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Metodologia do ensino de lutas LEONARDO VIDAL ANDREATO Este livro tem como objetivo promover um estudo refle- xivo das metodologias para a prática educativa das lutas, artes marciais e outras modali- dades esportivas de combate, pau- tando-se nos seus aspectos didáticos e pedagógicos, bem como técnicos e táticos. Além disso, busca discutir o histórico de cada uma dessas modalidades e sua inserção nos con- teúdos da Educação Física no âmbito dos ensinos curricular e não curricular. O objetivo desta obra não é tornar o leitor um especialista em cada uma das modalidades de luta analisadas, mas ajudá-lo a compreender as- pectos relacionados ao desenvolvimento histórico dessas modalidades, conhecer suas principais características e conduzir aulas e dinâmicas que contemplem essas importantes práticas. Código Logístico 59566 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6682-7 9 7 8 8 5 3 8 7 6 6 8 2 7 Metodologia do ensino de lutas Leonardo Vidal Andreato IESDE BRASIL 2020 CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ A574m Andreato, Leonardo Vidal Metodologia do ensino de lutas / Leonardo Vidal Andreato. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2020. 106 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6682-7 1. Luta (Esporte) - Estudo e ensino. 2. Artes marciais - Estudo e ensino. I. Título. 20-65391 CDD: 796.8 CDU: 796.8 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2020 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: master1305/EnvatoElements Leonardo Vidal Andreato Doutor em Ciências do Movimento Humano pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Mestre em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Fisiologia do Exercício pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Graduado em Licenciatura Plena em Educação Física pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 Conceitos, história e filosofia das lutas 9 1.1 Conceitos 10 1.2 Produção acadêmica 16 1.3 Formação e atuação profissional 20 1.4 Aspectos contemporâneos 23 2 Ensino das lutas na escola 30 2.1 Políticas públicas educacionais 31 2.2 As lutas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) 37 2.3 Propostas pedagógicas 43 2.4 Aspectos didáticos e pedagógicos 48 3 Lutas no Oriente 53 3.1 Lutas, espiritualidade e bushido 54 3.2 Wushu 58 3.3 Karatê 61 3.4 Judô 65 4 Lutas no Ocidente 71 4.1 Lutas, olimpismo, esporte e espetáculo 72 4.2 Boxe 76 4.3 Esgrima 79 4.4 MMA 82 5 Lutas no Brasil 87 5.1 Huka-Huka 88 5.2 Capoeira 91 5.3 Jiu-jitsu brasileiro 96 5.4 Luta marajoara 101 6 Gabarito 105 Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! Este livro tem como objetivo promover um estudo reflexivo das metodologias para a prática educativa das lutas, artes marciais e outras modalidades esportivas de combate, pautando-se nos aspectos didáticos e pedagógicos, bem como técnicos e táticos, das referidas modalidades. Além disso, busca discutir o histórico de cada uma delas e sua inserção nos conteúdos da Educação Física no âmbito dos ensinos curricular e não curricular. Desse modo, ao final da leitura deste livro, você, futuro docente, terá adquirido conhecimentos para embasar e conduzir aulas que contemplem o conteúdo das lutas. Para tanto, esta obra foi dividida em cinco capítulos. O primeiro capítulo pode ser considerado introdutório, pois apresenta uma discussão geral sobre as lutas, definindo conceitos importantes para a temática e explicitando as distinções entre termos como lutas, artes marciais, esportes de combate, brigas e guerras. Também são apresentadas informações relativas ao estado da arte da produção acadêmica relacionada às lutas, buscando identificar o papel do Brasil nesse cenário. Na sequência, são abordadas informações relevantes sobre o processo de formação e atuação dos profissionais que irão trabalhar com as lutas. Por fim, a última parte do primeiro capítulo é destinada à compreensão de como as lutas estão inseridas dentro da nossa sociedade atualmente. No segundo capítulo, iremos centrar nosso estudo nas lutas na escola. O primeiro passo será entender como estão organizadas as políticas públicas educacionais brasileiras. Na sequência, entenderemos como as lutas estão inseridas dentro dessas políticas públicas educacionais, com especial atenção à Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Feito isso, analisaremos algumas propostas pedagógicas e conheceremos alguns aspectos didáticos e pedagógicos relacionados ao ensino das lutas, de modo a proporcionar possibilidades de abordagem desses conteúdos, mesmo que o professor não seja praticante de alguma dessas modalidades. Os capítulos seguintes serão destinados às informações relativas às lutas, diferenciando-as quanto à origem e à posição geográfica. Nesse sentido, o terceiro capítulo irá expor informações relacionadas ao desenvolvimento, à evolução e às características técnicas de lutas de origem oriental, com análises do wushu, do karatê e do judô. O quarto capítulo também realiza o mesmo tipo de apreciação, mas com enfoque em lutas de origem ocidental, APRESENTAÇÃO 8 Metodologia do ensino de lutas elencando para isso o boxe, a esgrima e o mixed martial arts (MMA). Por fim, no quinto capítulo, nosso olhar será direcionado às lutas no Brasil, com análises da huka-huka, da capoeira, do jiu-jitsu brasileiro e da luta marajoara. Durante esta obra, você irá perceber que o objetivo não é que você se torne um especialista em cada uma das modalidades analisadas, mas que compreenda aspectos relacionados ao desenvolvimento histórico dessas modalidades, conheça as principais características técnicas e táticas presentes nessas lutas e consiga conduzir aulas e dinâmicas para contemplar essas importantes práticas de lutas orientais e ocidentais. Bons estudos! Conceitos, história e filosofia das lutas 9 1 Conceitos, história e filosofia das lutas Durante este livro, iremos falar sobre lutas, artes marciais e es- portes de combate. Para uma correta compreensão do conteúdo a ser trabalhado, é fundamental que ocorra um ajuste em nossa comunicação. Temos de falar a mesma língua. Para tanto, utilizare- mos a primeira seção deste capítulo para conhecer alguns concei- tos importantes sobre a temática (por exemplo: o que são lutas? O que são artes marciais? O que são esportes de combate? Existem diferenças de significado entre esses termos?). Após compreendermos as questões terminológicas, iremos co- nhecer o estado da arte na área de lutas, ou seja, o quanto existe de produção acadêmica, como é a qualidade dos estudos e qual é o papel do Brasil na produção de conhecimento relativo às lutas. Esse entendimento é importante para sabermos o grau de confia- bilidade das informações que serão discutidas. Na terceira seção iremos fazer uma análise sobre formação e atuação profissional nas lutas. Quem pode atuar com as lutas na escola?Quem pode atuar com elas fora da escola? Quais as prin- cipais dificuldades na formação do profissional que atua utilizando as lutas? Essas perguntas serão o tema da nossa análise. Por fim, a última seção irá abordar as lutas atualmente. O nosso objetivo será conhecer a realidade da inserção delas (principalmente dos espor- tes de combate) na nossa sociedade. Tal análise será fundamental para compreendermos a necessidade da aptidão para trabalhar com o ensino das lutas. Este capítulo é introdutório, com abordagens conceituais e re- lativas ao entendimento do cenário atual no que se refere a lutas, artes marciais e esportes de combate. Tome notas, pois isso facili- tará a sua aprendizagem. 10 Metodologia do ensino de lutas 1.1 Conceitos Vídeo No dia a dia, ouvimos e utilizamos os termos lutas e artes marciais em referência a diferentes situações, como “matriculei meu filho no judô porque acho que uma arte marcial vai trazer mais disciplina a ele” ou “sábado à noite assisti a uma luta que passou na TV”. Mas será que o emprego desses termos nos dois exemplos está correto? Existem dife- renças entre lutas, artes marciais e esportes de combate? A seguir, ire- mos discutir essas questões, mas de antemão já adiantamos que não existe um consenso entre os autores e pesquisadores da área. Alguns pontos ainda são alvo de discussões, os ditos dissensos. Por isso, iremos analisar os pontos comuns, que permitem realizar uma caracterização de cada termo. Existe também o uso do termo lutas em diferentes situações do nosso cotidiano, como “vou lutar por seu amor”, “você deve lutar con- tra essa doença”, “mais um dia de luta”, “está ocorrendo uma luta de classes” ou “estou lutando contra um vício”. Porém, essa abordagem é geral e não é foco de nossa análise, pois nos limitamos à discussão das lutas no que se refere às práticas corporais. LUTE POR SEUS DIREITOS Pa ul C ra ft/ Sh ut te rs to ck Lute como uma garota Go rb as h Va rv ar a/ Sh ut te rs to ck JUNTOS NA LUTA CONTRA A COVID-19 M uc hM an ia /S hu tte rs to ck Exemplos de lutas em outros contextos. Conceitos, história e filosofia das lutas 11 De início, vamos conhecer a definição de lutas apresentada nos Pa- râmetros Curriculares Nacionais (PCN) 1 . As lutas são disputas em que o(s) oponente(s) deve(m) ser sub- jugado(s), mediante técnicas e estratégias de desiquilíbrio, con- tusão, imobilização ou exclusão de um determinado espaço na combinação de ações de ataque e defesa. Caracterizam-se por uma regulamentação específica, a fim de punir atitudes de vio- lência e deslealdade. (BRASIL, 1997, p. 37) Vamos analisar dois pontos-chave dessa definição apresentada nos PCN. O primeiro aspecto que deve ser assimilado é a ideia de domina- ção, a qual é expressa na afirmação de que “o(s) oponente(s) deve(m) ser subjugado(s)”. Portanto, precisamos ter claro em mente que as lu- tas envolvem a noção de combate/confronto/disputa entre duas ou mais pessoas. O alvo deve ser sempre o corpo do adversário. Para que o domínio ocorra, podem ser utilizados diferentes técnicas, como bem apontado na definição dos PCN. Inclusive, podem ser utilizados equipa- mentos, como uma espada. Afinal, um confronto em batalha medieval com uso de espadas também pode ser considerado uma luta. Ainda, devemos entender que esse domínio pode ou não levar à morte. Em uma guerra, o objetivo central de um combate é tirar o inimigo do con- fronto; já em uma luta de boxe, o objetivo é fazer o adversário desistir da disputa, mas existem regras e um árbitro para zelar pela integridade física dos combatentes. O segundo aspecto a ser observado é a ideia de imprevisibilidade, a qual é expressa na afirmação de que o confronto envolve uma “combi- nação de ações de ataque e defesa”; ou seja, existe uma imprevisibili- dade, a disputa pode ser encerrada a qualquer momento (ex.: um soco, um chute, uma queda, uma chave articular), e a todo o momento os oponentes podem atacar e ser atacados simultaneamente. Isso difere de muitos esportes, como em um jogo de basquetebol, no qual o time que está com a posse da bola é quem ataca; para o outro time atacar, precisa tomar a bola. Nas lutas, ambos os atletas podem atacar e defi- nir o combate a qualquer momento. Pensando como telespectador, tal- vez esse seja um dos pontos mais atrativos em assistir a um combate, o resultado pode mudar a qualquer momento. No contexto pedagógico, é comum a realização de atividades envol- vendo um aluno apenas atacando e o outro unicamente defendendo. Nesse caso, o mais correto seria dizer que estamos trabalhando com Embora os PCN tenham dado espaço para a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), utili- zamos o primeiro por apresentar uma definição concreta de lutas, diferentemente do segundo documento, o qual discute mais detalhadamente como abordar as lutas, mas não apresenta uma definição. 1 12 Metodologia do ensino de lutas jogos de lutas, os quais têm por objetivo desenvolver um aprendizado nas lutas. No entanto, uma característica elementar das lutas, a impre- visibilidade, não está sendo englobada. Embora os PCN apresentem uma definição sensata de lutas, a parte que aponta alguns exemplos pode ser questionada. Analise: “podem ser citados como exemplo de lutas desde as brincadeiras de cabo-de-guerra e braço-de-ferro até as práticas mais complexas da capoeira, do judô e do caratê” (BRASIL, 1997, p. 37). Pense e reflita: a disputa de cabo-de-guerra pode ser con- siderada uma luta? Existe um domínio do adversário? O alvo é o corpo do adversário? Outro termo a ser compreendido é arte marcial. No início desta seção, fizemos uma pro- vocação para você refle- tir se era adequado o uso do termo arte marcial na fala de uma mãe que dizia que havia matriculado o filho no judô, pois acreditava que uma arte marcial iria ajudar o filho a desenvolver mais disciplina. De fato, é mais bonito e atrativo dizer que o fi- lho está praticando uma arte marcial do que dizer que o filho está praticando um esporte de combate. No entanto, esse ter- mo faz referência a Marte, o deus da guerra na mitologia romana. Ele recebe esse nome por conta da cor vermelha do planeta, sendo o vermelho associado a sangue e agressividade. Portanto, o con- ceito de arte marcial faz referência direta às artes de guerra (FRANCHINI; DEL VECCHIO, 2012). Para afirmar que um sistema de técnica de lutas (ex.: karatê, judô) é ou não uma arte marcial, é necessário conhecer a história de cada uma delas, o que não é o nosso objetivo agora. Esse tipo de reflexão e análise será possível quando você realizar alguma leitura sobre o contexto histórico das modalidades. O importante agora é você compreender que o termo marcial faz referência direta às guerras. Exemplo de arte marcial. lu ce lu ce /S hu tte rst oc k Representação do deus romano Marte. ite ch no /S hu tte rs to ck Conceitos, história e filosofia das lutas 13 Este é o ponto que gera mais discussão: o que é considerado ou não uma arte marcial? Alguns autores justificam o uso do termo arte marcial para as modalidades que carregam consigo uma herança dos princípios históricos e filosóficos do sistema marcial (RUFINO, 2012). Nesse sentido, tenha claro em mente que o uso do termo arte marcial para se referir a modalidades que não foram usadas em guerras pode ser alvo de críticas. Assim, em textos mais técnicos e acadêmicos vale tomar cuidado. O terceiro conceito a ser analisado é esportes de combate ou mo- dalidades esportivas de combate. Seu entendimento é simples, pois se refere à manifestação das lutas em seu modelo “esportivizado”, ou seja, envolve as características do esporte como uma manifestação cultural que tem regras pré-definidas, possui uma en- tidade reguladora e um sistema claro de classificação/ ranking (FRANCHINI; DEL VECCHIO, 2012). Por exem- plo, o judô é uma modalidade olímpica, a qual tem as regras bem estabelecidas. Os atletas entram na disputa e sabem que oobjetivo é projetar e dominar o oponente, e que receberão pontuações específicas de acordo com a efe- tividade das técnicas. No entanto, todos sabem (ou deveriam saber) que não é permitido segurar os dedos, puxar o cabe- lo, colocar o dedo no olho, morder o oponente ou proferir ofensas verbais. Essas regras são fiscalizadas por árbitros qualificados para a função. A modalidade segue as diretrizes de sua principal agência regula- dora, a Federação Internacional de Judô (FIJ). De acordo com a efetividade das técnicas, será definido um vencedor. Conseguiu perceber que a descrição do parágrafo anterior contem- pla características que são semelhantes a outros esportes? O mesmo não poderia ser aplicado ao futebol? Nesse esporte, existem 11 pes- soas de cada lado, uma bola e uma meta. O objetivo é, usando os pés, fazer a bolar passar por entre as traves. Cada vez que esse objetivo é alcançado, considera-se um gol. Não valem dedo no olho, puxão, mor- didas ou arranhões. Alguns árbitros fiscalizam o jogo. No Brasil, quem rege a modalidade é a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que por sua vez é subordinada à Federação Internacional de Futebol (FIFA). Quem fizer mais gols, vence o jogo; e quem tiver o melhor desempenho numa competição, é o campeão geral. Exemplo de esporte de combate. ssortsoint/Shutterstock 14 Metodologia do ensino de lutas Todas essas propriedades caracterizam uma modalidade como esporte. No caso das lutas, é preciso observar se uma modalidade cumpre esses requisitos para ser classificada como esporte de com- bate. O krav maga, por exemplo, é um sistema de combate desen- volvido pelos israelenses para ser utilizado em situações de guerra. As técnicas envolvem uso de facas e bastões e quase sempre o alvo são os pontos vitais, sendo permitidos dedo no olho e golpes nos genitais. Devido a essas características, é quase que inimaginável uma competição de krav maga. Além da compreensão dos conceitos de lutas, artes marciais e es- portes de combate, é relevante que você conheça os juízos relacio- nados a guerra e briga, pois muitas vezes esses termos também são empregados nas discussões sobre lutas. O termo guerra faz referência ao confronto entre povos ou nações. A Primeira Guerra Mundial foi iniciada entre dois grupos, os países da tríplice aliança (Alemanha, Itália e Império Austro-Húngaro) e os países da tríplice entente (Reino Unido, França e Império Russo). As guerras possuem motivos que vão além dos motivos particula- res e normalmente envolvem questões ideológicas, territoriais ou comerciais. É preciso compreendermos que quando se decreta uma guerra, o país inteiro entra nela. Para muitos de nós, é difícil com- preender um atentado/ataque contra pessoas que classificamos como inocentes, por não estarem pegando em armas. Contudo, a visão pode ser mais abrangente. Durante a Segunda Guerra Mundial, houve o Projeto Manhattan, destinado a desenvolver as primeiras bombas atômicas. Alguns rela- tos sugerem que esse projeto empregou diretamente mais de 13 mil pessoas, mas há quem estime que mais de 100 mil pessoas estiveram envolvidas direta e indiretamente no projeto. Nem todas essas pes- soas trabalharam especificamente no desenvolvimento da cápsula atômica. A maioria estava trabalhando no suporte do projeto, com alimentação e produção de roupas e equipamentos. Além disso, o su- porte financeiro do projeto era oriundo do pagamento de imposto do cidadão comum, que continuava trabalhando em seu pequeno co- mércio (padaria, restaurante, armarinho). Nessa visão mais ampla, podemos ver a interdependência de toda uma nação. No momento em que foram disparados os misseis Em um dos capítulos do livro A pedagogia das lutas: caminhos e possibi- lidades, o professor Dr. Luiz Gustavo Bonatto Rufino discute os consensos e dissensos relacionados ao uso dos termos lutas, artes marciais e modalidades esportivas de combate. RUFINO, L. G. B. Jundiaí: Paco Editorial, 2012. Livro Conceitos, história e filosofia das lutas 15 que bombardearam Hiroshima e Nagasaki, no Japão, as consequên- cias da ação não entraram na conta apenas do piloto que fez o dis- paro ou do comandante que deu a ordem da missão. A conta das mortes e o sofrimento foram compartilhados entre toda a nação, que trabalhou direta ou indiretamente no desenvolvimento da bom- ba atômica. Além do envolvimento de nações/povos, uma das características da guerra é liquidar o oponente o mais rápido possível, usando todos os meios disponíveis 2 . É importante destacar que nem toda arte marcial envolve luta corporal (ex.: tiro, arco e flecha). Diferentemente de guerra, as brigas são confrontos de pequeno porte, envolvendo duas pessoas ou um grupo pequeno de pessoas. Os motivos comumente são fúteis (ex.: brigas entre vizinhos, traições afetivas, desentendimento em bares). Não há regras em uma briga, po- dendo ser em condição de desigualdade (duas pessoas contra uma, uma pessoa armada contra outra desarmada). Agora que você domina os conceitos de lutas, artes marciais e esportes de combate, você também deve compreender que esses conceitos podem ser com- plementares, ou seja, um sistema de técnicas pode receber mais de uma classificação. Desde que respei- tada a característica básica de haver uma disputa direta na qual o corpo do oponente é o alvo, todas as mani- festações são classificadas como luta. Por essa razão, é comum um livro como este, que discute a metodo- logia do ensino das lutas, sem divisões iniciais entre lutas, artes marciais e esportes de combate. No entanto, uma luta também pode ser uma arte marcial, como o caso do karatê 3 , que foi utilizado como sistema de defesa de um povo (os camponeses de Okinawa). Portanto, o karatê é uma luta, mas também é uma arte marcial. Além disso, o karatê também possui seu modelo esportivo (re- gras, entidades reguladoras, sistemas de classificação), o que também faz dele um esporte de combate. Embora essa discussão possa ser considerada secundária, é neces- sário que você, durante sua formação, seja apresentado a ela, pois é algo existente na área de lutas. Exemplo de briga. Isso pode acontecer na escola, e o professor deve interferir. GrashicsGGGcoG /Shutterstock Desde 1863, foram realizadas convenções e tratados para de- finir normas e condutas a serem seguidas mesmo em tempos de guerra. Apesar disso, em tempos de guerra, muitas infrações são cometidas. Um bom exemplo é o Holocausto, provocado pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. 2 Utilizaremos karatê (e não a forma aportuguesada, caratê), pois é o termo usado pelas federações brasileiras mais conhecidas. 3 16 Metodologia do ensino de lutas 1.2 Produção acadêmica Vídeo Para uma melhor compreensão acerca de uma área de conhecimen- to, é imprescindível que se saiba qual o estado/cenário de pesquisas relacionados a essa área. Tal apreciação permite visualizar o quanto se sabe sobre o tema, ou seja, se existem muitas pesquisas sobre o tema. Naturalmente, alguns assuntos são mais pesquisados ou mais novos do que outros, e isso impacta diretamente a compreensão geral de cada assunto. Além disso, essa análise crítica permite conhecer o grau de confiabilidade das informações, ou seja, qual a qualidade metodoló- gica das pesquisas existentes. A depender da qualidade das pesquisas, podemos creditar maior ou menor nível de evidência, depositando as- sim mais ou menos confiança com base nas informações disponíveis. Esse modelo de exame comumente recebe o nome de análise do estado da arte. Algumas décadas atrás, vivíamos uma fase de dificuldade de aces- so às informações (científicas ou não). Atualmente, vivemos em uma era de informação, na qual o mais complicado é saber em que confiar. Por conta disso, é fundamental desenvolvermos uma capacidade crí- tica das informações que recebemos. Não adianta cobrar apenas das mídias, do governo ou das entidades reguladores para que sejam ado- tadas medidas para inibir divulgações de notíciasfalsas, tendenciosas e/ou distorcidas. É fundamental que o receptor das informações seja apto a avaliar criticamente o conteúdo que recebe. Agora, vamos analisar o número de estudos publicados envolven- do lutas. Uma revisão bibliométrica, publicada em 2010, buscou in- vestigar como se dava a produção acadêmica abrangendo as lutas nos principais nos principais periódicos (revistas científicas/acadêmicas) brasileiros na área de Educação Física. Como resultado, foi obser- vado que de todos os 2.561 artigos, apenas 75 abordavam as lu- tas, ou seja, 2,9% de toda a produção científica nacional (CORREIA; FRANCHINI, 2010). Com base nesses números, podemos afirmar que a produção na área de lutas ainda é baixa? Embora tenham sido encontrados apenas 75 estudos, esse número considera apenas a produção nacional. Como o pesquisador sempre busca dar maior visibilidade para sua pesquisa, existe a tendência de buscar uma publicação internacional, pois assim é superada a barrei- revisão bibliométrica: é um tipo de estudo que tem como objetivo identificar o estado da arte de uma área, apresentando número de estudos, tipo de estudos, países e autores com maior produção acadêmica, entre outras variáveis relaciona- das à publicação e divulgação científica. Glossário Conceitos, história e filosofia das lutas 17 ra do idioma português, restrito a poucos países. Logo, teríamos de investigar a produção internacional antes de fazer tal afirmação. Além disso, há um outro aspecto importante a ser considerado, que é quan- do a investigação foi conduzida. Na pesquisa em questão, de Correia e Franchini (2010), a bibliometria contemplou o período de 1998 a 2008, indicando o cenário daquele período. Vamos, então, analisar como se dá essa produção de conhecimento em um período mais recente. A Figura 1 mostra o número de estudos científicos publicados na base de dados Web of Science entre 2001 e 2019. Figura 1 Produção científica de estudos publicados referente às lutas Fonte: Elaborada pelo autor com base em Clarivate, 2020. 300 250 200 150 100 50 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 0 Na Figura 1, é possível observar que houve um aumento expressivo da produção nos últimos anos, especialmente a partir de 2011. No to- tal, o gráfico contempla o montante de 2.424 estudos científicos inde- xados apenas na Web of Science. Além dessa base de dados, um elevado número de estudos também é observado em outras bases científicas, como o PubMed, com 1.869 estudos, a base Scopus, com 3.807 estudos, e a base SPORTDiscus, com 3.001 registros em revistas acadêmicas. Nesse tocante, temos de considerar que nem todo estudo identifi- cado em nossa busca teve como objetivo direto a investigação sobre as lutas, tendo em vista que em muitos deles as lutas foram usadas como meio indireto, com a participação de praticantes ou atletas de esportes de combate sendo voluntários em pesquisas sem relação direta às lu- tas. Mesmo assim, podemos concluir que existe um número considerá- vel de estudos científicos abrangendo lutas, artes marciais e esportes de combate, contando com um crescimento expressivo a cada ano. 18 Metodologia do ensino de lutas Além de analisar o total de produção científica, é preciso especificar a análise, observando como é a produção em cada subárea, pois alguns temas são mais estudados que outros. Por exemplo, entre 1998 e 2008 os estudos que compunham a produção científica nacional na área de Educação Física envolvendo as lutas (75 artigos, equivalente a 2,9% de toda a produção) abordavam diferentes temas, sendo 40% inseridos na área de Biodinâmica, 32% nos Estudos Socioculturais do Movimento Humano, 10,7% na Pedagogia do Movimento Humano, 8% no Compor- tamento Motor, 8% no Treinamento Esportivo e 1,3% na Administração Esportiva (CORREIA; FRANCHINI, 2010). Além de considerar as subáreas de investigação, é preciso levar em conta qual modalidade de luta está sendo estudada. Na Tabela 1, é apresentado o estado da produção científica diferenciando as mo- dalidades esportivas de combate, sendo possível evidenciar que há uma variação muito ampla de produção entre as modalidades (ex.: 71 estudos envolvendo o kickboxing x 1.595 estudos envolvendo o judô). Afirmar que há muitos ou poucos estudos na área de lutas é abordar o tema de modo genérico. No entanto, cabe ressaltar que algumas mo- dalidades de combate possuem similaridades, permitindo, em partes, a transferência do conhecimento entre modalidades. Tabela 1 Produção científica de estudos publicados referentes a diferentes modalidades de lutas Fonte: Elaborada pelo autor com base em Clarivate, 2020. Modalidade Número de estudos Boxe* Jiu-jitsu brasileiro Judô Kickboxing Taekwondo Karatê Muay thai MMA (mixed martial arts – artes marciais mistas) Wushu 198 102 1.595 130 854 1.155 71 303 247 * Busca combinada dos termos boxe amador e boxe profissional. Conceitos, história e filosofia das lutas 19 No cenário de produção científica, o Brasil ocupa um papel de des- taque, tanto considerando as lutas de maneira geral quanto estrati- ficando a análise por modalidade esportiva. O Brasil aparece como o quarto país que mais produz conhecimento nas lutas em geral (Tabela 2). Esse é um dado muito relevante, o qual demonstra que mesmo com todas dificuldades que enfrentamos para fazer ciência, conseguimos ser uma referência mundial no meio científico. A tabe- la a seguir mostra o top 5; completando o top 10, constam Canadá, Espanha, Austrália, Alemanha e Coreia do Sul. Tabela 2 Ranking por países da produção científica de estudos publicados referente às lutas (top 5) Estados Unidos da América País Número de estudos % do total 503 20,8% China 340 14,0% Brasil 240 9,9% Polônia 299 12,3% Inglaterra 137 5,7% Fonte: Elaborada pelo autor com base em Clarivate, 2020. Em algumas modalidades como o judô e o jiu-jitsu brasileiro, o Brasil ocupa a liderança na produção científica. No judô, o Brasil ocupa a pri- meira posição entre os países mais produtivos (seguido de Polônia, Es- tados Unidos da América, Espanha e Japão), com dois autores entre os cinco mais produtivos no mundo (Emerson Franchini e Bianca Miarka). No jiu-jitsu brasileiro, o Brasil também ocupa a primeira posição entre os países mais produtivos (seguido de Estados Unidos da América, Aus- trália, Noruega e Polônia), com quatro autores entre os cinco mais pro- dutivos do mundo (Emerson Franchini, Leonardo Vidal Andreato, João Victor Del Conti Esteves e Solange Marta Franzói de Moraes). Por fim, além de considerar a quantidade de estudos, é preciso analisar a qualidade dessa produção. Nesse sentido, a análise acaba ficando mais subjetiva, pois não há estudos que fizeram tal análise de modo amplo. Apesar disso, podemos observar que, principalmente nos últimos anos, muitos estudos foram aceitos e publicados nos principais periódicos científicos da área de Ciências do Esporte. Contudo, isso não Para conhecer o estado da arte de uma área de conhecimento, além de consultar pesquisas bibliográficas publicadas em revistas acadêmicas, é possível realizar buscas na base de dados Web of Science. A base não é de livre acesso, mas estudantes brasileiros conseguem acesso gra- tuito por meio do Portal de Periódicos da Capes. Disponível em: https://www. periodicos.capes.gov.br. Acesso em: 3 jul. 2020. Site https://www.periodicos.capes.gov.br https://www.periodicos.capes.gov.br 20 Metodologia do ensino de lutas significa que a maioria dos estudos apresenta uma elevada qualidade metodológica. Na realidade, ainda hoje a maior parte das pesquisas não atende às recomendações metodológicas de diferentes instrumen- tos de avaliação de qualidade de pesquisa. Assim, embora o montante total de produção acadêmica possa ser considerado expressivo, o nú- mero de pesquisas de alta qualidade metodológica ainda é pequeno. 1.3 Formação e atuação profissional Vídeo Antes deanalisarmos os aspectos relacionados à formação profis- sional e à intervenção de quem atua na área de lutas, é preciso con- siderar a história do ensino superior e da Educação Física no Brasil. O primeiro curso superior do Brasil foi iniciado em 1808, com a Esco- la de Cirurgia da Bahia. Mundialmente, a universidade, no estilo que conhecemos hoje, apresenta registros bem mais antigos, como a Uni- versidade de Bolonha (1088), a Universidade de Oxford (aproximada- mente 1096) e a Universidade de Paris (1170). Diante disso, já podemos observar que a tradição das universidades brasileiras é bem mais re- cente do que muitas das universidades mundialmente conhecidas. No mesmo sentido, o primeiro curso brasileiro voltado à preparação de profissionais da Educação Física se deu em 1910, pela Polícia Militar. O primeiro curso de caráter civil foi criado em 1934, na Universidade de São Paulo (USP), com reconhecimento em 1940 pelo Decreto n. 5.723 (SÃO PAULO, 1940). Em nível de pós-graduação (stricto sensu) 4 , o primeiro cur- so de mestrado foi iniciado em 1977, doze anos após a regulamentação da pós-graduação no Brasil por meio do Parecer 977/1965 5 , na Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE-USP). No entanto, a regulamentação da profissão, ou seja, a definição legal da área de atuação, deu-se apenas em 1998, pela Lei n. 9.696 6 (BRASIL, 1998). Diante do exposto, devemos considerar que tanto o ensino superior quanto a área de Educação Física são relativamente novos no Brasil. Por conta disso, ambas as áreas ainda estão em processos constantes de reformulação. Isso não quer dizer que não podemos tecer críticas a essas áreas, mas devemos considerar os avanços já alcançados nessa curta trajetória. No artigo 1º da Lei n. 9.696, ficou estabelecido que “o exercício das atividades de Educação Física e a designação de Profissional de Edu- A pós-graduação é dividida em lato sensu, que compreende os cursos de especialização, e stricto sensu, que compreende os cursos de mestrado e doutorado. 4 O Parecer 977/1965 também é conhecido como Parecer Sucupira, em homenagem ao seu relator, o professor Newton Lins Buarque Sucupira (1920-2007), que é considerado o pai da pós-graduação brasileira. 5 A Lei n. 9.696/1998 foi sancio- nada no dia 1º de setembro, data em que passou a se comemorar o Dia do Profissional da Educação Física. 6 Conceitos, história e filosofia das lutas 21 cação Física é prerrogativa dos profissionais regularmente registra- dos nos Conselhos Regionais de Educação Física” (BRASIL, 1998). No parágrafo seguinte, estabelecem-se as possibilidades de inscrição nos quadros dos Conselhos Regionais de Educação Física. Para obter o registro, o indivíduo deve possuir diploma (nacional ou internacional), oficialmente reconhecido, no curso de Educação Física ou comprovar que exerceu atividades da profissão de Educação Física até o início da vigência da lei. Dessa forma, os profissionais que já atuavam na área garantiram seu direito de atuação, sem prejuízos maiores, uma vez que atuavam antes da regulamentação da profissão. No entanto, só poderiam co- meçar a atuar nas atividades prerrogativas da Educação Física aqueles profissionais que tivessem formação em nível superior, conforme cons- ta no artigo 3º da Lei n. 9.696/1998. Compete ao Profissional de Educação Física coordenar, planejar, programar, supervisionar, dinamizar, dirigir, organizar, avaliar e executar trabalhos, programas, planos e projetos, bem como prestar serviços de auditoria, consultoria e assessoria, realizar treinamentos especializados, participar de equipes multidisci- plinares e interdisciplinares e elaborar informes técnicos, cien- tíficos e pedagógicos, todos nas áreas de atividades físicas e do desporto. (BRASIL, 1998) Ocorre que a definição da competência do profissional da Educa- ção Física foi bastante genérica na lei de regulamentação da profissão. Em 2002, o Conselho Federal de Educação Física (Confef) publicou uma resolução com o intuito de especificar melhor a competência exclusiva dos profissionais de Educação Física (Resolução 46/2002). No entanto, após disputas judiciais, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) impediu os Conselhos Regionais de Educação Física de fiscalizarem lutas, danças e ioga (Recurso Especial 1012692/RS 2007). Acredita-se que esse en- tendimento foi por considerarem essas atividades como manifestações culturais e espirituais. Vale ressaltar que, no caso das lutas, essa lei se aplica apenas quando a atuação é voltada ao aprendizado da técnica da luta. No caso de aulas que utilizam técnicas de lutas como forma de condicionamento físico (ex.: body combat e aeroboxe), faz-se necessário o registro em um dos Conselhos da Educação Física. No ambiente escolar, no contexto curricular, a inserção das lutas ocorre dentro das aulas Educação Física, ministradas por um profissio- Leia na íntegra a Lei n. 9.696/1998, a qual dispõe sobre a regulamentação da profissão de Educação Física e cria o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Educação Física. É fundamental que você, futuro profissional de Educação Física, co- nheça os aspectos legais de sua profissão. Disponível em: https://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ l9696.htm. Acesso em: 3 jul. 2020. Leitura https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9696.htm https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9696.htm https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9696.htm 22 Metodologia do ensino de lutas nal com habilitação na área de Licenciatura em Educação Física. Existe a possibilidade de que profissionais sem essa habilitação atuem em projetos de iniciação esportiva dentro da escola, mas no caráter curri- cular isso não é permitido. Portanto, cabe ao profissional da Educação Física inserir as lutas dentro das aulas na escola. Mas como isso tem corrido? Os profissionais da escola têm conseguido trabalhar com as lutas dentro das aulas curriculares? Vamos tentar responder a essas e outras questões a seguir. A realidade parece ser um tanto diferente das recomendações de inserção das lutas na escola, como definido desde os PCN (BRASIL, 1997). Em um estudo conduzido com 50 professores de Educação Fí- sica que atuavam na rede pública e privada das escolas de Fortaleza (CE), foi reportado que apenas 32% deles utilizavam as práticas de lutas em suas aulas, ao passo que 68% afirmaram jamais terem incluídos esses conteúdos nas aulas. Ainda, entre a parcela de professores que abordavam as lutas nas aulas escolares, 50% utilizavam vídeos, 31% contavam com a ajuda de especialistas, 13% faziam a abordagem por meio de atividades recreativas e 6% faziam saídas de campo (ex.: visita a academias ou clubes). Entre a parcela de professores que não abor- davam as lutas nas aulas escolares, 41% afirmaram que não tinham instrução suficiente, 24% entendiam que a escola não possuía estrutu- ra adequada, 18% consideravam o conteúdo de lutas inadequado para a escola e 18% não contavam com auxílio de profissionais especialistas em lutas (FERREIRA, 2006). Embora o estudo citado ilustre uma parcela de professores da cida- de de Fortaleza, essa realidade parece ser semelhante à de outras lo- calidades. Especialistas em lutas (cinco professores de lutas no ensino superior e praticantes de lutas por pelo menos dez anos) consideram que os principais fatores restritivos para a inclusão das lutas na Educa- ção Física são formação deficiente dos docentes (52%), insegurança do professor (15%), infraestrutura escolar deficiente (15%) e falta de mate- riais para o ensino das lutas (9%) (RUFINO; DARIDO, 2015). Com base nisso, é possível considerar que a principal limitação re- ferente à atuação em lutas na escola é a falta de formação específica, pois insegurança e fatores restritivos, como falta de estrutura e mate- riais, podem ser contornados facilmente, desde que o professor tenha uma formação adequada. Conceitos, história e filosofia das lutas 23 Esse problemareferente à formação pode ser creditado a alguns fatores, como: Cursos de graduação que não abordam as lutas de maneira ampla, mas com modalidades específicas (ex.: judô ou capoeira). Disciplinas de lutas na graduação que seguem o modelo tecnicista, ou seja, que se limitam a repetir técnicas de uma ou mais modalidades de lutas, sem focar o ensino no preparo do graduando para minis- trar aulas com abordagem das lutas. Docentes da disciplina de lutas que não possuem formação e experiência em lutas. E você? As lutas fizeram parte das suas aulas de Educação Física na escola? Quais lembranças você carrega dessa época? O que você pensa sobre a inclusão das lutas nas aulas curriculares de Educação Física? Esperamos que até o final deste livro você possa refletir sobre sua concepção de lutas na escola e se sinta seguro e apto a incluir esse conteúdo quando for professor de Educação Física. Leia o artigo Conhecimento declarativo de docentes sobre a prática de lutas, artes marciais e modalidades esportivas de combate nas aulas de educação física escolar em Pelotas, Rio Grande do Sul, de Joel Maurício Corrêa Fonseca, Emerson Franchini e Fabrício Boscolo Del Vecchio, publicado em 2013 na revista Pensar a Prática, para compreender melhor como se dá o nível de conhecimento em lutas de professores de Educação Física e como esses docentes aplicam o conteúdo de lutas na educação física escolar. Acesso em: 3 jul. 2020. https://www.revistas.ufg.br/fef/article/view/17221 Artigo 1.4 Aspectos contemporâneos Vídeo Nesta última seção, iremos abordar um pouco das razões que nos levam a estudar as lutas e posteriormente inserir esse conteúdo nas aulas curriculares de Educação Física na escola, especialmente nos en- sinos fundamental e médio. Entre essas razões, podemos utilizar o ponto de vista histórico e cul- tural, pois o homem sempre lutou. Os motivos são diversos, como luta pela sobrevivência, conquista de territórios, reprodução, lazer, rituais https://www.revistas.ufg.br/fef/article/view/17221 24 Metodologia do ensino de lutas de transição para a vida adulta e até mesmo oferendas a divindades. Existem evidências disso em diferentes épocas de nossa civilização e em diferentes partes do mundo. Paiva (2019), em um ensaio antropo- lógico e histórico, apresenta uma série de evidências (principalmente pinturas rupestres) de manifestações de lutas na Pré-História 7 em solo brasileiro (no Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí). Pintura rupestre no Parque Nacional Serra da Capivara. Do ug las Iu ri M ed eir os Ca br al/ W iki G ed ia C oG G on s Nessa ótica de abordagem histórica e cultural, ainda podemos des- tacar que as lutas: • compuseram os antigos Jogos Olímpicos da Antiguidade (776 a.C.-200 a.C.); • geraram espetáculo com os gladiadores no Coliseu (os primeiros registros são de 286 a.C.); • foram usadas como artes de guerra para defesa de nações (ex.: samurais no período feudal do Japão – 1187-1867); • foram utilizadas como forma de desenvolvimento espiritual (ex.: ligação entre wushu e budismo); Período anterior à invenção da escrita, que se estima ter ocorrido aproximadamente 3500 a.C. 7 Exemplo de roda de capoeira. CG EA TI ST A/ Sh ut te rs to ck • tiveram importância durante o período de escravidão no Brasil (? até 1888 8 ), fato que levou, em 2014, a Organiza- ção das Nações Unidas para a Educa- ção, a Ciência e a Cultura (Unesco) a reconhecer a roda de capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial da Hu- manidade, em 2014 (UNESCO, 2014). No entanto, não são apenas os aspectos históricos que justificam o estudo e a apli- cação das lutas na escola. Na atualidade, os esportes fazem parte da rotina de nossa Não há um consenso sobre a data de início da escravidão no Brasil. Alguns relatos apontam 1550, outros, 1518, e também há quem defenda que a escra- vidão se iniciou na chegada dos portugueses ao Brasil. 8 Conceitos, história e filosofia das lutas 25 sociedade, seja por meio da prática esportiva, seja pelo consumo des- sas práticas, seja assistindo ou adquirindo produtos relacionados. Pare um momento e pense se as lutas fazem parte da sua vida. Vamos ver alguns exemplos. O principal evento esportivo da atualidade são os Jogos Olímpicos de Verão. Entre todas as modalidades que integram os jogos, as moda- lidades esportivas de combate são responsáveis por aproximadamente 1/5 de todas as medalhas de ouro em disputa. Para traçar uma noção de proporção, note que o futebol, embora seja a modalidade mais tra- dicional em nosso país, é responsável por apenas duas categorias (uma no masculino e uma no feminino). Em contrapartida, o judô, sozinho, representa 15 categorias 9 em disputa (sete no masculino, sete no fe- minino e uma por equipe mista). Observe na Tabela 3 quais são as modalidades de combate que inte- gram os Jogos Olímpicos e o número de categorias em disputa em cada um desses esportes. Os dados foram estimados com base no quadro de modalidades apresentado pelo Comitê Olímpico Internacional (COI, 2020). Tabela 3 Participação das modalidades esportivas de combate nos Jogos Olímpicos de Verão Boxe Modalidade Número de categorias % de todas as medalhas 13 ~4% Esgrima 10 ~3% Karatê 8 ~2,5% Wrestling 18 ~5,5% Judô 15 ~4,5% Taekwondo 8 ~2,5% TOTAL 72 ~22% Fonte: Elaborada pelo autor com base em COI, 2020. ~: valores aproximados com base no número de medalhas de ouro a serem distribuídas. Todavia, não são apenas nos Jogos Olímpicos de Verão que os espor- tes de combate possuem destaque nos tempos atuais. Fora dos Jogos, tanto as modalidades olímpicas quanto as não olímpicas atraem mui- Estimativa feita com base no quadro de modalidades dos Jogos Olímpicos de Verão de Tóquio de 2021. 9 26 Metodologia do ensino de lutas tos telespectadores em diferentes eventos. Um exemplo claro disso é o fenômeno MMA – semanalmente, ocorrem diversos eventos, como o UFC (Ultimate Fighting Championship), o Bellator, o ONE Championship e o Shooto Brasil. Em 2018, apenas o evento UFC 229, que teve como principal luta Khabib Nurmagomedov x Conor McGregor, gerou 2,5 milhões de ven- das de transmissão televisiva (pay per view). Em 2015, a luta profis- sional de boxe entre Floyd Mayweather e Many Pacquiao promoveu 4,6 milhões de vendas de transmissão. Nessa luta, o vencedor faturou, na época, entre bolsa, bônus e direito de imagens, o equivalente a R$ 1 bilhão (GOZZER, 2017). Além disso, são vendidas camisetas, ca- necas, chaveiros, revistas, canais de luta, entre outros produtos que carregam marcas relacionadas aos esportes de combate. O efeito do alcance do esporte vai além do entretenimento, pois tem grande im- pacto econômico (DIAS, 2019). Além dos eventos que envolvem combates reais, temos as lutas e esportes de combate se manifestando dentro de meios de entreteni- mento, como o caso do cinema. Nesse tocante, podemos citar inúme- ros filmes, tanto baseados em pessoas reais quanto obras de ficção. Vamos recordar alguns exemplos. Filmes fictícios Rock: um lutador; Rock II: a revanche; Rock III: o desafio supremo; Rock IV; Rock V; Rock Balboa. Karatê Kid: a hora da verdade; Karatê Kid II: a hora da verdade continua; Karatê Kid III: o desafio final; Karatê Kid IV: a nova aventura; Karatê Kid. Creed: nascido para lutar; Creed II. Menina de Ouro. Nocaute. Touro Indomável. O Vencedor. Clube da Luta. O Grande Dragão Branco; Kickboxer; Desafio Mortal (filmes de Jean-Claude Van Damme). Operação Dragão; A Fúria do Dragão; Bruce Lee: a jornada de um guerreiro (filmes de Bruce Lee). Mais forte que o mundo – A história de José Aldo (baseado em José Aldo, lutador de MMA). Filmes baseados em fatos 10 segundos para vencer (baseado em Éder Jofre, lutador de Boxe). Dangal (baseado em Mahavir Singh Phogat e suas filhas, lutadores de wrestling). O maior de todos; Ali; Muhammad Ali – das lutas ao ativismo (baseados em Muhammad Ali). Tyson (baseado em MikeTyson, lutador de boxe). A luta pela esperança (baseado em James Walter Braddock, lutador de boxe). O UFC foi criado em 1993, tendo como um dos fundadores Rorion Gracie. Em 2001, a marca UFC foi vendida por 2 milhões de dólares para Dana White e os irmãos Frank e Lorenzo Fertitta. Em 2016, a marca foi comprada pelo grupo WME-IMG pelo montante de 4 bilhões de dólares (DIAS, 2019). Curiosidade O filme Mais forte que o mundo – A história de José Aldo conta partes da trajetória do atleta brasileiro José Aldo, um dos maiores lutadores da história do MMA. Nessa obra, é possível observar a evolução e profissio- nalização dos esportes de combate, bem como visualizar o impacto social que o esporte pode exercer em relação às transformações de vida. Direção: Afonso Poyart. Brasil: Black Maria; Globo Filmes, 2016. Filme Conceitos, história e filosofia das lutas 27 Ainda, existem muitos outros filmes e animações envolvendo his- tórias de super-heróis, que utilizam as lutas em suas aventuras (ex.: Superman, Homem-Aranha, Hulk, Homem de Ferro, Thor, Batman, Liga da Justiça, Mulher-maravilha, Batgirl, Supergirl, Capitã Marvel). Diante de todos os exemplos listados nesta seção, é difícil ainda não assumirmos que as lutas fazem parte de nossa história e vida. Por fim, ainda podemos citar os benefícios físicos e comportamentais que as lutas podem promover. Por todas essas características e riquezas culturais, as lutas fazem parte de nosso sistema curricular escolar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este capítulo teve como objetivo tratar de alguns temas iniciais que possibilitarão um maior desenvolvimento nos estudos na temática de lu- tas. Existe uma diferenciação quanto aos termos utilizados. A grande área é nomeada como lutas, sendo considerada luta toda atividade que tenha o corpo do adversário como alvo, combine possibilidades de ações de ataque e defesa de maneira simultânea e apresente imprevisibilidade no desfecho do combate. São nomeados como esportes de combate especifi- camente os sistemas de técnicas que foram “esportivizados”, ou seja, que são regidos por uma entidade reguladora (federações ou confederações), possuem competições com regras pré-definidas e apresentam sistemas claros de classificação. A definição de artes marciais possui maior divergên- cia na literatura, mas o termo marcial deriva de Marte, o deus da guerra. É mais comum caracterizar como arte marcial as modalidades que em algum momento da história foram utilizadas para defesa de povos ou nações. Dentro da temática lutas, artes marciais e esportes de combate, pu- demos constatar que o número de pesquisas vem crescendo a cada ano. Essa produção acadêmica, no geral, já possui um corpo significativo de informações. No entanto, é preciso considerar que esse volume total de estudos é subdividido entre as modalidades e subáreas de conhecimen- tos (ex.: história, pedagogia, medicina do esporte, biodinâmica, treinamen- to desportivo). Além disso, nem toda produção científica possui uma alta qualidade metodológica, sendo a melhora metodológica dos estudos um dos desafios da área. Nesse cenário, o Brasil possui um papel de destaque nos estudos com lutas, pois é o quarto país com mais pesquisas publi- cadas no tema e principal país em algumas modalidades. Ainda, alguns 28 Metodologia do ensino de lutas pesquisadores brasileiros figuram entre os líderes em produção científica em lutas, artes marciais e esportes de combate. Neste capítulo, também observamos alguns aspectos relativos à atuação profissional nas lutas. Entre os conteúdos abordados, podemos destacar o fato de que o trato das lutas fora das aulas curriculares de Educação Física não exige obrigatoriamente formação de nível superior em Educação Física. Contudo, o trabalho com as lutas nas aulas curri- culares escolares deve obrigatoriamente ser realizado por profissionais com formação em nível superior. Dentro do ambiente escolar, a maior parte dos docentes não utilizam as lutas em suas aulas, e tal fato ocorre principalmente devido a uma formação insuficiente durante a graduação. Por fim, consideramos que o ensino das lutas na escola é importante por diferentes fatores. As lutas fazem parte da história de nossa sociedade e carregam consigo muita bagagem cultural. Além disso, as lutas integram nosso cotidiano, por exemplo, em seu modelo esportivo, presente em eventos olímpicos e não olímpicos, e na forma de entretenimento, como no caso dos filmes. Não obstante, a prática das lutas é capaz de promover diversos benefícios para a saúde física e mental de seus praticantes, assim como auxilia em aspectos comportamentais e do desenvolvimento motor. Por todas essas razões, as lutas estão inseridas dentro do currículo es- colar, e caberá a você, futuro professor, ter os conhecimentos necessários para incluir esse tema em suas aulas. ATIVIDADES 1. Elabore três sentenças que caracterizem a ideia de luta, arte marcial e esporte de combate. 2. Faça uma breve análise do papel do Brasil na produção científica na área de lutas, artes marciais e esportes de combate. 3. Cite as seis modalidades esportivas de combate consideradas olímpicas. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei n. 9.696, de 1 de setembro de 1998. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 2 set. 1998. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9696. htm. Acesso em: 7 jun. 2020. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. 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Na sequência, nosso direcionamento será voltado para a Educação Física, com enfoque específico nas lutas, nas artes marciais e nos esportes de combate. As lutas devem fazer parte das aulas de Educação Física na escola? O que deve ser ensinado em relação às lutas na escola? Os conteúdos e a abordagem das lutas na escola devem ser os mesmos para todas as faixas etárias? Essas questões serão anali- sadas ao longo deste capítulo. Na primeira seção, serão apresentados os principais aspectos relacionados às políticas públicas educacionais de nosso país, com o objetivo de entendermos a estrutura educacional na qual esta- mos inseridos. Na sequência, nosso direcionamento será entender como as lutas integram nosso sistema curricular. Para tanto, ana- lisaremos a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Você deverá adquirir embasamento para avaliar a proposta vigente. Na terceira seção, iremos discutir algumas propostas metodo- lógicas existentes para o ensino das lutas, dentro ou fora da escola. A proposta atual presente na BNCC pode mudar, pois o currículo escolar em nosso país depende muito das políticas de governo. Diante disso, é importante que você esteja apto a compreender as lutas muito além da BNCC, tendo subsídios para abordá-las independentemente da proposta vigente. Os modelos de ensino que serão apresentados vão ajudá-lo a refletir e criar fundamentos para que o trato das lutas ocorra de maneira natural e harmônica. Por fim, na quarta seção, iremos abordar aspectos pedagógicos gerais e cuidados no ensino das lutas. Esses conteúdos são muito relevantes, pois não apenas auxiliarão no manejo das lutas, como também podem ser aplicados em aulas com diferentes objetivos. 30 Metodologia do ensino de lutas Ensino das lutas na escola 31 O conteúdo deste capítulo irá prover fundamentos que serão sua base para atuar com o ensino das lutas, seja como elementos das aulas curriculares de Educação Física na escola, seja como ele- mentos de aulas em outros ambientes, como clubes, ONG (organi- zações não governamentais), academias ou centros esportivos. 2.1 Políticas públicas educacionais Vídeo Para entendermos como se dá o currículo escolar brasileiro, preci- samos saber como estão organizadas as políticas públicas educacio- nais em nosso país. Vamos fazer uma breve análise disso. O primeiro aspecto a ser considerado é que a educação no Brasil é um direito de todos, garantido pela Constituição Federal de 1988. Esse direito é estabelecido no artigo 205, o qual define que “a educa- ção, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno de- senvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988). Contudo, como se pode observar, a educação não é apenas um direito; família e Estado devem atuar para que toda criança tenha uma educação adequada. Nesse sentido, vale conhecer o artigo 208, que define que o Estado deve ga- rantir “educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (de- zessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiverem acesso na idade própria” (BRASIL, 1988). Embora a Constituição defina direitos e deveres relativos à educa- ção, não há uma abordagem detalhada desse processo, sendo realiza- da uma abordagem geral, como reportado no artigo 210, que aponta que “serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores cul- turais e artísticos, nacionais e regionais” (BRASIL, 1988). Nesse aspecto, anos após o desenvolvimento da nossa Carta Magna, houve um proces- so de discussão que resultou em uma lei específica sobre a educação, a Lei n. 9.394, de 1996, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educa- ção (LDB). Na LDB, é estabelecido como deve ser organizado o sistema educacional brasileiro, incluindo especificações sobre a necessidade de diretrizes que nortearão a definição de conteúdos mínimos, função que 32 Metodologia do ensino de lutas é incumbência da União, em colaboração com os estados, o Distrito Fe- deral e os municípios, de acordo com o artigo 9º da lei (BRASIL, 1996). Quanto à Educação Física, no § 3o do artigo 26 da LDB, indica-se que “a educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é compo- nente curricular obrigatório da Educação Básica, ajustando-se às faixas etárias e às condições da população escolar, sendo facultativa nos cur- sos noturnos” (BRASIL, 1996). No entanto, não há um detalhamento do currículo escolar na LDB. O mesmo ocorreu com os Parâmetros Curricu- lares Nacionais (PCN), que, embora auxiliassem as escolas na criação das propostas pedagógicas, careciam de informações mais detalhadas sobre a organização dos conteúdos curriculares (BRASIL, 1997). Nessa falta de definição clara de como deveria ser estruturado o currículo da Educação Física nas diferentes etapas de ensino, a Edu- cação Física escolar enfrentou muitas dificuldades. Exemplo disso é a realidade das disciplinas escolares espalhadas pelo Brasil, com muitas delas se limitando, quando muito, à prática de quatro modalidades esportivas: futsal, voleibol, basquetebol e handebol. Um dos aspectos que levou à dificuldade de propostas de currículos universais foi o fato do Brasil ser um país de dimensões continentais, o que acarreta carac- terísticas regionais muito peculiares. Diante disso, em 2017, após muitas discussões, foi aprovada a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a qual define aprendizagens e competências 1 Na BNCC, competência é entendida como “a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemo- cionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (BRASIL, 2017, p. 8). 1 a serem desenvolvidas na educação básica. Essas com- petências são apresentadas no quadro a seguir. Quadro 1 Competências gerais da educação básica Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva. 1 Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas. (Continua) 2 A LDB (Lei n. 9.394/1996) faz a regulamentação do sistema educacional brasileiro. É importante que todo profissional que atue com ensino conheça essa regulamentação. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ l9394.htm. Acesso em: 24 jul. 2020. Leitura http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm Ensino das lutas na escola 33 Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural. 3 Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como LIBRAS, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo. 4 Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação demaneira crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva. 5 Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade. 6 Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta. 7 Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas. 8 Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza. (Continua) 9 34 Metodologia do ensino de lutas Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários. 10 Fonte: Brasil, 2017, p. 9-10. Como você pode perceber, essas competências são de fato gerais e buscam a formação integral do ser humano, que não apenas domi- na e decora conteúdos, e também a formação de um sujeito crítico, capaz de atuar em sociedade e exercer sua cidadania para a constru- ção de uma sociedade mais justa, democrática e inclusiva. Entretanto, você também pode perceber que não é uma tarefa fácil atingir todas as competências gerais com a Educação Física. Porém, esta é uma meta: elaborar e conduzir aulas e atividades que permitam o desenvolvimen- to das competências gerais da educação básica propostas na BNCC. Além da definição de competências gerais que devem ser desen- volvidas, a BNCC também apresenta direcionamentos para cada etapa da educação e também abre a possibilidade para que cada estado in- clua conteúdos que sejam relevantes para o contexto daquela região (BRASIL, 2017), tornando necessário que os docentes conheçam tanto a BNCC quanto o referencial curricular do estado no qual irá atuar. A BNCC é estruturada com divisões entre educação infantil, ensino fundamental e ensino médio, e cada etapa possui suas peculiaridades. Devido à BNCC ser um documento muito amplo, envolvendo todas as áreas de conhecimento, limitaremo-nos a analisar os principais aspec- tos que envolvem nossas possibilidades de intervenções com a Educa- ção Física e, mais especificamente, com as lutas. A educação infantil, que compreende o período de 0 a 5 anos e 11 meses de idade, possui objetivos de aprendizagem e desenvol- vimento que são divididos de acordo com as faixas etárias, sendo elas: bebês (0 a 1 ano e 6 meses), crianças bem pequenas (1 ano e 7 meses a 3 anos e 11 meses) e crianças pequenas (4 anos a 5 anos e 11 meses). Nesse contexto, são estabelecidos na BNCC (BRASIL, 2017) seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento inseri- dos em cinco campos de experiência: Ensino das lutas na escola 35 1. O eu, o outro e o nós 2. Corpo, gestos e movimentos 3. Traços, sons, cores e formas 4. Escuta, fala, pensamento e imaginação 5. Espaço, tempos, quantidades, relações e transformações 1. Conviver 2. Brincar 3. Participar 4. Explorar 5. Expressar 6. Conhecer-se Direitos de aprendizagem e desenvolvimento Campos de experiência O ensino fundamental compreende do 1º ao 9º ano, não definindo faixa etária, pois existem reprovações e casos de alunos que iniciam os estudos fora da idade indicada. Ainda, conceitualmente, divide-se essa etapa em anos iniciais (1º ao 5º ano) e anos finais (6º ao 9º ano). Diferentemente da educação infantil, na qual são estabelecidos ape- nas os campos de aprendizagem, para o ensino fundamental são apre- sentados componentes curriculares específicos para cada área do conhecimento (Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciên- cias Humanas e Ensino Religioso). Aqui está um ponto importante a ser considerado: a Educação Física está alocada na área das Linguagens – remetendo à linguagem corporal –, assim como as disciplinas de Língua Portuguesa, Arte e Língua Inglesa. 36 Metodologia do ensino de lutas Adicionalmente, cada área do conhecimento é dividida em unida- des temáticas, com objetos de conhecimento e habilidades a serem desenvolvidos. As seis unidades temáticas que integram a área da Edu- cação Física, conforme a BNCC (BRASIL, 2017), são: Karolina Madej/ Shutterstock 1. Brincadeiras e jogos 2. Esportes 3. Ginásticas 4. Danças 6. Práticas corporais de aventuras 5. Lutas Por fim, para o ensino médio, assim como na educação infantil, não há uma discriminação concreta dos conteúdos a serem abordados dentro da Educação Física, mas sim indicações de competências espe- cíficas de Linguagens e suas Tecnologias para o ensino médio. Como vimos, a legislação brasileira passou por algumas modifica- ções, como se observa na linha do tempo a seguir, até chegarmos ao documento principal, que detalharemos na próxima seção. BNCC Constituição Federal PCN LDB 1988 1996 1995-1999 2Embora a publicação do volume 7 tenha ocorrido em 2010, a criação dos PCN ocorreu por etapas, com alterações, no período entre 1995 e 1999. 2 2017 Ensino das lutas na escola 37 2.2 As lutas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) Vídeo Considerando o modelo de organização da educação infantil na BNCC, as lutas podem ser trabalhadas com as crianças bem peque- nas e com as crianças pequenas, mas com um papel secundário, no qual o ensino não é das lutas em si, e sim feito por meio de ele- mentos das lutas ou dos jogos de lutas, com objetivo de explorar os direitos de aprendizagem e desenvolvimento dentro dos campos de experiência. Por exemplo, é possível explorar o campo de experiên- cia O eu, o outro e nós por meio de jogos de lutas? É possível explorar o campo de experiências Corpo, gestos e movimentos se valendo de algumas ações presentes nas lutas? Lembre-se de que as lutas estão muito presentes no cotidiano das crianças, nos desenhos, quadrinhos ou filmes de super-heróis. Se bem planejadas, as atividades de lutas podem ter uma boa aceitação por parte das crianças, além de serem um instrumento riquíssimo para es- timular o desenvolvimento motor e cognitivo, bem como para explorar valores e o respeito ao próximo. du ra nt el al le ra /S hu tte rs to ck Exemplo de lutas em histórias em quadrinhos. Para o ensino médio, ao analisarmos as unidades temáticas presentes na BNCC, podemos notar que existe uma unidade es- pecífica para as lutas. No entanto, elas também podem ser utili- zadas como elementos a serem explorados dentro da unidade de brincadeiras e jogos, bem como na unidade temática de esportes. 38 Metodologia do ensino de lutas Os esportes são divididos em sete tipos, sendo um deles referente aos esportes de combate (BRASIL, 2017): 1. Marca 7. Co m ba te 3 2. Precisão 3. T éc ni co - -c om bi na tó rio 4. R ede /qu adr a divi dida ou par ede de r ebo te 5. Campo e taco 6. Invasão ou territorial rikkyall/Shutterstock Para a unidade temática de lutas, é importante que, antes de com- preender as divisões dos componentes curriculares, você conheça qual entendimento éapresentado na BNCC para essa temática. A unidade temática Lutas focaliza as disputas corporais, nas quais os participantes empregam técnicas, táticas e estratégias especí- ficas para imobilizar, desequilibrar, atingir ou excluir o oponen- te de um determinado espaço, combinando ações de ataque e defesa dirigidas ao corpo do adversário. Dessa forma, além das lutas presentes no contexto comunitário e regional, podem ser tratadas lutas brasileiras (capoeira, huka-huka, luta marajoara etc.), bem como lutas de diversos países do mundo (judô, aikido, jiu-jítsu, muay thai, boxe, chinese boxing, esgrima, kendo etc.). (BRASIL, 2017) Todas as unidades temáticas estabelecidas têm como objetivo al- cançar as competências específicas da Educação Física, estabeleci- das para essa fase de ensino, as quais auxiliarão no desenvolvimento das competências gerais da educação básica (apresentadas no início deste capítulo). Conheça e reflita sobre as competências específicas do ensino fundamental, expressas no quadro a seguir. Na BNCC, a categoria esportes de combate “reúne modalidades caracterizadas como disputas nas quais o oponente deve ser subjugado, com técnicas, táticas e estratégias de desequilíbrio, contusão, imobilização ou exclu- são de um determinado espaço, por meio de combinações de ações de ataque e defesa (judô, boxe, esgrima, tae kwon do etc.)” (BRASIL, 2017). 3 Ensino das lutas na escola 39 Quadro 2 Competências específicas da Educação Física no ensino fundamental Compreender a origem da cultura corporal de movimento e seus vínculos com a organização da vida coletiva e individual.1 Planejar e empregar estratégias para resolver desafios e aumentar as possibilidades de aprendizagem das práticas corporais, além de se envolver no processo de ampliação do acervo cultural nesse campo. 2 Refletir, criticamente, sobre as relações entre a realização das práticas corporais e os processos de saúde/doença, inclusive no contexto das atividades laborais. 3 Identificar a multiplicidade de padrões de desempenho, saúde, beleza e estética corporal, analisando, criticamente, os modelos disseminados na mídia e discutir posturas consumistas e preconceituosas. 4 Identificar as formas de produção dos preconceitos, compreender seus efeitos e combater posicionamentos discriminatórios em relação às práticas corporais e aos seus participantes. 5 Interpretar e recriar os valores, os sentidos e os significados atribuídos às diferentes práticas corporais, bem como aos sujeitos que delas participam.6 Reconhecer as práticas corporais como elementos constitutivos da identidade cultural dos povos e grupos.7 Usufruir das práticas corporais de forma autônoma para potencializar o envolvimento em contextos de lazer, ampliar as redes de sociabilidade e a promoção da saúde. (Continua) 8 40 Metodologia do ensino de lutas Reconhecer o acesso às práticas corporais como direito do cidadão, propondo e produzindo alternativas para sua realização no contexto comunitário.9 Experimentar, desfrutar, apreciar e criar diferentes brincadeiras, jogos, danças, ginásticas, esportes, lutas e práticas corporais de aventura, valorizando o trabalho coletivo e o protagonismo. 10 Fonte: Brasil, 2017, p. 223. Especificamente em relação aos componentes curriculares, é fun- damental que você conheça os objetos de conhecimento e habilidades específicas a serem desenvolvidos na unidade referente às lutas, dentro do ensino fundamental, definidos na BNCC, conforme o quadro a seguir. Quadro 3 Objetos de conhecimento da unidade temática lutas no EF e habilidades a serem desenvolvidas em cada fase do ensino Fase Objetos de conhecimento Habilidades 1º e 2º anos – – 3º ao 5º ano Lutas do contexto comunitá- rio e regional Lutas de matriz indígena e africana • Experimentar, fruir e recriar diferentes lutas presentes no contexto comunitário e regional e lutas de matriz indígena e africana. • Planejar e utilizar estratégias básicas das lutas do contex- to comunitário e regional e lutas de matrizes indígena e afri- cana experimentadas, respeitando o colega como oponente e as normas de segurança. • Identificar as características das lutas do contexto comu- nitário e regional e lutas de matriz indígena e africana, reco- nhecendo as diferenças entre lutas e brigas e entre lutas e as demais práticas corporais. 6º e 7º anos Lutas do Brasil • Experimentar, fruir e recriar diferentes lutas do Brasil, valorizando a própria segurança e integridade física, bem como as dos demais. • Planejar e utilizar estratégias básicas das lutas do Brasil, respeitando o colega como oponente. • Identificar as características (códigos, rituais, elementos técnico-táticos, indumentária, materiais, instalações, institui- ções) das lutas do Brasil. • Problematizar preconceitos e estereótipos relacionados ao universo das lutas e demais práticas corporais, propon- do alternativas para superá-los, com base na solidariedade, na justiça, na equidade e no respeito. (Continua) Ensino das lutas na escola 41 Fase Objetos de conhecimento Habilidades 8º e 9º anos Lutas do mundo • Experimentar e fruir a execução dos movimentos per- tencentes às lutas do mundo, adotando procedimentos de segurança e respeitando o oponente. • Planejar e utilizar estratégias básicas das lutas experimen- tadas, reconhecendo as suas características técnico-táticas. • Discutir as transformações históricas, o processo de es- portivização e a midiatização de uma ou mais lutas, valori- zando e respeitando as culturas de origem. Fonte: Brasil, 2017. Com base no exposto, é possível observar que para o 1º e 2º anos não há abordagem específica da unidade temática lutas. No entanto, elementos das lutas podem ser utilizados dentro da unidade brincadei- ras e jogos. Do 3º ao 5º ano, devem ser trabalhadas as lutas do contexto comunitário e regional, bem como as de matrizes indígena e africana. No 6º e 7º anos, as aulas devem abordar as lutas no Brasil, e no 8º e 9º anos, as lutas no mundo. Além das habilidades específicas da unidade temática de lutas, apre- sentadas no Quadro 3, no 8º e 9º anos é possível abordar as lutas dentro da unidade temática esportes, na qual é indicada a inclusão dos esportes de combate. Veja as habilidades previstas para os esportes de combate: • Formular e utilizar estratégias para solucionar os desafios técni- cos e táticos, tanto nos esportes de campo e taco, rede/parede, invasão e combate como nas modalidades esportivas escolhidas para praticar de forma específica. • Identificar os elementos técnicos ou técnico-táticos individuais, combinações táticas, sistemas de jogo e regras das modalidades esportivas praticadas, bem como diferenciar as modalidades es- portivas com base nos critérios da lógica interna das categorias de esporte: rede/parede, campo e taco, invasão e combate. • Identificar as transformações históricas do fenômeno esportivo e discutir alguns de seus problemas (doping, corrupção, violência etc.) e a forma como as mídias os apresentam. • Verificar locais disponíveis na comunidade para a prática de es- portes e das demais práticas corporais tematizadas na escola, propondo e produzindo alternativas para utilizá-los no tempo livre. (BRASIL, 2017, p. 237) Por fim, para o ensino médio, não há uma discriminação concreta dos conteúdos a serem abordados dentro da Educação Física, mas sim indicações de competências específicas de Linguagens e suas Tecno- 42 Metodologia do ensino de lutas logias para o ensino médio. Entre as sete competências especificadas, a de n. 5 é a que remete aos cuidados da Educação Física: “compreen- der os processos de produção e negociação de sentidos nas práticas corporais, reconhecendo-as e vivenciando-as como formas de expres- são de valores e identidades, em uma perspectiva democrática e de respeito à diversidade” (BRASIL, 2017, p. 490). Para alcançar o desenvolvimento da competência n. 5, a BNCC indi- ca que sejam trabalhadas asunidades temáticas presentes no ensino fundamental (1. Brincadeiras e jogos; 2. Esportes; 3. Ginásticas; 4. Dan- ças; 5. Lutas; 6. Práticas corporais de aventuras). Ademais, a diretriz enfatiza que as experimentações das práticas corporais sejam acom- panhadas de momentos de reflexão, leituras e produções de discursos. Também são apresentadas três habilidades a serem desenvolvidas por meio da competência n. 5: • Selecionar e utilizar movimentos corporais de forma consciente e intencional para interagir socialmente em práticas corporais, de modo a estabelecer relações construtivas, empáticas, éticas e de respeito às diferenças. • Analisar criticamente preconceitos, estereótipos e relações de poder presentes nas práticas corporais, adotando posicionamen- to contrário a qualquer manifestação de injustiça e desrespeito a direitos humanos e valores democráticos. • Vivenciar práticas corporais e significá-las em seu projeto de vida, como forma de autoconhecimento, autocuidado com o corpo e com a saúde, socialização e entretenimento. (BRASIL, 2017, p. 495) Assim, diante de todo esse estudo da BNCC, tivemos a oportuni- dade de evidenciar a abrangência do atual documento que norteia as práticas de ensino no Brasil, mesmo que nossa proposta tenha sido analisar as informações relacionadas às lutas. Embora contemplar to- das essas recomendações em suas aulas pareça muito complexo, você precisa ponderar alguns aspectos ao planejar o ano letivo e suas aulas. Primeiro, procure pensar cada ano letivo por vez, pois isso facilita- rá o raciocínio e a organização de ideias. Ainda, leve em consideração que a BNCC apresenta objetivos audaciosos e o documento ainda está sendo inserido nas escolas. Essa consideração é importante porque em um processo de transição é normal que os professores enfrentem di- ficuldades, além do fato de ser pouco provável que todo professor de Educação Física consiga ministrar com maestria todos os componentes curriculares de todas unidades temáticas em todas as etapas de ensi- no. Faça seu melhor, mas se lembre de que os professores também estão em processo contínuo de aprendizagem. A BNCC é o documento que estabelece normati- vas sobre aprendizagens essenciais para alunos brasileiros. É importante que todo profissional que atua com ensino conheça a estrutura geral da BNCC, bem como as partes específicas de sua disciplina. Disponível em: http:// basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 27 jul. 2020. Leitura http://basenacionalcomum.mec.gov.br/ http://basenacionalcomum.mec.gov.br/ Ensino das lutas na escola 43 Por fim, você deve considerar que conhecer a BNCC é importan- te, pois ela estabelece as diretrizes educacionais vigentes em nosso país. No entanto, a proposta contempla uma gama de componentes muito vasta, fato que na prática implicará falta de tempo hábil para explorar de modo satisfatório todos os conteúdos indicados. Além disso, a BNCC indica o trabalho das lutas deve ser feito com base na abordagem dos esportes e modalidades de combate, o que vai na contramão de algumas propostas pedagógicas prévias, as quais indi- cavam o ensino das lutas como um todo, sem explorar modalidades (OLIVIER, 2000; FRANCHINI; DEL VECCHIO, 2012). Também é importante lembrar que a BNCC pode sofrer alterações, visto que as propostas curriculares em nosso país estão muito ligadas às políticas de governo. Portanto, é relevante conhecer a BNCC e estruturar as aulas em conformidade com essa diretriz, mas é mais relevante que você compreenda a lógica interna das lutas, bem como as possibilidades de aplicação desse conteúdo em aulas. Assim, você será capaz de refletir e trabalhar com as lutas independentemente da diretriz vigente. 2.3 Propostas pedagógicas Vídeo As lutas têm uma lógica interna, constituída por elementos que as caracterizam. Nesse sentido, Gomes et al. (2010) apresentam os deno- minados princípios condicionantes das lutas, ou seja, os atributos comuns entre as diferentes modalidades de combate, os quais podem ser consideradas fundamentais para que uma atividade seja caracteri- zada como luta. São eles: Oponente como alvo Contato proposital Fusão de ataque e defesa Imprevisibilidade Regras Kuliperko/Shutterstock 44 Metodologia do ensino de lutas Nadiinko/Shutterstock Movimento pendular. De tal modo, estabelece-se que nas lutas há a característica de con- fronto (oponente como alvo), no qual se busca o contato com o oponente, por exemplo, tentar acertar um chute ou derrubar (contato proposital). Além disso, em uma luta, ambos os combatentes podem atacar ou ser atacados a qualquer instante (fusão de ataque e defesa), sendo criada uma incerteza do que irá ocorrer a cada momento, bem como do des- fecho do combate (imprevisibilidade). Ainda, é estabelecido como princí- pio condicionante das lutas a presença de regras, o que acaba sendo de fato mais presente nas modalidades esportivas de combate. O entendimento dessa lógica é fundamental para o manejo das lu- tas, pois permitirá ao docente propor e criar jogos e atividades que en- volvam esses elementos, tendo em vista que nos jogos e brincadeiras é possível que nem todos os princípios condicionantes sejam engloba- dos. Nesse sentido, em vez de pensar apenas nos gestos técnicos que integram as lutas (ex.: socos e chutes), tente pensar em adaptar e criar atividades para que contenham elementos que remetam às lutas. Ainda, tenha em mente que algumas atividades podem ser prepara- tórias, ou seja, são exercícios educativos ou exploram algum elemento importante presente nas lutas. Por exemplo, o controle de distância é fundamental em modalidades que envolvem o soco. Seria possível, en- tão, propor uma atividade para crianças pequenas na qual o objetivo é tentar manter uma bexiga no ar o maior tempo possível, mas o toque na bexiga só é possível por meio de socos? Nessa mesma linha, o controle de distância e a agilidade são elementos importantes em quase todas as modalidades de combate. Consequentemente, seria plausível explorar esses elementos em um pega-pega no qual é necessário acertar o corpo do colega com uma almofada para pegá-lo? Observe que nesses exemplos não exploramos a maior parte dos princípios condicionantes das lutas, mas exploramos elementos que são importantes dentro das modalidades de com- bate. Portanto, busque considerar os princípios condicionantes das lutas ao planejar suas aulas, mas se lembre de que é possí- vel propor atividades que não envolvam todos os princípios simultaneamente. Entre as possibilidades para o trato das lutas, ire- mos abordar duas delas: o modelo pendular e o modelo de jogos de oposição. No primeiro, a ideia central é abordar as lutas de modo geral, sem diferenciações entre modalidades, ao menos em sua base. Nesse sentido, pense no movimento que um pêndulo realiza. Ensino das lutas na escola 45 Na parte superior, ocorre pouca movimentação, enquanto na parte in- ferior há uma amplitude maior do ponteiro do pêndulo. Seguindo essa ló- gica, devemos pensar a abordagem de ensino em três níveis. No mais alto, estão inseridos os princípios operacionais (explorar princípios condicionan- tes e ações comuns a diferentes lutas, como controle de distância, formas de deslocamentos etc.) e a oscilação é menor. No plano mais baixo, estão as regras de ação, que podem ser divididas entre toque ou agarre, com subdivisões entre direto ou indireto, ou seja, se o toque ou agarre é o ob- jetivo das atividades (toque ou agarre diretos) ou se o toque ou agarre são meios para alcançar um objetivo (toque ou agarre indiretos). Nesse nível, são explorados os movimentos presentes nas lutas, mas sem especializar modalidades. Por exemplo, ao abordar a técnica do soco, é ensinado o mo- vimento de modo geral, sem realizar diferenciações entre o soco no karatê ou o soco no boxe. Por fim, no terceiro nível, estão localizados os gestos específicos. Nesse plano, busca-se a especificação para as modalidades de lutas (FRANCHINI;DEL VECHHIO, 2012). Pensando o processo de iniciação às lutas, seria interessante explorar os dois primeiros níveis (princípios operacionais e regras de ação). Esse tipo de abordagem seria benéfico ao aluno, ao permitir que ele experien- cie um acervo grande de atividades motoras, e também aos professores, que na maior parte das vezes não têm especialização em lutas e, quando possuem, raramente dominam muitas modalidades. O segundo modelo, de jogos de oposição, é mais aplicado quando se pensa as modalidades de agarre ou domínio (ex.: judô, jiu-jitsu bra- sileiro, wrestling, sumô). No entanto, ele possui uma abordagem muito interessante, a qual permite que os professores explorem diferentes situações que possibilitam a iniciação às lutas por meio dos jogos, con- ferindo um aspecto lúdico e motivador às atividades. Entre as propos- tas existentes para os jogos de oposição, Olivier (2000) propôs a divisão dos jogos em seis grupos, como especificado a seguir. Jogos de rapidez e atenção St an dr et /S hu tte rs to ck Jogos de conquista de objetos (Continua) Ro be rt Kn es ch ke /S hu tte rs to ck 46 Metodologia do ensino de lutas Jogos de conquista de territórios gre en lan d/ Sh ut te rs to ck Jogos de desequilíbrio fo to sp ar ro w/ Sh ut te rs to ck Jogos de reter, imobilizar e se livrar fot os pa rro w/ Sh ut te rs to ck Jogos de combater Fo to ko st ic /S hu tte rs to ck A nomenclatura dos grupos é um tanto quanto autoexplicativa, pois os grupos recebem o nome das habilidades e/ou ações a serem explora- das nas atividades. Por exemplo, no primeiro grupo, dos jogos de rapidez, podem ser exploradas todas as atividades de lutas que envolvam rapi- dez ou atenção. Nesse grupo, estariam inseridas atividades como jogos nos quais o objetivo é tocar alguma parte do corpo do colega (ex.: tocar o tornozelo, tocar o joelho). A mesma lógica ocorre para o segundo (pro- teger ou conquistar um objeto), terceiro (defender ou dominar um espa- ço), quarto (desequilibrar o oponente) e quinto (dominar o oponente ou escapar de seu domínio) grupos. No sexto grupo, são contemplados os combates em si (ex.: tentar derrubar o oponente). Esse modelo pedagógico é um meio interessante para professores que não são especialistas em lutas, pois também sugere uma abor- dagem mais geral das lutas, sem especificação de modalidades. Para tanto, os professores podem pesquisar atividades em livros ou vídeos na internet, mas, acima de tudo, devem pensar em possibilidades que contenham os elementos necessários de cada grupo de jogos. Independentemente da proposta que seja adotada, é necessário pensar o processo de ensino e aprendizagem por meio das dimen- sões dos conteúdos – os quais, embora apresentados didaticamente Ensino das lutas na escola 47 de modo fragmentado, são inter-relacionados. Segundo Barroso e Darido (2009), elas são: Como se deve ser? O que se deve fazer? O que se deve saber? Dimensões Conceitual Procedimental Atitudinal Embora muitos modelos de aula na Educação Física explorem e valorizem apenas a dimensão procedimental, do fazer, é importan- te refletir que as aulas podem avançar nessa dinâmica, exploran- do aspectos relacionados ao saber (ex.: transmitir conhecimentos históricos e filosóficos presentes nas atividades) e ao ser (ex.: levar à reflexão sobre o modo de agir e a conduta moral presentes nas atividades). Principalmente na escola, o professor deve buscar que os alunos estabeleçam e identifiquem um sentido na prática, e não apenas reproduzam movimentos. Leia o artigo Ensino das lutas: dos princípios condicionais aos grupos situacio- nais, de Mariana Simões Pimentel Gomes, Marcio Pereira Morato, Edilson Duarte e José Júlio Gavião de Almeida, publicado em 2010 na revista Movi- mento, para compreender melhor como se dá a lógica interna das lutas. Acesso em: 24 jul. 2020. https://seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/9743/8928 Artigo https://seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/9743/8928 48 Metodologia do ensino de lutas 2.4 Aspectos didáticos e pedagógicos Vídeo Para o ensino das lutas dentro das escolas, é preciso que alguns aspectos sejam considerados. Nesse sentido, primeiramente vamos abordar três das principais barreiras para o ensino das lutas na escola, de acordo com Rufino e Darido (2015): Falta de materiais Falta de especialização Possível aumento de comportamento agressivo dos alunos Em relação à percepção de falta de especialização em lutas por parte dos professores, esteja ciente de que o objetivo das aulas não é formar atletas ou campeões. A definição da BNCC das habilidades a serem desenvolvidas já oferece esse indicativo (BRASIL, 2017). Essa compreensão é importante, pois auxiliará no planejamento das aulas, bem como ajudará o professor que não é especialista em lutas a perder o medo de abordá-las nas aulas escolares. A Educação Física é uma área muito ampla e seria humanamente im- possível que os professores dominassem todos os esportes existentes. O mesmo vale para as lutas. Sua responsabilidade como docente será apresentar as lutas, proporcionar vivências e provocar debates e refle- xões relacionados ao contexto histórico e filosófico dessas modalidades. Não se preocupe excessivamente com a perfeição dos gestos técnicos. Quanto à falta de materiais, infelizmente, essa é uma realidade de quase todos os setores públicos em nosso país. Muitas escolas viven- ciam dificuldades financeiras, não possuindo estrutura física e mate- riais adequados para ofertar as melhores possibilidades de ensino. No entanto, essa é uma dificuldade que todas as disciplinas passam, e não apenas a Educação Física. Embora a falta de estrutura física e ma- Ensino das lutas na escola 49 teriais possa limitar as possibilidades, é possível realizar boas vivências dentro da Educação Física, incluindo a abordagem das lutas. Quanto à terceira barreira para o trato das lutas na escola, que seria o receio em relação ao aumento do comportamento agressivo dos alunos, é preciso compreender como se dá o comportamento de crianças e adolescentes ao terem acesso às lutas. Harwood, Lavidor e Rassovsky (2017) analisaram nove pesquisas que investigaram o comportamento de crianças e adolescentes (6 a 18 anos) que prati- cavam algum tipo de luta. Como resultado, foi verificado que a prá- tica dessas modalidades promoveu melhoras no autocontrole e na estabilidade emocional desses jovens. Além disso, os alunos que mais participam das atividades de lutas tendem a se envolver em menos casos de agressões físicas, além de intervirem para ajudar quem sofre bullying (TWEMLOW et al., 2008). Nesse contexto, as aulas envolvendo lutas podem ser utilizadas como oportunidades para que ocorram reflexões e discussões sobre temas como violência, bullying, respeito ao próximo, empatia e diferenças en- tre lutar e brigar. Agora que alguns paradigmas envolvendo as lutas foram quebra- dos, vamos analisar alguns procedimentos e cuidados didáticos e pe- dagógicos que nos auxiliarão na abordagem das lutas na escola. Uma aula envolvendo as lutas deve seguir a mesma dinâmica das demais aulas de Educação Física; o que muda basicamente são os conteúdos. Lembre-se de que uma aula, habitualmente, é dividida em três partes. Na parte inicial, são apresentados os objetivos da aula, podendo ser retomados conteúdos de aulas anteriores. Também pode ser feita a condução de uma ou mais atividades preparatórias, para aquecer o corpo e deixar os alunos mais alertas. Na sequência, a parte principal da aula tem como meta explorar os objetivos estabelecidos para aque- la aula. Os tipos e os números de dinâmicas vão variar de acordo com os objetivos estabelecidos, a quantidade de alunos e a estrutura para condução da aula. Por fim, a última parte é destinada à recapitulação e/ou discussão acerca dos conteúdos trabalhados naquela aula e à apresentação dos objetivos da próxima aula; além disso, há a possi- bilidadede execução de atividade(s) para os alunos voltarem à calma. A dinâmica de aula apresentada é um padrão, o qual pode também sofrer alterações, que, no entanto, não são necessidades específicas 50 Metodologia do ensino de lutas das lutas. O primordial é que a aula seja planejada, pois só assim é au- mentada a chance de os conteúdos serem explorados de modo satisfa- tório, tanto para o professor quanto para os alunos. Esse planejamento começa no início do ano letivo, sendo necessário que o professor de- fina quais serão os componentes curriculares a serem explorados em cada turma. Para isso, é fundamental que a BNCC seja consultada. Após a conclusão do planejamento anual, o professor deve de- finir os objetivos de cada aula. Feito isso, é o momento de pensar nas atividades, definindo quais possuem relação com os objetivos de cada encontro, bem como se as atividades propostas não irão gerar exclusões. Na prática, as turmas não são homogêneas, e os casos especiais devem ser considerados no planejamento de aula de cada turma. Considere sempre a faixa etária e o desenvolvimen- to motor que seus alunos apresentam. Na escolha das atividades, você pode recorrer a pesquisas em livros, artigos, blogs e vídeos na internet. No entanto, lembre-se de que a finalidade da aula na escola é atingir os objetivos que ela pro- põe, e não apenas ofertar atividades divertidas. A diversão é um ele- mento importante nas aulas, mas não deve ser o único. Lembre-se também de que na atual BNCC o objetivo não é que os alunos ape- nas vivenciem as atividades, mas que também ocorra reflexão e crí- tica sobre os temas abordados. Para uma aula agradável e harmônica, é necessário atentar ao tem- po da aula. Isso tende a variar entre faixas etárias e entre escolas. Cal- cule o tempo de cada atividade, de modo que exista tempo hábil para explorar todos conteúdos planejados, a fim de que as suas possibilida- des de atividades não se esgotem antes do término do encontro. Para tanto, insira em seu plano de aula algumas atividades adicionais (“ati- vidades reservas”), as quais poderão ser abordadas caso haja necessi- dade, seja por sobra de tempo na aula, seja por alguma das atividades planejadas não obter sucesso. É normal que o professor planeje uma atividade e, por diferentes motivos, ela não saia como o pretendido. Tome cuidado também para que as atividades não sejam muito lon- gas, pois isso tende a diminuir a aderência à aula. Quando a atividade envolver esforço físico, em geral, considere cinco minutos por proposta em seu planejamento, deixando aberta a possibilidade de encurtar ou estender o tempo de realização, dependendo de como a prática for O livro Iniciação aos espor- tes de combate: Brazilian jiu-jitsu, judô e wrestling trata, de um modo leve e simples, dos fundamen- tos pedagógicos necessá- rios para a elaboração de aulas, tanto para crianças quanto para adultos, nas modalidades esportivas de combate de domínio. Os autores também apresentam mais de 150 atividades de lutas que podem ser utilizadas em aulas. ANDREATO, L. V.; MARCONDES, V. A. Manaus: OMP Editora, 2021. No prelo. Livro Ensino das lutas na escola 51 executada. Com base nos elementos anteriores, lembre-se do proces- so de aprendizagem e estabeleça um desenvolvimento que parta do mais simples em direção ao mais complexo. Iniciar o ensino com dinâ- micas muito difíceis pode ser assustador para os alunos. Por fim, entenda que o processo de aprendizado é contínuo e não ocorre apenas com os alunos. Você, como docente, irá apren- der a cada aula. Com o acúmulo de experiências, você terá cada vez mais facilidade para planejar e conduzir os encontros. Não de- sanime se algumas aulas não saírem como o planejado. Isso ocorre com todos. O importante é você se dedicar e perseverar; os resul- tados serão percebidos em suas aulas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este capítulo teve como objetivo tratar de temas relacionados às polí- ticas públicas educacionais brasileiras, bem como compreender como as lutas podem ser abordadas em nosso sistema educacional escolar. A edu- cação é um direito de todos, sendo dever da família e do Estado garanti- rem que toda criança tenha acesso à educação. Esse direito é garantido pela nossa Constituição Federal de 1988. Na escola, o sistema de ensino deve englobar diferentes áreas do conhecimento, que por sua vez devem explorar diferentes conteúdos no decorrer da educação básica. Dentro da escola, as lutas podem ser abordadas em todas as etapas da educação básica. No entanto, na educação infantil e no ensino médio as lu- tas são meios para alcançar objetivos de aprendizagem estabelecidos pela BNCC. No ensino fundamental, a luta é mais explorada, tanto dentro da parte de esportes de combate como em uma unidade específica de lutas, na qual devem ser trabalhadas as lutas de contexto regional e de matrizes indígena ou africana, bem como as lutas no Brasil e no mundo, a variar em cada fase do ensino. Embora o ensino das lutas possua algumas especifici- dades, de modo geral, ele segue os mesmos princípios didáticos e pedagó- gicos presentes em outros esportes e manifestações da cultura corporal. Diante das características e de todo contexto histórico e filosófico, as lutas podem ser consideradas excelentes ferramentas para alcançar as competências gerais da educação básica, além de oportunizarem que as aulas na escola sejam palco de discussões relacionadas a violência, bullying, respeito ao próximo e empatia, auxiliando na construção de uma sociedade mais justa, democrática e inclusiva. 52 Metodologia do ensino de lutas ATIVIDADES 1. Indique quais são os componentes curriculares dentro da unidade temática lutas aplicados ao ensino fundamental. 2. Cite os princípios condicionantes das lutas, ou seja, os elementos comuns entre as diferentes modalidades de combate. 3. De que forma as lutas podem ser utilizadas como instrumentos para inibir comportamento violento entre os praticantes? REFERÊNCIAS BARROSO, A. L. R.; DARIDO, S. C. A pedagogia do esporte e as dimensões dos conteúdos: conceitual, procedimental e atitudinal. Revista da Educação Física/UEM, v. 20, n. 2, p. 281-289, 2009. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versaofinal_site.pdf. Acesso em: 31 jul. 2020. BRASIL. Constituição Federal (1988). Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao. htm. Acesso em: 31 jul. 2020. BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394. htm. Acesso em: 31 jul. 2020. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Educação Física. Brasília, DF: MEC/SEF, 1997. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/ pdf/livro07.pdf. Acesso em: 4 ago. 2020. FRANCHINI, E.; DEL VECCHIO, F. B. Ensino de lutas: reflexões e propostas de programas. São Paulo: Scortecci, 2012. GOMES, M. S. P. et al. Ensino das lutas: dos princípios condicionais aos grupos situacionais. Movimento, v. 16, n. 2, p. 207-227, 2010. HARWOOD, A.; LAVIDOR, M.; RASSOVSKY, Y. Reducing aggression with martial arts: a meta- -analysis of child and youth studies. Aggression and Violent Behavior, v. 34, p. 96-101, 2017. OLIVIER, J. C. Das brigas aos jogos com regras: enfrentando a indisciplina na escola. Porto Alegre: ArtMed, 2000. RUFINO, L. G. B.; DARIDO, S. C. O ensino das lutas na escola: possibilidades para a Educação Física. Porto Alegre: Penso, 2015. TWEMLOW, S. W. et al. Effects of participation in a martial arts–based antibullying program in elementary schools. Psychology in the Schools, v. 45, n. 10, p. 947-959, 2008. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdfhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro07.pdf http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro07.pdf Lutas no Oriente 53 3 Lutas no Oriente Neste capítulo, veremos como se deu o desenvolvimento e a evolução de algumas modalidades de luta de origem oriental. Para tanto, na primeira seção, serão apresentados aspectos re- lacionados à ligação entre lutas e espiritualidade. Será necessá- rio você conhecer um pouco dos princípios religiosos que faziam parte da cultural oriental 1 , pois esses princípios impactaram todas as formas de arte no Oriente, incluindo as lutas e artes marciais. Na seção seguinte, serão apresentadas duas vertentes históricas das possíveis origens do wushu, bem como as possibi- lidades de prática de wushu na sociedade atual. Na terceira seção, nosso direcionamento será para o karatê-do, o caminho das mãos vazias, que f oi e ainda é uma das modalidades mais praticadas em todo o mundo, possuindo uma essência muito forte para o desenvolvimento dos princí- pios morais e éticos do ser humano. Na última seção, o foco será o judô, a arte do caminho suave, abordando desde o contexto histórico de desenvolvimento da modalidade até o judô compe- titivo dos dias atuais. Durante este capítulo, serão propostas algumas sugestões para abordagens de ensino das lutas na escola. Essas propostas têm como objetivo apresentar um ponto de partida e inspirar em você algumas possibilidades, mas tenha claro que não são diretrizes, apenas sugestões. Você, como docente, poderá usar sua criatividade para ampliar as possibilidades de ensino de acordo com sua realidade. Utilizamos neste capítulo os termos Oriente e oriental para nos referir a países asiáticos. Nossa intenção não é desrespeitar a comunidade asiática; utilizamos esses termos apenas para demarcar uma divisão geográfica. 1 54 Metodologia do ensino de lutas 3.1 Lutas, espiritualidade e bushido Vídeo A história testemunha que a luta sempre esteve presente na vida humana por diferentes razões, entre elas sobrevivência, oferenda aos deuses, rituais religiosos, rituais para demarcar a transição para a vida adulta, preparação para combates e guerras, como forma de espetá- culo e até mesmo como prática de lazer. Embora cada região tenha suas peculiaridades, essas motivações para a prática não se diferen- ciam muito entre as diversas regiões do nosso planeta. No entanto, um aspecto foi mais marcante no Oriente: a relação entre as lutas e a espiritualidade. A prática de algumas modalidades era realizada, e ain- da é, por alguns grupos com o intuito da elevação espiritual. Para compreendermos essa relação, será necessário conhecermos os princípios gerais do budismo, pois ele teve impacto direto na criação dos valores morais e éticos presentes nas lutas, bem como em outras artes. A história do budismo 2 se inicia com Siddartha Gautama 3 , há aproximadamente 600 anos a.C., na Índia 4 . Ele foi um príncipe que provou de todos os luxos de sua posição social, em um período em que havia uma divisão muito grande da sociedade indiana em castas. Seu pai, Shuddhodana, não poupou esforços para evitar que Siddartha provasse das tristezas e dos sofrimentos da vida. Esses esforços do rei tinham como objetivo levar o filho a ser seu sucessor, e não a virar um líder espiritual, tal como um sábio da época proferiu quando o príncipe era recém-nascido (DAISSEN JI, 2019a). No entanto, próximo aos 30 anos, Siddartha vivia uma fase de gran- de angústia existencial. Não conseguia aceitar que toda vida humana tivesse fim em velhice, doença ou morte. Diante disso, após o nasci- mento de seu filho, ele decidiu fugir do seu reino e se juntar a um gru- po de ascetas 5 , na busca de uma solução para o sofrimento da vida. O príncipe então abdicou de todo luxo de seu reino, raspou seu cabelo como sinal de que não pertencia mais à casta da nobreza e passou a meditar com outros ascetas. Naquele grupo, existia o conceito de que, para que houvesse alguma realização espiritual, o corpo deveria ser abandonado. Siddartha fez a renúncia de comer o mínimo possível, vi- venciando longos jejuns e comendo apenas alimentos que caíssem das árvores (DAISSEN JI, 2019a). A história do budismo, assim como de outras manifestações religiosas, é ampla e envolve discussões complexas. Como o objetivo deste capítulo é com- preender a ligação entre lutas e espiritualidade, limitaremo-nos apenas a apresentar de modo superficial os principais fatos relacionados à história budista. 2 Siddartha Gautama significa “aquele da família Gautama que realiza suas metas” e é uma simplificação de Sarvarthasiddha Gautama. Em alguns textos, tam- bém é utilizada a denominação Shakyamuni, que significa “o sábio dos Shakyas”, referindo-se ao clã de origem de sua mãe, o qual era um clã de guerreiros. 3 Não há consenso sobre o local de nascimento na Índia e os anos em que ocorreram os principais fatos da vida de Siddartha Gautama. 4 Ascetas eram pessoas que aban- donavam os prazeres mundanos e realizavam práticas duras em busca de uma realização espiritual. 5 Lutas no Oriente 55 Essas duras práticas quase o levaram à morte, fato que o fez com- preender que o caminho correto está no equilíbrio das coisas. Anos após praticar a meditação, Siddartha então conseguiu se tornar um Buda 6 , termo que significa “o desperto”. Esse despertar é o objetivo final das práticas budistas, que seria o despertar das ilusões que levam ao sofrimento, rompendo um ciclo de vidas repetidas. A meditação seria um dos caminhos para isso, pois permite romper as ilusões de passado e futuro, mantendo o indivíduo no aqui e agora (DAISSEN JI, 2019a). A mente humana é muito barulhenta. Se você parar por alguns mi- nutos e tentar meditar, mantendo a atenção no momento presente, irá perceber que temos uma “mente de macaco”, a qual pula de pen- samento em pensamento, do passado ao futuro, e que briga para não permanecer no agora e nos mostrar a nossa real identidade. Após mui- ta prática, essa mente começa a se acalmar e nossa verdadeira identi- dade é revelada. É por conta desse entendimento que milhares de pessoas seguiam os ensinamentos proferidos por Buda. Após atingir o despertar 7 , Buda passou anos ensinando e formando alunos e discípulos. A raiz dos ensina- mentos budistas tem como base o princípio da não violência. Toda ação humana deveria pesar sobre o quanto de sofrimento é causado, e as esco- lhas deveriam ser pelas opções que causassem o menor sofrimento. Além disso, Buda ensinou as quatro nobres verdades (DAISSEN JI, 2019a): Primeira nobre verdade – A impermanência da vida (Dukkha) A vida é cíclica, constituída por oscilações. Por exemplo, existem momentos de saúde e momentos de doença, fases de riqueza e fases de pobreza, períodos de alegria e períodos de morte, amores que começam e amores que terminam, existe o nascimento e existe a morte. Por não aceitar essa transitoriedade, o ser humano sofre. Segunda nobre verdade – A origem do sofrimento (Samudaya) O sofrimento é real e a causa dele é o apego, que seria um agarramento a pessoas, situações ou objetos. Esse apego é diferente de amor, aproximando-se mais de uma espécie de teimosia e egoísmo; é um desejo de que tudo seja nosso, de que tudo seja estável, diferentemente do que é explicado na primeira nobre verdade. (Continua) Após o despertar, não é mais utilizado o nome Siddartha Gautama. 6 No processo de imigração, os termos foram mudando e, como consequência, alguns sentidos originais foram alterados. O termo meditação é um deles, uma vez que não reflete com exatidão sua ideia original, pois quem medita, medita sobre algo. O mais apropriado seria utilizar o conceito de shikantaza: “sentar-se absolutamente quieto, alémdos pensamentos, é não seguir nenhum pensamento, não fazer associações de ideias e simplesmente ficar em estado de serenidade, ouvindo as coisas que acontecem sem observá-las, sem esperar o próximo som, sem acompanhar nada, sem tentar saber qual o nome do pássaro que cantou lá fora. Sentar-se em zazen é só sentar, é só estar” (GENSHÔ, 2019, grifo nosso). Saiba mais Também são utilizados os termos iluminação, nirvana ou satori para se referir ao despertar. 7 56 Metodologia do ensino de lutas Terceira nobre verdade – A cessação do sofrimento (Nirodha) Se o sofrimento existe e tem uma causa, então, é possível cessar seus efeitos se a causa por retirada. Para isso, é preciso compreender e aceitar a transitoriedade da vida. No entanto, isso não é uma tarefa fácil. Quarta nobre verdade – O caminho para a cessação do sofrimento (Magga) Apresenta um caminho para o fim do sofrimento. Por ser composto de oito passos, indicados por Buda, é conhecido como o caminho óctuplo. Essa forma de conduta e prática envolve compreensão, pensamento, fala, ação, meio de vida, esforço, consciência e meditação. Na ótica budista, não há mandamentos ou pecados, o que existem são princípios e o fato de que toda ação gera uma reação. Para con- templar o caminho óctuplo, é necessária a prática de manter a atenção no momento presente, não apenas no momento da meditação senta- da (zazen), e sim durante todas as atividades do dia. Ao lavar a louça, o foco é a louça; ao varrer, o foco é o varrer. Isso não é nada fácil. Essas práticas poderiam levar à compreensão da nossa verdadeira identida- de, gerando o fim do sofrimento. O entendimento dos princípios e ensinamentos budistas não é nada fácil, e a breve explicação não permite uma verdadeira compreensão disso. No entanto, precisamos conhecer um pouco dos ensinamentos de Buda, pois durante muitos anos o budismo esteve presente no Oriente, impactando diferentes países. Esse impacto pode ser observa- do não apenas nas lutas, mas também em todas as artes, como música e pintura. Você irá perceber essa influência budista ao conhecer o con- texto histórico de algumas lutas de origem oriental. Uma dessas influências dos princípios religiosos foi so- bre os samurais, termo que em japonês significa “aqueles que servem”. No Japão, no período feudal, os samurais eram os responsáveis pela defesa de seus senhores e da pátria. Eles eram exímios guerreiros, com altas habilidades no manejo de armas manuais, como espada, arco e flechas e bastões. Para se tornar um samurai, havia um sistema mui- to rígido de treinamento.Monge em prática de meditação. NN NN NN NN NN NN NN NN NN Em dado momento, os samurais se sentiram atraídos pelo zen-budismo, que se encontrava muito presente em toda sociedade ja- ponesa. Esse interesse não foi especificamente pelos ensinamentos que levavam a uma cultura de não violência, pois os samurais colocavam sua honra em primeiro lugar e não pensavam duas vezes para tirar a vida de quem os ofendesse; eles até mesmo cometiam suicídio 8 para ter uma morte que reestabelecesse sua honra. O interesse dos samurais pelo zen-budismo se deu por conta da forma como os monges encaravam a morte, sem um medo evidente, quase que com indiferença. Diante disso, muitos samurais procuraram mestres para entender um pouco melhor o que os levava a encarar a morte com naturalidade. Devido a esse contato, a conduta dos samurais acabou sendo in- fluenciada pelos valores religiosos. Nesse contexto, é criado o código do caminho do guerreiro, o bushido, que contém sete princípios, apre- sentados na figura a seguir. Figura 1 Princípios do bushido Cortesia (Rei) • Os samurais não têm moti- vos para serem cruéis. Não necessitam demonstrar sua força. Um samurai é cortês inclusive com os seus inimi- gos. Sem essa mostra direta de respeito, não somos me- lhores que os animais. • Um samurai é respeitado não somente pela sua força na batalha, mas também pela forma como trata os outros. A autêntica força interior do samurai se torna evidente em tempos de apuros. 4 Honra (Meyo) • O autêntico samurai só tem um juiz da sua própria honra, e é ele mesmo. As decisões que toma e como as realiza são um reflexo do que é na realidade. • Não pode se ocultar de si mesmo. 5 Justiça (Gi) • Honre os seus acordos com todos. • Acredite na justiça, mas não na que emana dos demais, e sim na tua própria. • Para um autêntico samurai, não existem as tonalidades cinzas no que se refere à honra e justiça; só existe o certo e o errado. 1 Coragem (Yu) • Eleva-te sobre as pessoas que temem agir. Ocultar-se como uma tartaruga na sua carapuça não é viver. • Um samurai deve ter valor heroico, e isso é absoluta- mente arriscado e perigoso, pois só assim estará a viver a vida de maneira plena, com- pleta, maravilhosa. A coragem heroica não é cega, é inteli- gente e forte. • Substitua o medo pelo res- peito e pela precaução. 2 Compaixão/ benevolência (Jin) • Mediante o treino intenso, o samurai se converte em um indivíduo rápido e forte. Não é como o resto dos homens. Ele desenvolve um poder que deve ser usado para o bem de todos. • Tenha compaixão, ajude os teus companheiros em qualquer oportunidade. Se a oportunidade não surge, saia do teu caminho para encontrá-la. 3 Sinceridade absoluta (Makoto) • Quando um samurai diz que fará algo, é como se já o tivesse feito. Nada nesta terra o deterá na realização do que disse que fará. • Não existe “dar sua palavra”. Não existe “prometer”. O simples fato de falar coloca em movimento o ato de fazer. • Falar e fazer são a mesma ação. 6 Dever e lealdade (Chugo) • Para o samurai, ter feito ou dito “algo” significa que esse “algo” lhe pertence. Ele é responsável por isso e por todas as consequências que se seguem. • Um samurai é intensamente leal àqueles que estão sob o seu cuidado. Por aqueles que é responsável, permanece fiel. • As palavras de um homem são como as suas impres- sões; podem segui-lo onde quer que ele vá. • Cuidado com o caminho que segues. 7 Fonte: Adaptada de Associação Juvenil de Karaté Portugal, 2010. O filme O pequeno Buda envolve um drama no qual monges budistas investigam se um menino norte-americano é a nova manifestação em vida de seu falecido mestre. No meio dessa história, são apresentados momentos da vida de Siddartha Gautama, que veio a se tornar o Buda. Direção: Bernardo Bertolucci. EUA: Miramax Films, 1993. Filme Ritual conhecido como harakiri ou seppuku, no qual o samurai deveria demonstrar autocontrole ao fincar uma espada contra o próprio abdômen. Durante o ritual, o samurai podia contar com o auxílio de outro samurai, o qual deveria decapitá-lo ao sinal de qualquer fraqueza. Essa função de auxiliar no ritual de harakiri era de grande honra, normalmente confiada a algum familiar ou amigo muito próximo. 8 Lutas no Oriente 57 Em dado momento, os samurais se sentiram atraídos pelo zen-budismo, que se encontrava muito presente em toda sociedade ja- ponesa. Esse interesse não foi especificamente pelos ensinamentos que levavam a uma cultura de não violência, pois os samurais colocavam sua honra em primeiro lugar e não pensavam duas vezes para tirar a vida de quem os ofendesse; eles até mesmo cometiam suicídio 8 para ter uma morte que reestabelecesse sua honra. O interesse dos samurais pelo zen-budismo se deu por conta da forma como os monges encaravam a morte, sem um medo evidente, quase que com indiferença. Diante disso, muitos samurais procuraram mestres para entender um pouco melhor o que os levava a encarar a morte com naturalidade. Devido a esse contato, a conduta dos samurais acabou sendo in- fluenciada pelos valores religiosos. Nesse contexto, é criado o código do caminho do guerreiro, o bushido, que contém sete princípios, apre- sentados na figura a seguir. Figura 1 Princípios do bushido Cortesia (Rei) • Os samurais não têm moti- vos para seremcruéis. Não necessitam demonstrar sua força. Um samurai é cortês inclusive com os seus inimi- gos. Sem essa mostra direta de respeito, não somos me- lhores que os animais. • Um samurai é respeitado não somente pela sua força na batalha, mas também pela forma como trata os outros. A autêntica força interior do samurai se torna evidente em tempos de apuros. 4 Honra (Meyo) • O autêntico samurai só tem um juiz da sua própria honra, e é ele mesmo. As decisões que toma e como as realiza são um reflexo do que é na realidade. • Não pode se ocultar de si mesmo. 5 Justiça (Gi) • Honre os seus acordos com todos. • Acredite na justiça, mas não na que emana dos demais, e sim na tua própria. • Para um autêntico samurai, não existem as tonalidades cinzas no que se refere à honra e justiça; só existe o certo e o errado. 1 Coragem (Yu) • Eleva-te sobre as pessoas que temem agir. Ocultar-se como uma tartaruga na sua carapuça não é viver. • Um samurai deve ter valor heroico, e isso é absoluta- mente arriscado e perigoso, pois só assim estará a viver a vida de maneira plena, com- pleta, maravilhosa. A coragem heroica não é cega, é inteli- gente e forte. • Substitua o medo pelo res- peito e pela precaução. 2 Compaixão/ benevolência (Jin) • Mediante o treino intenso, o samurai se converte em um indivíduo rápido e forte. Não é como o resto dos homens. Ele desenvolve um poder que deve ser usado para o bem de todos. • Tenha compaixão, ajude os teus companheiros em qualquer oportunidade. Se a oportunidade não surge, saia do teu caminho para encontrá-la. 3 Sinceridade absoluta (Makoto) • Quando um samurai diz que fará algo, é como se já o tivesse feito. Nada nesta terra o deterá na realização do que disse que fará. • Não existe “dar sua palavra”. Não existe “prometer”. O simples fato de falar coloca em movimento o ato de fazer. • Falar e fazer são a mesma ação. 6 Dever e lealdade (Chugo) • Para o samurai, ter feito ou dito “algo” significa que esse “algo” lhe pertence. Ele é responsável por isso e por todas as consequências que se seguem. • Um samurai é intensamente leal àqueles que estão sob o seu cuidado. Por aqueles que é responsável, permanece fiel. • As palavras de um homem são como as suas impres- sões; podem segui-lo onde quer que ele vá. • Cuidado com o caminho que segues. 7 Fonte: Adaptada de Associação Juvenil de Karaté Portugal, 2010. O filme O pequeno Buda envolve um drama no qual monges budistas investigam se um menino norte-americano é a nova manifestação em vida de seu falecido mestre. No meio dessa história, são apresentados momentos da vida de Siddartha Gautama, que veio a se tornar o Buda. Direção: Bernardo Bertolucci. EUA: Miramax Films, 1993. Filme Ritual conhecido como harakiri ou seppuku, no qual o samurai deveria demonstrar autocontrole ao fincar uma espada contra o próprio abdômen. Durante o ritual, o samurai podia contar com o auxílio de outro samurai, o qual deveria decapitá-lo ao sinal de qualquer fraqueza. Essa função de auxiliar no ritual de harakiri era de grande honra, normalmente confiada a algum familiar ou amigo muito próximo. 8 58 Metodologia do ensino de lutas Diante do exposto, podemos compreender melhor um pouco dos valores presentes no budismo, valores esses que influenciaram as dife- rentes formas de arte no Oriente, incluindo as lutas. 3.2 Wushu Vídeo Na Índia, o budismo enviou monges para diferentes países, com o in- tuito de disseminar seus ensinamentos, bem como, em alguns momentos, para fugir de conflitos com outras religiões. Assim, o budismo foi propaga- do pelo continente asiático. Na China, houve um movimento para que o budismo lá existente retornasse às suas caraterísticas do tempo de Buda. Surge então o Ch’an, que no Japão passa a ser conhecido como zen-budismo, uma linhagem na qual o principal foco é a meditação. Um personagem especial toma a cena na China, Bodhidharma (sé- culo VI), também conhecido como Bodaidaruma ou Daruma, um prínci- pe indiano que abandonou sua posição social para viver como monge. Na tradição budista, Bodhidharma é considerado o responsável pelo de- senvolvimento do Ch’an, com chegada no ano 526 (DAISSEN JI, 2019b; DAISSEN JI, 2009). No entanto, não existem muitas certezas sobre a vida desse mestre, e alguns relatos envolvem muito misticismo e fantasias, assim como a história de muitas lutas e artes marciais 9 . De toda forma, iremos abordar duas ver- tentes discutidas, pois são relevantes para podermos entender as origens do wushu. Primeiramente, é necessário fazermos uma ponderação sobre o uso dos termos kung fu e wushu. Muitas pessoas e textos adotam o termo kung fu para se referir a um conjunto de técnicas de lutas muito presente na China. No entanto, o uso desse termo não é o mais apro- priado, pois, para os chineses, kung fu podia e pode ser utilizado para expressar o desenvolvimento em diversas artes ou práticas. Por exemplo, pode-se dizer que um pintor talentoso possui um bom kung fu, bem como é pos- sível afirmar que um habilidoso cozinheiro tem um bom kung fu. Mocarzel (2011, p. 32) re- porta que se pode entender como kung fu “qualquer grande conhecimento e/ou prá- tica alcançados após muito esforço, traba- Estátua de Bodhidharma. VV VN NVV V VVV NN VVN NN NN NNN NNN NNN Esse é um ponto a ser ponderado no estudo da história das lutas, pois na maioria das vezes faltam documentos confiáveis e sobram misticismos e fantasias. 9 O boneco da imagem é conhecido como Daruma e é uma representação de Bodhidharma. Existe uma tradição de que esse boneco vem sem a pintura dos olhos e, ao recebê-lo, deve-se pintar um dos olhos e realizar um pedido. O segundo olho só será pintado se o pedido for atendido, como agradecimento. Essa tradição é mais difundida entre não budistas, uma vez que a prática de pedidos não integra os ensina- mentos da maior parte das escolas de budismo. N NNV NN NV NNN NN NNN NNN NN N Curiosidade Lutas no Oriente 59 lho e treino árduo e que se aperfeiçoam com o tempo de prática, incluindo-se aqui a caligrafia, pintura, escultura, e claro, arte marcial”. Diante disso, para se referir ao sistema de luta, o mais indicado seria o emprego do termo wushu, que tem como significado arte marcial (MOCARZEL; MURAD; CAPINUSSÚ, 2013). Em relação às origens do wushu, uma corrente de praticantes e es- tudiosos defendem que não existe uma data certa sobre o surgimento dessa modalidade, sendo considerada uma prática milenar. Dessa for- ma, Bodhidharma teria sido apenas mais um praticante da modalida- de. No entanto, uma segunda corrente defende que ele chegou à China em uma de suas peregrinações e lá evidenciou que os monges eram muito letárgicos e tinham um baixo condicionamento físico, não pos- suindo aptidão para se manterem dispostos e em condições de execu- tar as práticas de meditação, que em alguns dias podem somar longas horas na mesma posição. Diante disso, Bodhidharma, que já possuía experiência em técnicas marciais, desenvolveu um sistema de lutas baseado nos movimentos de animais. Surgiu então o wushu, com estilos inspirados em animais como tigre, louva-a-deus, macaco, serpente, garça, entre outros. Exemplo da prática de wushu inspirada nos movimentos dos animais. LNNNNNNN_OVNNNVNdN NNNNNNNNNNNNN TN NN dIN by W NN NNN d6 1N NN NNN NNN NNN N Nos vídeos a seguir, você poderá ver demonstra- ções de alguns estilos de wushu inspirados nos movimentos de animais. Tigre Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=WswUZhs_ d0s. Acesso em: 7 ago. 2020. Louva-a-deus Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=KaxKo_ xDCro. Acesso em: 7 ago. 2020. Serpente Disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=iMLgWmrrsm8. Acesso em: 7 ago. 2020. Garça Disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=v6UvuKx6Hhw. Acesso em: 7 ago. 2020. Vídeo https://www.youtube.com/watch?v=WswUZhs_d0s https://www.youtube.com/watch?v=WswUZhs_d0shttps://www.youtube.com/watch?v=WswUZhs_d0s https://www.youtube.com/watch?v=KaxKo_xDCro https://www.youtube.com/watch?v=KaxKo_xDCro https://www.youtube.com/watch?v=KaxKo_xDCro https://www.youtube.com/watch?v=iMLgWmrrsm8 https://www.youtube.com/watch?v=iMLgWmrrsm8 https://www.youtube.com/watch?v=iMLgWmrrsm8 https://www.youtube.com/watch?v=v6UvuKx6Hhw https://www.youtube.com/watch?v=v6UvuKx6Hhw https://www.youtube.com/watch?v=v6UvuKx6Hhw 60 Metodologia do ensino de lutas De toda forma, se foi de fato Bodhidharma quem criou o wushu ou se ele foi apenas mais um difusor da modalidade, parece haver um consenso de que os monges budistas a utilizaram inspirados nos movimentos dos animais, tanto para adquirir uma melhor forma física para sustentar as práticas meditativas quanto para utilizar a própria prática do wushu como uma forma de meditação. Todavia, é im- portante destacar que havia centenas ou milhares estilos de wushu no Império Chinês, com diferentes caracterís- ticas e princípios. No decorrer dos anos, devido ao processo de glo- balização e ao sistema econômico voltado ao capital, as lutas e tradições também foram mercantilizadas, ao menos em partes. As práticas de wushu que tinham uma característica marcante de desenvolvimento espiritual e/ou defesa marcial ganharam, nos tempos contemporâneos, uma roupagem de esporte de combate. A Confederação Brasileira de Kungfu Wushu (CBKW) apresenta, em seu site, seis modalidades de wushu: wushu tradicional, taolu esportivo, sanda, shuaijiao, wushu interno (tai chi chuan) e qigong-saúde, com possibilidades de variações dentro de cada estilo (CONFEDERAÇÃO BRASI- LEIRA DE KUNGFU WUSHU, 2020). Como possibilidades de ensino do wushu na escola, você, como professor, deverá pensar em diferentes dinâmicas que contem- plem os objetivos estabelecidos no início do ano letivo. Pensando na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), você pode apresentar alguns movimentos presentes no wushu para que seus alunos ex- perimentem essas possibilidades corporais. Caso sua turma tenha algum praticante, você pode contar com o auxílio dele. No entanto, lembre-se de que a perfeição dos movimentos não deverá ser ob- jetivo central de suas aulas. Você pode também tentar incluir esses movimentos em brincadeiras (ex.: pega-pega em que o pegador só pode se mover imitando um animal), bem como instigar os alunos a criarem seus próprios golpes com base em movimentos de animais. Por fim, o wushu pode servir como ponto de partida para discutir as transformações históricas, o processo de esportivização e a midiati- zação das lutas. Monge praticando wushu. VN NN VN NN NN NN NNN NN NN NN O filme O grande mestre conta a história de um exímio praticante de wushu, o mestre Yip Man, que teve entre seus discípulos o astro de cinema Bruce Lee. Por meio desse drama cine- matográfico, é possível conhecer um pouco mais sobre o wushu. Direção: Wilson Yip. China: Mandarim Films, 2008. Filme Lutas no Oriente 61 3.3 Karatê Vídeo Os primeiros registros sobre o karatê carecem de fontes documen- tais, sendo sua transmissão realizada de maneira oral por meio das ge- rações. Em partes, isso se deve à cultura dos seus praticantes de manter em segredo os aspectos relacionados ao karatê, como forma de conser- var o conhecimento restrito ao seu clã. Diante dessa ressalva, iremos abordar a vertente histórica mais difundida sobre as origens de karatê, a qual relata que a modalidade teve suas primeiras influências advindas de outras modalidades, como o wushu, o tegumi, jujutsu e o muay boran 10 , visto que, em meio às tran- sações comerciais existentes entre países, havia um intercâmbio cultural com os camponeses de Okinawa (ANTONY, 2015). Alguns relatos indicam grande in- fluência do wushu, especialmente pelo fato de a ilha de Okinawa, até então, ser domínio da China. Por conta disso, dentro do karatê existem citações respeitosas ao patriarca budista Bodhidharma, mais conhecido como Daruma no Japão. Em Okinawa, são realizadas adaptações desses sistemas de luta, ao ponto de ser criada uma nova modalidade, sem uso de armas. Inicial- mente, esse sistema de luta era conhecido como Okinawa-te, ou ape- nas te (ao qual é atribuído o significado de “mãos”). Com o decorrer dos anos, passou a se chamar karatê, significando “mãos vazias” (kara: vazio; te: mãos). Posteriormente, devido à percepção de que não se tratava apenas de uma arte de luta, mas sim de uma forma de desen- volvimento físico, mental e espiritual, atribuiu-se o do, que expressa o conceito de caminho. Assim, karatê-do (空手道) pode ser compreendi- do como o “caminho das mãos vazias”. Ainda, há a possibilidade de um sentindo mais filosófico para o termo, com referência ao “caminho de esvaziamento dos desejos/apegos terrenos”. O sistema de luta foi se aprimorando, e outro ponto histórico mar- cante é quando Okinawa passou a ser domínio do Japão, ao final da Di- nastia Ming (1368-1644). Nessa fase, o uso de armas foi proibido na ilha, a fim de evitar revoluções do povo nativo (JAPAN KARATE ASSOCIATION, 2020). A própria prática do karatê foi inibida, com registros de treinos secretos ocorrendo pela noite. Esses fatos fizeram com que a prática fosse intensificada, e o karatê se caracterizou ainda mais como a forma Arte tailandesa de defesa pessoal civil e militar que evoluiu para se tornar o muay thai. 10 62 Metodologia do ensino de lutas de defesa dos camponeses. Como o karatê era praticado em diferentes regiões da ilha, surgiram diferentes estilos da modalidade. Essa parte histórica integra o dito karatê antigo, uma prática fecha- da e exclusiva de Okinawa. O karatê moderno, por sua vez, surgiu com a difusão do karatê para além de Okinawa. Nessa fase, Gichin Funa- koshi (1868–1957) é considerado o pai do karatê moderno, pois iniciou os estudos da modalidade aos 11 anos e teve a vida toda voltada à disseminação de uma arte capaz de auxiliar o desenvolvimento integral do ser humano, repleto de princípios éticos e morais. Na época, havia uma resistência de muitos caratecas para que o karatê se mantivesse restrito aos moradores de Okanawa. No entanto, Funakoshi fez de- monstrações da arte fora da ilha e passou a residir em Tóquio, como forma de facilitar a divulgação do caminho das mãos vazias, que veio a se tornar popular não apenas no Japão, mas em todo o mundo. Entre os ensinamentos e princípios presentes no karatê, é relevante conhecer o código moral e ético (Dojo Kun), criado por Kanga Sakukawa (1733–1815) e seguido até os dias atuais por muitos praticantes. Figura 2 Código moral e ético do karatê Fonte: Adaptada de Federação Paulista de Karatê-Do Tradicional, 2020. Dojo Kun Esforçar-se para a formação do caráter Esforço diário de aperfeiçoar o caráter e seu potencial. (Mestre Yasayuki Sasaki ! ) Fidelidade para com o verdadeiro caminho da razão Makoto significa real imagem do bom ou mau. Ter capacidade de analisar o que é realmente bom e colocar em prática. (Mestre Yasayuki Sasaki) Para auxiliar a compreensão do Dojo Kun, inserimos comentários do mestre Yasayuki Sasaki. ! Criar o intuito de esforço O esforço não é momentâneo e deve existir em todas as áreas. (Mestre Yasayuki Sasaki) Respeitar acima de tudo Cumprimentos são atos de respeito às pessoas que demonstram respeito. É também respeitar a própria capacidade de sua personalidade e elevar o potencial de ser humano. Existem diversos tipos de cumprimentos. Ex.: ao seu Senpai ou pessoa de grande valor para a humanidade. Deve-se respeitar a si mesmo e a seus limites. (Mestre Yasayuki Sasaki) Conter o espírito de agressão Kekki é atitude de violência com impulsos de descontrole emocional contra as pessoas. O espírito do karatê não serve para sentir algo contra as pessoas, e sim sentir motivação para aperfeiçoar e lapidar técnicas que poderão ser utilizadas no decorrer da vida. (Mestre Yasayuki Sasaki) HITOTSU – JINKAKU KANSEI NI TSUTOMURU KOTO HITOTSU– DORYOKU NO SEISHIN-O YASHINAU KOTO HITOTSU – MAKOTO NO MICHI-O MAMORU KOTO HITOTSU – REGUI-O OMONZURU KOTO HITOTSU – KÉKI NO YU-O IMASHIMURU KOTO Na sociedade atual, o karatê é muito presente na forma do seu modelo esportivo. Existem diversos estilos de karatê, como Goju-ryu, Shito-ryu, Gensei-ryu, Toshinkai, Seiwakai, Shorinji, Uechi-ryu, Shotokan, Funakoshi, considerado o pai do karatê moderno. TN N J Vp VN NN N B NN NN W VN Vm Nd VV C Nm m NN N Lutas no Oriente 63 Wado-ryu, Kenyu-ryu, Kyokunshin-kai e Kenshi-kai, contando também com diferentes federações que possuem regras próprias. A seguir, ire- mos apresentar alguns exemplos e/ou pontos comuns do karatê em seu modelo competitivo, tendo como base o estilo Shotokan, muito presente no Brasil. O karatê possui um sistema de graduação com dez classes (kyu) até a faixa-preta, sendo: faixa-amarela (9º kyu); faixa-laranja (8º kyu); faixa-azul clara (6º kyu); faixa-marrom (1º ao 3º kyu). faixa-verde (7º kyu); faixa-azul escura (4º kyu); faixa-roxa (5º kyu); faixa-branca (10º kyu); Na faixa-preta, ainda existem outras dez classes (dan) (JAPAN KARATE ASSOCIATION, 2017). A prática do karatê pode ser dividia em três partes, o kihon (técnicas básicas), o kata (formas) e o kumite (luta), porém todas as partes devem ser estudadas como um todo. Para competições, a maioria das federa- ções apresentam disputas de kata e kumite. No entanto, algumas fede- rações apresentam outros meios de competições, como o embu, uma espécie de luta coreografada, e o fuku-go, que intercala kata e kumite nas disputas. “Kata são rotinas de ensino usadas para preservar e passar o know-how ! . O sufixo kata (neste caso em caráter diferente das artes marciais) significa ‘forma de fazer’. Ele se refere à forma ou padrão que pode ser praticada para desenvolver habilidades particulares e mentalidade” (ROTHER, 2012, grifos do original). Know-how pode ser traduzido como saber fazer. ! Kata Prática de kata no karatê. LVNm VN LV Vd LVm VNN NN NN NN NN NN NN 64 Metodologia do ensino de lutas Para as disputas de kata e kumite, em geral, existem divisões por fai- xa etária, sexo e graduação. Para o kumite, algumas federações incluem divisões de categorias pela massa corporal dos participantes, enquanto nas federações mais tradicionais essa divisão não existe. “Kumite (encontro de mãos) é, nas modalidades modernas das artes marciais japonesas, um dos componentes de treino e de competição, a luta, o combate. [...] O objetivo do kumite é demonstrar a efetividade, tanto das técnicas de ataque como de defesa” (ACADEMIA DE KARATE-DO SHOTOKAN, 2015, grifos nossos). Kumite Combate entre karatecas. VV NNV N M NV NN NN W VNV m Nd VV C Nm m NN N Como possibilidades de ensino do karatê na escola, as sugestões são semelhantes às apresentadas para o wushu. Você, como professor, deverá pensar em diferentes dinâ- micas que contemplem os objetivos estabelecidos no início do ano letivo. Além disso, os objetivos apresentados na BNCC devem ser considerados. Nesse sentido, você pode apresentar alguns movi- mentos presentes na modalidade para que seus alunos experimen- tem essas possibilidades corporais, sendo possível contar com o auxílio de algum aluno da turma que pratique ou até mesmo de um praticante convidado. No karatê, uma estratégia interessante pode ser a tentativa da re- produção de um kata básico 11 da modalidade. Você pode também ten- tar incluir movimentos do karatê em brincadeiras (ex.: acertar objetos com técnicas de soco ou chute), bem como instigar os alunos a criarem seus próprios katas. A história da cultura oriental geralmente é pouco explorada em nossas escolas, e a apresentação do karatê pode servir como meio de realizar práticas integradas com outras disciplinas, como Arte e História, com o intuito de explorar aspectos históricos e culturais das civilizações orientais. O filme O faixa preta re- trata uma história em que dois discípulos disputam o legado de seu mestre, a faixa-preta. Por meio do drama, é possível identificar valores e ensinamentos presentes na arte do caminho das mãos vazias. Direção: Shunichi Nagasaki. Japão: Toei Company, 2007. Filme Na internet, existem diversas demonstrações de kata. O link a seguir mostra uma apresentação do primeiro kata no karatê Shotokan: https://www.youtube. com/watch?v=BkOizz0m2VQ. Acesso em: 18 ago. 2020. 11 https://www.youtube.com/watch?v=BkOizz0m2VQ https://www.youtube.com/watch?v=BkOizz0m2VQ Lutas no Oriente 65 3.4 Judô Vídeo O judô foi fundado em 1882, no Japão, por Jigoro Kano (1860-1938). O termo judô é representado por dois ideogramas (柔道), os quais transmitem o sentido de suavidade (jū) e caminho (dō), formando o conceito de caminho da suavidade ou caminho suave (KANO, 2008). Para compreender a história do judô, é necessá- rio conhecer o contexto social da época. O Japão, até final do século XIX, vivia sob regime feudal 12 , coman- dado sempre por um imperador. Cada era recebia o nome do imperador em atuação. Assim, o judô foi fundado na Era Meiji (1867–1912), aos comandos do Imperador Meiji Tennō (Mutsuhito) (1852–1912). Essa era foi marcada pela troca de sis- tema de governo, período conhecido como Restauração Meiji, iniciada em 1868, passando a abrir os portos para negociações comerciais com outros países. Nesse período, o Japão passa a militarizar suas tropas, tirando dos samurais a missão de defender a pátria. Para que essa transição ocorresse, os samurais perderam o direito de portar suas es- padas, e a sua arte, o jujutsu (tradicional jiu-jitsu japonês), foi proibida (KANO, 2008; WATSON, 2011). Nessa fase de desuso do jujutsu, surgiu a figura de Jigoro Kano, filho de uma família tradicional do Japão, que decidiu juntar alguns estilos do tradicional jujutsu japonês 13 para formar um estilo próprio, o qual auxilia- ria no desenvolvimento moral e espiritual dos seres humanos. No judô, não se emprega a ideia de que Kano criou uma modalidade, mas sim de que ele fundou, com base em conhecimentos e técnicas já existentes, uma nova modalidade. Assim, em 1882, foi fundada a primeira escola de judô, a Kodokan (Instituto do Caminho da Fraternidade) (KANO, 2008; WATSON, 2011). Entre os princípios presentes na modalidade, ganham destaque três: o princípio da máxima eficiência (Seiryoku Zen’Yo); o princípio da pros- peridade e benefícios mútuos (Jita Kyoei); o princípio da suavidade (Ju). O sistema feudal durou 256 anos. 12 Kano, fundador do judô. 庚 寅 五 月 NW VNVm NdVV CNm m NNN No Japão, existiam diversos estilos de jujutsu, com caracte- rísticas peculiares em cada clã de samurais. 13 66 Metodologia do ensino de lutas Esses princípios deveriam guiar a prática e conduta dos judocas não apenas no dojô, que é o local da prática, mas em todas as situações de sua vida. O judô se tornou uma modalidade popular no Japão, até que, em dado momento, Kano enviou seus principais alunos para rodarem o planeta, com a missão de disseminar a modalidade. A missão foi bem-sucedida, a ponto de em 1964 o judô participar dos Jogos Olímpicos de Verão de Tó- quio, como uma modalidade de demonstração. Em 1972, nos Jogos Olím- picos de Verão de Munique, o judô passou a integrar de vez o quadro das modalidades olímpicas. No entanto, apenas em 1992, nos Jogos de Barce- lona, as mulheres tiveram oportunidade de participar das disputas no judô. No Brasil, a modalidade chegou por meio de imigrantes japoneses, e em 1969 foi fundada a Confederação Brasileira de Judô (CBJ). Quanto aos fundamentos técnicos da modalidade, o objetivo central é projetar o oponente de costas ao solo, demonstrando força e contro- le, ou demonstrar domínio sobre o oponente, ao imobilizá-lo de costas no solo ou fazê-lo desistir com a aplicação de um estrangulamento ou chave articular. O atingimento de alguns desses objetivos é considera- do o golpe perfeito (ippon). Para tanto, existe um conjunto de técnicas,as quais são divididas em técnicas de projeção (nage-waza), técnicas de imobilização (ossaekomi-waza), técnicas de estrangulamento (shime-waza) e técnicas de torções nas articulações (kansetsu-waza) (KODOKAN JUDO INSTITUTE, 2020). Os grupos de técnicas no judô es- tão representados nas imagens a seguir. Técnica de estrangulamento (shime-waza) Técnica de torção na articulação (kansetsu-waza) Técnica de projeção (nage-waza) Técnica de imobilização (ossaekomi-waza) Np NN Np NV NN NN NN NNN NN NN NN V VVV VN Z VVN NV VN NN NN NNN NN NN NN V VVV VN Z VVN NV VN NN NN NNN NN NN NN V VVV VN Z VVN NV VN NN NN NNN NN NN NN O canal Judoquinhas apre- senta temas relacionados à prática do judô e aos valores da modalidade por meio de desenhos e de uma linguagem infantil. Disponível em: https://www. youtube.com/channel/ UCtuEn6l9HOqNQu_tdbXs5FA. Acesso em: 7 ago. 2020. Vídeo Você sabia que o judô é a modalidade que mais ganhou medalhas olímpicas para o Brasil? Até o mo- mento, já foram 22 (4 ou- ros, 3 pratas e 15 bronzes). A primeira medalha foi de bronze, com Chiaki Ishii, um japonês naturalizado brasi- leiro, conquistada em 1972 em Munique. O primeiro ouro masculino veio pela conquista de Aurélio Miguel nos jogos de 1988, em Seul. No feminino, o primeiro ouro foi conquistado por Sarah Menezes em 2012, em Londres (CONFEDE- RAÇÃO BRASILEIRA DE JUDÔ, 2020). Curiosidade https://www.youtube.com/channel/UCtuEn6l9HOqNQu_tdbXs5FA https://www.youtube.com/channel/UCtuEn6l9HOqNQu_tdbXs5FA https://www.youtube.com/channel/UCtuEn6l9HOqNQu_tdbXs5FA Lutas no Oriente 67 wN NVd VN m yN yN N. pV NN NN NNN NN NN NN 1. De-ashi-barai 9. Ko-soto-gari 17. Ko-soto-gake 2. Hiza-guruma 4. Uki-goshi 5. O-soto-gari 6. O-goshi 7. O-uchi-gari 8. Seoi-nage 16. Uchi-mata15. Harai-goshi 23. Tomoe-nage 24. Kata-guruma 32. Uki-otoshi31. Soto-maki--komi30. O-guruma 14. Tai-otoshi13. Okuri-ashi- -barai 22. Harai-tsuri- -komi-ashi 12. Tsuri-komi- -goshi11. Koshi-guruma 19. Yoko-otoshi 27. Hane-maki-komi 20. Ashi-guruma 21. Hane-goshi 28. Sukui- -nage 29. Utsuri-goshi 10. Ko-ushi-gari 18. Tsuri-goshi 26. Tani-otoshi25. Sumi-gaeshi 33. O-soto-guruma 34. Uki-waza 35. Yoko-wakare 36. Yoko- -guruma 37. Ushiro- -goshi 38. Ura-nage 39. Sumi-otoshi 40. Yoko-gake 3. Sasae-tsuri- -komi-ashi Representação das projeções no judô. Nas competições, os judocas são divididos quanto a sexo, idade, massa corporal (categorias de peso) e graduação. Veja algumas dessas divisões: Sexo Idade Massa corporal* Graduação Feminino Masculino Sub-13 Sub-15 Sub-18 Sub-21 Sênior** Veteranos*** Superligeiro Ligeiro Meio leve Meio médio Médio Meio pesado Pesado Superpesado**** Branca Cinza Azul Amarela Laranja***** Verde Roxa Marrom Preta Vermelha e branca Vermelha * Os limites de massa corporal variam de acordo com o sexo e a faixa etária. ** A partir dos 15 anos, já é possível participar de disputas da categoria sênior. *** Os veteranos são divididos em 11 classes, com divisões a partir dos 30 anos até a divisão acima dos 80 anos. **** No Brasil, foi criada a categoria superpesado para as categorias sub-13 e sub-15, a fim de que ocorra uma maior divisão e as disputas sejam mais justas. *****Até a faixa-laranja, existem faixas intermediárias (ex.: entre a faixa-branca e a faixa-cinza, existe a faixa-branca com ponta cinza). 68 Metodologia do ensino de lutas De acordo com a divisão de sexo e idade, são definidos os tempos de luta, que oscilam de 2 a 4 minutos, com possibilidade de prorroga- ções (golden score) em caso de empate. Considerando esses aspectos, você deverá pensar em como inserir esses conteúdos em suas aulas na escola. Nesse sentido, lem- bre-se de que um dos objetivos é levar os alunos a experimentarem a execução dos movimentos pertencentes às lutas. Nesse caso, pense em proporcionar algumas vi- vências motoras. Um aspecto importante no judô é o aprender a cair, pois é o primeiro passo para permitir uma prática segura. Para tanto, caso você não tenha experiência no judô, é possível recorrer a atividades educativas apresentadas em livros ou na internet. Ademais, outro objetivo da abordagem das lutas é que os alunos planejem e utilizem estratégias básicas das lutas experimentadas, reconhecendo as caracterís- ticas técnico-táticas. Portanto, tente criar situações que levem os seus alunos a pensarem sobre as possibilida- des no judô. Por exemplo, você pode ensinar uma téc- nica e solicitar que tentem criar outras possibilidades; ou seja, ao ensinar a técnica o-soto-gari 14 , você pode solicitar que os alunos tentem apresentar outras possi- bilidades de projetar o oponente por meio do uso das pernas. Isso fará o aluno re- fletir sobre os fundamentos e possibilidades presentes no judô, e não apenas repro- duzir um movimento. Combate de judô. BN Nm VN VN NN NN NNN NN NN NN Assista aos vídeos a seguir para conhecer algu- mas sequências e atividades para o ensino de fundamentos e técnicas presentes no judô. Lem- bre-se de que esses vídeos são apenas sugestões; você, como professor, pode e deve pesquisar e criar mais possibilidades de ensino. Aprender a cair Disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=TdhAvZLmRrI; https://www.youtube.com/watch?v=ZB84yLzVGug. Acesso em: 7 ago. 2020. Técnica de perna (osoto-gari) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aAMrRr-uf6M. Acesso em: 7 ago. 2020. Técnica de quadril (o-goshi) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sIG2uJG46Dw. Acesso em: 7 ago. 2020. Técnicas de imobilização (osaekomi) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VQsdFSPo4OQ. Acesso em: 7 ago. 2020. Vídeo O-soto-gari (que pode ser traduzido como grande varrida por fora) é uma técnica do judô, classificada como técnica de perna, em que o judoca faz uma varredura na perna oposta do oponente (ex.: perna direita varre a perda direita), derrubando-o. V VNN VN V H NVN NNN öm N W VNV mN dVV C Nm mN NN Você pode ver o demonstrativo da técnica assistindo ao seguinte vídeo: https://www.youtube. com/watch?v=aAMrRr-uf6M. Acesso em: 19 ago. 2020. 14 https://www.youtube.com/watch?v=TdhAvZLmRrI https://www.youtube.com/watch?v=ZB84yLzVGug https://www.youtube.com/watch?v=aAMrRr-uf6M https://www.youtube.com/watch?v=sIG2uJG46Dw https://www.youtube.com/watch?v=VQsdFSPo4OQ https://www.youtube.com/watch?v=aAMrRr-uf6M https://www.youtube.com/watch?v=aAMrRr-uf6M Lutas no Oriente 69 Na matéria publicada pela Revista Budô, o judoca santista Rogério Sampaio, medalha de ouro na categoria meio-leve nas Olimpíadas de Barcelona, em 1992, dá dicas para de- senvolver o o-soto-gari. O campeão olímpico, que hoje é diretor geral do Comitê Olímpico do Brasil (COB), faz demonstrações dos movimentos, ilustradas na matéria por meio de fotografias, inclusive mostrando como seria a aplicação dessa técnica de um canhoto para um destro. Disponível em: http://revistabudo.com.br/rogerio-sampaio-da-dicas-para-desenvolver-o-o-soto-gari/. Acesso em: 13 ago. 2020. Saiba mais Por fim, um terceiro objetivo do ensino das lutas na escola é discutir as transformações históricas, o processo de esportivização e a midia- tização de uma luta, valorizando e respeitando as culturas de origem. Nesse sentido, você terá várias possibilidades, por exemplo, discutir um tópico atual, como o dopping, e levar os alunos a refletirem se o uso de substâncias ilícitas segue os princípios éticos e morais propostos por Kano, o fundar o judô. O documentário Kodokan: o caminho do judô, produzido em 2013 pelo programa Sensei SporTV e publicado pelo canal Cleber Soares, faz uma breve apresentação da trajetória do judô, desde sua fundação, por Jigoro Kano, até o judô competi- tivo dos dias atuais. Disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=spTnupoHNWg. Acesso em: 7 ago. 2020. Vídeo CONSIDERAÇÕES FINAIS Este capítulo teve como objetivo tratar de temas relacionados às lutas no Oriente, tanto apresentando questõesgerais, como a ligação entre as lutas e a espiritualidade, quanto por meio de análises específicas de algumas mo- dalidades, como o wushu, o karatê e o judô. Ao longo da história, o homem sempre lutou, e existem registros históricos de práticas de lutas em todo o planeta. No entanto, no Oriente, a ligação das lutas com o desenvolvimento espiritual do ser humano foi muito marcante, resultando em modalidades nas quais os princípios éticos e morais foram muito valorizados. No entanto, ao tratar do contexto histórico dentro das lutas e artes marciais, é preciso ponderar que a área carece de fontes documentais históricas confiáveis, em partes por esses registros terem se perdido ao longo do tempo e por algumas modalidades tentarem manter em segre- do suas práticas, para que outros povos não usurpassem os conhecimen- tos desenvolvidos, os quais também eram formas de autodefesa. A abordagem escolar das lutas no Oriente permite não apenas que os alunos vivenciem os movimentos corporais presentes nessas modalida- des, mas também caracteriza uma ótima oportunidade para explorar um pouco mais a cultura oriental, diminuindo possíveis preconceitos decor- rentes da falta de conhecimento sobre outras culturas. http://revistabudo.com.br/rogerio-sampaio-da-dicas-para-desenvolver-o-o-soto-gari/ 70 Metodologia do ensino de lutas ATIVIDADES 1. Explique a relação entre wushu e espiritualidade. 2. Explique o sentido presente no termo karatê-do. 3. Cite três princípios presentes no judô. REFERÊNCIAS ACADEMIA DE KARATE-DO SHOTOKAN. Kumite. 2015. Disponível em: https://www. academiaks.com/kumite. Acesso em: 12 ago. 2020. ANTONY, V. Jutsu: a arte oculta no karate. Caçador: Global Soccer Editora, 2015. ASSOCIAÇÃO JUVENIL DE KARATÉ PORTUGAL. Bushido: o caminho do guerreiro. 2010. Disponível em: https://www.academia.edu/5159670/AJKP_BUSHIDO_O_CAMINHO_DO_ GUERREIRO. Acesso em: 7 ago. 2020. CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE JUDÔ. Olímpico. 2020. Disponível em: https://cbj.com.br/ olimpico. Acesso em: 7 ago. 2020. CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE KUNGFU WUSHU. Modalidades. 2020. Disponível em: http://cbkw.org.br/modalidades/. Acesso em: 7 ago. 2020. DAISSEN JI. Apostila do Curso de Formação Continuada em Ensinamentos Zen-budistas: Módulo I – Introdução ao Zazen. 2019a. DAISSEN JI. Contexto histórico do budismo. Curso de Formação Continuada em Ensinamentos Zen-budistas: Módulo I – Introdução ao Zazen. 2019b. DAISSEN JI. Zen e Bodhidharma. 2009. Disponível em: https://www.daissen.org.br/zen-e- bodhidharma/. Acesso em: 7 ago. 2020. FEDERAÇÃO PAULISTA DE KARATÊ-DO TRADICIONAL. Dojo Kun: lema do Karatê. 2020. Disponível em: http://www.fpktradicional.com.br/home/index.php?option=com_ content&view=article&id=51&Itemid=71. Acesso em: 7 ago. 2020. GENSHÔ, M. Shikantaza. Daissen Ji, 11 mar. 2019. Disponível em: https://www.daissen.org. br/shikantaza-monge-gensho/. Acesso em: 7 ago. 2020. JAPAN KARATE ASSOCIATION. História da JKA. 2020. Disponível em: https://www.jkabrasil. com.br/karate-jka/historia/. Acesso em: 7 ago. 2020. JAPAN KARATE ASSOCIATION. Programa de Exame de Kyu e Grau. 2017. Disponível em: https://www.jkabrasil.com.br/guia-para-graduacao-kyu-dan/. Acesso em: 7 ago. 2020. KANO, J. Energia mental e física: escritos do fundador do judô. São Paulo: Pensamentos, 2008. KODOKAN JUDO INSTITUTE. Names of Judo Techniques. 2020. Disponível em: http:// kodokanjudoinstitute.org/en/waza/list/. Acesso em: 7 ago. 2020. MOCARZEL, R. C. S. Artes marciais e jovens: violência ou valores educacionais? Um estudo de caso de um estilo de Kung-Fu. Niterói, 2011. Dissertação (Mestrado em Ciências da Atividade Física) – Universidade Salgado de Oliveira. MOCARZEL, R. C. S.; MURAD, M; CAPINUSSÚ, J. M. O Kung-fu e os jogos olímpicos: história e possibilidades de inserção. Corpus et Scientia, v. 9, n. 1, p. 115-115, 2013. ROTHER, M. O que é kata? Lean Institute Brasil, 28 ago. 2012. Disponível em: https://www. lean.org.br/artigos/198/o-que-e-kata.aspx. Acesso em: 12 ago. 2020. WATSON, B. N. Memórias de Jigoro Kano: o início da história do judô. 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Para tanto, a primei- ra seção irá apresentar aspectos históricos relacionados aos jogos atléticos na Grécia Antiga, evoluindo para a espetacularização das lutas, com passagem pelos gladiadores em Roma e pelo ressurgi- mento dos Jogos Olímpicos da Era Moderna. Na seção seguinte, será abordado o boxe, desde suas origens e heranças culturais até o modelo competitivo atual. A terceira seção irá abordar a esgrima, que pode ser conside- rada atualmente a modalidade esportiva de combate, com armas, mais famosa e popular no mundo. Vale ressaltar que a esgrima esteve presente em todas as edições dos Jogos Olímpicos da Era Moderna. Por fim, na última seção, será abordado o mixed martial arts (MMA), especialmente pelo fato de ele ser uma modalidade muito popular atualmente, apresentando um exemplo claro do processo de esportivização e espetacularização das lutas. Durante este capítulo, serão propostas algumas sugestões para abordagens de ensino das lutas na escola. Essas propostas têm como objetivo apresentar um ponto de partida e inspirar algumas possibilidades, mas tenha claro que não são diretrizes, mas apenas sugestões. Como docente, é possível usar sua própria criatividade para ampliar as possibilidades de ensino de acordo com a realida- de dos alunos. 72 Metodologia do ensino de lutas 4.1 Lutas, olimpismo, esporte e espetáculo Vídeo No Ocidente, assim como em outras partes do mundo, as lutas foram usadas com diferentes finalidades (ex.: sobrevivência, caça). No entanto, dois contextos merecem destaque: as lutas como prepa- ração para guerras e as lutas como forma de espetáculo. Na Grécia Antiga 1 , também houve uma forte relação entre as lutas e a espiritua- lidade; porém, existiam diferenças claras entre as lutas no Oriente e na Grécia. No Oriente, as práticas de lutas buscavam preparar o corpo para as atividades meditativas e/ou tornar a própria prática de lutas uma forma de meditação, desenvolvendo a atenção plena. Por outro lado, as lutas na Grécia tinham como objetivo homenagear os deuses, criando uma maior conexão entre o homem e o divino. É difícil definir exatamente quando se iniciaram as práticas de lutas entre os gregos, bem como definir com exatidão o início dos jogos atlé- ticos da Antiguidade. Contudo, é possível constatar a presença dessas atividades por meio da literatura, de dramas e de obras de arte. Por exemplo, Platão (427 a.C.-347 a.C.), em dois de seus livros (A República e As leis), cita a ginástica (gymnastiké) como elemento para integrar a educação do ser humano, sendo um meio hábil de preparação para as guerras. Assim, a ginástica deveria conter atividades de luta, esgrima, arco e flecha, caça e combates de infantaria. As figuras a seguir são de representações de lutas em taças (kylix). Exemplosde lutas representadas em taças (kylix), com datas aproximadas entre 500 a.C. e 470 a.C. M ar ie -L an N gu ye n/ W ik im ed ia C om m on s M ar ie -L an N gu ye n/ W ik im ed ia C om m on s SaiSko/Wikimedia Commons A Grécia Antiga era conhecida por Hellás. Por essa razão, os jogos atléticos que envolviam os Estados de Hellás são também denominados Pan-helênicos. 1 Lutas no Ocidente 73 Ao considerar os jogos atléticos da Antiguidade, embora os Jogos Olímpicos sejam os mais conhecidos por nossa atual sociedade, é pre- ciso saber que existiam pelo menos quatro grandes competições entre os povos helênicos e que todas elas existiam para homenagear um de seus deuses mitológicos (LESSA, 2017). Jogos Realizados a cada quatro anos Homenagem a Zeus (o senhor dos céus e deus supremo da mitologia grega) Homenagem a Apolo (deus do Sol, filho de Zeus e Leto, deusa do anoitecer) Homenagem a Poseidon (deus dos mares) Homenagem a Zeus Olímpicos ÍstimicosPíticos Nemaicos Realizados a cada dois anos Realizados a cada dois anos Periodicidade incerta A data de início desses jogos também é incerta, pois, embora exis- tam apontamentos para o ano de 776 a.C., alguns relatos apontam para tempos ainda mais antigos. O que se sabe é que houve interrupções em períodos de guerras com povos que não participavam dos Jogos Pan-helênicos, e em 393 d.C. as competições foram interrompidas de vez, após o domínio dos gregos pelos romanos, os quais, por adotarem o cristianismo, decidiram destruir os mitos pagãos. Durante os Jogos Pan-helênicos, de fato existiam homenagens e devoções aos deuses. Por exemplo, os Jogos Olímpicos tinham cinco dias de duração, sendo que o quarto dia era iniciado com oferendas a Zeus, com degolamento de bois na frente do altar presente no estádio; no quinto dia, novamente eram realizados agradecimentos e oferen- das aos deuses (LESSA, 2017). Os jogos eram considerados sagrados, e, mesmo em tempos de guerras, tréguas 2 entre os povos deveriam ser respeitadas, de modo a permitir que atletas, treinadores e espec- tadores pudessem viajar e se manter em segurança durante todo o período das competições. Entretanto, é preciso destacar que os jogos atléticos também tinham como objetivo motivar os soldados a se manterem em treinamento du- rante os períodos sem guerra. Dessa forma, as modalidades presentes nos jogos eram todas relacionadas às atividades de guerra (ex.: lutas, O período dessas tréguas é discutido. 2 74 Metodologia do ensino de lutas arremesso de dardo, competições hípicas). Essas disputas eram enca- radas com muita seriedade; para os participantes, o que importava era a vitória, e não apenas a participação. Os vencedores eram festejados ao retornarem aos seus Estados de origem, enquanto as derrotas eram motivo de vergonha (LESSA, 2017). Especificamente em relação às lutas, os Jogos Pan-helênicos continham disputas na luta atualmente conhecida como wrestling 3 , no pugilato, que pode ser considerado o pai do boxe, e no pancrácio, uma modalidade que combinava as ações do wrestling e do pugilato, podendo ser entendido como o MMA da época. Além das competições com modalidade única, o wrestling também compunha o pentatlo, juntamente com o lançamento de disco, o lan- çamento de dardo, o salto e a corrida. Não se sabe muito bem qual era a ordem das disputas e a forma como eram contabilizados os pontos no pentatlo, mas é assumido que o wrestling era a última modalidade a ser disputada (LESSA, 2017). Por fim, é importante destacar que, embora o público também par- tilhasse do sentimento de devoção aos deuses durantes os jogos atléti- cos, essas competições eram uma forma de entretenimento. Assim, é preciso considerar essa forte inclinação das lutas como forma de pre- paração para as guerras, bem como forma de entretenimento. Nessa ótica, se na Grécia já era possível identificar um pouco das lutas como forma de espetáculo, no Império Romano os duelos envol- vendo os gladiadores denotavam claramente a espetacularização das lutas (PAIVA, 2015). Um exemplo é o período da famosa política do pão e circo, no qual estádios eram palco dos espetáculos mais bárbaros en- volvendo os gladiadores, que normalmente eram escravos comprados especificamente para essas batalhas ou soldados capturados pelos romanos em batalhas. Essas disputas envolviam os cenários mais imprevisíveis possíveis e confrontos com carruagens, desvanta- gens numéricas e até mesmo animais selvagens, para acalorar ainda mais as batalhas. Alguns textos e pesquisadores também usam a denominação luta olímpica. Neste livro, optamos pelo termo wrestling, pois o termo luta olímpica pode gerar confusões, uma vez que atualmente os Jogos Olímpicos apresentam outras modalidades esportivas de combate no seu quadro de disputas. 3 Estádio do Coliseu, em Roma, na Itália, palco de grandes duelos com os gladiadores. Sel y/S lul lers lolk Lutas no Ocidente 75 Anos mais tarde, o esporte como forma de espetáculo ganhou um novo capítulo com a retomada dos Jogos Olímpicos, sendo realizada em 1896 a primeira edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna, na cidade de Atenas, na Grécia. Esse retorno ocorreu apenas porque um aristocrata francês, Pierre de Frédy, também conhecido como Barão de Coubertin, promoveu esforços para que os Jogos Olím- picos fossem retomados, mas em um projeto que envolvesse todos os povos, dos diferentes continentes. Esse ideal de união entre os po- vos é expresso pelos anéis olímpicos, os quais representam a união entre os cinco continentes. Anéis olímpicos representando a união entre os continentes. O primeiro representa a Europa; o segundo, a Ásia; o terceiro, a África; o quarto, a Oceania; e o quinto, a América. As lutas estiveram nos Jogos Olímpicos da Era Moderna desde a primeira edição, sendo a esgrima e o wrestling as duas modalidades de combate presentes desde a edição de 1896; no entanto, apenas homens podiam parti- cipar dessas disputas. O boxe passou a integrar os jogos em 1904 4 , enquanto o judô integrou os jo- gos definitivamente em 1972, embora tenha parti- cipado da edição de 1964 como modalidade de demonstração nos Jogos de Tóquio. O taekwondo passou a ser uma disputa presente definitivamen- te em 2000, nos Jogos de Sidney, embora tenha sido incluso como esporte de demonstração nos Jogos de Seul, em 1988. Pierre de Frédy, o Barão de Coubertin. SkbSzz1/ Wikimedia Commons Estátua de Pierre de Frédy no Centennial Olympic Park, em Atlanta, construída durante os Jogos Olímpicos de Verão de 1996. JJonalJalkaSoJe/W ikim edia Com m ons 4 Inicialmente, o boxe foi rejeitado por ser considerado muito perigoso. 76 Metodologia do ensino de lutas No feminino, apenas no taekwondo as mulheres tiveram a oportuni- dade de competir desde a inclusão da modalidade nas Olimpíadas. A par- ticipação de mulheres só foi permitida em 1924 nas disputas de esgrima, em 1992 no judô, em 2004 no wrestling 5 e em 2012 no boxe (PAIVA, 2015). Para os Jogos de Tóquio 2021 6 , é prevista a participação de mais um esporte de combate, o karatê. O filme Gladiador envolve um drama no qual um comandante do exército romano, após o assassinato do imperador, é traí- do e acaba virando um escravo. Ele então é obrigado a ser um gladiador, tendo de lutar para sobreviver. Devido às suas habilidades, o ex-comandante ganha a admiração do público. No meio dessa trama, é possível compreender um pouco da vida dos gladiadores romanos. Direção: Ridley Scott. EUA: DreamWorks SKG, 2000. Filme 4.2 Boxe Vídeo A origem do boxe é incerta, existindo relatos de uma possível gê- nese da modalidade até um período entre 5.000 a.C. e 4.000 a.C., na Suméria e no Egito (CARATTI, 2016), incluindo indicações de possível herança do pugilato, um tipo de luta da Grécia Antiga (LESSA, 2017). A figura ao lado é uma representação de duas crianças lu- tando. Nesse contexto, não se pode negar as possíveis origens, mas tambémé necessário considerar que provavelmente o ho- mem tenha utilizado suas mãos e punhos para combater desde a primeira vez que teve a necessidade de lutar. De toda forma, é preciso ter claro que o pugilato difere bas- tante do que entendemos por boxe atualmente. As competições não tinham tempo limitado, sendo que os combates acabavam apenas por nocaute ou por desistência de um dos atletas, a qual devia ser sinalizada com o levantamento de dois dedos de uma das mãos. Além disso, não se sabe sobre o espaço físico em que os combates eram travados. Acredita-se que, assim como nas outras modalidades, existia um espaço delimitado, mas, mui- to possivelmente, bem diferente dos ringues atuais. As regras também não são muito conhecidas (LESSA, 2017). O wrestling possui a divisão en- tre estilo livre (freestyle) e estilo greco-romano. As mulheres só competem no estilo livre. 5 Originalmente, os Jogos de Tóquio deveriam ocorrer em 2020. No entanto, devido à pandemia de Covid-19, foram adiados para 2021. Essa foi a primeira vez que uma edição olímpica foi adiada na Era Mo- derna por conta de uma causa que não fosse uma guerra. 6 Afresco (mural) com crianças lutando pugilato encontrado no sítio arqueológico Acroteri, na ilha grega de Santorini. Data estimada entre 1650 e 1500 a.C. Le fle ris P aJ au Sa ki s/ Sl ul le rs lo lk Lutas no Ocidente 77 Um ponto marcante do boxe foi em 1743, quando Jack Broughton, um lutador da época, criou uma proposta de regras para a modalidade, pois até então as regras eram subjetivas, podendo até mesmo ser combinadas entre atletas antes dos confrontos. Há relatos de que anteriormente se permitia técnicas de projeção, chutes, agarrar o cabelo e até mesmo dedo no olho. A proposta de Broughton se deu após um de seus adversários falecer durante uma luta contra ele. Entre as modificações de regra, foi introduzido o conceito de round 7 , além da interrupção do combate quando um dos lutadores fosse à lona. As regras foram evoluindo, e em 1867 o novo conjunto de regras (Queensberry Rules) incluiu o uso das luvas no boxe. Pode-se considerar que o boxe da Era Moderna teve início nessa fase. Um novo nível de profissionalismo do boxe é alcançado por meio da inclusão da modalidade nos Jogos Olímpicos de 1904, em Sant Louis. Contudo, apenas em 2012, na edição de Londres, as mulheres competiram pela primeira em uma Olimpíada (PAIVA, 2015). No boxe competitivo dos dias atuais, o objetivo principal é levar o adversário à desistência (ex.: nocaute ou comunicação de desistência aos árbitros). Quando a desistência não ocorre, os combates são definidos por pontos, sen- do que árbitros designam as pontuações de acordo com a combatividade (busca pelo combate) e a efetividade de cada boxeador (WORLD BOXING ASSOCIATION, 2015). A figura a seguir apresenta as principais técnicas de ataque presen- tes no boxe. Jab Upper CruzadoDireto Ha wk m ol l Gr aJ li ls /S lu lle rs lo lk Demonstração dos principais golpes de ataque do boxe. Retrato de Jack Broughton. Jbarla/Wikimedia Com m ons O termo round tem origem inglesa e pode ser entendido como rodada. Nos esportes, seu uso indica que as disputas são divididas em rodadas, intercaladas por um período de intervalo. 7 Combate de boxe atualmente. Jusl danle/Slullerslolk 78 Metodologia do ensino de lutas Para competir, os atletas são divididos em sexo e categorias relativas à massa corporal, conhecidas como categorias de peso. Essas categorias podem variar de acordo com a comissão/federação organizadora do evento. Veja, na Tabela 1, as divisões programadas para as disputas nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2021. Tabela 1 Divisões das categorias de peso para o boxe olímpico Mosca Categoria Pena Meio-médio Meio-pesado Pesado Superpesado Leve Médio Feminino 48-51 kg 54-57 kg 64-69 kg - - - 57-60 kg 69-75 kg Masculino 48-52 kg 52-57 kg 63-69 kg 75-81 kg 81-91 kg +91 kg 57-63 kg 69-75 kg Fonte: Tokyo 2020, 2020. A duração dos combates também varia de acordo com a competi- ção e a comissão organizadora. Por exemplo, nas disputas olímpicas, os combates são compostos de três rounds de 3 minutos cada (TOKYO 2020, 2020), podendo chegar a doze rounds de 3 minutos intercalados por 1 minuto de pausa em competições profissionais (WORLD BOXING ASSOCIATION, 2015). Como possibilidade de ensino do boxe, assim como para as demais modalidades, o professor deve considerar os objetivos estabelecidos no início do ano letivo, os quais devem estar relacionados à BNCC. En- tretanto, como ponto de partida, é interessante pensar que é possível utilizar o contexto histórico da modalidade para refletir sobre questões culturais presentes em diferentes fases da civilização humana (ex.: Egi- to, Grécia Antiga e período eurocentrista). Além disso, por meio da evolução do boxe, podem ser discutidos temas relacionados aos valores éticos e morais (ex.: definição das re- O filme 10 segundos Para vencer conta a trajetória de Éder Jofre, o primeiro brasileiro a se tornar campeão mundial de boxe, considerado um dos maiores boxeadores de todos os tempos. Nesse drama, é possível observar como era a vida de um atleta de boxe. Direção: José Alvarenga Jr. Rio de Janeiro: Globo Filmes, 2018. Filme Lutas no Ocidente 79 gras nos combates), à injustiça (ex.: os fins justificam os meios? Tudo é permitido para se alcançar uma conquista?) ou à participação da mu- lher na sociedade (considerando que o boxe está presente nas Olim- píadas desde 1904, por que as mulheres só puderam participar a partir de 2012?). Por fim, os alunos podem ter uma boa vivência motora ao conhecerem e experimentarem a execução das principais técnicas pre- sentes no boxe (jab, direto, upper e cruzado). 4.3 Esgrima Vídeo A origem da esgrima também é incerta, pois acredita-se que desde o período pré-histórico o homem já utilizava algum tipo de espada para se defender ou atacar. Com o domínio do manuseio do metal, o uso da espada aumentou ainda mais, até que, a partir do advento das armas de fogo, a luta com a espada começou a adquirir um caráter mais es- portivo e recreativo (CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE ESGRIMA, 2020). Em seu modelo esportivo, a esgrima teve como grande momento sua inserção como modalidade olímpica já na primeira edição dos Jo- gos da Era Moderna, em 1896, na Grécia. Sua inclusão, em partes, se deve ao Barão de Coubertin, o qual era um praticante de esgrima. Desde então, essa modalidade esportiva esteve presente em todas as edições olímpicas realizadas. Porém, vale ressaltar que as disputas no feminino só foram permitidas a partir de 1924. As disputas na esgrima têm como objetivo principal tocar com a indumentária (florete, espada ou sabre) o corpo do ad- versário antes que o próprio corpo seja tocado. Na maioria das competições, na etapa classificatória vence o atleta que marcar cinco pontos 8 em um período máximo de 3 minutos, ao pas- so que na etapa eliminatória vence o atleta que marcar mais pontos no período de três tempos de 3 minutos, com um minuto de intervalo e um limi- te máximo de quinze pon- tos (CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE ESGRI- MA, 2020). Um toque equivale a um ponto, independentemente do tipo de técnica utilizado ou do local do corpo do oponente a receber o toque. 8 Combate na esgrima. Fo lo ko sl il /S lu lle rs lo lk 80 Metodologia do ensino de lutas Além disso, a esgrima é dividia em três estilos, os quais variam de acordo com a indumentária utilizada – florete, espada ou sabre. Todas as indumentárias possuem um sensor que acende ao ser tocado, facili- tando assim a marcação dos pontos. Cada estilo possui suas regras, zo- nas de ataque e formas de ataque. Veja algumas peculiaridades de cada estilo (CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE ESGRIMA, 2020): Florete Os ataques devem ser realizados com a ponta da indumentária, reproduzindo um movimento de espetar; só podem ser direcionados contra o tronco do oponente. Espada Osataques devem ser realizados com a ponta da indumentária, reproduzindo um movimento de espetar; podem ser direcionados contra qualquer parte do corpo do oponente. Sabre Os ataques podem ser realizados com a ponta da indumentária, reproduzindo um movimento de espetar, ou com a lateral do sabre, reproduzindo um movimento de corte; podem ser direcionados contra a cabeça, o tronco ou os membros superiores, com exceção da mão. Máx. 110 cm Pomo Punho Copo Lâmina Peso: 500 g Máx. 90 cmMáx. 20 cm Máx. 110 cm Peso: 750 g Máx. 90 cmMáx. 20 cm Máx. 105 cm Máx. 88 cmMáx. 17 cm A prática e competição da esgrima exige o uso de vestimenta e equipamentos específicos, de modo a proteger o praticante. Entre eles, destaca-se o uso obrigatório de capacete característico, com tela de proteção, e de uma roupa que possui um revestimento próprio, que impede ferimentos graves caso o sabre, a espada ou o florete venha a se quebrar. Capacete de proteção para a prática da esgrima. Da rio S ab SDa k/ Sl ull ers lol k Lutas no Ocidente 81 As disputas dos três estilos ocorrem em uma zona competitiva pró- pria da esgrima, a qual é ilustrada na figura a seguir. A pista em que ocorrem as disputas na esgrima pode ser dividia em três áreas: área para jogo (parte central da pista), área de advertência (parte intermediária de cada lado da pista) e área de recuo (extremos da pista). Pensando na abordagem da esgrima dentro da escola, convém res- saltar que a modalidade tem crescido no Brasil, porém o número de praticantes ainda é limitado. Tal fato faz com que o esporte não este- ja tão presente no dia a dia do povo brasileiro. Sendo assim, ambos, professores e alunos, podem carecer de experiência na modalidade. Todavia, isso não pode ser uma barreira que iniba a oportunidade de vivência na esgrima. Nesse sentido, vale ressaltar que a abordagem his- tórica da modalidade pode envolver diferentes tempos da civilização, pois a luta com a espada esteve presente em diferentes regiões e mo- mentos da nossa civilização. Além disso, vivências motoras podem ser oportunizadas, como a confecção de espadas com jornais ou folhas já usadas 9 . Assim, é possível incluir movimentos da esgrima dentro de jogos ou brinca- deiras (a figura a seguir apresenta a posição de ataque na esgrima). Por exemplo, o professor pode perfeitamente solicitar que os alunos mantenham uma bexiga no ar, sendo que a mesma só pode ser to- O termo touché tem origem francesa e significa “tocado”. O uso do touché seria um gesto de honestidade, no qual o atleta que recebeu o toque faz esse apontamento, auxiliando os ár- bitros na atribuição dos pontos. Curiosidade Veja um exemplo no link a seguir: https://www.youtube. com/watch?v=xuqSdEZdSMw. Acesso em: 3 set. 2020. 9 https://www.youtube.com/watch?v=xuqSdEZdSMw https://www.youtube.com/watch?v=xuqSdEZdSMw 82 Metodologia do ensino de lutas cada com a espada; também é possível fazer a mesma di- nâmica na forma de jogo, no qual duas equipes com- petem para ver qual delas consegue percorrer mais rápido um trajeto, sendo necessário transportar um balão por meio do to- que com a espada. Ainda, é preciso considerar que simulações de combate entre alunos podem ser atividades com grande aceitação entre os alunos. Contudo, é fundamental que a cabe- ça do oponente não seja um alvo, bem como que a ponta da espada seja protegida (ex.: cobrir a ponta com espuma). 4.4 MMA Vídeo O mixed martial arts, mais conhecido pelo seu acrônimo MMA, sem dúvidas está entre os esportes mais populares atualmente em nossa sociedade. Essa popularidade pode ser observada por meio do número de eventos com transmissões em canais de TV aberta ou por assinatura, além dos mais variados objetos com alusões ao MMA ou a eventos da modalidade (ex.: camisetas, brinquedos, blu- sas, canecas, adesivos, cadernos). Definir o início do MMA não é uma tarefa fácil, pois apenas nos últi- mos anos ele passou a receber a denominação mixed martial arts (em português, artes marciais mistas). Nesse sentido, pode-se considerar que o que mais diferencia essa modalidade das demais é o fato de ela envolver tanto golpes traumáticos (ex.: socos e chutes) quanto proje- ções e luta de solo (ex.: imobilizações, estrangulamentos e chaves ar- ticulares). Essas características possivelmente estão presentes desde as primeiras manifestações humanas, sendo razoável imaginar que os confrontos não paravam ao irem para o solo. Todavia, como forma de espetáculo, talvez os registros mais pró- ximos façam referência ao pancrácio, uma modalidade que integrava os Jogos Pan-helênicos, incluindo os Jogos Olímpicos, na Grécia Antiga. Nesse tocante, alguns registros apontam que o pancrácio fazia uma mistura entre o pugilato e o wrestling, permitindo a continuidade da luta quando os atletas iam ao chão. Os combates só eram interrom- pidos em caso de nocaute ou quando um combatente sinalizava sua desistência, erguendo dois dedos de uma das mãos (LESSA, 2017). Essas disputadas possivelmente continuaram ao longo de nos- sa civilização, em distintas regiões do planeta, existindo o relato de diferentes desafios entre modalidades. Nos tempos mais recentes, é possível chamar a atenção para o que ocorreu no Brasil, em que ganhou destaque a atuação da família Gracie. Para difundir seu es- tilo de luta, o jiu-jitsu Gracie, ou jiu-jitsu brasileiro, membros da fa- mília lançaram diversos desafios para praticantes e atletas de outras modalidades. Esses desafios ganharam espaço nos jornais da época, que noticiavam os eventos, e tiveram tamanha dimensão que chega- ram a ser realizados no Maracanã e no Maracanãzinho, sendo que em um deles, em 1951, estava presente, entre os membros da pla- teia, o então vice-presidente da República, João Fernandes Campos Café Filho (GRACIE, 2008). Mas foi em 1993 que esses desafios alçaram um patamar mais eleva- do, pois foi o ano em que Rorion Gracie idealizou um desafio com o intui- to de incluir atletas de diferentes modalidades de combate, a fim de definir qual modalidade era a mais efetiva. Nesse modelo, a família Gracie buscava mostrar a efetividade do jiu-jitsu brasileiro e, pensando nisso, escalou Royce Gracie como representante. Tal escolha ocorreu pelo fato de ele ter uma estrutura média, com 1,83 m e aproximadamen- te 80 kg. Assim, se ele vencesse, isso seria impactante, pois ele era mais leve que a maioria dos outros participantes (AWI, 2012; DIAS, 2019). Esse evento foi realizado em Denver, no estado do Colorado (EUA), e recebeu o nome de Ultimate Fighting Championship (UFC), sendo transmitido em TV fechada local. O evento não tinha muitas regras res- tritivas como atualmente, por exemplo, os lutadores não precisavam usar luvas e podiam chutar o lutador que estivesse no chão. Os comba- tes geravam cenas impactantes, mas o evento ga- nhou muita popularidade, não apenas entre os norte-americanos. O cinturão de campeão do UFC. Easl718/Wikimedia Commons Posição de ataque na esgrima. Pozn yako l/Sl ulle rslo lk Lutas no Ocidente 83 Essas disputadas possivelmente continuaram ao longo de nos- sa civilização, em distintas regiões do planeta, existindo o relato de diferentes desafios entre modalidades. Nos tempos mais recentes, é possível chamar a atenção para o que ocorreu no Brasil, em que ganhou destaque a atuação da família Gracie. Para difundir seu es- tilo de luta, o jiu-jitsu Gracie, ou jiu-jitsu brasileiro, membros da fa- mília lançaram diversos desafios para praticantes e atletas de outras modalidades. Esses desafios ganharam espaço nos jornais da época, que noticiavam os eventos, e tiveram tamanha dimensão que chega- ram a ser realizados no Maracanã e no Maracanãzinho, sendo que em um deles, em 1951, estava presente, entre os membros da pla- teia, o então vice-presidente da República, João Fernandes Campos Café Filho (GRACIE, 2008). Mas foi em 1993 que esses desafios alçaram um patamar mais eleva- do, pois foi o ano em que Rorion Gracie idealizouum desafio com o intui- to de incluir atletas de diferentes modalidades de combate, a fim de definir qual modalidade era a mais efetiva. Nesse modelo, a família Gracie buscava mostrar a efetividade do jiu-jitsu brasileiro e, pensando nisso, escalou Royce Gracie como representante. Tal escolha ocorreu pelo fato de ele ter uma estrutura média, com 1,83 m e aproximadamen- te 80 kg. Assim, se ele vencesse, isso seria impactante, pois ele era mais leve que a maioria dos outros participantes (AWI, 2012; DIAS, 2019). Esse evento foi realizado em Denver, no estado do Colorado (EUA), e recebeu o nome de Ultimate Fighting Championship (UFC), sendo transmitido em TV fechada local. O evento não tinha muitas regras res- tritivas como atualmente, por exemplo, os lutadores não precisavam usar luvas e podiam chutar o lutador que estivesse no chão. Os comba- tes geravam cenas impactantes, mas o evento ga- nhou muita popularidade, não apenas entre os norte-americanos. O cinturão de campeão do UFC. Easl718/Wikimedia Commons 84 Metodologia do ensino de lutas Anos depois, em 1997, surgiu, no Japão, outro evento que marcou época, o Pride Fighting Championships, também chamado apenas de Pride. Os eventos levavam milhares de pessoas aos ginásios, além de serem transmitidos para todo o mundo. No Japão, os principais lutado- res eram tratados como celebridades. Para se ter ideia dessa populari- dade, em 2002, o Pride Shockwave levou 71 mil pessoas a um ginásio de Tóquio (CONHEÇA..., 2016). Com o decorrer dos anos, mais regras passaram a ser instituídas, bem como a criação de categorias com divisões de peso, de modo a deixar as dispu- tas mais equilibradas e preservar a integridade física dos atletas. Em 2001, os irmãos Lorenzo e Frank Fertitta compraram os direitos da mar- ca UFC, e o termo até então usado, vale-tudo 10 , começou a ser substituído pelo MMA, por apresentar um impacto menos negativo entre o público não praticante de lutas (DIAS, 2019; MILLEN NETO; GARCIA; VOTRE, 2016). Atualmente, existem diversos eventos de MMA espalhados por todo o mundo (ex.: Bellator, ONE Championship e Shooto Brasil), porém o mais popular é o UFC, no qual as disputadas são realizadas dentro de um octógono cercado por grades, transmitin- do a ideia de que, após as portas se fecha- rem, só um atleta sairá vencedor. Arlur Didyk/Slullerslolk Combate de MMA. Vale-tudo não significava que não existiam regras, mas que era permitida a participação de qualquer modalidade de combate. 10 Eduard Slanislelskyi/Slullerslolk Exemplo de octógono, local de disputa de alguns eventos de MMA. Ro ka Pi ls /S lu lle rs lo lk Lutas no Ocidente 85 As regras, o tempo de duração dos combates e até mesmo as categorias de peso variam muito de acordo com o evento. No UFC, normalmente as lutas têm a duração de três rounds de 5 minutos, com 1 min de intervalo entre os rounds, passando a cinco rounds em disputas de cinturões. Ainda, destaca-se a participação das mulheres no UFC, que, embora só tenha iniciado em 2013, na edição 157, foi bem recebida pelo pú- blico e aumentou ainda mais a popularidade do esporte, atraindo o interesse por parte das mulheres telespectadoras. Uma personagem importante dessa história é a norte-americana Ronda Rousey, que já havia sido medalhista olímpica (bronze) pelo judô. No MMA, ela es- treou em 2013, tornando-se a primeira mulher contratada pelo UFC e a primeira a deter um cinturão no evento. Atualmente, ela fez história novamente, sendo a primeira mulher a fazer parte do Hall da Fama do UFC. Durante sua carreira, ela exerceu grande papel na divulgação das mulheres no MMA. Além disso, ela foi, entre homens e mulheres, uma das artistas marciais mistas mais bem pagas (RONDA..., 2020). Como possibilidade de ensino, é possível misturar as atividades presentes em todas as outras modalidades de combate, com exceção da esgrima. Portanto, o professor terá uma gama de opções muito vasta para promover aos seus alunos diferentes experiências moto- ras. Por exemplo, é possível explorar a combinação de ações, como realizar uma sequência de socos (jab e direto), encurtar a distância do oponente, tentar abraçá-lo e, na sequência, buscar levar o combate ao solo, executando uma técnica de projeção 11 (ex.: derrubar agarrando as duas pernas do oponente). Ademais, o contexto evolutivo do MMA, até sua popularidade nos dias atuais, permite ricas discussões sobre o processo de esportivização e mercantilização das atividades da cultura corporal, incluindo as lutas. O documentário Os Gracies e o nascimento do vale-tudo apresenta a tra- jetória dos idealizadores do UFC, contando como o jiu-jitsu chegou ao Brasil e mostrando as crenças, os valores e a filosofia de vida dessa família de lutadores. Direção: Victor Cesar Bota. Brasil: Vale tudo LLC, 2009. Documentário Antes de explorar as ações de projeção, em qualquer modalidade, é fundamental que os alunos tenham vivenciado e assimilado os aprendizados referentes ao saber cair. 11 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este capítulo teve como objetivo tratar de temas relacionados às lutas no Ocidente, com especial foco no processo de esportivização e espeta- cularização das lutas. Ao longo da história, o homem sempre lutou, porém diferentes relatos históricos apontam que ele não lutou apenas por sua sobrevivência ou com algum intuito religioso/espiritual, mas também lu- tou como forma de promover espetáculos. 86 Metodologia do ensino de lutas A abordagem das lutas do Ocidente na escola permite que os alunos vi- venciem diferentes formas de expressão corporal, constituindo uma exce- lente oportunidade para discussões acerca das transformações culturais da nossa civilização, incluindo a mercantilização das atividades humanas. ATIVIDADES 1. Indique quais modalidades de luta faziam parte dos Jogos Pan-helênicos da Antiguidade (incluindo os Jogos Olímpicos). 2. Quais são os estilos de disputa presentes na esgrima em seu modelo competitivo? 3. Explique o motivo de o vale-tudo passar a ser chamado de artes marciais mistas (em inglês, mixed martial arts – MMA). REFERÊNCIAS AWI, F. Filho teu não foge à luta: como os lutadores brasileiros transformaram o MMA em um fenômeno mundial. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012. CARATTI, J. M. “Quando o boxe era caso de polícia”: espetáculo, violência e repressão em tempos do surgimento do pugilismo em Porto Alegre/RS (1908-1922). Vozes, Pretérito & Devir, v. 5, n. 1, p. 220-241, 2016. CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE ESGRIMA. História: a esgrima. 2020. Disponível em: https://cbesgrima.org.br/historia/. Acesso em: 19 ago. 2020. CONHEÇA os eventos com os 5 maiores públicos no MMA. Venum, 16 fev. 2016. Disponível em: https://venum.com.br/blog/conheca-os-eventos-com-os-5-maiores-publicos-no-mma/. Acesso em: 19 ago. 2020. DIAS, E. B. Arte marcial: espetáculo, esporte e circo. Curitiba: Appris, 2019. GRACIE, R. Carlos Gracie: o criador de uma dinastia. Rio de Janeiro: Record, 2008. LESSA, F. S. Atletas na Grécia: da competição à excelência. Rio de Janeiro: Manuad X, 2017. MILLEN NETO, A. R.; GARCIA, R. A.; VOTRE, S. J. Artes marciais mistas: luta por afirmação e mercado. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 38, n. 4, p. 407-413, 2016. PAIVA, L. Olhar clínico nas lutas, artes marciais e modalidades de combate. Manaus: OMP Editora, 2015. RONDA Rousey faz história e será a primeira mulher no Hall da Fama do UFC. UFC, 2020. Disponível em: https://www.ufc.com.br/news/ronda-rousey-faz-historia-e-sera-primeira- mulher-no-hall-da-fama-do-ufc#:~:text=Como%20a%20primeira%20lutadora%20 contratada,23%20de%20fevereiro%20de%202013. Acesso em: 31 ago. 2020. TOKYO 2020. Boxing. 2020. Disponível em: https://tokyo2020.org/en/sports/boxing/. Acesso em: 19 ago. 2020. WORLD BOXING ASSOCIATION. Rules of World Boxing Association. 2015. Disponível em: https://www.wbaboxing.com/wp-content/uploads/2015/06/WBA-Rules-adopted-in- Bulgaria-6-11-15.pdf. Acesso em: 19 ago. 2020. https://venum.com.br/blog/conheca-os-eventos-com-os-5-maiores-publicos-no-mma/https://www.ufc.com.br/news/ronda-rousey-faz-historia-e-sera-primeira-mulher-no-hall-da-fama-do-ufc# https://www.ufc.com.br/news/ronda-rousey-faz-historia-e-sera-primeira-mulher-no-hall-da-fama-do-ufc# https://www.ufc.com.br/news/ronda-rousey-faz-historia-e-sera-primeira-mulher-no-hall-da-fama-do-ufc# https://tokyo2020.org/en/sports/boxing/ https://www.wbaboxing.com/wp-content/uploads/2015/06/WBA-Rules-adopted-in-Bulgaria-6-11-15.pdf https://www.wbaboxing.com/wp-content/uploads/2015/06/WBA-Rules-adopted-in-Bulgaria-6-11-15.pdf Lutas no Brasil 87 5 Lutas no Brasil Neste capítulo, estudaremos as lutas originadas no Brasil. Para isso, a primeira seção será utilizada para a abordagem do huka-huka, a luta de matriz indígena mais conhecida em nossa sociedade. Na seção seguinte, nossos estudos serão direcionados à capoeira, uma luta com origem mais provável no Brasil, mas criada por povos de matrizes africanas. Essas duas seções iniciais envolvem muitos as- pectos culturais relacionados aos povos que, desde o início da colo- nização, contribuíram para o desenvolvimento de nosso país. Na terceira seção, nosso direcionamento será para o jiu-jitsu brasileiro, buscando compreender como o tradicional jiu-jitsu japonês, ao chegar ao Brasil, ganhou novas características, a ponto de mudar de nacionalidade perante o mundo. Por fim, na última seção, será apresentada uma luta típica da Ilha de Marajó (um ar- quipélago do estado do Pará), a luta marajoara, que teve origem nos caboclos da região. Durante este capítulo, serão propostas algumas sugestões para abordagens de ensino das lutas brasileiras na escola. Essas propostas têm como objetivo proporcionar um ponto de partida e inspirar algumas possibilidades. Contudo, é importante que o docente tenha a compreensão de que essas propostas não são diretrizes, apenas sugestões, e que poderá usar a própria criati- vidade para ampliar as possibilidades de ensino de acordo com o contexto em que o professor e seus alunos estão inseridos. Estudar as lutas no Brasil é uma importante etapa nas aulas de Educação Física na escola, pois representa o conhecimento e a manutenção de nossa história, origem e cultura. 88 Metodologia do ensino de lutas 5.1 Huka-Huka Vídeo A cultura indígena tem um importante destaque em nossa história, pois os indígenas foram os primeiros habitantes da terra rica em pau- -brasil. Assim como outros povos e civilizações, eles também desen- volveram seus métodos de luta e guerra. Entre essas técnicas, a mais famosa entre os povos não indígenas é o yuetyk, mais conhecido como huka-huka, em alusão ao som que os indígenas emitem durante os con- frontos. Destacamos que a literatura sobre o assunto é limitadíssima, sendo que muito do que é abordado aqui se baseia em conhecimentos de transmissão oral de pesquisadores ou povos indígenas, bem como conhecimentos oriundos de documentários, reportagens e entrevistas. Durante nosso estudo, é importante que tenhamos a compreensão de que o huka-huka é apenas uma das lutas indígenas, muito comum entre a etnia Kamayurá e muito presente na região do Xingu, no es- tado do Mato Grosso. Contudo, não é a única luta de matriz indíge- na. É preciso considerarmos que existem diversas etnias indígenas no Brasil, além da diferenciação entre indígenas de diferentes países. Por- tanto, é um erro muito grande generalizar esses povos. Diante dessa diversidade de etnias, os costumes variam muito entre as tribos, sendo os hábitos, as tradições e os rituais religiosos peculiares à cada etnia, podendo haver o compartilhamento desses comportamen- tos entre tribos, mas de maneira alguma constituindo uma cultura única. Exemplos dessa diversidade são os rituais religiosos, que divergem entre os povos indígenas, com particularidades quanto ao uso das medicinas indígenas, como chá da ayahuasca, chá da jurema, sananga, kambô ou rapé. O mesmo vale para o huka-huka, que está presente em al- guns povos indígenas, mas não em todos. O chá de ayahuasca (palavra de origem indígena que é traduzida como “vinho das almas”) é um dos elementos da sagrada medicina em algumas tribos indígenas. A bebida, de coloração marrom-escura, é feita com duas plantas amazônicas: o cipó-jagube e as folhas da chacrona. Eskymaks/Shutterstock Kambô, também conhecida como vacina do sapo, é a aplicação da secreção extraída do sapo Kambô (Phyllomedusa bicolor), que é aplicada na pele após queimaduras superficiais comumente realizadas nos braços ou na perna. Essa medicina indígena pode ser utilizada tanto para fins físicos quanto espirituais. Photo SPPrPt/Shutterstock Photo SPPr Pt/S hut ter sto ck Jean-Marc He ro/WPkPmedPa Commons Lutas no Brasil 89 No Xingu, o huka-huka é muito praticado entre os povos indígenas. Ser um lutador é uma posição de honra. Para ser um lutador entre os indígenas, é preciso muito treino, ensinamentos e alimentação própria. Esse treinamento se inicia ainda na infância. Na fase da puberdade, os futuros lutadores passam por um processo de reclusão, no qual re- tardam o início de sua vida sexual para se dedicarem aos treinamentos diários. Hoje, em tempos sem guerra, o huka-huka é mais praticado como forma de lazer ou competição e como componente de rituais re- ligiosos (MADEIRA, 2006; PAIVA, 2015). O ritual religioso mais tradicional entre os povos do Xingu é o do Kuarup, também conhecido como ritual do morto. Trata-se de uma festa realizada uma vez por ano, contando com a participação de outras al- deias, com o objetivo de prestar as últimas homenagens aos mortos na- quele ano. Os povos do Xingu acreditam que o espírito do morto fica na aldeia até o Kuarup, que é considerado o momento próprio para que esse espírito deixe a aldeia (GUERREIRO, 2015; TERRA..., 2017). Para o Kuarup, os indígenas pintam e enfeitam troncos de árvores com os pertences do fa- lecido e fazem pinturas corporais, danças, homenagens e disputas de huka-huka. Mar ceM Mo C as aM JrM - M MM nc Pa M ra sP M/W Pk Pm ed Pa C om m on s Partes do ritual do Kuarup na aldeia Kamayurá. Ma rce MMo Ca sa M J rM - M MM nc P a M ra sP M/W Pk Pm ed Pa C om m on s M ar ce MMo C as aM J rM - M MM nc Pa Mra sPM/ WPk Pme dPa C ommo ns MarceMMo CasaM JrM - MMMncPa MrasP M/WPkP med Pa C om mo ns 90 Metodologia do ensino de lutas Nas lutas de huka-huka, os indígenas dão um giro em torno do local de combate (movimento também conhecido como roda da onça), ficam de joelhos e dão as mãos para o início do confronto, no qual o objetivo é derrubar o oponente de costas no chão, dominar as costas do adversário, levantar o oponente do solo ou agarrar a parte de trás do joelho do adversário. Caso um dos lutadores queira desistir, ele deve ficar em pé e dar alguns passos para trás, sendo decretado um empate. Luta de huka-huka realizada por indígenas do Xingu. NoeM NPMMas Moas/W PkPm edPa Commons Não há tempo determinado para duração do comba- te (TERRA..., 2017). Como possibilidade de ensino, a parte da vivência motora pode ser baseada na própria prática do huka-huka, que, apesar de demandar treinamento para se tornar um bom lutador, tem regras de fácil compreensão. Por meio dessa prática, também é possível estimular os alunos a refletirem sobre as ações da modalidade, buscando criar estratégias para obter a vitória, pois essa é uma das habilidades indicadas pela BNCC para serem desenvolvidas por meio da abordagem das lutas na escola. Por fim, a abordagem do huka-huka é uma excelente oportu- nidade para contemplar questões históricas e con- temporâneas envolvendo os povos indígenas, oportunizando também a condução dessas ativida- des como forma de integração com outras discipli- nas, como a disciplina de História. O trato das lutas indígenas é uma boa oportu- nidade para aprender ou relembrar de que modo esses povos impactaram nosso país com exemplos cotidianos, como hábito de banhos diários, alimen- tação, utensílios domésticose até mesmo nomes de cidades. Em 1996, foram criados os Jogos dos Povos Indígenas, em que o objetivo é a integração entre as tribos indígenas, bem como a manutenção dessas culturas. Existem disputas em modalida- des tradicionais indígenas, como arco e flecha, cabo de guerra e canoagem, e modalidades que foram incorporadas entre os indígenas, como o futebol. Nesses jogos, as lutas corporais são inseridas apenas como esporte de demonstração, pois há muitas diferenças entre os estilos de lutas praticados por diferentes etnias indígenas. Acesse o link a seguir para conhecer outras modalidades, como corrida com tora, Xikunahity (futebol de cabeça), zarabatana e Rõkrã. Disponível em: http://www.educacaofisica.seed.pr.gov.br/modules/ conteudo/conteudo.php?conteudo=218. Acesso em: 2 set. 2020. Curiosidade O livro Olhar clínico nas lutas, artes marciais e modalidades de combate apresenta um olhar crítico sobre aspectos históricos, antropológicos e sociológicos, fazendo a ligação dessas áreas com o universo das lutas, incluindo análise das lutas entre os povos indígenas. PAIVA, L. Manaus: OMP Editora, 2015. Livro http://www.educacaofisica.seed.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=218 http://www.educacaofisica.seed.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=218 Lutas no Brasil 91 5.2 Capoeira Vídeo A capoeira é, sem dúvidas, uma das manifestações culturais que mais reflete as raízes históricas brasileiras. Tamanha é a riqueza cultu- ra presente na capoeira que a roda de capoeira foi reconhecida como como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade (UNESCO, 2014). Após a chegada dos portugueses ao Brasil, em 1500, nosso país pas- sou por um processo de colonização que envolveu a escravização de indígenas que aqui habitavam e de pessoas trazidas de várias regiões da Costa Ocidental da África, como Costa do Ouro, Golfo do Benin, Baía de Biafra, Congo, Andongo e Vale do Zambeze (MATTOS, 2012). Não há um consenso sobre a data de início da escravidão no Brasil; alguns re- latos apontam para 1550 e outros, para 1518, e há quem defenda que ela se iniciou na chegada dos portugueses ao Brasil. A busca por pessoas de diferentes regiões era proposital, para difi- cultar a comunicação entre elas, evitando a promoção de rebeliões or- ganizadas. Como escravizadas, essas pessoas deveriam cumprir os trabalhos braçais designados por seus compradores, perfazendo assim a mão de obra que gerou riqueza durante todo o período de escravidão no Brasil. Em 1888, mais especificamente em 13 de maio, a abolição da escravidão no Brasil foi enfim decretada, com a assinatura da Lei Áurea (Lei n. 3.353), pelas mãos da Princesa Isabel (BRASIL, 1888). Entretanto, esse não foi um percurso simples; ou- tras medidas foram conquistadas até se chegar ao ponto de ser aprovada a Lei Áurea, como a proibição da escravidão indígena, em 1758 1 ; a aprovação da Lei Eusébio de Queirós (Lei n. 581), em 1850, estabele- cendo medidas restritivas para o tráfico de africanos (BRASIL, 1850); a aprovação da Lei do Ventre Livre (Lei n. 2.040), em 1871, que declarava livres todos os filhos de mulheres escravizadas que nascessem no Brasil (BRASIL, 1871); e a Lei dos Sexagenários (Lei n. 3.270), em 1885, que garantiu liberdade aos escra- vizados com 60 anos ou mais 2 (BRASIL, 1885). A lei de 6 de junho de 1755 ins- titui liberdade para os indígenas dos estados do Grão-Pará e do Maranhão. Em 1758, o Marquês de Pombal expandiu essa lei para todo o Brasil (DIEHL, 2014). 1 Há de se destacar que raramente um escravizado chegava aos 60 anos. Ainda, essa “libertação” garantia indenização aos proprietários de escravizados. 2 92 Metodologia do ensino de lutas Embora esse contexto histórico tenha sido apresentado de maneira resumida, o processo de colonização e escravidão no Brasil é muito mais complexo. Muitos interesses econômicos e pressões políticas estiveram envolvidos durante toda essa fase. Além disso, as pessoas escravizadas e seus filhos não tiveram vida fácil no período seguinte à Lei Áurea. Durante o período de escravidão, surgiram os primeiros relatos da presença da capoeira no Brasil. A corrente histórica mais propagada é a que afirma que a capoeira surgiu como uma forma de resistência ao processo de escravidão, servindo como autodefesa, para ser usada en- quanto alguns desses escravizados tentavam fugir em direção aos qui- lombos (locais de refúgio dos escravizados, que passavam a ser livres caso conseguissem chegar sozinhos até eles). Entretanto, se os fugiti- vos fossem capturados por outros ex-escravizados, continuavam a tra- balhar como escravizados dentro dos quilombos. Nessa fase, o nome dessa luta era capoeiragem. Capoeira ou capoeiras era a designação dada aos seus pra- ticantes, possivelmente fazendo refe- rência ao local em que a capoeiragem era praticada (capoeira remetia à ideia de terra com pouco mato). Para que a prática pudesse ocorrer sem muita re- pressão, elementos foram incorpora- dos para camuflá-la, como a presença da música e a mistura entre luta e dan- ça. Contudo, deve-se também destacar que há divergências e questionamentos sobre as características exatas da forma como a capoeira existia no período da escravidão. De todo modo, o fato é que parece haver um consenso de que essa prática era muito presente nesse período. Outro ponto marcante da capoeira ocorre após a aprovação da Lei Áurea, especificamente em 1890, quando a modalidade passa a ser proibida oficialmente, por meio do Decreto n. 847, levando à prisão aqueles que fossem flagrados praticando a capoeiragem (BRASIL, 1890). Nesse período, é bem claro o uso da música como forma de camuflar a prática, sendo que o toque do berimbau mudava para indicar a chega- da de tropas militares, que se deslocavam a cavalo. Um desses toques ficou então conhecido como toque da cavalaria 3 , o qual representava Me yo nd s PMe nc e/ W Pk Pm ed Pa C om m on s Representação da prática da capoeira no período de escravidão. Pintura de Augustus Earle, c. 1824. Veja um exemplo desse toque no seguinte vídeo: https://www. youtube.com/watch?v=NbWk- -9S3LCg. Acesso em: 15 set. 2020. 3 https://www.youtube.com/watch?v=NbWk-9S3LCg https://www.youtube.com/watch?v=NbWk-9S3LCg https://www.youtube.com/watch?v=NbWk-9S3LCg Lutas no Brasil 93 o sinal para os praticantes mudarem as ações de luta para dança. Além da música, a capoeira também era praticada dentro de uma roda de pessoas e em morros, de modo a dificultar a visualização do que ocorria dentro dos círculos de prática. Os tocadores de berimbau ficavam mais afastados da roda de capoeira, para que conseguissem avis- tar a aproximação da cavalaria. Alguns elementos presentes na capoei- ra foram mudan- do com o tempo; atualmente, uma roda tradicional de ca- poeira conta com três berimbaus (gunga, médio e viola) – os quais, para seu toque, demandam o uso de baqueta, caxixi 4 e dobrão ou moeda –, dois pandei- ros e um atabaque. Também é comum a presença de outros instrumentos, como o agogô 5 e o reco-reco 6 , embora possam ser considerados instrumentos secundários para as rodas de capoeira. Instrumentos musicais utilizados na capoeira. Atabaque Agogô Reco-recoPandeiroBerimbau Dobrão, caxixi e baqueta OM kPt a/ Sh utt ers toc k A música é fundamental para a prática da capoeira, pois é ela que dita o ritmo do jogo/luta, elevando ou diminuindo a intensidade na roda, a depender do estilo de capoeira. Os estilos mais conhecidos são: Capoei- ra Regional e Capoeira Angola. No estilo Regional, existe uma velocida- Também chamado de gã ou gongom, é um instrumento de origem yorubá composto de um ou vários sinos. 5 O caxixi é um chocalho de origem africana e se assemelha a um pequeno cesto de palha trançado. 4 É conhecido também como dikanza, raspador, caracaxá ou querequexé. Reco-reco é um termo genérico para intrumentos cujo som é produzido por raspagem. O reco-reco brasileiro é feito deaço; já o angolano é de madeira. 6 CCE MC CSC M/ Sh ut te rs to ck CC EM CC SC M/ Sh ut te rs to ck Exemplos de rodas de capoeira. Joa SouJa/Shutterstock 94 Metodologia do ensino de lutas de maior no jogo, com presença de muitos elementos acrobáticos. Já no estilo Angola, a cadência do jogo (sequência encadeada e regular de sons e movimen- tos) é menor e os movimentos são realizados mais próximos do solo. Para a prática da capoeira, independentemente do estilo, é necessário dominar a ginga, uma movi- mentação típica da modalidade que sustenta toda a prática. A seguir, são apresentadas algumas técnicas da capoeira. Parada de mão Macaquinho Ginga Bico de papagaio Chapa de frente Meia-lua Negativa Esquiva Alguns movimentos presentes na capoeira. Se rM eP M os hk Pro v/ Sh ut te rs to ck Em 1937, a proibição da capoeira foi revogada. Contudo, a luta para acabar com o preconceito contra a modalidade, e também contra os po- vos descendentes de escravizados, não chegou ao fim. Especificamente quanto à capoeira, pode-se dizer que a modalidade obteve muitas con- quistas e reconhecimentos desde então, desde declarações de presiden- tes, como Getúlio Vargas, até o reconhecimento da roda de capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco. Nesse Tipos de berimbau. Viola Médio Gunga es co va /S hu tte rs to ck Lutas no Brasil 95 processo, dois mestres merecem destaque, o mestre Bimba e o mestre Pastinha, os quais exerceram muita influência no modo como a capoei- ra é praticada e ensinada atualmente (FONTOURA; GUIMARÃES, 2002). Como proposta de ensino, considere que a capoeira apresenta diversas possibilidades para experimentar movimentos relacionados às lutas e à dança. Para tanto, podem ser ex- ploradas movimentações como a prática de sua ginga e a realização de algumas de suas técnicas. Nesse sentido, uma prática interessante é a tentativa de reprodução das sequências de técnicas sistematizadas por mestre Bimba 7 . Outra possibilidade é o uso da capoeira para discussão e reflexão acerca do processo histórico vivenciado pelo povo brasileiro desde seu processo de colonização. Dessa forma, a capoeira pode servir para re- flexão e estudo da herança cultural que nossa sociedade absorveu com os povos de matrizes africanas. Alguns elementos passam até mesmo desapercebidos em nosso dia a dia, como a presença da feijoada e da cachaça na alimentação do brasileiro. Outro exemplo é o estudo do contexto religioso, como o surgimento da umbanda, que em solo bra- sileiro apresentou um sincretismo de elementos e crenças presentes no candomblé, nas crenças indígenas, no catolicismo e posteriormente no espiritismo. O conhecimento é uma das chaves para a quebra do preconceito e, portanto, deve ser estimulado dentro da escola. Pe rs on aM P ho to s/ Sh ut te rs to ck Altar de umbanda, um exemplo do sincretismo religioso. Conheça o Hino da Umbanda, de José Manuel Alves, e tente identificar a semelhança entre os princípios de fraternidade presente na religião e aqueles presentes no cristianismo. Disponível em: https://music.youtube.com/ watch?v=xXayiw8Q60s. Acesso em: 2 set. 2020. Saiba mais Por fim, com base na capoeira, podem ser exploradas práticas relacio- nadas à musicalidade, além da possibilidade de integração de conhecimen- to com outras disciplinas e conteúdos, como História, Arte e Filosofia. Crianças praticando capoeira e tocando berimbau. DenPs CrPsto/Shutterstock No vídeo do link a seguir, há demonstrações de sequências pedagógicas sistematizadas por mestre Bimba: https://www. youtube.com/watch?v=lJaxvU- CdMto. Acesso em: 15 set. 2020. 7 O filme Besouro: nasce um herói, apresenta, por meio de uma história fictícia, aspectos de como a capoeira e seus prati- cantes eram encarados em um período próximo à abolição da escravidão no Brasil. Direção: João Daniel Tikhomiroff. Rio de Janeiro: Globo Filmes, 2009. Filme https://www.youtube.com/watch?v=lJaxvUCdMto https://www.youtube.com/watch?v=lJaxvUCdMto https://www.youtube.com/watch?v=lJaxvUCdMto 96 Metodologia do ensino de lutas 5.3 Jiu-jitsu brasileiro Vídeo A história da origem do que hoje denominamos jiu-jitsu brasileiro também é cheia de divergências e incertezas. Diante disso, nesta seção, iremos abordar a versão mais difundida. No entanto, iremos conhecer também alguns questionamentos presentes na literatura. Feita essa ressalva, o termo jiu-jitsu deriva do idioma japonês e é representado por dois ideogramas, simbolizando o conceito de arte suave (ju = sua- ve; jutsu = arte). No Brasil, passa a ser usada a denominação jiu-jitsu no lugar de jujutsu, pois era a forma como os brasileiros entendiam a nomenclatura original pronunciada por um japonês. O jujutsu 8 , ou tradicional jiu-jitsu japonês, era o nome dado a uma sis- tematização de técnicas utilizadas no Japão pelos samurais como forma de luta corporal para uso nos combates sem a espada. No entanto, no fim da Era Meiji, os samurais perderam a designação de defensores dos feudos e da pátria, e o Japão passou a contar com guardas militarizadas portando armas de fogo. Nesse contexto, o jujutsu passa a cair em desuso, sendo a sua utilização até mesmo proibida (ANDREATO et al., 2010). Diante disso, Jigoro Kano, um estudioso de jujutsu, selecionou algumas técnicas de diferentes estilos de jujutsu e fundou o judô 9 , em 1882, com o objetivo de oportunizar às pessoas um método capaz de auxiliar na educa- ção e no desenvolvimento integral do ser humano. Para difundir a modali- dade, Kano enviou alguns de seus alunos para viajar o mundo apresentando e ensinando o judô (WATSON, 2011). Entre esses alunos, estava Mitsuyo Maeda, também conhecido como Conde Koma. Antes de aprender judô com Kano, Maeda também havia sido estudante de jujutsu e sumô. Após passar por vários países, Maeda desembarcou no Brasil 10 , país em que fixou residência. Nessa fase inicial, Gastão Gracie, um in- fluente homem de negócios, ajudou-o a se adaptar e se estabilizar em Belém do Pará. Como forma de gratidão pela ajuda do amigo, Maeda ensinou o tradicional jiu-jitsu japonês a um dos filhos de Gastão, Carlos Gracie, o qual, após algum tempo, também passou a dar aulas da modalidade. Conta-se que um dos irmãos de Carlos, A origem do jujutsu não será discutida, mas é preciso considerar que esse sistema de lutas também teve influência de outros estilos de luta. 8 A história da fundação do judô não será aprofundada nesta seção. 9 Foto de Maeda, o Conde Koma. Ch e Ja Pa ne se T oo k/ W Pk Pm ed Pa C om m on s Não há consenso da data e do local de chegada de Mitsuyo Maeda ao Brasil. Alguns registros apontam para 1914. 10 Lutas no Brasil 97 Hélio Gracie, sempre assistia às aulas, mas nunca havia praticado o jiu- -jitsu. Porém, um dia Carlos se atrasou para uma das aulas e Hélio, após assistir a muitas aulas do irmão, assumiu o comando. Após esse dia, ele não parou mais de praticar e ensinar a modalidade, criando adaptações das técnicas para que demandassem menos força. Nesse momento, a família Gracie assume que o jujutsu foi modificado e ganhou novas características, nascendo então o Gracie jiu-jitsu, que posteriormente passa a ser tratado como jiu-jitsu brasileiro (ANDREATO et al., 2010; GRACIE, 2008). O objetivo dessa luta é levar o adversário à desistência, a qual deve ser sinalizada com três tapas no solo ou no opo- nente. Para tanto, o jiu-jitsu brasileiro se baseia em sistemas de alavancas, em que não são utilizados golpes traumáticos (ex.: socos, chutes, joelhadas e cotoveladas) para vencer o ad- versário, mas são usadas técnicas de projeções, imobilizações, estrangu- lamentos e chaves articulares, com maior predominância do combate na luta de solo. A seguir, são apresentados alguns exemplos dessas técnicas. LP uk ov /S hu tte rs to ck Mf rPc a St ud Po /S hu tte rs to ck Projeções M PMj an Z Pvk ov Pc /S hu tte rs to ck Mf rPca St ud Po /S hu tte rs to ck Imobilizações MrquPvo NacPonaM/WPkPmedPa Commons Carlos (à esquerda) e Hélio Gracie (à direita). 98 Metodologia do ensino de lutas M PMj an Z Pvk ov Pc /S hu tte rs to ck M PMj an Z Pvk ov Pc /S hu tte rs to ck Estrangulamentos Ev er yo ne Ph ot o S tu dP o/ Sh ut te rs to ck Ne PM Lo ck ha rt/ Sh ut te rs to ck Chaves articulares Embora a versão apresentada seja a mais difundida, existem alguns questionamentos sobre ela, com indicações de que o jujutsu chegou ao Brasil em diferentes locais, juntamente com a imigração japonesa, e, portanto, foi aprendido por diferentes grupos de pessoas, incluindo a Marinha brasileira (SANTOS, 2019). Além disso, questiona-se que as técnicas de luta de solo presentes no jujutsu japonês eram muito pa- recidas com o que foi denominado jiu-jitsu brasileiro 11 , não justificando, assim, dizer que foi criado algo novo. De toda forma, o fato é que a família Gracie teve um papel funda- mental na divulgação desse sistema de luta, que hoje é conhecido e praticado em todos os continentes. Inicialmente, membros dessa fa- mília realizaram muitos desafios contra praticantes e atletas de outras modalidades. Um famoso exemplo foi um desafio contra o principal judoca japonês da época, Masashiko Kimura, em um duelo realizado em 1951 no Estádio do Maracanã, na cidade do Rio de Janeiro. Entre os expectadores, estava o vice-presidente da época, João Fernandes Campos Café Filho (GRACIE, 2008). Questiona-se também a seme- lhança do denominado jiu-jitsu brasileiro com as técnicas presentes no kosen judô. 11 Desde 2008, o jiu-jitsu brasileiro tem sido implantando dentro das escolas públicas nos Emirados Árabes Unidos. Isso se deve ao fato de o filho do sheikh Tahnoun bin Mohammed Al Nahyan ter obtido grandes benefícios comportamentais após a prática da modalidade (DEPARTMENT OF EDUCATION AND KNOWLEDGE, 2020). Curiosidade Lutas no Brasil 99 Nessa trajetória de provar a eficiência do jiu-jitsu brasileiro, em 1993, a modalidade passou a ganhar atenção de todo o mundo, após Royce Gracie vencer oponentes mais fortes e pesados na primeira edição do UFC, que foi um evento criado inicialmente para verificar qual modalidade era a mais efetiva (AWI, 2012; DIAS, 2019). Após esse período, os desafios e brigas passaram a não ser mais necessários e foram repreendidos pelos professores da modalidade, com o jiu-jitsu brasileiro passando a se espor- tivizar cada vez mais, o que inclui a criação de federações e confederações. Nas competições, os competidores são divididos quanto a sexo, idade, massa corporal (categorias de peso) e graduação. Veja algumas dessas divisões: Massa corporal*Sexo GraduaçãoIdade Galo Pluma Pena Leve Médio Meio-pesado Pesado Superpesado Pesadíssimo Feminino Masculino Branca Cinza** Amarela** Laranja** Verde** Azul Roxa Marrom Preta Preta e vermelha Vermelha e branca Vermelha Pré-Mirim (I ao III) Mirim (I ao III) Infantil (I ao III) Infanto-juvenil (I ao III) Juvenil (I e II) Adulto Master (I ao VII) Fonte: International Brazilian Jiu-Jitsu Federation, 2018. * Os limites de massa corporal variam de acordo com o sexo e a faixa etária. ** Faixas exclusivamente para menores de 18 anos. Além disso, até a faixa-verde existem faixas intermediárias (ex.: faixa- -branca, faixa-cinza com listra branca, faixa-cinza, faixa-cinza com listra preta, faixa-amarela com listra branca, faixa-amarela). O tempo de combate nas competições é definido com base na idade e graduação, podendo variar de dois minutos (pré-mirim) a dez minu- tos (adultos faixas-preta). Nas disputas, vence quem conseguir fazer o adversário desistir (finalizar o adversário) ou obter mais pontos, sendo que existem pontuações próprias para diferentes situações específicas da modalidade (queda, raspagem, passagem de guarda, joelho na barri- ga, montada pela frente, montada pelas costas e pegada de costas). Foto de Royce Gracie. Pe te r G or do n/ W Pk Pm ed Pa C om m on s 100 Metodologia do ensino de lutas Como possibilidades de ensino, se o professor não for praticante do jiu-jitsu brasileiro, não deve se preocupar em ensinar técnicas com perfeição. É importante considerar que um dos objetivos das lutas na escola é proporcionar aos alunos diferentes experiências motoras. Nesse sentido, essa modalidade é uma excelente oportunidade para as atividades de agarre em geral, tanto em pé quanto no solo. Veja dois exemplos a seguir: Exemplos de atividades que envolvem direta ou indiretamente o agarre/domínio tanto na luta em pé quanto na luta de solo. Fonte: Andreato e Marcondes, 2021. Além disso, outro objetivo da abordagem das lutas é levar os alunos a planejarem e utilizarem estratégias básicas das lutas expe- Lutas no Brasil 101 rimentadas, reconhecendo as características técnico-táticas da mo- dalidade. Nesse contexto, o professor pode criar situações para que eles pensem sobre as possibilidades no jiu-jitsu brasileiro. Por exem- plo, o docente pode dividir a turma em grupos e solicitar que seus alunos desenvolvam técnicas para dominar/imobilizar o oponente no solo. Na sequência, em duplas, todos devem tentar aplicar as técni- cas desenvolvidas por cada grupo. Isso irá fazer os alunos refletirem sobre os fundamentos existentes na modalidade por meio do pro- cesso de tentativa e erro, identificando quais princípios funcionaram e quais falharam. Por fim, o professor precisa considerar que outro objetivo presente na BNCC para as lutas no Brasil é “problematizar preconceitos e este- reótipos relacionados ao universo das lutas e demais práticas corporais, propondo alternativas para superá-los, com base na solidariedade, na justiça, na equidade e no respeito” (BRASIL, 2017). Para tanto, o contex- to histórico do jiu-jitsu brasileiro pode perfeitamente ser utilizado para embasar essas discussões. Reflita: as práticas de desafios e brigas usa- das inicialmente para difundir a modalidade se aplicam ou se justificam na sociedade atual? No livro Carlos Gracie: o criador de uma dinastia, a autora, Reila Gracie, conta a trajetória de seu pai, o primeiro Gracie a ter contato com o jiu-jitsu japonês (jujutsu). GRACIE, R. Rio de Janeiro: Record, 2008. Livro 5.4 Luta marajoara Vídeo A Ilha de Marajó, no Estado do Pará, é uma região que tem aspectos culturais próprios, com origens nos caboclos da região. Duas peças de sua cultura são mais conhecidas fora da ilha, a cerâ- mica marajoara e uma luta típica da região, a luta mara- joara, também conhecida como agarrada marajoara, cabeçada ou lambuzada. É provável que a luta marajoara tenha so- frido influência de indígenas que lutavam o huka-huka. Sua data de origem é incerta, mas acredita-se que ela exista desde o período colonial (TERRA..., 2017). Nesse contexto, é importante des- tacar que, assim como ocorre com o huka-huka, existe pouca documentação científica sobre a luta marajoara. Alguns re- latos indicam que a luta tem em si o caráter de Exemplos de cerâmica marajoara, um tipo de arte característica da Ilha de Marajó. NsoMym ossy/W PkPm edPa Com m ons MmarPMdo OMPvePra/Shutterstock 102 Metodologia do ensino de lutas lazer, sendo praticada no final do dia de trabalho, para aquecer o corpo antes do banho nos açudes ou nas praias. Nas disputas, que atraem muitos moradores da ilha para assistirem aos confrontos, o objetivo é projetar o adversário ao solo, sendo ne- cessário sujar pelo menos três quartos das costas dele. Por essa razão, a luta marajoara também recebe o nome de lambuzada. Golpes traumá- ticos, como socos, chutes, joelhadas ou cotoveladas, são proibidos. Essas disputas ocorrem em uma arena, também conhecida como curral, a qual é caracterizada por um círculo desenhado no chão e necessariamente precisa ter solo com areia, lama ou até mesmo grama (TERRA..., 2017). Além disso, os combates começam com os lutadores unindo os pés; ao sinal do juiz central,com um toque simultâneo nos dois atletas, eles partem para a ação. Nessa dinâmica, é comum ter a oposição de cabeça com cabeça, motivo pelo qual a modalidade também é conhecida por alguns conterrâneos como cabeçada. Essa caracterização da cabeçada tem suas origens nas observações que os vaqueiros da região faziam do modo como os búfalos da região se confrontavam, com con- tato de cabeça contra cabeça. A duração dos combates é de cinco mi- nutos, em um único assalto 12 , com a disputa sendo encerrada quando um atleta conse- gue sujar as costas do outro. Caso isso não ocorra, os árbitros (um central e dois laterais) decidem no voto quem será o vencedor. Também é possível haver uma prorrogação de dois minutos. Como possibilidade de ensino, a parte da vivência motora pode ser fundamentada na própria experimentação da luta marajoara. Por meio dessa prática, também é possível estimular os alunos a refletirem so- bre as ações da modalidade, buscando criar estratégias para obter a vitória. Contudo, é importante que eles já tenham vivenciado ativida- des para desenvolver o aprender a cair, pois isso tornará a prática mais segura. Além disso, a abordagem da luta marajoara pode servir como instrumento para tratar da riqueza e diversidade cultural presente em nosso país, bem como para refletir e discutir a influência dos povos indígenas na formação de nosso sistema cultural. Para conhecer as princi- pais técnicas utilizadas na luta marajoara, assista ao vídeo Golpes da Luta Marajoara, organiza- do pelo prof. Dr. Ítalo Sérgio Lopes Campos, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Lutas e Esportes de Combate da Universidade Federal do Pará (NEPLEC-UFPA). Disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=5odqPIb3EWo&t=1s. Acesso em: 3 set. 2020. Vídeo Búfalo, animal que se acredita ter influenciado o estilo da luta marajoara. aMeaandre rochaa/Shutterstock Assalto significa o mesmo que round, mas é o termo mais comum entre os praticantes da luta marajoara. 12 https://www.youtube.com/watch?v=5odqPIb3EWo&t=1s https://www.youtube.com/watch?v=5odqPIb3EWo&t=1s https://www.youtube.com/watch?v=5odqPIb3EWo&t=1s Lutas no Brasil 103 Terra de Luta: as origens da luta no Brasil, de 2017, é uma série documental que apresenta as origens e as características de algumas lutas consideradas brasileiras. Produzida pela Aca- demia de Filmes, com coprodução do Canal Combate, direção de Tadeu Jungle e consultoria técnica do historiador Leandro Paiva, a série é dividida em quatro partes: 1. Registros rupestres de lutas (Pré-História) no Parque Nacional Serra da Capivara; 2. Luta Huka-Huka no Parque Indígena do Xingu; 3. Luta Marajoara no Arquipélago do Marajó; 4. Capoeira em Salvador (Bahia). Assista ao teaser no link a seguir. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=76l7MiXw9PU. Acesso em: 3 set. 2020. Vídeo CONSIDERAÇÕES FINAIS Este capítulo teve como objetivo tratar de temas relacionados às lu- tas no Brasil. Por meio da abordagem de quatro dessas lutas, pudemos observar a riqueza cultural e histórica presente no Brasil, que, por ser um país de dimensões continentais, possui características culturais muito peculiares de cada região. A abordagem das lutas brasileiras na escola permite a vivência de di- ferentes formas de expressão corporal. Além disso, por meio dessas lu- tas, é possível abordar aspectos históricos e culturais presentes em nossa sociedade, desde a colonização até os dias atuais. Estudar as lutas brasi- leiras também é estudar o processo de formação histórica do Brasil, cons- tituindo uma excelente oportunidade para superação de paradigmas e preconceitos direcionados a diferentes povos e tradições que fazem parte da nossa nação. ATIVIDADES 1. Qual é o principal ritual religioso em que o huka-huka é praticado? 2. Indique a razão pela qual os elementos musicais foram inseridos na capoeira. 3. Qual é o principal objetivo durante a luta marajoara? REFERÊNCIAS ANDREATO, L. V.; MARCONDES, V. A. Iniciação aos esportes de combate: brazilian jiu-jitsu, judô e wrestling. Manaus: OMP Editora, 2021. ANDREATO, L. V. et al. A história do brazilian jiu-jitsu. Lecturas: Educación Física y Deportes, v. 14, n. 142, 2010. https://www.youtube.com/watch?v=76l7MiXw9PU 104 Metodologia do ensino de lutas AWI, F. Filho teu não foge à luta: como os lutadores brasileiros transformaram o MMA em um fenômeno mundial. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_ versaofinal_site.pdf. Acesso em: 15 set. 2020. BRASIL. Lei n. 581, de 4 de setembro de 1850. 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Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto/1851-1899/d847.htm. Acesso em: 30 ago. 2020. DEPARTMENT OF EDUCATION AND KNOWLEDGE. Jiu Jitsu Sport. 2020. Disponível em: https://www.adek1.adek.gov.ae/en/Education/PP/Pages/Jiu-Jitsu-Sport.aspx. Acesso em: 2 set. 2020. DIAS, E. B. Arte marcial: espetáculo, esporte e circo. Curitiba: Appris, 2019. DIEHL, I. L. Apontamentos sobra a estrutura da escravidão indígena na fronteira sul do Império Português. In: 12o ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA ANPUH/RS. Anais [...]. São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2014. FONTOURA, A. R. R.; GUIMARÃES, A. C. A. A história da capoeira. Revista da Educação Física/ UEM, v. 13, n. 2, p. 141-150, 2002. GRACIE, R. Carlos Gracie: o criador de uma dinastia. Rio de Janeiro: Record, 2008. GUERREIRO, A. Quarup: transformações do ritual e da política no Alto Xingu. Mana, v. 21, n. 2, p. 377–406, 2015. INTERNATIONAL BRAZILIAN JIU-JITSU FEDERATION. IBJJF Rule Book. 2018. 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Exemplo de luta: dois motoristas trocam agressões físicas após uma discussão de trânsito. Exemplo de arte marcial: os camponeses de Okinawa utilizavam o karatê como forma de autodefesa. Exemplo de esporte de combate: nos Jogos de Tóquio, o judô estará presente com disputas em 15 categorias. 2. O Brasil ocupa um lugar de destaque tanto na análise geral, envolvendo a grande área de lutas, quanto na análise por modalidades e figura entre os países mais produtivos, incluindo pesquisadores no ranking dos mais produtivos no meio acadêmico. 3. Modalidades esportivas de combate olímpicas: boxe, esgrima, judô, karatê, taekwondo e wrestling. 2 Ensino das lutas na escola 1. Do 3º ao 5º ano: lutas do contexto comunitário e regional; lutas de matrizes indígena e africana. Para os 6º e 7º anos: lutas no Brasil. Nos 8º e 9º anos: lutas no mundo. 2. Os princípios condicionantes das lutas são: oponente como alvo, contato proposital, fusão de ataque e defesa, imprevisibilidade e regras. 3. Para inibir o comportamento violento entre os alunos, é fundamental que o professor utilize as lutas para promover reflexões e discussões sobre temas como violência, bullying, respeito ao próximo, empatia e diferenças entre lutar e brigar. 3 Lutas no Oriente 1. Monges budistas adotaram o wushu como uma forma de melhorar seu condicionamento físico para suportarem as longas horas de meditação, além de utilizá-lo como forma meditativa. 2. Karatê-do é um termo japonês representado por três ideogramas, os quais podem ser traduzidos como “caminho das mãos vazias”. Nesse sentido, pode ser atribuído o sentido literal, de uma arte sem o 106 Metodologia do ensino de lutas uso de armas. Entretanto, também é possível um entendimento mais filosófico, compreendendo o karatê como um caminho para conduzir o ser humano ao esvaziamento dos desejos/apegos terrenos. 3. Princípio da máxima eficiência (Seiryoku Zen’Yo), princípio da prosperidade e benefícios mútuos (Jita Kyoei) e princípio da suavidade (Ju). 4 Lutas no Ocidente 1. Wrestling (também tratado apenas como luta ou luta olímpica), pugilato e pancrácio, sendo que o wrestling, além de ter ser disputado como uma modalidade exclusiva, integrava as disputas no pentatlo. 2. Sabre, florete e espada. 3. Essa mudança de nome aconteceu para tirar a ideia de que as regras permitiam tudo, o que não era verdade, pois o termo vale-tudo indicava que todos os tipos de luta podiam participar das competições. Assim, a mudança serviu para a modalidade ter um nome mais atrativo ao público. 5 Lutas no Brasil 1. O principal ritual religioso em que o huka-huka é praticado é o do Kuarup, também conhecido como ritual do morto, o qual é realizado para prestar homenagens aos indígenas falecidos entre rituais. 2. A música foi inserida na capoeira para camuflar a prática, alertando os praticantes para a aproximação de pessoas hostis (ex.: tropas militares). 3. O principal objetivo na luta marajoara é projetar o adversário ao solo, forçando-o a sujar pelo menos três quartos das suas costas. Metodologia do ensino de lutas LEONARDO VIDAL ANDREATO Código Logístico 59566 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6682-7 9 7 8 8 5 3 8 7 6 6 8 2 7 Página em branco Página em branco