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Brasília-DF. EpistEmologia das CiênCias Humanas Elaboração Rogério de Moraes Silva Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário APRESENTAÇÃO .................................................................................................................................. 4 ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA ..................................................................... 5 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 7 UNIDADE ÚNICA EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS ............................................................................................ 9 CAPÍTULO 1 FILOSOFIA DA HISTÓRIA ........................................................................................................... 9 CAPÍTULO 2 O PROBLEMA DO HISTORICISMO ........................................................................................... 16 CAPÍTULO 3 HISTÓRIA SOCIAL .................................................................................................................. 23 CAPÍTULO 4 A MUDANÇA DE PARADIGMA CULTURAL E A CRISE DA CIVILIZAÇÃO ........................................ 31 CAPÍTULO 5 A CRISE DOS VALORES NA CONTEMPORANEIDADE ................................................................ 37 CAPÍTULO 6 AS CIÊNCIAS HUMANAS E SEUS OBJETOS ............................................................................... 41 CAPÍTULO 7 A HERMENÊUTICA, AS CIÊNCIAS HUMANAS E A LEITURA .......................................................... 48 PARA (NÃO) FINALIZAR ...................................................................................................................... 55 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 56 4 Apresentação Caro aluno A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade. Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da Educação a Distância – EaD. Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade dos conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos específicos da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém ao profissional que busca a formação continuada para vencer os desafios que a evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo. Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira. Conselho Editorial 5 Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam a tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta, para aprofundar os estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de Estudos e Pesquisa. Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Praticando Sugestão de atividades, no decorrer das leituras, com o objetivo didático de fortalecer o processo de aprendizagem do aluno. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. 6 Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Exercício de fixação Atividades que buscam reforçar a assimilação e fixação dos períodos que o autor/ conteudista achar mais relevante em relação a aprendizagem de seu módulo (não há registro de menção). Avaliação Final Questionário com 10 questões objetivas, baseadas nos objetivos do curso, que visam verificar a aprendizagem do curso (há registro de menção). É a única atividade do curso que vale nota, ou seja, é a atividade que o aluno fará para saber se pode ou não receber a certificação. Para (não) finalizar Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem ou estimula ponderações complementares sobre o módulo estudado. 7 Introdução As relações que os seres humanos estabelecem entre si e com o mundo ao seu redor são questões que as ciências humanas procuram compreender e desvendar, ou seja, as complexas ligações que definem a própria humanidade. Os indivíduos tentam, de todo modo, elucidar as inúmeras relações existentes entre os segmentos sociais, na procura pela melhoria da condição do ser humano, objetivo comum a todos desde o passado até a contemporaneidade. A existência do ser humano sempre se apresentou sob perspectivas diferentes, e diversos modos concebê-lo se sucederam e passaram a existir juntos no espaço nas mais diversificadas culturas. Este caderno, portanto, tem o objetivo de proporcionar informações acerca da Epistemologia das Ciências Humanas, com o compromisso de orientar os profissionais da área de Filosofia, para que possam desempenhar suas atividades com eficiência e eficácia. Objetivos » Conhecer aspectos relevantes sobre a filosofia da história e o problema do historicismo. » Identificar a mudança de paradigma cultural e a crise da civilização. » Identificar aspectos relevantes e seus objetos. 9 UNIDADE ÚNICA EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS CAPÍTULO 1 Filosofia da história Estudar história requer o conhecimento prévio de que com esse estudo se almeja algo impossível e importantíssimo. Estudar história significa entregar- se ao caos, conservando a crença na ordem e no sentido. É uma tarefa muito séria..., talvez mesmo trágica. Herman Hesse, O Jogo das Contas de Vidro. A pergunta acerca do sentido da história é feita há décadas, já a vemos em “Cidade de Deus”, de Santo Agostinho, inaugurando a filosofia da história. E ainda nos lembramos de W. H. Walsh: O problema de quem terá inventado a filosofia da história é controverso: há argumentos que justificam a atribuição ao filósofo italiano Vico (1668-1744), embora sua obra tenha passado em grande parte despercebida em sua época, o que justifica remontar a um passado ainda mais distante aos textos de Sto. Agostinho, ou mesmo a certos trechos do Velho Testamento.1 Há um trecho do Velho Testamento, no “Livro do Eclesiastes”, que podemos nos remeter aqui: Uma geração passa, e outra geração lhe sucede; mas a terra permanece sempre estável! [...]. Todas as coisas são difíceis; o homem não as pode explicar com palavras. O olho não se farta de ver nem o ouvido se cansa de ouvir (sempre as mesmas coisas)”. «Que é que foi? É o mesmo que há de ser. Que é que se fez? O mesmo que se há de fazer. Não há nada novodebaixo do sol, e ninguém pode dizer.- Eis aqui está uma coisa nova, porque ela já existe nos séculos que passaram antes de nós. Não há memória das coisas antigas, mas também não haverá memória das coisas que hão de suceder depois de nós entre aqueles que viverão mais tarde.2 Podemos dizer que foi inserido aí um sentido, em direção à história da humanidade, que tem a característica da imanência, do estável. Anterior a Santo Agostinho, é possível ainda apontar uma 1 WALSH (1978), p. 13. 2 Livro do Eclesiastes, 1, 4, 8 - 11. 10 UNIDADE ÚNICA │ EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS filosofia da história em Heródono de Halicarnasso. Em suas Investigações acerca das disputas entre os gregos e os persas, chamadas também de Guerras Médicas, ele fala: [...] O que farei [...] será levar adiante minha história, e discorrer do mesmo modo sobre os sucessos dos Estados grandes e pequenos, visto que muitos, que antigamente foram grandes, vieram depois a ser bem pequenos e que, ao contrário, foram antes pequenos os que se elevaram em nossos dias à maior grandeza. Persuadido, pois, da instabilidade do poder humano, e de que as coisas dos homens nunca permanecem constantes nomesmo ser, próspero nem adverso, farei como digo, menção igualmente de uns Estados e de outros, grandes e pequenos.3 Neste trecho podemos inferir certo sentido de história: a contingência das coisas, a vida social instável, os poderes que se alternam a cada instante. Heródono de Halicarnasso, tido como o pai dos historiadores, mesmo analisando apenas um só momento da história, não evitou a emissão de um juízo que a abarca em sua totalidade. Em seus escritos, suas palavras parecem transcender os liames de um acontecimento particular, tende a algo mais geral diante dessa história. Santo Agostinho não escapou deste fato. Ao dar sentido à desagregação do Império Romano, bem como falar da responsabilidade dos cristãos neste fato, ele interpreta a história em sua totalidade. E mesmo os sujeitos modernos, ao pesquisar e tentar explicar a história, constituem uma concepção do caminhar dos homens em torno da busca por um sentido maior, ou seja, os sujeitos tendem a filosofar acerca da história, mesmo que não tem essa pretensão. Continuando nas ideias de Wlash: Para efeitos práticos, temos razão em afirmar que a filosofia da história começou a ser considerada matéria independente no período que se inicia com a publicação, em 1784, da primeira parte das Ideias para uma História Filosófica da Humanidade, de Herder, e terminou pouco depois do aparecimento da obra póstuma de Hegel, Conferências sobre a Filosofia da História em 1837. Mas, esse estudo, tal como foi concebido durante o período, era em grande parte uma questão de especulação metafísica. Seu objetivo era chegar a um entendimento do curso de história como um todo; mostrar que, apesar de muitas anomalias e inconsequências que apresentava, a história podia ser considerada como uma unidade que compreendia um plano geral, um plano que, uma vez percebido, esclareceria o curso detalhado dos acontecimentos ao mesmo tempo em que nos permitiria ver o processo histórico como satisfatório à razão, num sentido especial [...] Pretendiam oferecer uma compreensão da história mais profunda e valiosa do que qualquer coisa que oshistoriadores pudessem apresentar, uma compreensão que, no caso do Hegel, o maior desses autores, tinha uma base não num estudo diretoda evidência histórica (embora Hegel não fosse indiferente em relação aos fatos, como pretende ser, por vezes), mas em considerações puramente filosóficas. A filosofia da história, como praticada por esses autores, passou a significar um tratamento especulativo de todo o curso de história, com o qual se esperava revelar seu segredo, de uma vez por todas.4 3 HERÓDOTO (1947), p. 13; Livro 1,5. 4 WALSH (1978), p. 13-14. 11 EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS │ UNIDADE ÚNICA Walsh afirma que é possível encontrar algumas obras - mesmo após Hegel – que caminham no panorama dito especulativo da filosofia da história, e faz referência a Marx, Spengler e Toynbee, além de Comte. W.H. Dray, ao se debruçar sobre o que chama de “tratamentos” da filosofia especulativa da história, fala de Hegel e seu “tratamento metafísico”, Toynbee e seu “tratamento empírico”, e Reinhold Niebuhr e seu “tratamento religioso”.5 Interessante salientar que, a partir do crescimento da pesquisa histórica, desde o século XIX – ora sofrendo influências do positivismo, com Taine, Henri Berr, Langlois, Seignobos, ora pela École des Annales, com Lucien Febvre, Marc Bloch, Braudel, por vezes pela historiografia idealista neokantiana alemã, com Dilthey, Rickert, Max Weber, ou neohegeliana italiana, com Croce - o lado especulativo da filosofia da história passa a receber inúmeras críticas.6 Assim, somente a vertente crítica é lavada em consideração, com as ideias de Raymond Aron em lntroduction a La Philosophie de L’Histoire (1938) e La Philosophie Critique de L›Histoire: essai sur une théorie allemande de L›Histoire (1938). Também com Oakeshott, Collingwood e Patrick Gardiner, na Inglaterra, e Benedetto Croce na Itália. Seja qual for a originalidade de cada um desses pensadores, a variedade de suas tomadas de posição e - longe de mim esquecê-lo - o caráter sempre aberto do debate, a contribuição destes três quartos de século revela bem ao exame, uma certa convergência tanto na maneira de por os problemas como nas soluções que são propostas para eles: a partir de uma análise das servidões lógicas que pesam sobre a elaboração do conhecimento histórico, chegou-se até a constituição de uma filosofia criticada História ou pelo menos a um certo conjunto de princípios fundamentais que doravante se podem considerar como adquiridos ao mesmo título por exemplo que se adquiriu a teoria da experimentação nas ciências da natureza, a partir, digamos de J. S. Mill e Claude Bemard.7 Em “Do Conhecimento Histórico”, o próprio Marrou realiza sua filosofia crítica da história. Interessante saber como W. H. Walsh a separa em quatro grupos: a. A história e outras formas de conhecimento. [um] grupo constituído de questões sobre a natureza mesma do pensamento histórico. O que é a história e como ela se relaciona com outros estudos? Temos em questão um ponto crucial: o conhecimento histórico é sui generis ou terá ele o mesmo caráter de outras formas de conhecimento - como o visado pelas ciências naturais, por exemplo, ou o conhecimento perceptual. b. Verdade e fato na história. c. Objetividade histórica. d. A explicação na história. O problema central neste grupo é o da natureza da explicação histórica. Haverá peculiaridades sobre a maneira pela qual o historiador explica (ou 5 MARROU (s/d). 6 Ver Lucien Febvr. História. São Paulo: Atica, 1978, p. 130-155. 7 MARROU (s/d), p. 20-21. 12 UNIDADE ÚNICA │ EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS tenta explicar) os acontecimentos que estuda? Já vimos que há uma argumentação justificativa para a afirmação de que a história é, tipicamente, a narração das ações do passado, disposta de tal modo que vemos não só o que aconteceu, mas também por quê. Devemos perguntar que tipo, ou tipos, de «porquê» estão envolvidos na história.8 Retornemos à filosofia especulativa da história, concentrando-nos agora em Karl Marx, uma vez que é considerado o maior crítico de Hegel, e que fazia uma crítica também àqueles filósofos que se separavam da concretude da vida. A respeito disso, lembramos da XI tese sobre Feuerbach: «os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente; trata-se, porém, de modificá-lo». Marx tinha o posicionamento de um materialista dialético, abarcando apenas o concreto, distanciando-se das visões transcendentalistas. A maneira materialista histórica é contrária à concepção da história que ultrapassa a questão habitual dos historiadores, que seria saber “como” ocorreram os fatos, e não “para que” ou mesmo “emdireção a que” sobrevieram. A filosofia marxista da história tem mais de um aspecto: na medida em que procura mostrar que o curso da história tende para a criação de uma sociedade comunista sem classes, por exemplo, aproxima-se de uma filosofia da história do tipotradicional. Mas seu principal objetivo é apresentar uma teoria da interpretação e causação históricas. Se Marx estiver certo, os principais fatores da história são todos econômicos, e nenhuma interpretação do curso detalhado dos acontecimentos que não admita isso terá qualquer valor. Devemos dizer, porém, que a questão dos principais fatores da história não parece filosófica. É uma questão que só pode ser resolvida por um estudo das conexões causais concretas na história, e não vemos porque o filósofo deva ser considerado especialmente equipado para esse estudo. Ele poderia ser feito com muito maior proveito, por um historiador prático e inteligente. Além disso, não deve resultar na formação de uma verdade auto-evidente, mas de uma hipótese empírica, a ser testada pela sua eficiência em lançar luzes sobre situações históricas individuais. Na medida em que isso for verdade, o desenvolvimento de uma teoria da interpretação histórica parece pertencer mais à história em si do que à filosofia, tal como a determinação dos fatores causais importantes no mundo material cabe às ciências e não à filosofia das ciências”. «... A contribuição de Marx para o entendimento da história, na verdade, não foi feita à filosofia da história propriamente dita. Mas a teoria marxista é de interesse para o filósofo devido à importância que Marx parece atribuir ao seu princípio fundamental A validade irrestrita, atribuída pelos marxistas a esse princíipio é incoerente com a sua classificação como simples hipótese empírica (embora não como fato de ter sido sugerida pela experiência); e a questão da justificativa para considerar dessa forma o princípio certamente merece cuidadosa atenção.9 8 WALSH (1978), p. 17,18, 20 e 22. 9 WALSH (1978), p. 26. 13 EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS │ UNIDADE ÚNICA Aqui lembramos de Max Weber: Intencionalmente, deixou de ser demonstrada a nossa concepção no exemplo de longe o mais importante de construções de tipo ideal: o de Marx [...] Limitamo-nos a constatar aqui que todas as ‹leis› e construções do desenvolvimento histórico especificamente marxistas naturalmente possuem um caráter de tipo ideal, na medida em que sejam teoricamente corretas. Quem quer que tenha trabalhado com os conceitos marxistas, conhece a eminente e inigualável importância heurística destes tipos ideais, quando utilizados para os comparar com a realidade, mas conhece igualmente o seu perigo, logo que são apresentados com validade empíríca ou até mesmo como tendências ou forças ativas› reais (o que, na realidade, significa metafísicas).10 O enredo político do pensamento marxista no faz pensar em uma visão essencialista da história, de acordo com a terminologia de Popper.11 É sabido que Marx assentava seu pensamento teórico a serviço de uma práxis; ele não tinha a preocupação de se enquadrar em qualquer divisão acadêmica e profissional, seja como filósofo, sociólogo, antropólogo... Ele ainda disse que “Só conhecemos uma única ciência, a ciência da história.”12 Nesta afirmação, vemos a pretensão de colocar que a unicidade dos sujeitos teria que ser escoltada por semelhante unicidade do pensamento intelectual. Marx interessava-se – inserido nas ideias do século XIX, em que a ciência constituía-se em referencial objetivo - em aconselhar cientificamente o proletariado em suas lutas políticas-sociais, não tendo a preocupação com a metodologia e a epistemologia. E isso de evidencia pela sua vivência fora das academias, ao contrário de Durkeim e Max Weber. Em alguns autores leitores de Marx, esse caráter heurístico e não essencialista se evidencia. Em “Ciências Humanas e Filosofia”, Lucien Goldman sugere: “... a necessidade, ..., de um estudo sociológico das próprias ciências sociais e, em termos mais precisos, de um estudo materialista e dialético do materialismo dialético.»13 E em “História e Consciência de Classe”, Georg Lukács afirma: “... o marxismo ortodoxo não significa, pois, uma adesão sem crítica aos resultados da pesquisa de Marx, não significa uma ‹fé› numa ou noutra tese, nem a exegese de um livro ‹sagrado›. A ortodoxia em matéria de marxismo refere-se, pelo contrário, e exclusivamente, ao método.»14 Há que perguntarmos se existe, de fato, uma filosofia da história em Marx, ou melhor, se o materialismo dialético pode comportar a filosofia da história. Em seus escritos - Manuscritos Econômico-Filosóficos, Manifesto do Partido Comunista, A Ideologia Alemã, A Miséria da Filosofia, O Capital... – qual seria a sua pretensão e o propósito de seus trabalhos? Algumas obras, sobretudo em “Manifesto do Partido Comunista”, alvitram uma certa filosofia da história no momento em que conformam a sua tradução total, a captação de um sentido inerente a ela, de onde é possível compreender o passado, orientar os atos atuais (especificamente o 10 WEBER (1979), p. 118-119. 11 Ver Karl Popper. Autobiografia Intelectual, trad. de Leônidas Hegenberg e Octanny S. da Motta. São Paulo: Cultrix, Ed. da USP, 1977. 12 Cf. na antologia organizada por Florestan Femandes. Karl Marx - F. Engels: história, São Paulo, Ática, 1984, 2a. ed., p. 184. 13 GOLDMANN (1963), p. 36. 14 LUKÁCS (1974), p. 15. 14 UNIDADE ÚNICA │ EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS proletariado) e orientar o futuro. Entretanto, “O Manifesto”15 constituía-se em um “panfleto”, sob a encomenda da Liga dos Comunistas em detrimento da esfera política europeia do final de 1847, ocasionada pela crise na economia. Aqui Marx não intentava realizar uma filosofia da história aos moldes hegelianos. Provavelmente, sua intenção era fornecer à classe proletária a certeza de que faziam uma luta já pertencente à história dos homens durante séculos. Engels, em uma carta dirigida a Bloch, tentou demonstrar que ele e Marx não defendiam um determinismo econômico, onde o setor econômico seria considerado como o único a determinar a história dos homens. Se os mais jovens insistem, às vezes, mais do que devem, sobre o aspecto econômico, a culpa em parte temos Marx, e eu mesmo. Face aos adversários, éramos forçados a sublinhar este princípio primordial que eles negavam e nem sempre dispunhamos de tempo, de espaço e de oportunidade para dar a importância devida aos demais fatores que intervêm no jogo das ações e das reações. [...].16 Se Marx abdica de um determinismo – em uma coerência com a dialética -, o faz recusando também uma definição estanque para toda a história da humanidade. Inclusive, esse determinismo ele chamava de “pré-história da sociedade humana.”17 Cabe aqui as palavras de Marx em carta à Kugelman, de 1871: [...] A história passaria a ter um caráter muito místico se os ‹acasos› não desempenhassem nenhum papel. Como é natural, os acasos tomam parte do curso geral do desenvolvimento e são compensados por outros acasos. Mas a aceleração ou o retardamento do desenvolvimento dependem em grau considerável, desses acasos, entre os quais figura o ‹acaso› relativo ao caráter dos homens que dirigem o movimento em sua fase inicial.18 Karl Mannheim analisa o irracional nas ideias de Marx: A teoria socialista-comunista constitui, assim, uma síntese do intuicionismo e de um desejo determinado de compreender os fenômenos de uma maneira extremamente racional. O intuicionismo aparece nesta teoria porque ela nega a possibilidade da avaliação exata de acontecimentos antes de sua ocorrência. A tendência racionalista dela participa porque visa a ajustar a um esquema racional qualquer novidade que, a qualquer momento, venha a aparecer. Em momento algum se permite agir sem teoria, mas a teoria que surge no decorrer da ação será de nível diferente da teoria que a precedeu. [...] O pensamentomarxista se assemelha ao pensamento conservador no fato de não negar a existência de uma esfera irracional e de não tentar dissimulá-la como o faz a mentalidade burocrática, ou de tratá-la na forma puramente intelectual, como se fosse racional, como fazem os pensadores liberaldemocráticos. 15 Marx quase deixou de escrever o Manifesto. Foi preciso que a Liga Comunista ameaçasse encomendá-lo a outra pessoa. O texto foi entregue no eclodir da revolução de fevereiro de 1848, na França, alastrando-se para demais países da Europa. 16 MARX, ENGELS (1963), p. 286. 17 Expressão utilizada por Marx no Prefácio de sua “Para a Critica da Economia Política”. 18 MARX, ENGELS (1963), p. 264. 15 EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS │ UNIDADE ÚNICA Distingue-se, contudo, do pensamento conservador, pelo fatode conceber esta irracionalidade relativa como potencialmente compreensível através de novos métodos de raciocínio.19 Em «Ludwig Feuerbach e o fim da Filosofia Clássica alemã», Engels se posiciona de maneira interessante a respeito da filosofia. As considerações anteriores apenas pretendem ser um esboço geral da interpretação marxista da história; [...] Sua comprovação deve ser feita à luz da própria história, e cremos poder afirmar que essa prova já foi suficientemente subministrada em outras obras. Esta interpretação põe fim à filosofia no campo da história, exatamente da mesma forma que a concepção dialética da natureza toma a filosofia da natureza tão desnecessária quanto impossível. Agora, já não se trata de tirar do cérebro as conexões entre as coisas, mas de descobri-las nos próprios fatos. Expulsa da natureza e da história, só resta à filosofia um único refúgio: o reino do pensamento puro, no que ele ainda está de pé: a doutrina das leis do próprio processo do pensamento, a lógica e a dialética.20 É possível afirmar que Engels se coloca próximo de algumas correntes atuais, que acreditam que a filosofia da história só tem validade quando abarca questões lógicas, metodológicas e epistemológicas da crítica histórica. Nessas observações, podemos atribuir a essencialidade das obras marxistas à finalidade prática e política da qual tinha pretensão. Mas é possível o materialismo dialético comportar a filosofia da história? A resposta é negativa diante da vertente tradicional ou especulativa, uma vez que ele seria contrário ao ensaio de especulação teleológica. A dialética admite uma investigação da matéria enquanto ser ontológico que perscrutaria algo adiante? As ciências da natureza, sobretudo a física, pôde sugerir um “princípio de indeterminação”, com Werner Heisenberg. O materialismo dialético aplicado à história, ou melhor, a fim de que fosse garantido a dialética no materialismo histórico, não se poderia avançar ao aproveitamento de uma sentido inerente ao próprio transcorrer da história, assim como ocorre atualmente. Mas o que podemos ver de imanente revelado a partir da história? Vemos Marx e Weber responder a essa questão indicando que ela é dependente mais dos posicionamentos filosóficos do que dos próprios acontecimentos históricos. 19 MANNHEIM (1968), p. 153-154. 20 MARX, ENGELS (1963), p. 206. 16 CAPÍTULO 2 O problema do historicismo Conceituações No começo do século XX, muitos acreditavam que as ciências do espírito não resistiam a um historicismo, de modo que Ernst Troeltsch as concebiam, juntamente com o naturalismo, como algo oneroso proveniente do século anterior. De fato, “o Historicismo (entendido como relativismo) é algo cuja superação ainda permanece na ordem do dia.”21 Com a inoculação da história da ciência dentro da teoria da ciência, ficou inconcebível haver um ideal supra-histórico, de purismo racional, é quando surgiu a necessidade de se combater o historicismo, agora na esfera da teoria da ciência.22 Mas percebe-se o aparecimento de uma posição mais amigável relativa ao historicismo do século XIX. Este é apreendido como uma conquista cultural e científica da qual não se pode renunciar. Aqui surge a questão de como é possível superar o mau historicismo e valorizar seus benefícios. Diante do conceito amplo do que vem a ser o historicismo23, em 1932, Karl Heussi24 já recomendava que não se deveria utilizar o termo sem explicar o que pretendia falar com ele. Antes de 1900, era tido como o pensamento histórico em sua totalidade, originado com o abandono do pensamento racional e construtivista iluminista. Se verificarmos a utilização do conceito desde seu início, com a época romântica, até meados dos anos 20 do nosso século, encontramos cinco significações, e todas se complementam: » o deslocamento da maneira histórica e genética da percepção em direção aos fenômenos da cultura, ou seja, uma intuição histórica universal do mundo dos homens que se instaura como histórico, em uma certa determinação, como podemos ver em F. Schlegel.25 » Filosofia da história, de modo a tentar assimilar a ordenação e a racionalidade da história. Seria uma metafísica da história, conforme sua definição em meados do século XIX; como um modo programático em Ch. J. Braniss, crítico em R. Haym, referindo-se às ideias hegelianas. » O olhar retrospectivo e glorificado do passado e a crítica aos novos acontecimentos. Aqui instaura-se um romantismo e um tradicionalismo, como faz L. Feuerbach ao criticar o historiador Heinrich Leo. 21 MITTELSTRASS (1977), pp. 43-56; SCHNÄDELBACH (1977), pp. 62-72; BAUMGARTNER (1977), p. 29-40. 22 Idem. 23 Para o conceito de historicismo, ver MARQUARD (1986, pp. 106; 117-139); LÜBBE (1966, pp. 65-83; 1975; 1977). Ambos autores tem como fundamento o trabalho de RITTER (1974, pp. 105-140). 24 HEUSSI (1932), p. 15. 25 Schlegel é o primeiro que utiliza frequentemente o conceito de historicismo. 17 EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS │ UNIDADE ÚNICA » A restrição da averiguação histórica ao recolhimento de dados históricos. Seria um positivismo e objetivismo, a exemplo do que faz R. Eucken diante da tendência científica do século XIX. » Relativização dos sistemas de valores e orientações em detrimento dos fenômenos passados no caminhar histórico. Seria um relativismo histórico, como indicam muitos pensadores do século XX. Esses significados (percepção universal da história, Metafísica da história, Romantismo e tradicionalismo, Objetivismo e positivismo e Relativismo) demonstram, de maneira aproximada, o caminhar do entendimento da história desde o final do século XVII até o final do século XIX. Três compreensões de história permeiam aqui: » a história seria inteligível e divina nos dois primeiros historicismos; » o passado é inteligível, no terceiro; » o modo racional da história passa a ser problemática, no quarto e quinto modo de historicismo. Troeltsch26 discorreu acerca do “efeitos enervantes” do historicismo em 1913, estes que geraram “todas as formas bem conhecidas de preguiça e arrogância nos círculos da formação científica”. Mas o teórico estava se referindo ao historicismo em sentido positivista e relativista, fazendo referência ao “resgate totalmente relativista de quaisquer culturas do passado, acompanhada da fatigante e opressiva impressão de conhecimento de tudo-sobre-todos e sua improdutividade cética para o presente”. O historicismo como positivismo é concebido, pelas ciências do espírito, como a cientifização das ciências históricas. Visto como relativismo, tem a problemática social, também resultante de experiências históricas reais. Ambos se interagem e participam da “crise das ciências do espírito”.27 Com o reconhecimento dos inúmeros sentidos do existir e da metafísica a tradição fica abalada, Dilthey28 já havia feito esta observação. Ocorre também o contrário: quanto mais complexos parecem os valores de uma sociedade, se procurará pelo conhecimento da história, buscando aqui uma segurança para a proteção da ciência. Portanto, o problema do historicismo é moldado pelo positivismo e pelo relativismo histórico. Tentativa de responder ao problemado historicis0mo No momento em que tudo parece instável, os homens procuram se apoiar em algo sólido, um ser no devir. Quando o campo histórico parece ocorrer sobre um apanhado de informações, instantaneamente a ordem é procurada, a unidade dentro da multiplicidade. E é certo que as 26 TROELTSCH (1925), p. 614-649, 626. 27 LIEBERT (1923). 28 DILTHEY (1974), p. 3, 75. 18 UNIDADE ÚNICA │ EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS ciências históricas modernas se pautam nessas questões. A procura pelo estável - pelo ser -, e pela ordenação – pela unidade, são complementares entre si. A busca pelo estável No instante em que as bases históricas oscilam, é necessário buscar por algo confiável; é possível encontrarmos esse algo na natureza humana, uma vez que é ela a condição de possibilidade do dinamismo e da oscilação na história. A partir daqui vemos como resultado a utilização da antropologia filosófica, esta que encontra o estável na história. Na teoria da ciência histórica de Dilthey havia a procura por um princípio antropológico, sem se importar com o fato de que, por meio de um pensamento histórico-desenvolvimentista, o “tipo humano se dilui no processo da história.”29 Ele também verifica os princípios ativos da natureza humana sob os fenômenos culturais que se modificam no decorrer do tempo. A antropologia cultural do século xx tomou para si as intenções de Dilthey. Já Max Scheler tinha a antropologia como maneira de ultrapassar o historicismo como positivismo. H. Plessner30 também de pautou em Dilthey, afirmando que a persistência da espécie permeava as variações históricas; a natureza dos sujeitos condicionava a história. Assim, a antropologia filosófica foi vista como uma filosofia sistemática diante do historicismo. K. Löwith pretendia, com a antropologia, viabilizar um sistema de orientação que servisse para a compreensão de si e para lidar com o existir humano. Enquanto isso, Plessner acredita que a finitude humana torna difícil o acesso a todos os sistemas culturais e valorativos, diminuindo sua possibilidade de escolha. “Ser e Tempo”, de Heidegger, foi classificado como uma antropologia, uma vez que pretendia chegar ao centro da história cambiante, embora nesta obra o filósofo não tratou de natureza, mas da historicidade do dasein, recusando o historicismo positivo. Gadamer31, em crítica ao dasein, o define como “historicismo de segundo grau”, o que quer dizer que o relativismo não foi eliminado, mas apenas aportado na historicidade do dasein, figurado em princípio. Aqui os sistemas morais e jurídicos devem ser colocados em segundo plano. Mas vemos que, diante o caráter genuíno do dasein, Heidegger colocava-se contrário à cientifização das ciências do espírito, ao positivismo. O estável definido através da análise existencial heideggeriana é dado nos alicerces formais o dasein, os valores religiosos, morais, científicos e estéticos passam a ser da esfera existencial; assim, Heidegger fala na ruína dos valores, na “ruinificação” (Ruinanz) do dasein.32 Toda a procura pela estabilidade e regras de orientação faz se descobrir outras normas. E a procura pela singularidade no múltiplo histórico faz-se chegar a conceitos que poderão estabelecer certa unidade. Porém, existe uma provisoriedade da unidade histórica, e a procura pelo unitário deve ser 29 DILTHEY (1964), p.6, 77. 30 PLESSNER (1980); (1964), p. 03. 31 GADAMER (1960), p. 500. 32 HEIDEGGER (1994), p. 02. 19 EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS │ UNIDADE ÚNICA verificado no mesmo instante em valores e normas particulares, longe da pretensão de um sentido pleno. Não devemos negar que há uma complementaridade. É possível, ao interpretar obras de arte, realizar uma análise pautada na sociologia paralelamente à descrição fenomenológica. É cabível analisar estruturalmente a forma de pensamento de um período e concomitantemente interpretar uma obra. A antiga hermenêutica, aquela de Schleiermacher e Boeckh, pretendia essa articulação.33 Há certa crise nas ciências do espírito: por um lado elas se apresentam como ciências interpretativas, de modo explicitar sistemas culturais particulares, em outra esfera, tendem a oferecer teorias sistemáticas acerca dos arcabouços da cultura dos homens por inteiro. Ou seja, ou se alçam em um pluralismo normativo ou no monismo carente de regras. O historicismo hoje é entendido como um pluralismo normativo, justificado por meio do processo individualizante e hermenêutico, em que vários sistemas culturais passam por interpretações. Aqui ele de opõe ao monismo sem normas que agem de modo a generalizar, e procuram por normas que determinam as justificativas históricas. É por isso que, sob influência historicista, conhecemos a história da religião - onde nos são apresentadas muitas doutrinas -, ou a sociologia da religião, porém, não sabemos de uma que seja cientificamente verdadeira. Na história da arte, de um lado, é possível sabermos de inúmeros estilos, e de outro, nos deparamos com teorias gerais de cada estilo, ou mesmo com uma sociologia da arte ou fundamentos de sua estrutura. Porém, não recolhemos da ciência a visibilidade de formas artísticas. A partir dessas dualidades, nos deparamos com diferenciados posicionamentos diante do historicismo. Há os que se colocam a seu favor, defendendo as vantagens do pluralismo de valores. Mas existem os que pretendem a sua superação, enfatizando que a existência de múltiplos sistemas culturais equivale a ausência de sistema, pois não se sabe qual seria o correto e o mais estável para se orientar. Não esqueçamos que essa situação não é nova, mas tem origem ainda no século XVIII. Por volta de 1700, já se estabelecia uma dúvida, na esfera da estética: deve-se seguir os moldes da arte antiga ou seguir os novos padrões da modernidade? A partir desse questionamento, lembramos que Herder imputa a cada período e sociedade um gosto próprio. Em fins do século XVIII, a definição de beleza já era problemática para muitos teóricos.34 A partir de então, caem as regras para se produzir e fazer crítica de arte, dando lugar a outras convenções. As religiões sempre ambicionaram a verdade, fato este que ocasionou inúmeras guerras, uma vez que, por meio da ciência, essa questão era impossibilitada de resolução. O iluminismo ainda executou a tentativa de fomento da tolerância, baseado na fé da razão. Com os escritos de Schleiermacher35, em 33 A outrora percepção historicista da história não ficava satisfeita com a descoberta hermenêutica de intenções conscientes na linguagem e na ação de sujeitos históricos. Schleiermacher dizia que os sujeitos da Grécia apenas poderiam entender os seres humanos como doutrinários à essência da natureza; Yorck von Wartenburg falava sobre uma certa consciência ocular grega. Ambos não pretendem, com essas afirmações, salientar que eles intencionavam essas ações de maneira consciente, mas a maneira de ver dos gregos estava pautado em limites inconscientes. Adorno, no século XX, defendeu uma perspectiva histórico- social articulada com um entendimento do conteúdo estético das obras. 34 Meiners, K.H. Heydenreich. 35 SCHLEIERMACHE (1984). 20 UNIDADE ÚNICA │ EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS 1799, a esfera religiosa deixa de ser o campo da única verdade, passando a se legitima como feições particulares da piedade.36 Os sujeitos seguem uma religião, mas precisam reconhecer que existem outras, que não se aproximam à sua “verdade”. A ciência não intenta mais indagar a respeito dessa verdade, porém, confia à teologia seus conceitos, a fim de realizar a interpretação das religiões positivas, levando-as para a linguagem. Com a revolução francesa, foi destruída a ideia de que, por meio de um direito natural, construído racionalmente, poderia existir a liberdade na sociedade. Assim, no começo do século XIX, a escola histórica do direito abandonou a intenção de realizar uma fundamentação racional do direito, remetendo-se ao direito historicamente construído, apropriado à acepçãode uma comunidade específica. Segundo essa visão, deveria ter inúmeros sistemas legais, de acordo com as acepções de um povo.37 O direito se dá como sendo o espírito da população entendido em um vivo desenvolvimento, por isso é difícil colocar todas as nações sob as mesmas regras jurídicas. Devemos observar que, na segunda metade do século XX, não se pode classificar como ciências as metafísicas. É por isso que Dilthey38 as chama de “visões de mundo” (Weltanschauungen), impossíveis de comprovação, porém, não refutadas, é aqui que aumentam os conflitos. Dilthey discerne três metafísicas - naturalismo, idealismo subjetivo e idealismo objetivo – que possuem a mesma visão perante as ciências das religiões monoteístas concebidas por Lessing. Todas são detentoras de uma verdade existencial, embora não sejam verdades científicas. Já vemos no século XX inúmeros estilos de arte, sem regras, ordenando a beleza; há muitas religiões positivas, isentas de critérios que possibilitam comprovar serem elas verdadeiras ou falsas; existem diversos sistemas legais, porém, nenhum direito natural que sirva como medida supra-histórica; muitas metafísicas existem, e nenhuma com a possibilidade de querer para si a certitude científica. As ciências históricas propõem o saber factual, porém, não podem vincular uma regra estável. Esse pensamento embasa a obra “Da utilidade e desvantagem da História para a vida”39, de Nietzsche, tido como o primeiro livro posicionado de maneira contrária ao historicismo concebido como positivismo e relativismo. Contudo, o desalento com o saber histórico existente em demasia é tão antigo quanto as ideias universais. De Wette, a respeito de August Boeckh, coloca que “Boeckh parece ter retornado do historicismo afilosófico – ou ao menos ele se expressa como se não ousasse pensar por si próprio, mas apenas ruminar conhecimentos antigos”.40 Nietzsche, Dilthey e Troeltsch caracterizaram o historicismo nestes moldes. Porém, a crise somente se instaura nos anos 20 do nosso século, impulsionado por motivos políticos e sociais, uma vez que nem mesmo as ciências do espírito são capazes de dar uma estabilidade diante das mudanças que ocorrem durante a passagem dos anos. 36 O idealismo especulativo, do qual Hegel era tributário, não se satisfez com esta perspectiva, mas reconheceu sua estabilidade e modernidade. LÜBBE (1986), sobre Schleiermacher, ver especialmente a página 208. 37 Montesquieu já tinha falado do Direito em torno de circunstâncias naturais – como o clima – e de condições históricas – como a religião, os costumes, a política -, e, deste modo, entendido o direito individualmente. Por isso ele é tido como o fundador de uma visão “orgânica”, “histórica” do Direito. GÖHRING (1956). 38 Dilthey (1964), p. 339-416; (1974), p. 82. 39 NIETZSCHE (1966). 40 apud LENZ (1910), p. 573. 21 EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS │ UNIDADE ÚNICA E aqui ocorrem protestos perante o historicismo, mas a situação atual também parece caminhar para um radicalismo: a contingência dos estilos na arte, nas religiões, nos sistemas da legalidade, das metafísicas foi alvo de criticas tendo em vista ideais de uma verdade que pudesse ser aplicada universalmente, verdade esta que pudesse ser resguardada nas ciências da natureza. Aqui também detém uma problemática, uma vez que se fala muito de historicismo na teoria da ciência. Se a ciência também torna-se histórica e relativa, devemos perguntar se ela não seria apenas uma interpretação do mundo41, não passível de reprodução. Desta maneira, a arte, a religião e os sistemas legais não podem ser inferiorizados em relação à ciência. De fato, vemos como os mitos estão tendo seu reconhecimento e legitimação, ao lado das ciências42, e esta recebe interpretações como sendo uma arte.43 Sem esquecer há certo interesse sistemático diante da filosofia romântica da natureza.44 Já Ernst Cassirer legitimou concomitantemente com a ciência, as artes, as religiões, os mitos e a linguagem como formas de simbolizar a interpretar o mundo de maneira autônoma, assim o filósofo diminui a validade das leis científicas e coloca tudo no mesmo patamar. A nova atualidade se dá devido às contínuas mudanças e ao pluralismo das culturas. E as ciências do espírito denotam esse pluralismo, apoiando as manifestações modernas. O pluralismo é passível de redução à singularidade, uma vez que é inconcebível o conhecimento de todas as religiões por igual, e quem está preocupado com o fato de ter escolhido a não correta, pode se guiar por Natan, o Sábio, de Lessing. O historiador da música não saberá de todas as músicas existentes, não poderá compreender a todas, mas somente alguns estilos, alguns compositores, algumas épocas. Desta maneira, ocorre uma redução da pluralidade de acordo com a situação histórica e a tradição pulsante. É importante salientar que o pluralismo serve de fomento para a liberdade, diferente do monismo, que demanda o sujeito a se adaptar ao uniforme. Não é problemática a pluralidade de tradições, e sim uma uniformidade cultural. Os defensores da existência desse grande número de tradições – e do historicismo – não deixou de lado a existência de regras, se embrenhando pela história sem direção definida, como Troeltsch falou sobre Dilthey. Muito é dito que aqueles que primam pelo historicismo não podem aceitar a uniformidade compulsória, e quem é a favor da tolerância não deixa vigorar os intolerantes. Os que não reduzem a realidade de sistemas culturais discrepantes, e procuram pela sua aceitação, fomentam a liberdade desses sistemas, o que não é uma liberdade ilimitada, mas adequada à dos demais. Assim, sob o expoente do historicismo, a orientação se mantém sobre a ética e o direito racional formais kantanos, uma vez que esta filosofia iluminista pôde conviver com o historicismo, esta que Kant afirmou ser dotada de consciência cosmopolita. 41 como Nietzsche (1973), p. 307; (1974), p. 137, 323 já afirmara. 42 HÜBNER (1985). 43 FEYERABEND (1984). 44 HEUSLER-KESSLER (1986). 22 UNIDADE ÚNICA │ EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS Esse direito natural não quer dizer uma consonância de estados e sociedades, como pretendia dizer a escola historicista do direito. Kant45 falava que a pluralidade das religiões e linguagens demonstra o desejo por parte da natureza de um estado mundial que não seja uniforme, ao contrário, ela visa a existência de inúmeros povos. 45 Kant, em “A paz perpétua”. 23 CAPÍTULO 3 História social Pensamento político Observamos que no pensamento político há determinadas questões que, na abordagem de Aristóteles, Maquiavel e Hobbes, por exemplo, tornam-se efetivas em outros contextos históricos. Marcel Prélot coloca que os escritos de grandes autores lançam uma luz na política contemporânea a fim de compreendê-la. “É impossível analisar, e ainda menos compreender, a realidade presente, sem o conhecimento dessas grandes obras da literatura política, que representam marcos na história da humanidade...»46 Jean Touchard observa: Não se trata aqui somente de analisar os sistemas políticos elaborados por alguns pensadores, mas de integrar esses sistemas no seu contexto histórico, de procurar ver como nasceram e o que representavam para os homens que viviam nessa época. [...] Mas logo surgem dificuldades sem conta. Como analisar as ideias políticas de uma sociedade? O que já de si é difícil em relação à época em que vivemos não será impossível a respeito de eras passadas? O historiador das ideias deveria, para cada época, perguntar a si próprio quais são as ideias políticas dos camponeses, dos operários, dos funcionários, da burguesia, da aristocracia, etc....”47 Ao nos depararmos com ideias de estudiosos sobre qualquer tema histórico, sobretudo o da política, é necessário, para melhor entendimento, que se faça o estudo antropológico também. Assim, pode haver uma história social da política, permitindo a maior compreensão dos escritos dos filósofos como dos próprios cidadãosde seu tempo. E isso desde a leitura de textos canônicos – inebriados de política – quanto de um James Frazer48 quando fala do caráter mágico da realeza, ou de um Marc Bloch49 em seu estudo sobre os reis europeus e sua taumaturgia. Jacques Le Goff se refere a uma nova História Política, que tem estudado o Estado monárquico moderno, em escritos de Jean–Marie Apostolidès (1987) e Louis Marin (1981), além do inglês Peter Burke (1993) e os americanos Ralph Giesey (1986) e Sarah Hanley Madden (1982). Essas pesquisas acarretaram em um conceito de Estado moderno que ultrapassa a dinastia, a diplomacia e aspectos jurídicos, em que enfatiza o simbólico do Antigo Regime. De fato, a partir dos anos 60, a história política centra-se nas monarquias absolutistas. Podemos ver grandes trabalhos a respeito da história política nas mãos de Robert Mandrou, com “La raison du Prince” e “Louis XIV et son temps”, e Pierre Chaunu com “A civilização da Europa Clássica”. Boris Porchnev e Roland Mousnier colocavam as particularidades de cada província do absolutismo na Europa, e o Congresso 46 PRÉLOT, Marcel. (1974) As doutrinas políticas. Vol. 1. Lisboa, Editorial Presença. (Edição original francesa 1959), p. 07. 47 TOUCHARD, Jean. (1970) História das ideias políticas. Lisboa, P.E.A. (1a edição francesa 1959), p. 11. 48 Frazer, James. O ramo de ouro. Rio de Janeiro: Zahan, 1981. 49 Bloch, Marc. Les rois thaumaturges. Strasbourg: Librairie ISTRA, 1924. 24 Internacional de Roma (1955) colaborou para novos estudos sobre o Estado Moderno, orientando pesquisas de Roland Mousnier, Fritz Hartung e Boris Porchnev. Boris Porchnev colocava o campesinato, e suas jacqueries, como sendo contrário às garras fiscais do Estado, sendo autônomo, longe de ser conduzido pelas elites. Para Roland Mousnier as rebeliões camponesas foram mesmo amparadas e promovidas pela nobreza, ora insatisfeita com a monarquia absolutista e os intendants. Depois da Peste Negra, aconteceram várias revoltas de camponeses, devido ao aumento considerável de trabalho uma vez que muitos haviam morrido, portanto, havia poça mão de obra e muito o que fazer. O alto valor de impostos também alvo doa maus contentos. No norte da França de 1358, em meio a Guerra dos Cem Anos, a miséria, de fato, assolava o país. O termo Jacquerie provém de “Jacques” ou “Jacques Bonhomme”, utilizado pelos nobres quando se referiam aos camponeses. [...] Neste tempo revoltaram-se os Jacques em Beauvoisin, e começaram a ir em direção de Saint-Leu e de Clermont no Beauvoisin. [...] E quando os Jacques, se viram em grande número, perseguiram os homens nobres, mataram vários e ainda fizeram pior, como gente treslocada, fora de si e de baixa condição. Na realidade, mataram muitas mulheres e crianças nobres, pelo que Guilherme Carlos (seu líder) lhes disse muitas vezes que se excediam demasiadamente; mas nem por isso deixaram de o fazer.50 Massacre dos Jacques, em Meaux 50 PAIS, Marco Antônio de Oliveira. O despertar da Europa: a baixa idade média. São Paulo: Atual, 1992, p. 77. 25 EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS │ UNIDADE ÚNICA Os rituais, a ficção e a literatura A partir dos anos 60, de fato, há um estudo sobre o Estado Moderno enfatizando-se a noção de ritual político, que seriam as cerimônias reais do Antigo Regime, sobretudo em seguidores de Ernst Kantorowicz. Foram elas que elaboraram a linguagem política e, por meio de sua ação cênica, a adesão dos cidadãos. E esse ritual é tido como força criadora do Estado Moderno francês e inglês, assim funde o jurídico com a liturgia cristã. E essas pesquisas utilizam como referência Mircea Eliade – antropóloga religiosa -, Georges Dumézil – antropólogo histórico -, a sociologia pautada em Weber e historiadores do direito, como Percy Ernst Schramm. Esses rituais criam uma imagem lúdica da realidade, em uma representação, uma figuração, uma história que se enlaça em sujeitos que se tornam personagens. Nos escritos de Deleuze e Guattari, sobretudo quando analisam a obra de Kafka, falam do devir, e a este podemos comparar ao desejo revolucionário político, quando os personagens resistem às transformações jurídicas da subjetividade. Há o preâmbulo de um tornar-se outro quando em situações em que o desejo culmina no ato criador. O tornar-se nada tem de metafórico. Nenhum simbolismo, nenhuma alegoria. Não é também o resultado de um erro ou de uma maldição, o efeito de uma culpa. Como diz Melville a propósito do tornar-se baleia do capitão Achab, trata-se de um “panorama”, não de um “evangelho”. Trata-se de um mapa de intensidades. Trata-se de um conjunto de estados, distintos uns dos outros, enxertados no homem na medida em que ele busca uma saída. Trata-se de uma linha de fuga criadora, que nada quer dizer além dela mesma.51 Quando Deleuze e Guattari negam o caráter metafórico do devir, eles afirmam que há uma literalidade nas obras escritas, quando da transformação ou mutação dos personagens. Para eles, o desejo não está sob as bases da psicanálise, não relaciona-se com a subjetividade de Édipo, por exemplo. Hans, ao se deparar com um cavalo que se debate na rua, não tem em seu insconsciente a relação com seu pai, mas seria um devir natural, um tornar-se cavalo.52 No nível psíquico, as transformações sociais decorrem da economia e da política, mais do que como em uma tragédia grega. Deleuze e Gattari ressaltam que as transformações não querem dizer outra coisa senão elas mesmas, resultado do desejo de quem sofre a transformação, como acontece com o capitão Achab, de Hermann em Melville. Convém, para compreendê-lo bem, considerar sua lógica: Todo devir forma um “bloco”, em outras palavras, o encontro ou a relação de dois termos heterogêneos que se “desterritorializam” mutuamente. Não se abandona o que se é para devir outra coisa (imitação, identificação), mas uma outra forma de viver e de sentir assombra ou se envolve na nossa e a “faz fugir”. A relação mobiliza, portanto, quatro termos e não dois, divididos em séries heterogêneas entrelaçadas: x envolvendo y torna-se x’, ao passo que y tomado nessa relação com x torna-se y’. Deleuze e Guattari insistem constantemente na recíproca do 51 DELEUZE, G. Crítica e Clinica. São Paulo: 34, 1997, p. 54. 52 DELEUZE, G. & PARNET, C. Psicanálise morta análise, in Diálogos. São Paulo: Ed. Escuta Ltda, 1998. 26 UNIDADE ÚNICA │ EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS processo e em sua assimetria: x não “se torna” y [...] sem que y, por sua vez, venha a ser outra coisa [...].53 A política aparece via resistência frente ao que aprisiona. A formação jurídica da subjetividade se depara com a incompreensão de um fenômeno, uma vez que aos sujeitos estão encerrados juridicamente, mas são impelidos a um devir. Ressaltamos que se trata de um tornar-se outro, frente ao que determina juridicamente a identidade do sujeito. Deleuze e Gattari, ao falar de Kafka, não o interpretam via psicanálise ou via uma subjetividade exacerbada, que colocam as obras do literato na esfera intimista e fantasiosa. Por isso é tão desagradável, tão grotesco, opor a vida e a escritura em Kafka, supor que ele se refugia na literatura por carência, fraqueza, impotência diante da vida. Um rizoma, uma toca, sim, mas de modo algum uma torre de marfim. A linha de fuga criadora traz com ela toda a política, toda a economia, toda a burocracia e a jurisdição: ela as suga, como o vampiro, para fazê-las dar sons ainda desconhecidos, que pertencem ao futuro próximo _ fascismo, estalinismo, americanismo, as potências diabólicas que batem à porta.54 Os autores falam, então, das transformações como um fato político-ético-estético, em uma expressão dos personagens como revolução ao estabelecido, seria a micropolítica do desejo.55 Devemos ler Kafka como o mundo real, pois as determinações se dão na prática, na literalidade, segundo Deleuse e Gattari. Não há nada metafórico ou simbólico nas tensões cotidianas de alguns romances, e Deleuze e Gattarivêem em Kafka o desejo ultrapassando o jurídico e o burocrático. Em “O Processo”, Kafka coloca as ações sob a ordenação do Estado, mas em um processo em que a justiça não se faz valer perante todo o cientificismo que a apoia. O desejo aparece como infindável, colocando os sujeitos em uma situação espinosiana de autoprodução do ser. A partir dessa obra, Deleuze e Gattari colocam que as leis terminam sem seus enunciados, ou seja, não há nada além deles, e sempre são inflamadas de culpa. Enfim, porque não tem objeto de conhecimento, a lei só se determina na medida em que se enuncia e só se enuncia no ato de castigo: enunciado no próprio real, no próprio corpo e na carne; enunciado prático, que se opõe a toda proposição especulativa.[...] Enfim, não é a lei que se enuncia em virtude de sua simulada transcendência, é quase o contrário, é o enunciado, é a enunciação que forma a lei, em nome de um poder imanente daquele que enuncia: a Lei se confunde com o guardião, e os escritos precedem a lei, longe de serem sua expressão necessária e derivada56 De fato, o desejo percorre a justiça, uma vez que em um processo judicial, há também o processo do desejo, neste caso, determinando as relações de poder. Desenha-se aqui o conceito de ponto de fuga, 53 ZOURABICHVILI, François. O Vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004, p. 48-49. 54 DELEUZE, G. Crítica e Clinica. São Paulo: 34, 1997, p. 62. 55 DELEUZE, Gilles & Guattari,Félix. Mil Platôs. São Paulo. Editora 34, 1997. 56 Idem, p. 67-68. 27 EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS │ UNIDADE ÚNICA em que se abre um novo campo de possibilidades, ou uma reconfiguração de formas. Seria a fuga de que falam Deleuze e Gattari sobre os literatos anglo-americanos, que saberiam “fazer fugir” e seguir uma linha de maneira a criar novos caminhos, inéditos.57 Seria uma evasão do já dado, como se o “eu” do sujeito se levasse por caminho em que ele mesmo fugisse do estado de sujeito e se tornasse outros. A transformação, então, não se dá perante opções dadas à nossa consciência, mas como fuga, e esta fuga é aqui a expressão do ser ativo. Fugir não é exatamente viajar, tampouco se mover. Antes de tudo porque há viagens à francesa, históricas demais, culturais e organizadas, onde as pessoas se contentam em transpor seu “eu”. Em seguida, porque as fugas podem ocorrer no mesmo lugar, em viagem imóvel. Toynbee mostra que os nômades, no sentido estrito, no sentido geográfico, não são migrantes nem viajantes, e sim, ao contrário, os que não se movem, os que se agarram à estepe, imóveis a grandes passos, seguindo uma linha de fuga no mesmo lugar, eles, os maiores inventores de armas novas.58 A linha de fuga, portanto, coloca o sujeito frente a uma condição dicotômica que se dá em uma tomada de decisão. Revolucionar toma a forma do “fugir = fazer fugir” a esse contexto de dicotomias que “estriam previamente a percepção, a afectividade, o pensamento, encerrando a experiência em formas totalmente prontas, inclusive de recusa e de luta.”59 A linha de fuga é traçada sobre um plano de intenções, em que se desenham novos campos de afecções, por meio de um deslocamento em uma ruptura espaço-temporal, desviando da lógica e dos códigos já estabelecidos.60 Em Kafka, como em Proust, ocorre a união entre literatura e política, em que a linguagem mesma é desterritorializada, se desdobrando por novos territórios. Deleuze e Gattari falam que este efeito se dá em literaturas menores, ou seja, diferente das maiores, das oficiais. A literatura menor é política, no momento em que a minoria se expressa falando coletivamente. As três características da literatura menor são de desterritorialização da língua, a ramificação do individual no imediato-político, o agenciamento coletivo de enunciação. Vale dizer que “menor” não qualifica mais certas literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou estabelecida).61 Na desterritorialização da linguagem, se abre um campo de possibilidade para a escrita. Se um autor estrangeiro escrever utilizando a língua portuguesa, a linguagem, de fato, se desterritorializa, ela toma outra forma, entra em outro entendimento. Esse novo território que a linguagem é capaz de alcançar se dá como deslocamento da língua como ação política, desviando e operando no cânone linguístico. 57 DELEUZE, G. & PARNET, C. Psicanálise morta análise, in Diálogos. São Paulo: Ed. Escuta Ltda, 1998, p. 49. 58 Idem, p. 50-51. 59 ZOURABICHVILI, François. O Vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004, p. 57. 60 DELEUZE, G. & PARNET, C. Psicanálise morta análise, in Diálogos. São Paulo: Ed. Escuta Ltda, 1998, p. 54-55. 61 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Kafka: por una literatura menor. México: Ediciones Era. 1978, p. 28 28 UNIDADE ÚNICA │ EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS É válido falar um pouco de Cindy Sherman, que assume diversas personalidades, modificando seu “eu” externo e se fotografa nessas diferentes maneiras. Sherman parece fabricar corpos em suas inúmeras representações e possibilidades, brincando com clichês femininos e históricos. Em centenas de imagens, sejam fazendo referência a ícones conhecidos ou mesmo sujeitos comuns e até mesmo imaginários, a artista parece ser “outro” que não ela mesma. A sua identidade é ultrapassada para além do limite do sujeito e se torna uma fabricação em autorretrato. 29 EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS │ UNIDADE ÚNICA 30 UNIDADE ÚNICA │ EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS De fato, Cindi Sherman explora a construção de uma identidade contemporânea, elaborada a partir de imagens fílmicas, televisivas, de revistas e da própria arte, afastando-se da estética e da ética na medida em que ficionaliza o “eu”. 31 CAPÍTULO 4 A Mudança de paradigma cultural e a crise da civilização A crise no Brasil não se dissocia da crise da civilização que acomete o mundo todo, principalmente no que se refere à mudança de paradigma cultural. É mesmo perceptível o envolvimento em uma imensa crise civilizatória, em meio a um processo qualificado como a “desumanização da humanidade”. E isso em decorrência do afastamento do sujeito do núcleo do processo de organização da sociedade e da economia, em detrimento de “entidades” mercadológicas ou do meio ambiente, tidas como tendo seus próprios direitos. A cunho ilustrativo do que seria essa “desumanização”, nos deparamos com o jornal O Globo62, que profere a notícia: “lavrador é preso por raspar casca de árvore.” No caso, um lavrador de Goiás ficou preso por sete dias por ter raspado a casca de uma árvore – Almesca – em uma área de preservação ambiental, a fim de encontrar o ingrediente para o chá de sua mulher, portadora da doença de chagas. Aqui está o conceito do biocentrismo, cunhado pelos radicais ambientalistas, que visa colocar os direitos inalienáveis e o ser humano no mesmo patamar que os outros seres vivos. É lamentável, diz Geraldo Luís Lino, na palestra proferida no Painel Brasil Soberano e a Expressão Psicossocial, na ADESG-RJ, em 2000, que essa distorção, que está no centro do movimento ambientalista, esteja se tornando cada vez mais forte diante das políticas públicas. A Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho divulgou um relatório a respeito dos “desastres mundiais de 1999”, considerando que grande parte das 13 milhões de mortes ocasionadas por doenças infecciosas poderia não ter ocorrido se fossem investidos somente cinco doláres per capita. Seriam 65 milhões de dólares, pouco diante de dois trilhões de dólares que permeiam por dia os mercados financeiros. Perante todas essas notícias, os próximos historiadores certamente concluirão uma crise do final do século XX, próxima a que ocorreu no século XIV. O que muda é que, atualmente, o homem já possui conhecimento e meio para moldar seu futuro, solucionando muitos problemas, como a miséria e as epidemias. O Banco Mundial,em 1998, fazendo referência ao desenvolvimento do mundo, afirma que precisaria investir 100 bilhões de dólares anualmente para erradicar a pobreza e a miséria dos países. O Brasil, em 2000, gastou dois terços deste valor com suas dívidas. Alguns estudos ainda denunciam que é possível que cada cidadão do globo tenha um padrão de vida como a de um americano dos anos 60 – tido como maior que o de hoje – se o mundo trabalhasse nessa esfera, e levaria o tempo menor que uma geração. Isso não se dá atualmente devido à falta de direcionamento das esferas políticas hegemônicas e dos poderes dominantes, e não em decorrência de recursos naturais, humanos e financeiros escassos. Igual otimismo permeava os dirigentes no período pós-guerra, de modo a Carmem Soriano Puig denominá-lo de “revolução das expectativas crescentes”. A boa esperança não se pautava na 62 De 24 de junho de 2000. 32 UNIDADE ÚNICA │ EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS subjetividade, mas em um real fundamento: houve, entre 1950 e 1973, o maior crescimento do63 PIB per capita mundial em toda a existência humana. Isso se deu pelo êxito do Bretton Woods, sistema monetário instituído ao término da Segunda Guerra Mundial. Tal sistema não era isento de problemáticas, porém, possuia taxas fixas de câmbio entre as moedas de muitos países, estabelecidas de acordo com o dólar, que era cunhado em relação ao ouro. Desta maneira, não havia especulações. Mas ocorreu, sim, a destruição deste mote, acarretando em um caos econômico que permeia até hoje. Um enorme otimismo tecnológico acompanhava a economia do pós-guerra, ratificado por ocorências científicas, como a busca de se chegar ao espaço pelos EUA e URSS, a vontade de um uso pacífico da energia nuclear, os avanços da medicina, a “revolução verde”. Houve também as “décadas de desenvolvimento das Nações Unidas” e a “doutrina social da igreja católica”, com a encíclica populorum progressio. Mas como se deu uma reversão de um otimismo para um quadro de depressão, de poucas perspectivas culturais, ode prevalece apenas a luta pela sobrevivência cotidiana? Houve, de fato, a chamada “mudança de paradigma cultural”, induzida de maneira artificial aos educadores da sociedade após a década de 60. É válido constatar que, desde os tempos remotos, a sociedade é conduzida por elites hegemônicas e oligarquias, que trabalham na “engenharia social”64. A presidente da Fundação Macarthur65, Adele S. Simmons, falou: Há vinte anos, quando a fundação Ford decidiu investir em um centro de estudos acadêmicos - o Cebrap -, idealizado na época por um sociólogo chamado Fernando Henrique Cardoso, a situação política brasileira não era particularmente sólida. Foi feita uma aposta em um grupo que, vinte anos atrás, parecia ter o perfil de uma futura liderança. deu certo.66 Vemos agora a declaração de Fernando Henrique67: Indiscutivelmente, o regime está rearticulando o sistema produtivo do Brasil. Portanto, ele está dando possibilidade a que os setores mais avançados do capitalismo tenham prevalência... Nesse sentido, ele é socialmente progressista... Não é das classes médias burocráticas, nem das classes médias que ficaram desligadas desses dois processos - a modernização produtiva e da universalização dos bens sociais. (por favor, não riam!) Não é dos corporativistas, não é do setor burocrático anterior. Mas também não vou dizer que seja dos excluídos, porque não tem condição de ser. Aspiraria a poder incorporar mais, mas não posso dizer que seja. 63 De 24 de junho de 2000. 64 Por vezes, as fundações, além de evadir impostos, exercem a função de “engenharia social”, de modo a financiar órgãos e indivíduos. E algumas universidades acabam por exercer suas atividades de acordo com os interesses da classe dominante. 65 A Fundação MacArthur é a quinta maior fundação oligárquica americana. 66 Em entrevista à Revisra Veja, em julho de 1995. 67 Em entrevista à Folha de São Paulo, em outubro de 1996. 33 EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS │ UNIDADE ÚNICA Aqui vemos que Fernando Henrique reconhece que o governo privilegiou “os setores mais avançados do capitalismo”, e um deles é justamente o representado por Adelia Simmons. Válido falar do Diálogo Interamericano, organização fundada em 1982, após a Guerra das Malvinas, dando o mote e centralizando o planejamento estratégico e a propaganda política anglo-americana em direção a todo o ocidente. Dele participam em torno de cem personalidades da área política e da academia, além de outras esferas, de muitos países americanos, e o Brasil não ficou de fora. Uma reunião acontece todos os anos, quando são discutidos assuntos de “interesses comuns”, que depois são transformados em políticas de governo dos países participantes, como defender a legalização de drogas, adotar uma política neoliberal na economia, a politização das questões ambientais, a desestabilização das Forças Armadas ibero-americanas. Várias autoridades políticas fizeram ou ainda fazem parte do Diálogo, como Raúl Alfonsín (Argentina), Julio Sanguinetti (Uruguai), Gonzalo Sanchez de Lozada (Bolívia) e Fernando Henrique Cardoso. Luiz Inácio Lula da Silva participa desde os anos noventa e Ciro Gomes foi membro de 1994 a 1998. Não podemos deixar de observar que os candidatos mais votados nas eleições anteriores ao ano de 2000 eram do Diálogo Interamericano. As oligarquias, então, tiveram os seus interesses muito bem garantidos. E como ocorre a estruturação dessas personalidades? Elliott Roosevelt, filho de Franklin Roosevelt, foi oficial da Força Aérea na Segunda Guerra Mundial, acompanhando o pai em várias reuniões e conferências pelo mundo, e disso resultou a obra “Como meu pai os via”. Essas personalidades que se reuniam eram consideradas, por ele, de “inimigos do progresso”, ou seja, defensores da oligarquia, distanciando-se de uma república. E há, de fato, inúmeras famílias neste segmento na Europa, sobretudo no Reino Unido, e na América do Norte, na tangência da Casa de Windsor. Eles autodenominam-se “Clube das Ilhas”, homenageando o rei Eduardo VIII, que esteve ao trono de 1901 a 1910, quando a esfera britânica e a estadunidense se articularam. As oligarquias agem mediadas por muitas instituições de planejamento estratégico, que trabalham em prol da “engenharia social”. Dentre elas, colocadas aqui de maneira hierárquica, estão: » Grupo Bilderberg, com início de 1954, onde participam apenas a mais alta elite e somente europeia e norte-americana. Exerce um enorme poder sobre o mundo, e suas decisões ocorrem em reuniões anuais. Foram eles que decidiram, por exemplo, em uma de suas reuniões, em 1973, na Suécia, a alta de 300% dos preços do petróleo no mundo inteiro, alguns meses antes da Guerra dos Seis Dias. » Instituto Real de Assuntos Internacionais de Londres (RIIA) e Conselho de Relações Exteriores de Nova York (CFR), representando os grupos oligárquicos britânicos e norte-americanos, iniciados na década de 20. » Comissão Trilateral, surgida por meio da família Rockefeller, em 1973. Esta oligarquia tinha por objetivo a atração de representantes da elite japonesa. » Diálogo Interamericano, a única da qual fazem parte latino-americanos. » Rand Corporation, Instituto Hudson, Clube de Roma68, Instituto Tavistock69 e as fundações Ford, Rockefeller e MacArthur. 68 Que tinha a funcção de difundir a ideologia dos “limites de crescimento”. 69 Constitui-se em um importante centro de “guerra psicológica” e “engenharia social”. 34 UNIDADE ÚNICA │ EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS Não podemos deixar de elencar o enorme poderio das oligarquias, que controlam de maneira direta as instituições: » Banco da Inglaterra, Sistema da Reserva Federal dos EUA e Banco de Compensações Internacionais da Basileia. Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio, Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e para o Desenvolvimento. Casas bancárias e financeiras europeias e da América do Norte, muitosescritórios jurídicos, além de inúmeros cartéis. Também os regimentos mundiais das ONGs. E estão em estreita comunicação com os serviços de inteligência da Inglaterra e dos Estados Unidos. A efetivação da “mudança de paradigma cultural” foi dada através do seguimento de diretrizes políticas que cunhavam por: » reverter o pensamento de progresso como sendo de caráter vocativo da humanidade; » instituir o conceito de um Estado nacional que deve promover o bem-estar e o progresso, destituindo a ideia de um republicanismo; » promover o hedonismo e o individualismo. As diretrizes foram: » O desmembramento do Bretton Woods, acarretando na “financeirização” da economia do mundo. Fato este que se deu após 1971, com o convencimento do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon de cindir a paridade entre o dólar e o ouro, acabando com referenciais monetários e dando lugar às oscilações cambiais e à especulação financeira. A especulação como fim em si mesma, sem vínculos com o real, seria a essência da “globalização”? Lyndon LaRouche, economista, fala da necessidade de uma “nova conferência de Bretton Woods”, a fim de refazer todos o sistema financeiro e monetário do mundo, construindo a economia sobre novos pilares, como a defendida pelo governo chinês, a saber, a Ponte Terrestre Eurasiática. » Promover a “sociedade pós-industrial”, a ideia enganosa de uma “sociedade da informação”. De fato, isso é o cerne da “Nova Economia” que é pautada nos altos e baixos de Nasdaq. » Promover a “contracultura” - inseminada de drogas entorpecentes -, popularizar internacionalmente o rock – antes de pouca abrangência nos Estados Unidos – e a “revolução sexual”. Em consequência, o conceito de família mudou de características. Ocorreu também a ascensão do misticismo, denominada “Nova Era”. » Politização do malthusianismo e do ambientalismo, disseminando a ideia de que não é possível que todas as civilizações se beneficiem da industrialização, devido à escassez dos recursos naturais. Eles defendem muitas questões antidesenvolvimentistas em prol da proteção da natureza, quando estão escondidos atrás de fatores políticos. 35 EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS │ UNIDADE ÚNICA » Executar as “reformas educacionais”, substituindo os currículos clássicos pelos “profissionalizantes”, sobretudo no ensino médio. Teve início na esfera da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, colocadas em prática também nos Estados Unidos e depois em vários outros países. Tal reforma acarretou em sistemas que não mais primavam pela formação de indivíduos com uma boa e vasta visão social, nem formavam profissionais de qualidade. Geraldo Luís Lino defende a necessidade de se retomar os antigos currículos, que formam um cidadão com visões gerais, pois seria inconcebível especializar para profissões que possam não mais existir em poucos anos e para aquelas que ainda não se configuraram. Segundo ele, o Brasil adotou essas reformas durante o governo militar, com os acordos MEC-USAID, sem fazer uma prévia crítica, causando graves consequências na educação. O fundador do clube de Roma, Alexander King, também é um dos elaboradores da “reforma educacional”, e fala: O Clube de Roma se originou de um sentimento de que o crescimento pelo crescimento não era uma boa coisa... O que foi discutido foi a questão da inquietação educacional, a questão da necessidade de profundas reformas educacionais para tornar a juventude mais sintonizada com o que estava acontecendo, mais sintonizada com as realidades da sociedade. As discussões levantaram a questão da destruição ambiental, a questão da alienação do indivíduo, rejeição da autoridade e outros temas do gênero. Tudo isso surgiu ao mesmo tempo... Nós inventamos toda a questão das reformas curriculares, tentando ensinar matemática, química etc., de novas maneiras. Nós éramos o único grupo que começou a ver a educação em termos do seu impacto econômico... A grosso modo, nossa política era a de que deveríamos estar pelo menos cinco anos à frente do pensamento dos Estados nacionais. Entretanto, nunca deveríamos parecer estar mais do que dois anos à frente.70 » Instituir as estruturas que se constitui em um “governo mundial”, substituindo os países soberanos e suas instituições. Aqui ganha relevância a elaboração de uma legislação internacional no que concerne a temas importantes, como o desarmamento e cessar a proliferação de armas de destruição de massa, o problema ambiental, os direitos humanos, a corrupção e promover a democracia. José Carlos Dias, ex-ministro da justiça, um pouco antes de sair do ministério, fez um convênio com a Transparência Internacional. Esta ONG teria a função de fiscalizar a honestidade das licitações do governo do país. Mas esse papel não deveria ser de um Estado e sua soberania? Seria mesmo necessário que uma entidade que não pode representar os interesses brasileiros, e sem ter sido eleita, exerça essa ação? Não podemos deixar de mencionar que a ONG Transparência Internacional é aliada ao príncipe Philip, e seus partidários foram selecionados em meio a sujeitos que trabalharam no Banco Mundial e no FMI. 70 Em entrevista à revista Executive Intelligence Review, em junho de 1981. 36 UNIDADE ÚNICA │ EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS Vale salientar que a ação das ONGs na esfera política, atuando como agentes, no lugar das instituições nacionais, é importantíssimo para esse processo. Não obstante, Fernando Henrique Cardoso denominava as ONGs de “organizações neogovernamentais”. O Movimento Viva Rio participa ativamente na preparação da “segurança cidadã”71, em substituição da “segurança nacional”, tida como retrógrada pelos governos militares. Nesse contexto, está a errônea consideração de que a finalização da Guerra Fria poderia autenticar a “desmilitarização”, a abreviação da efetivação das Forças Armadas dos Estados, sobretudo dos subdesenvolvidos. Mas, aqui, estão excluídas as forças da OTAN. Muitos se perguntam se é possível estancar essa degeneração civilizatória, e, diante deste questionamento e das ações de grandes personalidades mundiais, Abraham Lincoln afirma: “pode-se enganar todos por algum tempo e alguns por todo o tempo, mas não se pode enganar todos por todo o tempo”. Assim, seria mais prudente perguntar: como podemos frear a “mudança de paradigma cultural” que as oligarquias impuseram? Talvez seguindo o exemplo dos chineses, que colocam na crise a configuração de novas oportunidades; de uma outra “Idade das Trevas” em direção a um Renascimento, de modo a retomar expectativas deixadas de lado no passado. Mas isso só será possível com o surgimento de uma elite que possa, conscientemente e de modo determinado, colocar em uso outros princípios de civilização. E essa elite não se refere aos indivíduos que possuem um maior poder aquisitivo ou são influentes politicamente, mas àqueles que se preocupam e que agem para além de seu universo, na defesa pelo bem da comunidade e da própria humanidade. De fato, esses cidadãos terão que ser ainda formados e nós podemos contribuir para que isso ocorra, adotando princípios civilizatórios. Adicionado a isso, poderia haver um “projeto nacional”, conceito um pouco retrógrado em meio a um mundo globalizante. Um “projeto nacional” retomaria o princípio republicano e a noção de progresso, seguindo o preceito da igualdade de interesses entre as esferas que representam a sociedade, da equivalência de oportunidade entre os cidadãos, solidariedade entre os sujeitos, isentando todos de falar em “excluídos”, que seria apenas uma justificação para não se comprometer com algumas esferas sociais. 71 A então nova política de segurança do país. 37 CAPÍTULO 5 A crise dos valores na contemporaneidade Paul Valéry já falava do descrédito dos valores morais tradicionais, fato que se deu juntamente com o término da hegemonia política e econômica europeia. Diz ele: “[...] a nossa geração [...] assistiu também
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