7.4 Sinais Soletrados ......................................................................................... 51 7.5 Estrutura Fonética e Fonológica da Libras ................................................... 52 7.6 Estruturas Sublexicais: Cinco Parâmetros em Libras................................... 53 7.7 Configuração de Mão ................................................................................... 53 7.8 Pontos de Articulação .................................................................................. 55 7.9 Processo de Aquisição da Libras ................................................................. 60 7.10 Aquisição da Libras Como L1 ................................................................... 62 7.11 Aquisição da Libras Como L2 ................................................................... 63 8 LITERATURA SURDA ....................................................................................... 66 8.1 O Que é Literatura Surda? ........................................................................... 66 8.2 As Características Da Literatura Surda ........................................................ 68 8.3 Diferenças Entre Literatura Surda e Literatura Tradicional .......................... 74 8.4 Literatura Tradicional .................................................................................... 74 8.5 Literatura Surda ........................................................................................... 76 9 PRODUÇÃO E TRADUÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOS PARA O ENSINO DE SURDOS ................................................................................................................... 77 9.1 Produção e Tradução de Materiais Didáticos Para o Ensino de Surdos ...... 78 9.2 Formas de Produção e Tradução de Materiais Didáticos na Educação de Surdos ................................................................................................................... 81 9.3 Avaliação de Materiais Didáticos Para o Ensino Dos Sujeitos Surdos ......... 85 10 A PEDAGOGIA BILÍNGUE .............................................................................. 88 10.1 Princípios da Pedagogia Bilíngue ............................................................. 89 10.2 Questões Culturais, Identitárias e Bilinguismo .......................................... 93 10.3 O Professor Como Mediador da Aprendizagem na Perspectiva da Diferença Cultural ...................................................................................................................95 10.4 A Importância da Aprendizagem da Língua Brasileira de Sinais Por Parte da Sociedade ......................................................................................................... 97 11 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS .............................................................. 100 3 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimentoque serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 4 2 ASPECTOS CLÍNICOS DA SURDEZ 2.1 O que é a surdez? Existem muitos conceitos sobre o que é a surdez. No livro Saberes e Práticas da Inclusão – Desenvolvendo Competências para o Atendimento às Necessidades Educacionais Especiais de Alunos Surdos (2006), publicado pelo MEC, encontramos a seguinte definição para surdez “uma diminuição na capacidade de ouvir de um indivíduo”. No entanto, nem sempre ocorre apenas uma diminuição da audição, em alguns casos a perda é tão grande que o indivíduo fica impossibilitado de ouvir os sons. Nesse sentido, uma melhor definição para deficiência auditiva ou surdez, do ponto de vista clínico é a perda total ou parcial da capacidade de ouvir e perceber os sons. Porém, do ponto de vista pedagógico, Santiago (2006) alega que o surdo “é uma pessoa diferente linguisticamente, e que por esta razão, necessita de uma intervenção que considere tal diferença como fundamental nos processos de aprendizagem”. Ou seja, a surdez não é considerada uma deficiência, mas uma diferença linguística que deve ser aceita e respeitada dentro da sala de aula. Por isso, o modo como o professor percebe a surdez influenciará diretamente sobre a metodologia utilizada para com o aluno surdo, daí a importância de se conhecer as diferenças individuais relacionadas à surdez. É através da aquisição da linguagem que passamos a compreender a nossa cultura e contexto social no qual estamos inseridos, a diminuição ou perda auditiva acarreta um atraso linguístico no indivíduo, portanto, quanto mais tarde for diagnosticada a surdez mais comprometida ficará a linguagem. É importante ressaltar que “a falta de uma linguagem tem graves consequências para o desenvolvimento social, emocional e intelectual do ser humano” (CAPOVILLA, 2000, p.100). O ouvinte desenvolve a linguagem oral devido ao contato direto com a mesma, para o surdo não é diferente, ele precisa ter contato com a língua de sinais para que ocorra a aquisição da mesma. Por isso, quanto mais cedo for exposto a ela melhor será seu desenvolvimento. Os surdos não compõem um grupo homogêneo de pessoas, sendo classificados a partir de diferentes características em razão da perda auditiva (grau de 5 comprometimento), quanto à etiologia (causa da surdez) e o período de aquisição da mesma. Assim, O conhecimento sobre as características da surdez permite àqueles que se relacionam ou que pretendem desenvolver algum tipo de trabalho pedagógico com pessoas surdas, a compreensão desse fenômeno, aumentando sua possibilidade de atender às necessidades especiais constatadas. (BRASIL, 2006, p.15). Por isso, conhecer alguns aspectos clínicos da surdez faz-se necessário para o desenvolvimento de uma boa prática educativa. 2.2 Graus de Perda Auditiva A surdez pode ser unilateral quando a perda auditiva ocorre em apenas um ouvido, e bilateral quando ocorre nos dois. O grau de comprometimento pode ser decisivo no desenvolvimento da linguagem, o nível de perda é medido em termos de decibéis. A audição é considerada normal quando a captação de som ocorre até 16 dB. Quando a captação ocorre de 16 e 70 dB, a pessoa possui uma deficiência auditiva, podendo ser classificada em: surdez leve (16 a 40 dB) audição muito próxima da normal, o desenvolvimento da linguagem oral ocorre normalmente. Pode haver dificuldades com a percepção de alguns fonemas, no entanto, não requer grandes mudanças metodológicas por parte do professor. Usar um tom mais alto de voz e falar pausadamente facilitará a compreensão do aluno; surdez moderada (41 a 70 dB) é possível a percepção de sons altos, ocorrendo um atraso na linguagem oral e dificuldade na articulação das palavras, por não captar os fonemas corretos. A criança que possui esse tipo de surdez não consegue se comunicar em local com muito barulho e pode ser por vezes desatenta, apresentando dificuldades na leitura e escrita. Requer adaptações metodológicas mais específicas, pois além do que foi dito para a surdez leve é necessário o aumento de recursos visuais para garantir a aprendizagem do aluno; 6 Acima de 70 dB a pessoa é considerada surda, necessitando do uso de língua de sinais para se comunicar; surdez severa (71 a 90 dB) a voz humana não é perceptível, o que impossibilita a aquisição da linguagem oral de modo espontâneo. O uso de aparelhos auditivos pode ajudar, mas se faz necessário o uso de língua de sinais, pois sua aptidão visual supera a auditiva. O professor deverá privilegiar o uso de imagens e ter o domínio da LIBRAS para que haja uma boa comunicação entre eles; surdez profunda (acima de 91dB) não há percepção de praticamente som algum, apenas ruídos muito altos como uma bomba, por exemplo, nesse caso o som pode ser de longe percebido. Não há desenvolvimento da linguagem oral e apenas um implante coclear poderia fazê-la ouvir. A linguagem desenvolvida deverá ser a de sinais, que é a língua natural do surdo. (BRASIL, 2006; SANTIAGO, 2010; GESSER, 2009). Fonte: www.ouviclin.com.br Percebe-se então, que dependendo do grau da perda auditiva, a alfabetização e educação do aluno surdo deverão ocorrer através da língua de sinais, cabendo ao professor dá a ela o devido valor. Por isso, a necessidade de intérpretes na sala de 7 aula e acima de tudo o interesse do professor em aprender e querer se comunicar com o aluno surdo, a fim de garantir uma aprendizagem efetiva 2.3 Causas da Perda Auditiva Por que alguns surdos falam e outros não? Geralmente essa diferença está associada ao período de aquisição da surdez ou ao tipo de identidade surda adotada pelo indivíduo. De acordo com o período de aquisição a surdez pode ser: Pré-linguística - perda auditiva antes da aquisição da linguagem oral. São os que nascem surdos ou perdem a audição antes de desenvolverem a fala; Pós-linguística - perda auditiva após a aquisição da linguagem oral. Perderam a audição após a aquisição da fala. (BRASIL, 2006; SANTIAGO, 2010). As causas da surdez são variadas, e de acordo com o MEC estão divididas em três grupos: Pré-natais - provocada durante a gestação por fatores genéticos e hereditários, doenças adquiridas pela mãe durante a gestação (rubéola, diabetes, sífilis, etc.) ou uso de drogas ototóxicas (medicamentos que afetam a audição); Peri-natais - adquiridas no momento do nascimento, como a prematuridade, anóxia (falta de oxigenação no cérebro), hipóxia (pouca oxigenação no cérebro) ou parto traumático (parto rápido demais ou muito demorado); Pós-natais - causada por alguma doença adquirida ao longo da vida, por exemplo, meningite, caxumba, sarampo, infecções, entre outras. (BRASIL, 2006, p.15). 8 2.4 Tipos de Surdez ou Perda Auditiva Para entendermos os tipos de surdez existentes é necessário que se entenda um pouco como funciona o ouvido humano. O ouvido é composto por três partes: a externa, também chamada de ouvido externo, que compreende o pavilhão auricular, o conduto auditivo e a membrana timpânica; as outras duas são internas e estão localizadas dentro da caixa craniana, o ouvido médio onde estão localizados três ossos muito pequenos (martelo, bigorna e estribo) e o ouvido interno, nele estão situados a cóclea, os canais semicirculares e o nervo aditivo. Podemos observar melhor na imagem abaixo: Fonte:www.tectronica.files.wordpress.com As ondas sonorassão captadas pelo ouvido externo e passa para o ouvido médio onde são conduzidas pelo martelo, bigorna e estribo até a cóclea que fica na parte interna do ouvido. É na cóclea que o som é processado, vibra e vai para o cérebro, passando pelo nervo auditivo. Quando ele chega aos centros auditivos do cérebro é possível a compreensão da mensagem recebida. Os tipos de surdez variam de acordo com a localização da lesão no aparelho auditivo. O MEC divide em quatro os tipos de perda auditiva, são elas: Condutiva - patologias localizadas no ouvido externo e/ou médio. Geralmente são ocasionadas por causas pós-natais e em sua maioria são reversíveis após tratamento; 9 Neurossensorial - de origens pré-natais. Localiza-se no nervo coclear e esse tipo de lesão é irreversível; Mista - afeta ao mesmo tempo o ouvido externo e/ ou médio e o ouvido interno. Ocorre devido a fatores genéticos, determinantes de má formação. Esse caso também é irreversível; Central - alteração localizada no cérebro. Pode ser localizada desde o tronco cerebral até as regiões subcorticais e córtex cerebral. (BRASIL, 2006, p.16). É através da identificação do tipo de surdez que será possível determinar o tratamento indicado e ainda o uso de dispositivos de amplificação sonora. 2.5 Identidades Surdas Além dos aspectos clínicos descritos anteriormente, outro fator altamente relevante no processo de ensino da pessoa surda é a dificuldade decorrente de sua limitação linguística que ocasiona problemas emocionais, sociais e cognitivos, influenciando a aprendizagem e sua identidade. De acordo com Perlin (1989) apud Santiago (2010), existem cinco categorias de identidades surdas: política, híbrida, de transição, incompleta e flutuante. Por isso, é um erro pensar que as pessoas surdas formam um grupo homogêneo. Essas identidades são classificadas como: a) Identidade surda política – há o predomínio da experiência visual em detrimento da auditiva; b) Identidade surda híbrida – acontece com surdos que usam identidades diferentes em momentos diferentes; c) Identidade surda de transição – é caracterizada por um momento específico da vida do surdo. É exatamente aquele em que ele passa de um mundo ouvinte, onde sempre foi obrigado a viver, para uma nova experiência com o mundo surdo. d) Identidade surda incompleta – aquela em que a pessoa surda sofre pressões de toda a espécie para não se identificar com outros surdos; e) Identidade surda flutuante – quando o surdo não aceita a própria surdez e faz de tudo para se enquadrar no mundo ouvinte. (SANTIAGO, 2010, p.214- 215). 10 A construção da identidade da pessoa surda ocorre através da convivência com os outros, ou seja, a partir da interação com surdos ou ouvintes. O convívio da pessoa surda refletirá diretamente sobre qual identidade ela assumirá. Entender qual a identidade assumida pelo aluno surdo permitirá ao professor perceber a concepção que o aluno tem de si mesmo e dentro de qual cultura ele está inserido, a ouvinte ou a surda. Sendo duas culturas distintas, é importante a identificação e valorização da cultura dentro do contexto educacional. De acordo com Costa (2009): À medida que a pessoa com deficiência auditiva passa a ter acesso à educação, o próprio conceito de deficiência passa a ser revisto, deixando de ser compreendido como incapacidade para uma condição de desvantagem, a qual precisa ser suprida com práticas diferenciadas e desenvolvimento tecnológico. (p.40). Sendo assim, é a compreensão das diferenças aqui apresentadas que possibilitará ao professor entender quais as dificuldades de seus alunos e qual a melhor maneira de ajudá-los a aprender, construindo as bases de uma educação inclusiva de qualidade que perceba o aluno surdo em sua individualidade, dando a ele a condição para se desenvolver cognitivamente e socialmente. 3 HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DOS SURDOS Desde os primórdios da humanidade há registros de pessoas “diferentes”, ou seja, aquelas que estavam fora dos padrões da sociedade. Eram consideradas dentro da normalidade aquelas pessoas com estatura similar aos outros, com todos os membros, com capacidade de ver, ouvir, falar, pensar e de procriar a espécie. Todas aquelas que não faziam parte desse padrão eram consideradas “anormais”. Tudo isso envolve as percepções da sociedade, como os conceitos de ética e moral, que estão ligadas à época vivenciada. Associam-se também os valores culturais e religiosos como influência. Dentro do contexto religioso há registros de que na trajetória educacional dos surdos, os padres, monges e frades tiveram um papel importantíssimo, pois eles passaram a ensinar os surdos e as pessoas com deficiência. Essa ação dos religiosos fez com que se iniciasse uma nova era na 11 história dos surdos, pois deu-se os primeiros passos para a integração em sociedade com o objetivo de oportunizar o acesso à educação e ao trabalho aos surdos. Na Grécia antiga, na qual se cultuava o corpo e a beleza física, as pessoas com deficiência eram afastadas da sociedade, sendo privadas do convívio social e posteriormente atiradas ao rio Tibre. Segundo Silveira (2012), as pessoas com deficiência eram vistas como um perigo à sociedade, já que eram incapacitadas de procriar a própria espécie. Em algumas culturas as pessoas com deficiência eram associadas a imagens demoníacas, a forças sobrenaturais que as levavam a serem imperfeitas e associadas também com bruxaria e feitiçaria. No século XIX, há registro de algumas tentativas de recuperação e reconstrução de membros; em alguns casos não só de membros, mas também a reconstrução do psíquico. 3.1 A História da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) No ano de 2010, o IBGE constatou que existia aproximadamente 9.722.163 milhões de brasileiros com problemas de audição, sendo que 2,6 milhões eram surdos. A Libras é uma das línguas utilizadas no Brasil e reconhecida nacionalmente pela Lei nº 10.436/2002. No entanto, ainda há um número relevante de pessoas que vê a Libras apenas como mímica, gestos soltos no ar, movimentos sem nexo ou, ainda, simplesmente uma cópia fiel da língua portuguesa. Pesquisas na área da linguística aplicada apontam que há uma complexidade na estrutura gramatical da língua, inclusive ao que se refere às formas de expressão e a sua contextualidade, assim como qualquer outro idioma ou língua oral, conseguindo expressar ideias de diversos níveis de compreensão e complexidade. Em 2005 ocorreu um fato importante para a comunidade surda no Brasil, a regulamentação do Decreto n° 5.626/2005 que regulamenta e oficializa a difusão da língua de sinais e a insere como disciplina obrigatória nas instituições de ensino, para a formação de professores, instrutores de libras. Além disso, esse decreto auxilia na divulgação da língua de sinais brasileira e do português para as pessoas com deficiência auditiva/surdos, nos cursos de formação de tradutores e intérpretes de libras, assim como, garante o direito ao acesso à saúde e à educação para surdos. 12 É importante lembrar que a Libras foi criada a partir da língua de sinais francesa. Com a vinda do francês Eduard Hernest Huet para o Brasil, que foi aluno do Instituto de Paris, a educação de surdos teve início durante o segundo império. Nessa época, promoveu-se a Libras, com forte influência da França. No entanto, não havia escolas especiais para surdos, por isso Huet solicitou ao imperador Dom Pedro II um estabelecimento para educar os surdos brasileiros. No dia 26 de setembro de 1857 foi fundado o instituto de surdos-mudos do Rio de Janeiro, atualmente conhecido como Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). A partir desse momento, o Brasil deu seus primeiros passos para a educação de surdos, utilizando o ensino do alfabeto manual. Em meados de 1911, o INES adotou a metodologia do oralismo para que os surdostivessem a oportunidade de se comunicar e conseguir com eficácia expressar suas vontades e pensamentos. 3.2 Metodologia Oralista Entre 1930 e 1947, o doutor Armando Paiva Lacerda desenvolveu sua metodologia com base na oralização, a qual nomeou de pedagogia emendativa. Acreditava-se que a oralização era a única forma de inserir o surdo na sociedade. O processo pelo qual uma sociedade expulsa alguns de seus membros obriga a que se interrogue sobre o que, em seu centro, impulsiona essa dinâmica (CASTEL, 1998 apud QUADROS, 2006, p. 14). No INES, ainda na gestão de Lacerda e para o êxito de sua metodologia, os surdos eram submetidos a testes que tinham como finalidade a identificação do nivelamento da inteligência ou a aptidão para o exaustivo processo de oralização. E, de acordo com as capacidades cognitivas, os surdos eram separados em grupos. O 13 nivelamento cognitivo era necessário, pois era o meio encontrado para garantir o sucesso do método pela pedagogia emendativa. Após 100 anos de existência, o INES contou com o primeiro profissional na área da educação, a diretora e professora Ana Rímoli de Faria. Para a época foi uma grande inovação, principalmente com a implantação do curso Normal de formação de professores para surdos. No país o curso tornou-se referência, tinha duração de três anos e sua base era voltada para a metodologia do oralismo. 3.3 Comunicação Total Em 1970, conheceu-se a terminologia comunicação total. A educadora Ivete Vasconcelos a trouxe para o Brasil, pois lecionava para surdos na universidade de Gallaudet e a utilizava. Algumas décadas após a breve passagem de Vasconcelos pelo território brasileiro, começou a ser difundido no país o bilinguismo. As pesquisas realizadas na área da linguística pelas educadoras Lucinda Ferreira Brito e Eulália Fernandes foram um grande incentivo para o desenvolvimento e a difusão da educação de surdos no Brasil (ALENCASTRO, 2018). Com o passar dos anos, a oralização foi perdendo a força no processo de ensino e aprendizagem dos surdos. Atualmente, nas escolas especiais para surdos não é utilizada a oralização; no entanto, algumas escolas disponibilizam o tratamento com fonoaudiólogo para as técnicas de oralização para aqueles que desejam “falar”. Atualmente nas escolas a LSB é fundamental para o aprendizado dos surdos, respeitando sempre as peculiaridades da língua e da cultura da comunidade surda. 3.4 Bilinguismo Em meados da década de 1980, surge o bilinguismo no Brasil. Muitos pesquisadores linguistas começaram a estudar e a discutir sobre esse novo método de ensino para surdos. Esta proposta reconhece o sujeito surdo e seu idioma, a língua de sinais; além disso, essa prática educacional proporciona percepções mentais, cognitivas e visuais e tem capacidade para analisar os conceitos de modo subjetivo e objetivo sobre as informações recebidas, respeitando as caraterísticas e regras gramaticais do idioma. 14 4 NOÇÕES DE LIBRAS A aquisição da língua brasileira de sinais pelas crianças surdas é algo que ainda nos inquieta, nos retira da zona de conforto. É algo que mostra, muitas vezes, diversas lacunas nos processos de aprendizado e ensino-aprendizagem; mostra as fragilidades de um processo de inclusão social falho, despreparado para uma sociedade diversa e diferente. A escola, assim como as demais instituições sociais, não está preparada para atender às especificidades linguísticas, culturais e identitárias dessa minoria que ora se apresenta. Neste capítulo, você aprenderá sobre as questões relacionadas à aquisição da língua brasileira de sinais pela criança surda, bem como os estágios que a compõe, os processos pelos quais ela passa e sobre a importância da Libras no cotidiano escolar. 4.1 Competências Linguísticas, Discursivas e Sociolinguísticas da Libras Cerca de 95% das crianças surdas são filhas de pais ouvintes, e essa condição acarreta uma série de questões que podem determinar sua trajetória escolar e, consequentemente, sua formação (SKLIAR, 1997). Prover o acesso à língua desde a mais tenra idade é essencial para garantir um desenvolvimento pleno e integral do sujeito, além de proporcionar sua percepção e interação com o mundo que o cerca. Quadros e Cruz (2011) apontam que somente 5% das crianças surdas são filhas de pais surdos e, por isso, possuem o input linguístico adequado no período de aquisição da linguagem. Neste ponto, trazemos para a reflexão o conceito de cultura surda, apresentado por Strobel no livro A Imagem do Outro Sobre a Cultura Surda, publicado em 2009. A autora define cultura surda como a forma de “[...] o sujeito surdo entender o mundo e modificá-lo a fim de torná-lo acessível e habitável ajustando-o com suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas [...]” (STROBEL, 2009, p. 27). Qual a relação da cultura surda com o uso da língua brasileira de sinais? Quando pensamos que a aquisição da língua pelas crianças surdas é análoga à das crianças ouvintes, nos causa estranheza quando recebemos um discente surdo em nossa sala de aula que não domina a língua brasileira de sinais (Libras). 15 As crianças ouvintes, logo ao nascerem, entram em contato com a língua majoritária — no nosso caso, a língua portuguesa —, na modalidade oral, por meio dos mais diversos canais. No entanto, a maioria das crianças surdas não possui esse contato linguístico desde o nascimento. A língua brasileira de sinais é um dos artefatos culturais apresentados por Strobel (2009) cuja importância é fundamental. Por isso, há a necessidade de uso da Libras desde o nascimento, para que essa criança cresça imersa em sua cultura e crie sua identidade. Infelizmente, essa é a realidade de apenas 5% das crianças surdas. Ao crescerem e se desenvolverem, tomando consciência de sua condição, alguns surdos passam a frequentar as associações e a se relacionar com seus pares e desenvolvem/adquirem os demais artefatos culturais, além da língua e da identidade. Pensando em contextos de aquisição de língua pelas crianças surdas, Quadros e Cruz (2011) nos apresentam três espaços onde há possibilidade de acontecer esse processo, são eles: o lar, a escola e a clínica, cada um deles com a sua importância, dependendo da história de vida da criança surda. No lar, primeiro local de contato com a língua, os bebês terão contatos com os pais, surdos ou não, mas que sinalizam. Algum outro familiar (tio, tia, avó ou avô, etc.) é fundamental nesse espaço. A escola pode oferecer um espaço que atenda às especificidades linguísticas desses indivíduos, por meio da presença de adultos surdos ou ouvintes, mas fluentes em Libras, e/ou da presença de outras crianças surdas para que a língua “aconteça” nas relações. Por último e não menos importante, a clínica é o local onde, por meio, preferencialmente, de uma abordagem oralista, a criança tem contato com a linguagem antes de ingressar à escola comum (QUADROS; CRUZ, 2011). Outro fator, além dos apresentados anteriormente, que influencia na aquisição da língua é o período em que a surdez foi detectada. Alguns diagnósticos costumam ser concluídos quando as crianças estão no 3º ou 4º ano de vida. Isso, comparado às 16 crianças ouvintes, faz as crianças surdas apresentarem atrasos no desenvolvimento da linguagem, comprometendo seu desenvolvimento integral e suas relações, pois, segundo Quadros e Cruz (2011), essa privação de linguagem nos primeiros anos de vida deixa sequelas sérias no desenvolvimento da linguagem. O sucesso ou fracasso desse processo depende, em grande parte, do acesso às informações que os pais/responsáveis têm sobre a língua de sinais e sobre a surdez. Essas informações despertam nos pais/responsáveis a consciência sobre a necessidade de a criança surda adquirir uma língua de modalidade viso-gestual, além de estabelecercomunicação com os filhos, viabilizando, assim, um ambiente linguístico adequado (QUADROS; CRUZ, 2011). Quadros e Cruz (2011) apresentam quatro estágios de aquisição de linguagem das crianças surdas, são eles: estágio pré-linguístico, estágio de um sinal, estágio das primeiras combinações e estágio de combinações múltiplas. O primeiro estágio ocorre quando as crianças surdas começam a balbuciar. É interessante que o balbucio ocorre tanto com as crianças ouvintes quanto com as surdas. Quadros e Cruz (2011) nos relata que o balbucio apresenta: [...] partes do sistema fonológico das línguas de sinais. O segundo estágio inicia por volta dos 12 meses e se estende até os 24 meses. Nesta fase, a criança se refere aos objetos apontando, segurando, olhando e tocando-os. [...] as primeiras produções incluem formas chamadas congeladas da produção adulta, ou seja, a criança usa uma palavra com um significado mais amplo (QUADROS; CRUZ, 2011). Após o período de 2 anos, as crianças surdas começam a produzir as primeiras combinações de sinais, com o intuito de descrever ações e acontecimentos do seu cotidiano. Quadros e Cruz (2011) apontam que, nesse estágio, as crianças surdas usam, de forma inconsistente, o sistema pronominal e a ordem verbo-objeto em sua sinalização. Esse estágio dura aproximadamente até o 30º mês de vida. O quarto estágio é o das múltiplas combinações. Nesse período, há uma “explosão de vocabulário”, e as crianças iniciam o processo de produção de frases curtas e sentenças. É importante que a criança surda esteja em um ambiente linguístico adequado para que possa ter condições naturais de aquisição de linguagem e desenvolvimento integral. 17 4.2 Recepção e Produção da Libras As práticas de produção e recepção da Libras estão relacionadas ao contato com seus pares linguísticos, de preferência surdos adultos e sinalizantes. As crianças surdas precisam desse referencial para se reconhecerem enquanto surdas e linguisticamente diferentes, a fim de interagir e modificar o mundo que as cerca. Esses adultos servirão como um modelo a ser seguido linguística e culturalmente (MARTINS, 2019). Tendo explicitado anteriormente que cerca de 95% das crianças surdas são filhas de pais ouvintes, a língua de sinais, em grande parte dos lares, não circulará com a devida frequência e importância, ou seja, as crianças surdas terão acesso tardiamente à Libras, por isso a importância da presença de um adulto surdo. É importante que os pais ouvintes aprendam a Libras para se comunicarem com seus filhos, minimizando, assim, as barreiras comunicativas e informacionais. Ao atingirem a idade escolar, muitas crianças surdas chegam à escola sem uma língua adquirida, pronta e internalizada. O paradigma atual é o de uma escola inclusiva, uma escola para todos, uma escola que viva e promova a diversidade; uma escola onde essa diferença é valorizada, é estimulada, é trabalhada nos currículos e nas relações existentes nesse templo do saber. Contudo, é uma escola cuja língua majoritária é a língua portuguesa, uma escola cujo currículo é pensado por e para ouvintes, uma escola cujas práticas, métodos e avaliações também são pensados por e para ouvintes. E os discentes surdos, onde estariam nesse espaço do saber? Por meio de qual língua adquirirá os conhecimentos curriculares e manterá as relações estabelecidas? Como estão sendo pensadas as especificidades dos discentes surdos na escola para todos? 4.3 A Libras nas escolas No ano de 1996, foi publicada a Lei nº 9.394, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996). No corpo dessa legislação, é facultado ao discente estudar na escola mais próximo da sua residência, além de adaptações curriculares e atendimento educacional especializado, quando necessário. Uma reflexão: sabendo que a criança surda precisa estar em contato com seus pares 18 linguísticos, quem garante que na escola próximo da sua residência haverá outras crianças surdas regularmente matriculadas? No ano de 2002, a língua brasileira de sinais (Libras) é reconhecida como meio de comunicação e expressão da comunidade de surdos do Brasil por meio da publicação da Lei nº 10.436, também conhecida como Lei de Libras (BRASIL, 2002). Na constituição dessa legislação, a Libras passa a ser disciplina obrigatória nos cursos de formação de professores (licenciaturas e magistério) e fonoaudiólogos, além de optativa nos demais cursos de graduação. É provável que a Libras ainda não seja uma disciplina obrigatória nas escolas de educação básica de nosso país por ser considerada um meio de comunicação de um determinado grupo social. O Decreto nº 5.626, de 2005, que regulamenta a Lei de Libras, apresenta a possibilidade de o ensino para as crianças surdas ser ministrado em Libras do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental, além das formações para professores, intérpretes, instrutores e outros atores da educação de surdos (BRASIL, 2005). Chamo a atenção para o inciso I do art. 22º do referido Decreto: [...] escolas e classes de educação bilíngue, abertas a alunos surdos e ouvintes, com professores bilíngues, na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental”. No parágrafo, primeiro define escolas ou classes bilíngues: “São denominadas escolas ou classes bilíngues aquela em que a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo [...] (BRASIL, 2005, documento on-line). Escola inclusiva ou bilíngue? Instrução em Libras ou em língua portuguesa? Como pensar esse quebra-cabeça da educação de surdos? Uma escola bilíngue para surdos não seria uma escola especial? Estaríamos regredindo, uma vez que a escola especial data do período do paradigma da integração, ou seja, anteriormente à década de 1990? A escola comum (inclusiva), em que atualmente os discentes surdos estão matriculados, é uma escola cuja língua de instrução é a língua portuguesa, nesse caso, não estariam eles (surdos) sendo excluídos de todo o processo educativo? Línguas diferentes e com status diferentes se tensionando dentro do mesmo espaço. 19 Ora esse sujeito tem o direito de estudar próximo à sua residência, ora de estar junto a seus pares, ora ter sua instrução em Libras, ora...., ora..., ora.... As legislações vigentes não dialogam entre si e fazem a educação desses indivíduos ser um complexo labirinto a ser vencido. A comunidade surda (i.e., alunos surdos, professores surdos, professores ouvintes bilíngues e intérpretes) defendem um modelo de educação bilíngue tendo a Libras como língua de instrução e a língua portuguesa na sua modalidade escrita como segunda língua, mas vale ressaltar que esse modelo é adotado em escolas de/para surdos e, no Brasil, nem todas as cidades do país possuem escolas que trabalham nessa perspectiva. No processo inclusivo, o ensino da Libras é importantíssimo, uma vez que, em grande parte das escolas comuns, o discente surdo é o único falante da língua de sinais, não havendo nenhum par linguístico. Esse ensino parte do pressuposto de que é por meio da comunicação e da interação com o outro que acontece o desenvolvimento intelectual, cognitivo e linguístico, além do aprendizado com qualidade. É necessário também que a escola incentive e pratique a pedagogia da diferença, de modo que comunidade reconheça a diferença linguística e cultural de seus alunos (MARTINS, 2019). Para que os indivíduos surdos alcancem níveis satisfatórios de aprendizado, relacionamento e desenvolvimento integral, a escola precisa criar estratégias adequadas para o processo de ensino-aprendizagem, buscando metodologias e práticas que potencializem o uso de recursos visuais, além de avaliações condizentes com as especificidades linguísticas e a criação de políticas que valorizem seus artefatos culturais, essenciais para seucrescimento. 20 4.4 (In)conclusões Pensar as questões referentes à surdez e ao ensino da Libras são desafiadoras. Procuramos, no decorrer deste capítulo texto, apresentar alguns elementos que compõem essa complexidade. Desde os lares até as escolas, há uma série de entraves que tencionam as relações entre surdos e ouvintes, por exemplo: língua, cultura, identidade(s), entre outros. As crianças surdas, desde o nascimento até o ingresso nas escolas comuns, percorrem caminhos de aquisição de linguagem completamente diferentes, levando- se em consideração os ambientes em que cresceram e se desenvolveram. Enquanto uma criança surda, filha de pais surdos, adquire linguagem dentro do tempo esperado (concluindo todos os estágios de aquisição no período estabelecido), as crianças surdas filhas de pais ouvintes, em sua maioria, têm essa aquisição tardia, uma vez que os pais podem não ter contato com a Libras, comprometendo etapas de seu desenvolvimento. Na área educacional, percebe-se que, atualmente, os surdos encontram-se em conflito com a política de inclusão, uma vez que não são atendidos pela pedagogia da diferença e não têm suas questões linguísticas e culturais atendidas nos espaços do saber. A inclusão ainda não os percebe como sujeitos que demandam práticas escolares diferenciadas, e muito menos os enxerga como indivíduos cultural e linguisticamente diferentes (MARTINS, 2019). Há uma violência simbólica no processo educacional quando, por exemplo, há a imposição de uma língua (língua portuguesa) sobre outra (língua brasileira de sinais). 21 De acordo com Martins (2019), a escola precisa repensar suas práticas, métodos, currículos e avaliações para que contemplem as especificidades dos discentes surdos, além de incentivar o uso da Libras em seus espaços e entre seus atores. Assim, um espaço que oferece possibilidades linguísticas para os surdos pode proporcionar um melhor aprendizado e gerar um sentimento de pertencimento. 5 A PRÁTICA DE LIBRAS Neste capítulo, você refletirá acerca de como as experiências visuais são fundamentais para a pessoa com surdez e como auxiliam na comunicação e na aprendizagem. Ouvintes são tão acostumados a viver no mundo barulhento que nem percebem a importância que isso tem em seu dia a dia. Por exemplo, ouvir música e ao mesmo tempo realizar outra tarefa é algo muito comum. Já para o surdo, ir ao teatro ou ao cinema e conseguir acompanhar a fala e as ações que acontecem ao mesmo tempo é muito difícil. É preciso fazer escolhas, ou olhar para o intérprete, quando tiver, ou tentar apenas acompanhar os movimentos e, assim, buscar a compreensão do que está acontecendo. Em alguns dias não estamos bem, de saúde ou porque algo aconteceu, e, ao chegar ao trabalho ou à escola, por exemplo, optamos por ficar mais quietos e esperar que ninguém perceba. Entretanto, quando tem uma pessoa com surdez por perto, isso se torna praticamente impossível, pois a primeira pergunta que surge é: o que você tem? Está tão triste hoje. Para as pessoas com surdez, nossas expressões faciais e corporais, na maioria das vezes, dizem mais do que qualquer palavra ou sinal. Por 22 isso, quando passamos a conviver mais com surdos, precisamos nos atentar a esses simples detalhes, que, na verdade, fazem muita diferença. Para o surdo, no entanto, isso também precisa ser aprendido, assim como para os ouvintes que ingressam na comunidade surda. Por isso, quanto mais cedo a criança surda estiver em contato com a língua de sinais, conhecer e vivenciar experiências com surdos, tanto na escola quanto na sociedade no geral, maiores serão as possibilidades de desenvolver sua identidade surda. 5.1 Experiências Visuais: Formas de Interagir e Se Constituir Com o Outro A diferença é algo positivo, pois somos todos diferentes e, ao mesmo tempo, nos constituímos por meio dessas diferenças. Olhar a surdez por esse viés favorece a compreensão de que os sujeitos surdos se diferenciam dos ouvintes, sim, talvez pela comunicação, pelo modo de agir ou simplesmente pelo modo de ver o mundo, mas eles não deixam de ser seres humanos como qualquer outro. “Entender a surdez e os surdos a partir da diferença significa uma inversão do olhar da exclusão pelo isolamento no mundo do silêncio, passando a entender a surdez como uma experiência e uma representação visual [...]” (GIORDANI, 2012, p. 66). A comunidade ouvinte tem seus costumes e hábitos permeados por experiências auditivas, já a comunidade surda, por meio de experiências visuais. Ambas se compõem de artefatos culturais muito parecidos, diferenciados, em sua maioria, pela forma de expressão e recepção das informações. Por exemplo, para o ouvinte, o sentido da música está na melodia que acompanha a letra, e, sem isso, torna-se difícil compreendê-la. Já para o surdo o que passará essa “melodia” será a forma de sinalizar, o movimento corporal e a composição de sinais do intérprete é que possibilitarão que a emoção seja ou não sentida pelo surdo. Cada ritmo precisa ser sinalizado com um movimento corporal diferenciado, por exemplo, quando for pagode, o corpo precisa se movimentar da forma como a melodia é percebida pelo ouvinte. Assim acontece com cada estilo musical, por isso nem todo profissional se dispõe a traduzir uma música, pois precisa mergulhar e se apropriar daquele ritmo para conseguir repassar. Quando isso não acontece, se torna apenas uma simples sinalização, e não uma música em Libras. 23 No caso das histórias, quando narradas oralmente, a fala das personagens, a mudança de uma para outra, a organização da história e o gênero são percebidos pela entonação de quem lê ou conta. O ouvinte percebe quando não há um preparo prévio ou quando a pessoa que narra a história não o faz com destreza. Quando elas são narradas ou contadas por meio da língua de sinais, esses aspectos são passados por meio do corpo. Inicialmente, é feita a organização da história no espaço, ou seja, os elementos que a compõe vão sendo distribuídos no espaço, à frente de quem sinaliza. A partir disso, toda a história vai se construindo, e, para demonstrar quando um ou outro personagem está falando, o posicionamento é usado, o que se dá por um leve movimento de corpo; em relação à entonação, ela ocorre por meio da intensidade dos sinais e do uso das expressões faciais e corporais (FALKOSKI, 2019). Outro exemplo são os jogos, para os quais existem diferentes modalidades: Olímpiada, Copa do Mundo, competições em cada modalidade esportiva, entre outros, pensando nos ouvintes. A comunidade surda normalmente organiza uma olímpiada escolar ou olímpiada de surdos, a primeira organizada entre escolas e instituições de ensino que atendam surdos, já a segunda conhecida como Surdolimpíadas. Elas ocorrem a cada 3 anos em um país diferente, sendo importante destacar que são diferentes modalidades disputadas e que o Brasil vem se destacando ano após ano; agora também têm sido organizadas no Brasil, entre os estados. Muito se discute o motivo de fazer separado de outras pessoas com deficiência, porém, quando se pensa na principal diferença do surdo para os ouvintes, aí começa a fazer sentido: a língua. Principalmente se pensar na organização das regras e instruções que são feitas por meio da língua de sinais: não seria justo e fácil que, em um jogo entre surdos e ouvintes, o primeiro grupo recebesse dicas e orientações auditivas durante todo o jogo, e o segundo grupo, não. Ao falar desse tópico, torna-se necessário fazer uma ressalva quanto à divulgação esportiva, visto que dificilmente os noticiários trazem notícias ou a cobertura desses encontros de pessoas surdas, pois ainda se dá pouca importância para esses eventos, mesmo sendo de conhecimento da sociedade a existência de uma comunidade surda. 24 Observar esses aspectos consiste em olharpara a diferença, perceber que não são músicas, histórias ou jogos diferentes, mas sim a forma como acontecem e são organizados. Em algumas situações, é possível contar com a tradução e a interpretação sem grandes prejuízos, já em outras, não. Esse fator precisa ser levado em consideração, pois nem sempre a diferença se resolve apenas com a presença de um intérprete. É diferente um surdo assistir a uma peça de teatro com personagens sinalizando e assistir a mesma peça com intérprete. No primeiro caso, se olhar para a fala-sinalização, perderá a ação, e vice-versa. Além dessas diferenças, outra que se destaca muito é a língua utilizada pela comunidade. De acordo com Giordani (2012, p. 71), “A comunidade de surdos se identifica essencialmente pela língua que usa [...]”, essa língua é que auxiliará, juntamente com outros aspectos culturais, na construção da identidade surda. No caso do Brasil, usa-se a Língua Brasileira de Sinais, também conhecida como Libras. Todavia, deve-se deixar claro que cada país tem a sua língua, porém todas seguem basicamente os mesmos princípios quanto à sua composição de fonologia, morfologia e sintaxe. O ser humano não nasce sabendo e dominando os conhecimentos necessários para viver em sociedade, esses conhecimentos precisam ser ensinados e aprendidos. As possibilidades de aprendizagem e de ensino estão disponíveis para todas as pessoas? Sim, a possibilidade de aprender sempre está disponível. No entanto, elas nem sempre são proporcionadas, principalmente, para a criança com deficiência. Muitas vezes, julga-se que algumas pessoas não podem ou não conseguem aprender. Segundo Mazzotta e D’antino (2011, p. 379): Situações de segregação, marginalização ou exclusão, de quem quer que seja, concretizam atitudes que se configuram como violência simbólica. [...] Historicamente, as pessoas que apresentam diferenças muito acentuadas em relação à maioria das pessoas constituem-se alvo das mais diversas 25 estratégias de violência simbólica. Um dos segmentos populacionais reiteradamente colocados nessa posição tem sido o composto de pessoas com deficiências físicas, mentais, sensoriais ou múltiplas, além daquelas que apresentam outros transtornos de desenvolvimento. As pessoas com surdez já passaram por diferentes momentos ao longo dos tempos, e aos poucos estão construindo e conquistando o seu espaço na sociedade, porém essa não é uma tarefa fácil, pois exige dedicação, paciência e muita compreensão. Entretanto, também exige que as pessoas em geral se coloquem no lugar do surdo, desenvolvam a empatia, o respeito ao próximo. Toda pessoa tem direito a aprender, mas é fundamental ter alguém que ensine, e esse papel precisa ser desempenhado pela sociedade. Segundo Kraemer (2012, p. 84), São as diversas condições sociais, econômicas, culturais, tecnológicas que interferem na constituição de cada indivíduo. A partir de suas interações e das condições que possibilitam essas interações, cada sujeito internaliza formas específicas de se relacionar com os outros, com o meio e com ele próprio [...]. No entanto, para que isso aconteça, a sociedade precisa estar disposta a se tornar mais acessível e mais inclusiva verdadeiramente, não apenas dizendo que existem escolas inclusivas ou que existe acessibilidade para algumas situações e pessoas. Precisamos construir, ou melhor, tornar, a sociedade de todos, para todos. Quantas vezes se encontra alguém que saiba a língua de sinais ou um intérprete em qualquer lugar? Todos os serviços estão disponíveis à comunidade em geral? Uma consulta médica, uma sessão de cinema, uma instituição bancária, entre outras, tem meios para atender à comunidade surda? Independentemente de ser uma pessoa que não precise de adequações ou uma que precise, aqui, nesse caso, esse preparo seria por meio do uso da língua de sinais. Até mesmo em escolas e instituições que oferecem cursos na área e que se dizem preparadas para atender à diferença, na verdade, não estão. Poderiam ser relatadas diversas histórias de surdos em relação a esses espaços, mas penso ser importante apenas destacar que, ao mesmo tempo que estamos evoluindo, com novas descobertas, novas tecnologias, estamos deixando de lado o mais importante: o ser humano que precisa da proximidade, do contato visual, do olho no olho para receber e expressar informações, sentimentos, emoções ou desejos. Foram criados diversos aplicativos que visam ao desenvolvimento tecnológico da comunicação, mas 26 as pessoas esquecem que a comunicação precisa ser feita entre pessoas, não por meio de aparelhos, mas sim pessoalmente. Um aplicativo, por exemplo, não usa expressão facial ou corporal ao dar um sinal. Pensando na prática, o sinal de “triste” não é composto apenas por uma configuração de mão, articulação ou ponto de contato. Ele necessariamente precisa da expressão fácil de tristeza e da expressão corporal de encolhimento, ou seja, o sinal, para ter seu sentido compreendido, necessita de todos esses parâmetros. 5.2 Língua de Sinais: Artefato Cultural e Social O uso da língua de sinais parte do pressuposto da interação visual, ou seja, os sinais são produzidos e recebidos de forma visual ou tátil, no caso de quem, além de não ouvir, também não enxerga, conhecidos como pessoas com surdocegueira. Por vezes, o ouvinte não se dá conta de aspectos simples na comunicação, mas que fazem toda a diferença para a pessoa surda, como a forma de sinalizar, a composição da frase e dos personagens no espaço, a vestimenta e os acessórios utilizados durante a fala. Faz-se necessário mencionar um grupo que tem começado a aparecer mais na sociedade e que, de certa maneira, muitas vezes faz parte da comunidade surda: as pessoas com surdocegueira — principalmente quando nascem surdas e vão perdendo a visão com o passar dos anos (FALKOSKI, 2019). Existem dois movimentos distintos, aqueles que se consideram pessoas com surdocegueira e aqueles que se consideram surdos com baixa visão. Dessa forma, é preciso compreender que a forma de comunicação se aproxima muito da comunidade surda, porém, nesses dois casos, ou a pessoa fará uso da língua de sinais tátil, ou da 27 língua de sinais em campo reduzido. Contudo, da mesma forma, os parâmetros da língua devem ser respeitados e seguidos para que haja sua correta compreensão. De acordo com Paixão e Alves (2018, p. 48), “A visão de que a comunidade surda é uma minoria linguística é muito importante porque interfere no modo de lidar com a surdez, sobretudo, na educação e no modo de interagir com o surdo. Por outro lado, demonstra um modo de constituir-se surdo [...]”. Hoje, no Brasil, pode-se dizer que ainda são poucos os ouvintes usuários da Libras, embora tenham sido criados cursos envolvendo o aprendizado da língua. Todavia, as dificuldades persistem, pois, situações como ir a um médico ou a uma loja acabam tornando difícil a vida da pessoa com surdez, devido ao fato de esta depender sempre de um intérprete ou familiar que saiba a língua e possa fazer a mediação, o que faz haver sempre a dependência de alguém. Com o reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais como forma de comunicação da comunidade surda, muitos foram os avanços conquistados. A inserção da disciplina nos cursos de formação de professores e de fonoaudiologia, a oferta e o aumento de procura por cursos na área também são indícios de uma preocupação. Paixão e Alves (2018) ainda abordam o aspecto positivo da difusão da língua de sinais e, consequentemente, os espaços ocupados por surdos que antes eram destinados apenas a ouvintes. Hoje, por exemplo, se ouve falar de surdos na faculdade, no mestrado e no doutorado, inclusive ocupando cargos de mais destaque, não só de empacotador de mercado ou na produção de empresas, como somente acontecia. A sociedade tem muito a evoluir ainda, pois, em espaços básicosde saúde e educação, na maioria das vezes, não há a garantia de comunicação ou, então, recursos visuais que possibilitem a compreensão por parte da pessoa surda. Pense no momento da consulta médica, aquela em que você já se sente constrangido só de precisar falar com alguém sobre o seu problema, e ainda precisa ter uma segunda pessoa que possa sinalizar ou explicar o que você está sentindo ou o que está acontecendo, de modo que se tornam momentos desconfortáveis para todos os envolvidos, não só para o surdo (FALKOSKI, 2019). Além da sinalização, a Libras possui uma forma de ser escrita, o sistema SignWriting. Esse sistema é pouco utilizado dentro da comunidade surda, devido à sua complexidade, pois faz-se necessário desenhar o sinal com toda a sua 28 composição: configuração de mão, ponto de articulação e movimento, deixando de lado as expressões facial e corporal apenas. No entanto, segundo Paixão e Alves (2018, p. 48), esse sistema poderia ser utilizado “[...] para o letramento do surdo, uma vez que, é um sistema de fácil aprendizagem pelo surdo e que o letramento amplia o desenvolvimento do pensamento [...]”. Entretanto, ele se torna mais demorado do que a escrita por meio do português, o que faz a maioria dos surdos optar por não utilizá- lo. Nessa linha é que as escolas bilíngues surgem: para garantir o aprendizado da língua de sinais como primeira língua e do português escrito como segunda. No entanto, não é bem assim que tem acontecido, uma vez que, mesmo tendo uma proposta bilíngue, a maioria das instituições acaba não a colocando na prática, e, quando o surdo chega em locais que precisa também dominar o português escrito, acaba não dando conta. Existem muitas discussões a respeito do local mais adequado para os surdos estudarem: escola inclusiva ou escola especial bilíngue. A partir de vários estudos, tem-se apontado os benefícios de a criança estudar na escola onde sua língua esteja em evidência em todos os espaços e momentos enquanto estiver formando seu desenvolvimento inicial. Pensar na escola inclusiva é, além de garantir a presença de um intérprete ou professor bilíngue em sala de aula durante todos os momentos, favorecer o aprendizado da língua de sinais pelos alunos da turma, professores, funcionários e, quando possível, estendê-la a todos os alunos da escola. Professores que reclamam da não participação de seus alunos surdos nas aulas, professores que dizem que surdo só se interessa pelo que quer e não aceita o que ouvintes dizem não compreendem que a falta de comunicação, a falta de fluência em Libras por todos os envolvidos possa ocasionar, sim, a falta de interesse. O aluno surdo não consegue participar de todos os momentos da escola “sozinho”, pois, para interagir com seus colegas ou outros alunos e com seu professor, ele precisa de alguém que conheça a língua e possa fazer a mediação sempre. Segundo Thoma (2012, p. 97): As escolas têm sido apontadas como o lugar onde as comunidades emergem, e muitos as defendem como sendo de crucial importância para uma educação bilíngue que reconheça a surdez como diferença linguística e cultural, pois é no encontro com outros surdos que as crianças surdas se percebem como diferentes e não como deficientes e inferiores. Quando isoladas e convivendo apenas com ouvintes, essas crianças tendem a se olhar e a se narrar de modo negativo, como sujeitos incompletos, deficitários, inferiores. 29 Conviver com seus pares, com aqueles que compartilham da mesma forma de pensar, que usam a mesma língua, que têm costumes muito parecidos é o que empodera o surdo e lhe dá status de integrante e participante de uma comunidade, da sociedade, e não de apenas ser mais um, de alguém que compartilha de um mesmo espaço e que segue todas as regras e convenções de pessoas que não compreendem seu jeito de ser e agir. O surdo acaba desenvolvendo e aprendendo diferentes formas de interagir com o outro: usando mímica, gestos, desenhos e escrita conseguem entender e se fazer entender. Quando o aluno surdo quer permanecer em escola e espaços de ouvintes, ele se esforça, porém quando quer permanecer com os seus, acaba por frequentar apenas escolas especiais de surdos, clubes ou associações onde a sua língua é respeitada e tem o status de língua materna (FALKOSKI, 2019). 5.3 Influências Da Linguagem Visual Para o Desenvolvimento Cognitivo Da Criança Com Surdez A aquisição da linguagem e, consequentemente, o desenvolvimento da língua de sinais serão possíveis para a criança que for exposta a situações e ambientes onde esses aspectos estejam em evidência. A linguagem visual exerce uma forte influência no desenvolvimento cognitivo da criança. Inicialmente, isso se dá por meio do desenho: [...] a atividade do desenho nos primeiros anos da infância não deveria ser apenas mero passatempo. É importante que, em um determinado momento, os primeiros traços da criança comecem a fazer sentido e trazer algum significado, e é aí que entra o papel do adulto, da fala e da mediação. O desenho infantil passa a ser significativo pelo ato de nomear (ZERBATO; LACERDA, 2015, p. 429) Enquanto desenha, o mediador vai estabelecendo uma comunicação com a criança com surdez. Normalmente, após uma história infantil, brincadeira ou jogo pedagógico, esse momento, que é tido como lazer e divertimento, pode proporcionar situações ricas de aprendizagens, e não somente da língua. Paixão e Alves (2018) apontam que a língua de sinais se torna um importante instrumento de interação para o desenvolvimento humano, sendo necessário dispor de diferentes espaços nos quais ela possa ser adquirida e aperfeiçoada pelo sujeito, principalmente a criança. O primeiro lugar para esse desenvolvimento seria a família, 30 porém sabe-se que a maioria das crianças surdas nasce em famílias de pais ouvintes que não dominam a Libras, o que pode vir a prejudicar muito essas crianças. Em famílias de ouvintes com filhos surdos, um aspecto que pode favorecer muito a comunicação e a interação é o uso das expressões faciais e corporais, pois, mesmo sem dominar a língua, elas estão disponíveis. Algumas vezes associadas a gestos ou mímicas, essas expressões vão construindo o que chamamos de sinais caseiros. Muitas crianças chegam à escola com essa forma de comunicação inicial, que será aperfeiçoada e transformada em uma comunicação formal, possivelmente realizada por meio da língua de sinais. Todavia, destaca-se a importância de já ter vivenciado essas primeiras experiências, que são a base para uma comunicação futura, da mesma forma como acontece com a criança ouvinte, que tem seus primeiros contatos com a língua em casa. Quando a criança entra na escola, essa língua será melhor desenvolvida e aprendida. Segundo Paixão e Alves (2018, p. 51), “A instituição educacional é um espaço de formação humana e sociocultural para os indivíduos que dela participam quando propicia espaços de respeito e promoção de identidade e cultura dos grupos aos quais atende [...]”. Escolas onde se tenha um currículo bilíngue são fundamentais para essas crianças. Contudo, se esse ensino for proporcionado aos outros alunos e funcionários da escola, também favorecerá as relações sociais dessa pessoa com o ambiente no qual está inserida. Pensar no trabalho pedagógico do professor em sala de aula, tendo ou não a presença de intérprete ou professor bilíngue, torna necessário buscar diferentes recursos e materiais que possam facilitar o processo de aprendizagem. Focar em aspectos visuais e concretos proporciona aulas interessantes, mas não somente para os surdos, e sim para todos os alunos. O uso de vídeos para a explicação de conteúdos, imagens reais e desenhos, maquetes, enfim, diferentes formas de representação. De acordo com vários estudos, esses recursos e metodologias diferenciados favorecem a aprendizagem não apenas dos alunos surdos,mas de todos que terão acesso. Pode-se pensar no uso de método de experiência de diferentes situações: receitas culinárias, brincadeiras, passeios ou situações, sempre com registro. O uso de histórias também é um importante facilitador desse processo. É necessário propiciar ao aluno que ele seja o protagonista da sua aprendizagem, que ele possa 31 ajudar a conduzir as aprendizagens necessárias para cada momento. O profissional da educação precisa estar atento a tudo o que acontece em sala de aula, observar, anotar e refletir são ações básicas de qualquer professor, mas, quando se trabalha com crianças que necessitam de mais recursos, isso se torna fundamental. A partir dos erros e acertos é possível planejar e pensar quais seriam os passos necessários para um maior avanço e desenvolvimento do sujeito. Uma turma que tenha um aluno surdo com certeza terá momentos de aprendizagens mais significativas do que as outras turmas, pois a necessidade de buscar recursos visuais não favorece apenas o ensino de quem não escuta, mas sim de todo e qualquer aluno. Um exemplo que poderia ser pensado para o ensino do sistema solar: o professor utiliza, além da sua explicação falada, vídeos, imagens e até mesmo uma representação por meio de maquete desse sistema solar, com sua composição espacial, suas especificidades, o que faz todos os seus alunos abstraírem e compreenderem o conceito de forma mais rápida e concreta. Por vezes, esquecemos da importância do concreto e do visual. 5.4 Algumas Considerações Refletir sobre tudo o que acabou de ser apresentado pode favorecer ao professor uma mudança de visão, de postura, não apenas como profissional, mas como ser humano. Trocar conhecimentos e aprendizagens na diferença é isso, é aprender com o que o outro tem a oferecer, é usar outra língua, diferentes recursos e ir cada vez mais se aperfeiçoando. A língua de sinais exerce um papel crucial para a pessoa com surdez e a comunidade surda, não apenas por ser o principal meio de comunicação, mas também por dar conta de diferentes aspectos que não são possíveis de outra maneira (FALKOSKI, 2019). As experiências visuais são fundamentais para as pessoas com surdez, pois possibilitam a interação com a comunidade ouvinte e seus pares. Quantas vezes já nos comunicamos por meio de mímica, gestos ou desenhos, quando não sabíamos a língua de sinais e precisávamos nos comunicar com um surdo? Quantas vezes essa também não foi a única opção encontrada por falantes de línguas orais? Contudo, costumamos não dar importância, não dar bola, pois pensa-se que a Libras seja uma 32 língua sem status, sem reconhecimento, o que está totalmente errado. Ela vem, aos poucos, se constituindo enquanto forma de comunicação do surdo e vem conquistando seu espaço na sociedade. Existem diferentes leis que dão conta, no papel, da garantia de direitos, porém, na prática, isso nem sempre acontece, o que precisa mudar. Quando um programa de televisão que deveria ter intérprete não tem, está descumprindo uma lei de acessibilidade existente. No momento em que as escolas não contam com profissionais qualificados e com formação específica para atender os alunos surdos, está deixando de seguir os documentos legais (FALKOSKI, 2019). Esses são apenas dois exemplos, mas poderiam ser dados tantos outros, devido a tantas falhas que encontramos no sistema e que muitas vezes poderiam ser evitadas se as pessoas exercessem a função de se colocar no lugar do outro. 33 6 NOÇÕES DE LÉXICO, DE MORFOLOGIA E DE SINTAXE COM APOIO DE RECURSOS AUDIOVISUAIS Neste capítulo, você vai conhecer a estrutura da Libras e os seus principais componentes: léxico, morfologia e sintaxe. Você também vai ver quais são as diferenças entre uma frase construída em Libras e sinalizada e uma construída a partir do português, mas também sinalizada. Além disso, vai reconhecer alguns dos benefícios de utilizar recursos audiovisuais para o ensino da Libras, tanto para ouvintes quanto para surdos. Embora existam cursos de formação que envolvem o aprendizado da Libras, nem todos se dedicam ao estudo das suas propriedades linguísticas. Contudo, aprender uma língua não é apenas adquirir vocabulário; também é fundamental conhecer e compreender regras de estrutura e combinação de palavras/sinais (FALKOSKI, 2019). Pensar na estrutura gramatical de uma língua envolve compreender os seus princípios básicos de formação, por exemplo, saber o que é um sujeito, um verbo e um objeto e como eles podem se combinar a fim de compor uma sentença. Um surdo que aprende a Libras precisa dominar todos esses aspectos, pensando na sua língua como forma de expressão e recepção de informações, mas também necessita dominá-los na língua portuguesa, pois vai utilizá-la para escrever e ler. Ao longo deste capítulo, você deve ter em mente que se exige muito da comunidade surda e nem sempre se oferecem recursos a ela. Além disso, poucas pessoas dominam a Libras, utilizando, muitas vezes, o chamado “português sinalizado” no momento de se comunicar. Este texto tem como objetivo refletir acerca desses aspectos e oferecer indicativos de como reconhecer a estrutura gramatical da Libras e colocá-la em prática. 6.1 Libras e Sua Estrutura: Léxico, Morfologia e Sintaxe Nos estudos linguísticos, existem as áreas da fonética, fonologia, morfologia, sintaxe, semântica e pragmática. Inicialmente, você deve compreender brevemente o que cada uma estuda, pensando nas línguas orais, para posteriormente refletir sobre esses aspectos na Libras. De acordo com Quadro e Karnopp (2004): 34 a fonética das línguas orais estuda os sons da fala; a fonologia estuda os sons e como eles se combinam entre si formando elementos; a morfologia identifica a estrutura interna das palavras; a sintaxe busca reconhecer a estrutura da frase; a semântica tem como objetivo entender o significado das palavras e da frase; a pragmática estuda a linguagem em uso e os princípios de comunicação. Nas línguas de sinais, os estudos se concentram basicamente nas áreas de fonologia, morfologia e sintaxe. 6.2 Fonologia ou Léxico De acordo com Quadros e Karnopp (2004, p. 47), a fonologia tem como objetivo “[...] determinar quais são as unidades mínimas que formam os sinais [...]” e “estabelecer quais são os padrões possíveis de combinação entre essas unidades e as variações possíveis”. Ou seja, a fonologia se dedica a estudar a composição do sinal. O sinal se compõe a partir de cinco parâmetros: configuração de mão (CM), movimento (M), locação (L), orientação da mão (Or) e expressões não manuais (ENM). Pensar em um sinal sem um desses componentes é praticamente impossível, pois cada um exerce uma função primordial. Separados, eles não apresentam significado, porém quando juntos formam o sinal. A seguir, você pode aprender mais sobre esses parâmetros. Configuração de mão: diz respeito ao formato da mão. As letras também são configurações. Movimento: é a forma como as mãos se movem no espaço, podendo apresentar formas e direções diferentes. Locação: é o local onde os sinais são produzidos no espaço; pode envolver uma área como cabeça, troco e braços, mas sem se estender muito. 35 Orientação da mão: é o modo como as mãos estão organizadas, ou seja, para qual direção a palma fica posicionada — para cima, para baixo, para o corpo, para a frente, para a direita ou para a esquerda. Expressões não manuais: um dos itens mais importantes da Libras é a expressão dos movimentos da face, dos olhos, da cabeça ou do tronco; é isso que dá sentido ao sinal. Sem a união desses componentes, o sinal perde o sentido e pode mudar de significado. Por exemplo, como sinalizar que você está feliz se não usar a expressão facial de felicidade? Nesse caso, você poderia estar sendo irônico oucaçoando de alguém. Mudar o ponto de locação do sinal também pode ocasionar mudança de significado. No caso dos sinais de “aprender” e “laranja”, a única mudança que ocorre é em relação à locação: o primeiro é feito na frente da testa, e o segundo, na frente da boca. Essas mudanças são chamadas nas línguas orais de pares mínimos. Considere, por exemplo, as palavras “gato” e “gado” na língua oral. A mudança de uma letra ocasiona a mudança de significado, não é? Quando se diz uma palavra, vem um animal à mente; quando se diz a outra, vem outro. Na Libras, essa mudança ocorre quando um dos parâmetros se diferencia; no caso de “aprender” e “laranja”, a locação é a responsável por isso. Algumas pessoas pensam que a Libras se resume ao alfabeto manual, ou seja, aprendem os sinais das 26 letras e acreditam que já sabem sinalizar. Porém, esse recurso é utilizado apenas quando as palavras possuem um sinal ou para nomes próprios, caso em que se recorre à soletração manual; ou seja, a palavra é feita por meio do alfabeto datilológico da Libras. Por exemplo, para apresentar uma pessoa, faz-se o nome dela com as letras do alfabeto manual — “C-A-M-I-L-A” — e na sequência o seu sinal, se ela possuir. Em situações de conteúdo ou assunto muito específico, em que não há um sinal para determinada palavra, também se pode recorrer ao uso da soletração (FALKOSKI, 2019). Durante a produção de alguns sinais, algumas vezes é necessário mudar a configuração de mão e a locação. Por exemplo, para designar a escola, une-se dois sinais, “casa” e “estudar”, que formam um novo significado. Nesse caso, o segundo sinal é feito sem a repetição realizada quando se indica apenas o verbo “estudar”. 36 6.3 Morfologia Em relação à morfologia, Quadros e Karnopp (2004, p. 86) afirmam ser o “[...] estudo da estrutura interna das palavras ou dos sinais, assim como das regras que determinam a formação das palavras [...]”. Portanto, existem as palavras base e outras que vão sendo criadas a partir delas. É possível formar um novo sinal ou criar um a partir da união de outros. Os classificados são um importante recurso na Libras. Normalmente, são usados para indicar movimento de pessoas ou objetos, para posicionar pessoas e objetos na situação enunciativa, ou ainda para descrever aspectos de forma mais clara. Nem sempre existe um sinal que pode ser usado para descrever um objeto. Por exemplo, no caso do português, pode-se dizer “uma jarra oval”, mas na Libras ficaria muito estranho sinalizar “um jarro oval”. Assim, recorre-se ao uso de um classificador que dê conta desses três sinais e deixe visível a indicação de como é o jarro. Para sinalizar uma música ou poesia, que são gêneros que exploram muito as emoções, também se costumam usar os classificadores. Eles transmitem sentido e significado para quem recebe a informação de forma mais compreensível. Os movimentos são importantes pois a partir deles é possível mudar uma palavra de classe gramatical. Por exemplo, o verbo “sentar” apresenta movimento repetitivo, já o substantivo “cadeira” não necessita do movimento. O verbo “ouvir” também é uma palavra com movimento de repetição, enquanto o substantivo “ouvinte” é feito apenas uma vez. A partir de algumas regras morfológicas, novas palavras são criadas: regra de contato (por exemplo, “acreditar”); regra de sequência única (por exemplo, “pai” + “mãe” = “pais”); regra da antecipação da mão não dominante (por exemplo, “bom dia”) É importante destacar que cada uma dessas regras oferece contribuições fundamentais para a formação de palavras ou a mudança de significado. No caso dos numerais e negativos, na maioria das vezes, eles podem ser incorporados ao sinal que está sendo feito inicialmente, então não é preciso utilizar dois sinais. Por exemplo, no caso de “um dia” e “dois dias”, é possível fazer o sinal “dia” já com o número incorporado. No caso de “muitas pessoas”, não é preciso usar 37 os sinais para “muitas” e para “pessoas”; pode-se usar um classificador que dê conta dessas duas informações. Em relação ao “ter” e ao “não ter”, usa-se o sinal incorporado ao movimento facial negativo. Ou seja, não são feitos dois sinais (“não” e “ter”), mas um único que dá conta da informação por completo. 6.4 Sintaxe A sintaxe, segundo Quadros e Karnopp (2004, p. 127), se refere ao “[...] espaço em que são realizados os sinais, [então] o estabelecimento nominal e o uso do sistema pronominal são fundamentais para tais relações sintáticas [...]”. Ou seja, é possível posicionar pessoas e elementos no espaço e retomá-los durante o discurso sem ter de mencioná-los novamente, usando apenas um movimento corporal ou o apontamento. Costuma-se iniciar a explicação colocando os personagens em locais do espaço. Inicialmente, a sinalização conta com a distribuição dos objetos e pessoas na cena. Depois, enquanto a conversa ou tradução vai acontecendo, recorre- -se ao recurso de apontamento, que costuma ser muito utilizado durante qualquer situação, pois evita que os sinais se sobreponham um ao outro. Por exemplo, quando se está contando a história dos três porquinhos, inicialmente se distribuem as casas e os personagens no espaço. O porco com a casa de palha poderia ficar mais à direita; o porco com a casa de madeira, mais no meio; e o porco com a casa de tijolos, mais à esquerda. Coloca-se o lobo no enredo e a narração se inicia. Cada vez que um porco for retomado, não é preciso sinalizar quem ele é, apenas apontar e usar alguma característica, talvez. Mas a história será melhor compreendida se for feita dessa forma, sem confundir quem assiste. Outro exemplo: no caso de um diálogo entre uma mãe e um filho, é possível posicionar um à esquerda e outro à direita. Cada vez que um tomar o turno de fala, pode-se apontar ou fazer um leve movimento de corpo, virando-se para o lado em que o falante está. 38 6.5 Estrutura Gramatical: Aspectos Próprios da Libras A Libras segue alguns dos princípios básicos de qualquer outra língua no que diz respeito à sua estrutura gramatical. Porém, como conta com diferentes recursos, como classificadores e expressões não manuais, algumas mudanças são possíveis e aceitáveis. É importante você levar em conta que existe uma ordem básica para a narrativa ser estabelecida; os sinais tendem a ser feitos seguindo essa ordem. Costuma-se sinalizar iniciando pelo sujeito (S), seguido pelo verbo (V) e pelo objeto (O). Porém, mudanças são possíveis, dados todos os aspectos mencionados anteriormente. Na língua portuguesa, algumas frases são consideradas agramaticais e não pronunciáveis, mas na Libras, dependendo dos recursos utilizados, essas frases podem ser aceitas e até melhor compreendidas. Considere os exemplos a seguir. “Ele gosta de futebol” (português) — SVO “Ele futebol gostar” (Libras) — SOB Ambas as frases são possíveis e permitidas, cada uma na sua língua. Caso a primeira frase seja sinalizada da forma como está escrita, tem-se o caso do português sinalizado. Porém, quando a segunda é sinalizada, respeita-se o uso geral da Libras. Em alguns casos, é necessário repetir um sinal para que ele seja compreendido e reforçado: “futebol João gostar futebol”. Nesse caso, a palavra “futebol” possui um significado muito importante e a sua repetição oferece essa ideia ao interlocutor que recebe a mensagem. Mas isso depende da situação comunicativa e da intenção da frase; esta pode ser afirmativa, negativa ou interrogativa (FALKOSKI, 2019). 39 Como ordem dominante, tem-se: SOV, SVO e VSO. De acordo com Quadros e Karnopp (2004, p. 135), “A língua de sinais brasileira apresenta certa flexibilidade na ordem das palavras [...]”, sendo, portanto, aceitáveis outras possibilidades de formação. Porém, tais possibilidades precisam ser compreendidas por quem sinaliza e por quem recebe a mensagem.
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