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Brasília-DF. FilosoFia e sociologia da ciência Elaboração Rogério de Moraes Silva Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário APrESEntAção .................................................................................................................................. 4 orgAnizAção do CAdErno dE EStudoS E PESquiSA ..................................................................... 5 introdução ..................................................................................................................................... 7 unidAdE i FilosoFia da ciência ........................................................................................................................ 9 CAPítulo 1 origem do pensamento FilosóFico .................................................................................. 9 CAPítulo 2 relação homem-mundo .................................................................................................. 20 CAPítulo 3 o senso comum, a ciência e a FilosoFia ........................................................................ 27 CAPítulo 4 estudo FilosóFico ............................................................................................................ 40 unidAdE ii sociologia da ciência ................................................................................................................. 46 CAPítulo 1 surgimento da sociologia.............................................................................................. 46 CAPítulo 2 principais correntes ......................................................................................................... 48 PArA (não) finAlizAr ...................................................................................................................... 55 rEfErênCiAS .................................................................................................................................... 56 4 Apresentação Caro aluno A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade. Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da Educação a Distância – EaD. Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade dos conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos específicos da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém ao profissional que busca a formação continuada para vencer os desafios que a evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo. Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira. Conselho Editorial 5 organização do Caderno de Estudos e Pesquisa Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam a tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta, para aprofundar os estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de Estudos e Pesquisa. Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Praticando Sugestão de atividades, no decorrer das leituras, com o objetivo didático de fortalecer o processo de aprendizagem do aluno. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. 6 Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Exercício de fixação Atividades que buscam reforçar a assimilação e fixação dos períodos que o autor/ conteudista achar mais relevante em relação a aprendizagem de seu módulo (não há registro de menção). Avaliação Final Questionário com 10 questões objetivas, baseadas nos objetivos do curso, que visam verificar a aprendizagem do curso (há registro de menção). É a única atividade do curso que vale nota, ou seja, é a atividade que o aluno fará para saber se pode ou não receber a certificação. Para (não) finalizar Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem ou estimula ponderações complementares sobre o módulo estudado. 7 introdução Ao tratarmos de temas relacionados à Filosofia da Ciência, vamos apresentar a origem do pensamento filosófico, a relação do homem com o mundo, o senso comum, a ciência e o estudo filosófico. Em seguida, abordaremos os temas relacionados à Sociologia da Ciência, tais como o surgimento da sociologia e suas principais correntes. Este caderno, portanto, tem o objetivo de proporcionar informações acerca da Filosofia e Sociologia da Ciência, com o compromisso de orientar os profissionais da área de Filosofia, para que possam desempenhar suas atividades com eficiência e eficácia. objetivos » Conhecer aspectos relevantes sobre a origem do pensamento filosófico. » Identificar a relação homem-mundo. » Identificar aspectos relevantes do senso comum, da ciência e da filosofia. » Levantar informações sobre o estudo filosófico. » Identificar aspectos relevantes do surgimento da sociologia. » Identificar as principais correntes da sociologia da ciência. 9 unidAdE ifiloSofiA dA CiênCiA CAPítulo 1 origem do pensamento filosófico do mito ao logos Filosofia vem do grego e, em sua origem etimológica, aborda o significado sintético: philos ou philia que quer dizer amor ou amizade; e sophia, que significa sabedoria; ou seja, literalmente significa amor ou amizade pela sabedoria. Partindo desta concepção, a palavra surgiu com Tales de Mileto (aproximadamente em 595 a.C) e ganhou especial sentido com Pitágoras (aproximadamente em 463 a.C). Assim, a filosofia pode ser conceituada como o estudo das inquietações e dos problemas da existência humana, dos valores morais e estéticos, do conhecimento em suas diversas manifestações, visando à verdade. Diferencia-se a filosofia de outras vertentes de conhecimento, como a mitologia e a religião, visto que tenta, por meio do pensamento racional, explicar os fenômenos e questões humanas. Mas também não pode ser igualada em termo de métodos às ciências que têm a pesquisa empírica e experimentos práticos como fundamentos. 10 UNIDADE I │ FIlosoFIA DA cIêNcIA A Filosofia teve sua origem como ciência, no século VI a.C, na Grécia antiga, que é chamada de “o berço da Filosofia ocidental”. Os primeiros pensadores filósofos foram Tales, Pitágoras, Heráclito e Xenófanes que, na época, concentravam seus esforços em tentar desvendar as questões da realidade humana. Quando tudo praticamente era explicado por meio da mitologia, esses pensadores buscavam, em pensamentos lógicos e racionais,esclarecer qual a fundamentação e a utilidade dos valores morais na sociedade da época. Dedicavam suas atividades a coisas extremamente abstratas, como o “Ser enquanto ser”, passando por questões exatas como as reações químicas, queda de corpos e fenômenos naturais. Esses pensadores discutiam vários assuntos e temas que ainda hoje são focos de debate e pesquisa da Filosofia contemporânea. Na idade antiga e medieval, a Filosofia teve o seu ápice, além de indagar e buscar esclarecer questões pertinentes da época. Assim, a filosofia foi se “lapidando” e chegou à era moderna fundamentada em questões abstratas e gerais, como se nota os questionamentos mais frequentes da humanidade. Como se observa na maioria das ciências, as questões gerais e abstratas do ser humano não poderiam ser confiável nem convenientemente tratadas de maneira empírica e experimental, portanto, esse tipo de discussão passa a ter um caráter filosófico e importante para entender o que viria a seguir, no tocante a essa ciência.Como foi abordado, a Filosofia é uma ciência que estuda as inquietações humanas que surgiu na Grécia antiga, no século VI a.C, época em que basicamente tudo era explicado e tinha suas origens na mitologia. Fenômenos como um raio, por exemplo, eram tidos como uma manifestação da ira de Zeus, o comandante de todos os outros deuses. Essa explanação “divino- mitológica” para a realidade se chamou, então, cosmogonia.De tal modo, origina-se a diferença entre mito e lógica. O que antes era unido (mitologia ou lógica do mito) passa a ser separado, para se entender e se abordar a lógica do fato ou fenômeno, o que a filosofia caracteriza como o período de transição do mito ao logos, ou seja, da explicação por meio de histórias oralmente repassadas (mitos) para a explicação racional e lógica da coisas (logos). Os fundadores da Filosofia foram os pré-socráticos, pessoas que buscavam a origem natural do universo e das coisas por meio de explicações lógicas e fundamentadas na observação e no estudo da realidade e acreditavam que o universo tinha sido gerado por um fenômeno. Esses filósofos eram naturalistas e buscavam a essência, o princípio das coisas, o que chamavam de arché. Desta maneira, observa-se, a seguir, os principais deles e suas linhas gerais de pensamento. tales de Mileto (624-548 a.C) Tales tem uma vasta colaboração para o pensamento filosófico ocidental: era matemático e entre suas várias viagens, uma delas ao Egito, elaborou uma teoria de como se davam as cheias do rio Nilo. Também observou as pirâmides, por meio de um cálculo elaborado a partir da proporção entre cumprimento da sombra projetada pela pirâmide e sua altura, o que ainda hoje é um importante método geométrico para se medir áreas, o teorema de Tales. 11 FilosoFia da ciência │ UnidadE i Anaxímenes de Mileto (588-524 a.C) Acreditava que todas as coisas derivavam do vapor ou o próprio ar em si. Contestando a teoria da água de Tales, Anaxímenes buscou a origem da água e chegou ao vapor e, por meio dessa linha de raciocínio identificou no ar a origem do universo. Anaximandro de Mileto (611-547 a.C) Discípulo e sucessor de Tales, Anaximandro era matemático, filósofo, político e também monista. Ele cria que a origem de todas as coisas estaria no áperion (ou infinito), ou seja, uma substância indeterminada e infindável que gerava todos os outros elementos e coisas do universo. Heráclito de Éfeso Reconhecido por ser um pensador genial, porém, arrogante, que desprezava a plebe. Não se têm dados exatos sobre nascimento e morte, mas sabe-se que o florescimento de seu pensamento se deu em 504-500 a.C. Heráclito cria que a origem das coisas não estava num único elemento, mas sim, em uma cadeia de fenômenos que gerava a mutabilidade constante das formas naturais e dos elementos. Pitágoras de Samos Um dos maiores matemáticos da história, por suas teorias de cálculo, como por exemplo o teorema de Pitágoras, era também um filósofo exímio que buscava a origem de todas as coisas, como bom matemático, no número, ou melhor dizendo, nas relações matemáticas. zenão de Eléia A característica principal de Zenão foi a dialética, método que consistia em se questionar pessoas até se chegar a uma resposta satisfatória, porém, não definitiva. Diferentemente de Heráclito, Zenão via na política e no envolvimento do povo nessas questões uma importante chave para o avanço de uma sociedade e do conhecimento. Escrevia suas obras em prosa, mesmo quando elas se tratavam de assuntos extremamente acadêmicos. Seguia uma linha diferente da dos pitagóricos. 12 UNIDADE I │ FIlosoFIA DA cIêNcIA Sócrates, Platão e Aristóteles disponível em: http://origem-da-filosofia.info/mos/view/s%c3%B3crates,_plat%c3%a3o_e_arist%c3%B3teles/ Esses filósofos inauguraram a filosofia ocidental tal como a conhecemos ainda hoje. As obras deles serviram de base para a Filosofia: » na Idade Média. » Renascentista. » Idade Moderna. » Contemporânea. A fase em que Sócrates, Platão e Aristóteles despontaram é considerada como o período áureo da Filosofia, dada a imensa contribuição deles para o avanço do pensamento filosófico. Antes de se falar de Sócrates, Platão e Aristóteles, é imprescindível mencionar os sofistas, pensadores contemporâneos que, juntamente com Sócrates, foram os primeiros a falar sobre as questões morais dentro do âmbito filosófico. Também há vários filósofos, de várias épocas, que têm suas bases nesses três pais da filosofia ocidental. Homens como Gregório, Tertuliano Santo Agostinho, São Tomaz de Aquino, no período entre a Filosofia Medieval e início da Renascença. Outros como os iluministas Rousseau, Didderot, Voltaire e Descartes e alguns mais recentes como Auguste Comte, Emannuel Kant, David Hume, Friedrich Nietzsche, Michel Foucault etc. os pré-socráticos Os filósofos pré-socráticos tinham como objetivo descobrir a substância única, a causa, o princípio do mundo natural. Sabe-se que o início da filosofia deu-se no momento em que o homem passou a buscar explicações de forma racional para os fenômenos da natureza e não mais na mitologia. Os primeiros gregos que passaram a buscar respostas por meio da racionalidade foram os pré-socráticos da Escola Jônica. O período pré-socrático pode ser considerado somente como um padrão filosófico, já que nada tem de cronológico ou qualitativo. Sócrates, em verdade, teve como 13 FilosoFia da ciência │ UnidadE i contemporâneos vários filósofos qualificados como pré-socráticos. Essa denominação deve-se ao fato de que a partir dele o interesse pela natureza é integrado ao interesse pelo espírito. Os primeiros filósofos se ocuparam principalmente de indagações a respeito do mundo ao seu redor, bem como a percepção do lugar do homem nele. Essa busca trouxe à luz uma divergência entre a ciência e o senso comum. A filosofia, ao nascer, teve definida a sua busca: uma explicação racional sobre a origem e ordem do mundo, o kósmos (cosmos). Nos poemas homéricos, eles buscaram alimento espiritual e extraíram modelos de vida, matéria de reflexão, estímulo à fantasia e, portanto, todos os elementos essenciais à própria educação e formação espiritual. Para Reale (1993), antes do nascimento da filosofia os educadores dos gregos foram os poetas, principalmente Homero. Surge então uma nova mentalidade, que passa a substituir as antigas construções mitológicas pela forma intelectual, expressa por meio de especulação livre sobre a natureza do mundo e as finalidades da vida, pois o homem tinha como herança cultural a crença de que tudo, desde as quatro estações até a morte, era relacionado a um deus ou um mito. Neste contexto de história, houve o desenvolvimento da matemática, da ciência e da filosofia. O primeiro a levantar essas questões foi Tales de Mileto, como já dito anteriormente. A grandeza/inteligência desses primeiros filósofos está no fato e não de com eles terem começado a filosofia, mas porterem formulado questões, problemas e condições da ciência e da filosofia, que permanecem significativas até hoje. O modo de explicar a realidade natural a partir dela mesma, sem nenhuma referência ao sobrenatural ou misterioso, forma uma fundamental característica da Escola Jônica. Para Tales, esse princípio seria a água, afinal, a terra repousa sobre ela, e tudo o que morre se resseca. Anaximandro propõe como princípio universal uma substância indefinida, chamada apeíron (ilimitado). Por fim, para Anaxímenes, o princípio é infinito em grandeza e quantidade, mas não é indeterminado, ele é o ar. A importância da noção de arché está exatamente na tentativa por parte desses filósofos de apresentar uma explicação da realidade em um sentido mais profundo, estabelecendo um princípio básico que permeie toda a realidade, que de certa forma a unifique e ao mesmo tempo seja um elemento natural. (MARCONDES, 2004). Portanto, Tales, Anaximandro e Anaxímenes compunham a Escola Jônica, primeiro período da filosofia, e tinham como objetivo descobrir a substância única, a causa e o princípio do mundo natural. Foram eles os primeiros a buscar explicações racionais para os fenômenos naturais. Buscando entender sobre a passagem do mito à filosofia e a participação que a astronomia tem neste processo, os primeiros filósofos eram voltados à natureza ou a physis, como visto anteriormente. Alguns mitos, por exemplo o da criação do mundo, permanecem nos dias de hoje. 14 UNIDADE I │ FIlosoFIA DA cIêNcIA O mito é uma narrativa, pertencente à tradição cultural de um povo, que explica por meio do apelo ao sobrenatural, ao divino e ao misterioso, a origem do universo. O pensamento filosófico é visto como uma ruptura com o pensamento mítico, já que a realidade passa a ser explicada a partir da consideração da natureza pela própria, a qual pode ser conhecida racionalmente pelo homem, podendo essa explicação ser objeto de crítica e reformulação; daí a oposição tradicional entre mito e logos. No mito, o discurso pressupõe a adesão e a aceitação dos indivíduos que não o questionam, assim ele pode ser dado sem fundamentação, não se presta à crítica nem à correção. Ao contrário, para os pensamentos filosófico-científicos, precisa-se de uma lógica, uma coerência. É facultada à observação empírica, pode-se criticar e corrigir eventuais desacertos. Os mitos de criação, por exemplo, são inúmeros. Vários povos do passado tinham os seus particulares, muitos eram conflitantes, outros com algumas afinidades entre si. Conforme exemplifica Vieira (2002): O povo Sumério em seu universo fora criado pela união de Anu (deus do Céu) e Ki (Terra) e dessa união surgiram o Sol, a Lua, os planetas e todas as formas de vida. Encontramos a mesma mitologia na Grécia (união de Urano, deus do Céu, e Gaia, a Terra), no Egito (união de Nut, deusa do Céu, com Keb, Terra). Grande parte deles, se não a maioria, tinha certa conexão cronológica, uma sequência bem definida, uma causalidade, embora mítica. Mas seria natural que esses povos, sem muitos ferramentais intelectuais disponíveis, buscassem na imaginação o seu apoio. De todos os relatos da criação, a mais conhecida no ocidente é sem dúvida a do Gênesis da Bíblia Judaico-Cristã como comenta Cherman (2000): O mecanismo criador é o próprio Deus onipotente, que está além do Universo e o contém. “No princípio era o Nada e Deus disse ‘faça-se a luz!’ e fez-se a luz.” Esta ideia tem sua primeira semente no zoroastrismo (talvez a primeira religião a adorar um deus único) e sua figura de Aúra-Mazda, o sábio senhor. As antigas tradições míticas de nossos ancestrais nos foram transmitidas e muitas ainda fazem parte de nossa cultura. Outras deram nomes a corpos celestes como: estrelas, constelações, planetas, nebulosas, galáxias, faixa luminosa no céu etc. Estas situações, cenas que representavam suas lendas, deuses e heróis, batalhas, entre outras, ajudaram nossos ascendentes a memorizar suas estórias e histórias. Alguns nomes dados a estes corpos celestes merecem aqui referência, a título de ilustração, como por exemplo a Via-Láctea. De acordo com Vieira (2002), entende-se que: Uma larga faixa luminosa que se vê a olho nu nas noites de céu estrelado, segundo a mitologia grega, originou-se do leite jorrado dos seios de Juno, quando esta amamentou Hércules. Outro exemplo interessante, de nomes dados a estes “corpos celestes” seria uma constelação, que de alguma forma faz referência ao nosso trabalho, pois cita o amor pela astronomia. Como estamos 15 FilosoFia da ciência │ UnidadE i falando da passagem do mito à filosofia não poderíamos deixar de falar de Órion. Segundo Vieira (2002): O Orion é uma constelação muito antiga, na Suméria representava o herói Gilgamesh. Na mitologia grega tomou o nome do filho de Hirieu. Tornou-se célebre por seu amor à Astronomia e pelo seu gosto à caça. Diana, a quem ele ousara desafiar, enviou à Terra um escorpião, cuja picada matou Órion. Escorpião e Órion foram, então, transformados em constelações. Outros mitos fazem alusão ao Sol, à Terra, à Lua e aos diversos planetas conhecidos de então, os chamados “corpos errantes” ou planetas, pois não seguiam os mesmos caminhos das estrelas: eram “errantes”. Podiam ser vistos a “olho nu” – sem a necessidade de telescópios – estes também poderiam ser citados aqui, mas nosso principal objetivo é demonstrar a passagem do mito à filosofia e portanto só mencionamos aqueles anteriores, como dissemos, para ilustrar um pouco a importância, relevância e a conexão com a natureza que esses povos tinham já há muitíssimo tempo. Para Cherman, os gregos foram os que mais contribuíram para as teorias cosmogônicas: nenhuma cultura contribuiu mais para as teorias cosmogônicas do que a da península do Peloponeso. Os gregos, ainda que afeitos às suas divindades, inauguraram um novo jeito de pensar o Universo. A filosofia Segundo afirma Aristóteles, no livro I da metafísica, Tales de Mileto é um dos nomes mais importantes para o surgimento do pensamento filosófico-científico e, no Séc. VI a.C., é considerado o iniciador do pensamento filosófico-científico. Marcondes (2004) continua: podemos considerar que este pensamento nasce basicamente de uma insatisfação com o tipo de explicação do real que encontramos no pensamento mítico. Alguns fatores foram importantes para o surgimento da filosofia. Ela nasce em condições históricas que a favorecem, no final do século VII a.C e início do século VI a.C. São elas, como menciona Chaui (2005, p.37.), as viagens marítimas; a invenção do calendário; a invenção da moeda; o surgimento da vida urbana; a invenção da escrita alfabética e a invenção da política. As viagens marítimas demonstraram aos gregos que os locais que os mitos diziam habitados por deuses e os mares habitados por monstros não possuíam monstros nem deuses onde eles achavam. O nascimento da vida urbana e a valorização de uma nova classe de comerciantes ricos que procurava o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes favoreciam um ambiente filosófico. A invenção da escrita alfabética propiciando da mesma forma que o calendário e a moeda o crescimento da capacidade de abstração e de generalização. A invenção da política dá origem a três aspectos novos para o nascimento da filosofia: a. a ideia da lei como vontade de um povo que decide por si mesmo o que é melhor para si; 16 UNIDADE I │ FIlosoFIA DA cIêNcIA b. o surgimento de um espaço público para discutir por meio de um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele mítico; c. o pensamento que todos podem compreender e discutir. Todos podem comunicar e transmitir. Praticamente todos os filósofos tiveram como características do pensamento noções que tentam explicar a realidade da natureza, então a filosofia e a ciência têm seu inicio. A physis Para os primeiros filósofos, ou teóricos da natureza (physis), o objeto de investigação destes filósofos-cientistasera o mundo natural, ou seja, investigavam a própria natureza. A causalidade Procuravam explicar, relacionando um efeito a uma causa que antecedia outra. Tomavam um fenômeno como efeito de uma causa. A explicação causal pode ir ao infinito em caráter regressivo, desta forma chegaríamos a um momento inexplicável, a um mistério. Assim acabaríamos novamente no mito. A Arqué (elemento primordial) Cabe ressaltar que Tales de Mileto foi o primeiro a postular essa noção e diz ser a água o elemento primordial; como o elemento presente em todas as coisas. Outros sucessores de Tales, Anaxímenes e Anaximandro, adotaram o ar e o apeiron (algo ilimitado, indefinido, subjacente à própria natureza). Heráclito dizia ser o fogo. Demócrito o átomo e assim outros como Empédocles que dizia ser: terra, água, ar e fogo. A química hoje supõe que o hidrogênio esteja presente em todo o universo. o cosmo O cosmo é assim o mundo natural, o espaço celeste enquanto realidade ordenada de acordo com princípios racionais. O cosmo entendido assim como ordem se opõe ao caos, que seria a falta de ordem, o estado da matéria antes de sua organização. o logos Um dos pressupostos básicos é a correspondência entre a razão humana e a racionalidade do real. O termo logos significa literalmente discurso, mas de forma diferente do discurso do mythos. O logos é uma explicação em que razões são dadas. Por isto que os discursos dos primeiros filósofos explicando o real por causas naturais é um logos. 17 FilosoFia da ciência │ UnidadE i o caráter crítico Uma das características mais interessantes destas escolas de pensamento era que elas eram passíveis de questionamento, não eram dogmas, nem eram apresentadas como verdades absolutas. Não eram verdades reveladas, de caráter divino ou sobrenatural, por isso estavam abertas às discussões, aos reparos, às críticas. Cosmologia e a astronomia Entre as características do pensamento filosófico-científico estão a Physis, a causalidade, a arqué (elemento primordial), o cosmo, o logos e o caráter crítico. Eudoxo, século IV a.C, deixa um legado que será relembrado nos textos de Aristóteles (c. 350 a.C) e Simplício (c. 500 d.C). Ele se preocupava com a Cosmologia do presente, queria explicar o movimento planetário. Para isso criou esferas dentro de esferas que giravam em relação umas às outras, preconizando o que seriam os epiciclos pré-copernicanos. Aristóteles vem e coloca a terra no centro deste sistema – é o geocentrismo – que seria desqualificado, bem mais tarde, cerca de vinte séculos depois, por Copérnico (1473-1543), com a teoria do heliocentrismo (o sol no centro do universo). Aristarco (c.310-230 a.C) , astrônomo grego, formula a hipótese de que o sol se encontrava no centro do nosso universo. Ele era uma exceção ao pensamento geocêntrico de então. Os filósofos explicavam a terra estando em movimento, ainda assim as estrelas pareciam fixas no céu quando eles as observavam. Aristarco postula que a distância entre a terra e as estrelas era muito maior que a distância da terra ao sol, assim o raio da órbita da Terra poderia ser considerado nulo em comparação à enorme distância que nos separa das estrelas. Pitágoras afirmava que a criação do Universo se dava por meio dos números, esboçando a importância que a Matemática viria a ter nas modernas teorias cosmológicas. Pitágoras não poderia imaginar aonde a astronomia poderia chegar por meio da utilização da matemática como ferramental. Ele deixou heranças não só pela própria matemática, mas também, como menciona Marcondes (2005) pela “doutrina segundo a qual o número é o elemento básico explicativo da realidade, podendo-se constatar uma proporção em todo o cosmo, o que explicaria a harmonia do real garantindo o seu equilíbrio”. Pitágoras mencionava também a harmonia da música, com relação ao cosmos e uma proporção ideal em todo o universo. E para confirmar isto se utilizou da matemática e das observações e anotações das posições planetárias feitas por Tycho Brahe. No século XVII, Galileu Galilei deu impulso à física ao estudar o movimento dos graves ou a estabelecer as leis da queda dos corpos e, para isso, a demonstrar as leis naturais do movimento uniforme e do movimento uniformemente variado. Isaac Newton, no final daquele mesmo século, 18 UNIDADE I │ FIlosoFIA DA cIêNcIA estabelece as leis matemáticas da física, a demonstrar as três leis do movimento e a chamada “lei da gravitação universal”, que, como o nome indica, é válida para todos os corpos naturais. Diante destes ensinamentos, nota-se que os pré-socráticos foram de vital importância para o pensamento filosófico em geral e não deixam dúvidas da autoridade que eles tiveram e da relevância na passagem do mito à filosofia e quem sabe, mais especificamente ainda, não seriam na verdade um bom exemplo de qualificação e bom senso entre a valorização da ciência moderna racionalista e uma adequação ao mito. religião, mito e logos Para saber a diferença entre mito e logos, é necessário analisar a maneira dessas duas formas de narrar e a distinção do mito para com a religião. O mito, na era arcaica grega, se distingue da narrativa religiosa nos seguintes aspectos: enquanto a religião propunha aos helenos um ordenamento do cosmos e a hierarquização da cidade, a mitologia não se reduzia à descrição da vida dos deuses e fundadores de cidades, servindo, por vezes, como registro histórico dos fatos mais importantes na vida dos helenos. Isso fica evidente na Ilíada de Homero. Outra característica diferencial do mito, em relação à religião, é a sua dinâmica, mais sensível às mudanças sociais, fato que explica a sua fácil assimilação da escrita e da alteração dos sentimentos coletivos. O mito também tinha a função de fundamento de morais, como no caso do poema Trabalho e os Dias, nos quais a decadência humana é metaforizada pelo mito das cinco raças – de ouro, prata, bronze, de heróis e do ferro – e a influência das mulheres nos negócios dos homens, condenado no exemplo de Pandora. Outra característica fundamental é o fato de nem Homero nem Hesíodo serem propriamente sacerdotes, ou encarregados dos serviços religiosos. Homero, que por si só constitui uma figura lendária, costuma ser representado como um cego, isto é, um contador de histórias em verso que passava de cidade em cidade narrando suas histórias. Hesíodo, por seu turno, era agricultor ou pastor de ovelhas que habitava a região estéril e inóspita ao pé do monte Hélicon, o qual tinha de trabalhar de sol a sol para se manter. Nesse sentido, a clássica diferença entre mito e logos, entendida como uma oposição entre discursos falsos e verdadeiros, também não está livre de distorção, uma vez que, nem mesmo Platão, um dos maiores opositores da poesia de Homero, no tocante ao comportamento dos deuses, dispensava o uso de ficção em seus diálogos. Aliás, sua obra está cheia de mitos criados por ele mesmo. No tocante ao logos, é preciso que se diga, entre seus diversos significados, que também pode ser traduzido como discurso ou relato, além de razão, definição e proporção. Por sua vez, a religião, apesar de ameaçada pela desconfiança causada por sucessivos reveses sociais, preocupava-se em manter a tradição, radicalizando no combate às heresias. Mesmo sendo o logos um oponente direto da narrativa mítica, é possível encontrar quem apontasse as suas limitações para assuntos religiosos, pois esses não podem ser definidos como verdadeiros ou 19 FilosoFia da ciência │ UnidadE i falsos, por conta de sua obscuridade. Por exemplo, vale a pena citar o sofista Protágoras, da cidade de Abdera, que em seu fragmento de Sobre os Deuses afirmava: sobre os deuses, sou incapaz de experimentar sua existência ou não, nem qual seja a sua essência ou forma externa: muitos empecilhos o impede, a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana (In. EUSÉBIO, Preparação Evangélica, XIV 3, 7). Esse mesmo autor pagou caro por sua ousadia. Seu agnosticismofoi considerado um crime de impiedade e, por conta disso, condenado ao degredo. O sofista acabou por morrer afogado, após o naufrágio do barco que o transportava para fora de Atenas. Na época o mito caía em desgraça, como falsificação, mas a religião permanecia como uma terceira via discursiva fora da oposição mito-logos. De modo algum o logos, entendido como história “verdadeira”, se opunha ao discurso religioso, mas sim às histórias “falsas” que os mitos relatavam. Portanto, pode-se falar de uma oposição entre mito e logos, enquanto uma tensão entre histórias “falsas” e “verdadeiras”, o mesmo já não pode ser afirmado da relação religião-logos. o lugar do mito e do logos Os fatores externos propiciavam o descrédito da maneira mítica de contar uma história e, ao mesmo tempo, fomentavam a investigação mais precisa de tratar dos assuntos humanos. O logos e a filosofia assumem a tarefa de buscar a verdade, no instante em que o mito já não mais satisfaz os anseios humanos, em sua relação com o mundo. Saber identificar as características desse modo de pensar, tão diferente em todas as culturas, não é tão fácil quanto se imagina. Em todas as sociedades humanas, as narrativas ficcionais estão presentes. Entretanto, nem todas culturas alimentaram a pretensão de construir um sistema de pensamento que fosse capaz de atingir a verdade. Esse é um fenômeno típico das civilizações ocidentais. A manifestação do cientificismo é um fator importante para a identificação de culturas marcadas pela influência grega, desde o advento da filosofia. Nessas sociedades, a oposição manifesta entre o mito e o logos pode ser resgatada na problematização do discurso literário e científico. 20 CAPítulo 2 relação homem-mundo relação homem-mundo como tema fundamental do conhecimento Sobre o questionamento da relação conhecimento x homens, perceberam que as respostas tradicionalmente dadas, amiúde, enfrentavam dificuldades de comprovação, diante das limitações da condição humana e do desenrolar dos acontecimentos. Para localizar a origem histórica da filosofia ocidental, a resposta unânime aponta para uma região do mapa da Europa, enquanto se afirma que num determinado período da antiguidade, nesse território específico, alguns habitantes de então passaram a levantar questões sobre tudo que os cercava. A capacidade de raciocínio, destacada dos outros animais, começava a se impor e a elaborar argumentos que exigissem uma investigação mais atenta do mundo por parte dos pensadores. A nova postura adotada pelos pensadores helênicos propunha o esforço de apresentação. Um mundo que sobre muitos aspectos lhe era estranho e desafiador. As questões que surgiam, desde aquela época originária, demandavam um conhecimento mais preciso sobre aquilo que é a existência dos seres, sua relação com os outros entes e consigo mesmo. Segundo o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), surgia, assim, o que se chama filosofia, ou metafísica, propriamente dita. Por metafísica, entende-se o estudo do ser enquanto ser e as implicações acarretadas por uma progressiva abstração dos conceitos em relação à matéria de um mundo físico. Metafísica Metafísica é o nome que foi dado a uma das mais famosas obras do filósofo macedônio, Aristóteles (384-322 a. C.). Nela, procura-se compreender o “ser”, as maneiras pelas quais esta palavra pode ser entendida e as causas primeiras de tudo que existe ou acontece. Sempre ficava a dúvida se aquele conhecimento obtido pelo pesquisador poderia ser válido objetivamente, isto é, independente do próprio observador, ou se todo conhecimento seria limitado à condição finita da razão humana. O próprio inquiridor teria de ser alvo de exame, pois a visão mais apurada e precisa dependia da capacidade dele distinguir suas afecções das informações apresentadas pelos entes. Na metafísica, existiria um primeiro princípio – associado ao motor imóvel ou a Deus – e as quatro causas das coisas: material; formal; motor; final. 21 FilosoFia da ciência │ UnidadE i A “Causa” (material) significa (1) aquilo que, como material imanente, provém o ser de uma coisa; p.ex., o bronze é a causa da estátua e a prata, da taça, e do mesmo modo todas as classes que incluem estas. (ARISTÓTELES, Metafísica, V, 2, 1013a, 24-33). (2) A forma ou modelo, isto é, a definição da essência, e as classes que incluem esta (...); bem como as partes incluídas na definição. (ARISTÓTELES, Metafísica, V, 2, 1013a, 24-33). (3) Aquilo de que origina a mutação ou a quietação; p. ex.:, o conselheiro é causa da ação e o pai causa do filho; e, de modo geral, o autor é causa da coisa realizada e o agente modificador, causa da alteração. (ARISTÓTELES, Metafísica, V, 2, 1013a, 24-33). (4) O fim, isto é, aquilo que a existência de uma coisa tem em mira; p. ex.:, a saúde é causa do passeio (ARISTÓTELES, Metafísica, V, 2, 1013a, 24-33). Princípios e causas estão relacionados com as três substâncias: duas físicas (matéria e forma) e uma imóvel. Enquanto a matéria e a forma estão sujeitas à mudança e ao movimento, a substância imóvel existiria independente das outras, mas que seria capaz de movê-las sem se mover. A Metafísica, se referia àqueles estudos que vinham depois da Física aristotélica – em grego, a expressão meta ta phisika quer dizer “depois da física”. Essa história é interessante, porque de um acontecimento casual, o emprego da palavra metafísica terminou por gerar um tipo de investigação que, em geral, visava o afastamento dos temas da natureza material. A tentativa de alcançar o princípio de tudo, partindo do conhecimento particular, para o mais geral, é uma característica do pensamento helênico, desde Tales de Mileto (c. 625-558 a. C.). Platão, em diálogos como Teeteto, Crátilo e Sofista, tentou encontrar argumentos que fundamentasse um conhecimento sólido sobre o mundo, contra a concepção relativista dos sofistas. Mas é com Heráclito de Éfeso (c. 540-470 a. C.), considerado um pensador obscuro, que o tema do conhecimento humano atinge o ponto mais profundo. Em seus fragmentos, pode-se perceber a tentativa de aproximar a capacidade humana de compreensão ao conhecimento que está em tudo. Diante da busca das verdadeiras causas dos seres e do mundo, da essência de tudo, a metafísica passou a ser considerada como a forma de conhecimento mais digno de chamar-se sabedoria. Uma das linhas de ação traçada, a partir do que foi dito sobre Heráclito e Aristóteles, sugeria a compreensão do princípio ordenador que há no mundo, desde a profundidade do conhecimento no próprio homem, entendido como aquele que, fazendo parte do mundo, também é atravessado pelo princípio ordenador – logos, na concepção de Heráclito.Aristóteles, na sua Metafísica, ao buscar o conhecimento particular, compreendia uma abstração gradativa até chegar a um princípio motor imóvel, fora do ser humano. Tal princípio motor foi interpretado pelos filósofos cristãos, por exemplo, São Tomás de Aquino (1227-1274), como Deus. Ou seja, duas tendências metafísicas podem ser distinguidas, aqui. Uma, a vertente heraclítica, na qual o homem pode encontrar em si mesmo a essência do ser, e outra, a aristotélica, que permite fundar uma teologia, como o conhecimento mais alto dos princípios que regem tudo, a partir da reflexão filosófica. 22 UNIDADE I │ FIlosoFIA DA cIêNcIA repercussões modernas e contemporâneas René Descartes, em suas Meditações, tenta provar a existência de Deus como fonte mantenedora e garantidora da verdade de todo conhecimento humano. Immanuel Kant, ao invés de valer-se da hipótese divina, procura mostrar que o próprio homem, como participante dos mundos inteligível e sensível, poderia perceber, por intermédio da razão pura, os limites de seu conhecimento e, consequentemente, a incapacidade de conhecer a coisa em si, mas apenas os fenômenos sensíveis. No início do século XX, as influências da metafísica helênica são mais marcantes, sobretudo, na obra de Heidegger. Contra acorrente aristotélica que busca um princípio para o ser fora do próprio ser, Heidegger estabelece uma ideia de metafísica tão radical quanto a de Heráclito. Nesse sentido, propõe em Introdução à Metafísica, uma recuperação do sentido originário do ser, esquecido ao longo da história ocidental. Assim, visa encontrar, nos moldes dos pensadores helênicos, as causas pelas quais o sentido do ser fora originalmente ocultado. A inspiração para essa concepção peculiar de ser decorre da interpretação dada, por Heidegger, à palavra grega physis. Para ele, physis – comumente traduzida por natureza –deveria ser entendida, como sair e brotar, aquilo que pode ser experimentado em toda parte. No contexto acima, o significado de ser não surge de uma casualidade, mas de uma presença constante. A aparente confusão que a investigação ontológica emerge por causa do esquecimento do ser e de uma postura niilista perante essa complexidade acaba gerando uma essência no nada. Para a metafísica poder responder à questão de porque há simplesmente o ente e não antes o Nada? Heidegger vai expor e fundar o Ser na origem grega, que diferenciava o ente do pensar. A perspectiva originária dessa discussão revelaria a consequente separação entre Ser e Pensar e Percepção e Ser que passou a acompanhar a história da filosofia, desde então. O retorno à visão originária, para Heidegger, revelaria a própria determinação do ser do homem. A determinação da especialização do homem, que aqui carece, não é, entretanto, tarefa de uma antropologia flutuante no ar, que, no fundo, se representa o homem, como Zoologia se representa o animal. A interessante abordagem apontava para o século XIX, como o período no qual a reflexão tentou fundar a possibilidade de saber filosófico positivo, isto é, a formação de um sistema teórico, no qual determinados critérios moldavam o campo específico de conhecimento. Nesse momento, o homem surge como objeto e sujeito de saber. Nesse contexto, a antropologia, como possibilidade de saber empírico sobre o homem, é refutada em favor de uma ontologia purificada ou um pensamento radical do ser: livre de preconceitos antropológicos e capaz de questionar os limites do pensamento, renovando o projeto de uma crítica geral da razão que se indaga se o verdadeiro ser humano existe, afinal. Pode-se dizer que a metafísica surja toda vez que o ser humano passe a refletir, a despeito de um retorno às origens, de modo crítico, sobre sua condição perante um mundo que o espanta, ameaça e desafia a lançar novas respostas. 23 FilosoFia da ciência │ UnidadE i Sobre as objeções de Heidegger quanto à consideração do agir humano como uma consumação do ser, a falta de um fundamento metafísico seguro não impediu que diversos autores, ao longo da história da filosofia, tratassem de encontrar a maneira mais adequada de se comportar entre os seres humanos e perante os objetos da natureza. O liame gerado pelo abandono de uma explicação originária, em relação ao ser, levou todos que estudaram o comportamento humano a se enquadrarem na tradição filosófica ocidental que, na perspectiva heideggeriana, separava o ser do pensar e do agir. Filósofos – como Aristóteles, Kant e mesmo aqueles que trabalham sob a ótica de uma tradição religiosa ou histórica –, frequentemente, recorrem a princípios de ação ideal, fora do domínio material e natural dos agentes humanos, a fim de estabelecerem uma base firme para a criação de normas. A maneira prática humana correta e válida seria aquela que estivesse de acordo com uma concepção de vida, de um mundo superior ou uma tradição histórica já formada. Sendo assim, os diversos pensadores que abordaram esse assunto, quase sempre, recorriam a uma situação ideal imaginada que serviria para se averiguar se uma determinada ação ou regra de ação é válida ou não, correta ou ilegítima etc. Para saber se o ser humano age corretamente, bastaria confrontar sua ação com uma norma considerada válida ou compará-la com outra ação semelhante desenvolvida num contexto ideal. Isto é, verifica-se se a ação é adequada a uma lei ou se ela poderia ser aceita por um modelo padrão que universalizasse sua aplicação, inscrevendo a ação num princípio geral válido para todos. As doutrinas que apelam para essas construções idealizantes pretendem avaliar a prática conforme parâmetros de universalização, ou seja, segundo uma prática que todos pudessem exercer toda vez que as condições necessárias se reproduzissem. Nessa tendência, todo um processo de deliberação deveria ser examinado de acordo com as circunstâncias que envolvem a ação, pois, nem sempre os casos apresentados ao juízo se acomodam numa norma ou padrão ideais pré-estabelecidos. Casos de legítima defesa, aborto ou eutanásia são exemplos de como uma norma do tipo “não matar” pode ser problematizada e se abrir às exceções. Por conta disso, existem correntes filosóficas que admitem uma concepção de ética que não esteja vinculada a conceitos ideais absolutos como critério de verificação das ações, pretendendo que cada ação seja avaliada isoladamente pelos interesses dos envolvidos, pelas consequentes utilidades ou geração de prazer ou sofrimento. As diversas éticas A ética tem origem na palavra grega éthos, geralmente traduzida por habitação, morada ou costume. Moralis é a tradução dada pelos romanos a éthos que originou a palavra moral. Na origem, então, moral e ética querem dizer a mesma coisa. Isso, no entanto, não proibiu que diversas interpretações fossem prestadas ao conceito de conduta humana. Entre as várias correntes existentes, podem ser citadas as principais: » A teleológica, que afirma haver um fim (télos) pelo qual a ação moral é orientada. » A universalista, que defende a existência de um princípio geral, válido para todos. 24 UNIDADE I │ FIlosoFIA DA cIêNcIA » A contratualista, que propõe que os princípios de ação sejam validados por um contrato entre as partes interessadas. » A utilitarista, que funda numa utilidade geral e nos sentimentos morais a boa conduta humana. » O pragmatismo, que avalia as ações segundo o processo de deliberação e um modo de vida circunstanciado. As principais correntes possuem variações e subdivisões que geram novas teorias morais, como a comunitariana, derivada da teleológica; a ética do discurso, baseada na universalista; a ética da compaixão, fundada no utilitarismo; entre outras doutrinas mistas, como a teologia da libertação, justiça como equidade, o direito positivo etc. Monismo e dualismo Aristóteles foi o primeiro a escrever uma obra exclusivamente dedicada a questões éticas. São atribuídos a ele quatro tratados sobre o assunto: Ética a Eudemo, Ética a Nicômaco, Magna Moralia e o duvidoso Tratado de Virtudes e Vícios. De todos esses textos, o mais completo é a Ética a Nicômaco. O conhecimento desse bem seria manifesto pela ação política. A investigação ética, segundo Aristóteles, tenta mostrar o bem relativo à ciência política, a saber: a felicidade (eudaimonia). Aristóteles supôs ser esta a razão pela qual os homens vivem em sociedade. Depois de uma extensa análise das virtudes. Supondo ainda que a vida contemplativa de um filósofo seria a mais prazerosa de todas – por permitir a contemplação da verdade – a ética aristotélica propõe que a conduta humana, numa comunidade, seja conduzida por leis que promovam a realização desse bem supremo que é a felicidade de poder contemplar a verdade e possuir a sabedoria. Embora a Ética a Nicômaco aponte para um tipo de vida considerado ideal, para nenhum expediente que desse a entender um dualismo que separasse as ações humanas, em sua prática cotidiana, da concepção de vida sugerida. Para a vida contemplativa realizar-se, era preciso a sua execução numa organização política exercida por homens de carne e osso, neste mundo. Sob esse aspecto, pode-se dizer que a teoria ética aristotélica se mantinha dentro de uma perspectiva monista, concebida e aplicada a uma única noção de mundo.Em ética, o dualismo é uma característica que só vem a ser nitidamente traçada por Immanuel Kant, a partir de sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Antes dele, também é possível atribuir um dualismo ético a Platão, mas este não deixou nenhum diálogo do qual se pudesse extrair um sistema formal de ética. 25 FilosoFia da ciência │ UnidadE i Desta forma, Kant criticou o conceito de felicidade, entendido como um bem que fosse o fim da filosofia moral. A felicidade, como ele entendia, era a soma de todas as inclinações humanas. Cada um teria a sua noção de felicidade e ninguém estaria de acordo sobre qual seria o bem supremo. Para Kant, o conteúdo da ação moral estaria na prática por dever e não por inclinação. Isso porque o dever conteria a boa vontade, um tipo de querer com valor absoluto, independente de qualquer outra influência. O dever caracteriza, na ética kantiana, a necessidade de uma ação por respeito à lei moral, uma lei universal das ações que manda agir de acordo com a máxima que a vontade quer que se torne uma lei válida para todos. Por causa dessas características, meramente formais, o imperativo categórico poderia propor leis a priori, ou seja, independente da experiência cotidiana e particular. A ideia do imperativo categórico surge em função dessa concepção de lei moral. O imperativo categórico, diferente de outros imperativos, não dependeria da matéria da ação, nem de seu objetivo (fim). Esse imperativo visa encontrar a lei que valha necessariamente, sem qualquer condição e de um modo objetivo e geral. A razão prática teria, nesse imperativo, o instrumento para obtenção de um princípio universal de validação da lei moral. A formulação definitiva dada por Kant a esse imperativo é: Age de tal maneira que a humanidade em qualquer pessoa seja usada como fim e nunca como meio (KANT,1980). Por conseguinte, como ser racional, o homem tomaria parte de um “reino dos fins”, onde cada um teria valor por si mesmo, graças à faculdade da razão que possui. Logo, todas as regras de um ser racional valeriam para outro ser racional e por extensão a todos os que pertencessem a esse reino. A humanidade surge aqui como aquela comunidade que seria formada por seres racionais, participantes de um mundo inteligível. O homem seria o único ser capaz de participar desse mundo inteligível e também de um mundo sensível. Kant termina sua fundamentação dizendo que, ao tomar parte desse mundo inteligível, a vontade humana estaria em liberdade, isto é, livre de todas as influências do mundo sensível. A existência de um mundo inteligível e de uma razão prática é que garantiria a formulação de leis morais válidas para todos seres racionais. Ora, caso questione-se a capacidade do ser humano de propor regras livres de qualquer inclinação sensível, os kantianos não têm como demonstrar que a suposta liberdade da vontade seja possível de ser implementada. Sobre a ética kantiana, é evidente que há um mundo inteligível e outro sensível aos quais o homem seria membro. Do primeiro, por ser racional; do segundo, por ser um animal sujeito às influências materiais, numa palavra: inclinações. Além disso, não há como assegurar que as ações pertinentes ao mundo sensível – o único real, de fato – possam ser regidas de fora, por normas alheias às particularidades e circunstâncias de cada pessoa, seja ela racional ou não. A resposta para uma ação no mundo inteligível, imaginário, Kant tem. Porém, as ações no mundo sensível escapam aos seres racionais por não corresponderem às ações num “reino dos fins”. 26 UNIDADE I │ FIlosoFIA DA cIêNcIA As ações do mundo real sofrem influências das inclinações, sentimentos, crenças, desejos e dos recursos materiais disponíveis para sua execução. Uma lei moral, que não leve em conta esses fatores decisivos, tende a se tornar inaplicável e estéril. Aplicação da ética A solução dualista kantiana, portanto, embora seja admirável, não resolve os problemas concretos da ação humana. Por outro lado, o monismo aristotélico, que propõe um tipo de vida com o qual nem todos seriam capazes de realizar, também não ajuda muito. Para encontrar a melhor forma de agir, num mundo cheio de complexidades, a ética tem que se voltar efetivamente para a prática humana cotidiana, tal como faz o filósofo australiano Peter Singer, autor de Ética Prática (1993). A adoção do ponto de vista ético depende, segundo Singer, de uma compreensão de que conflitos de interesses serão solucionados de uma maneira ou de outra. Por ética prática, Singer entende a aplicação da teoria ética no tratamento de questões da ordem do dia a dia, como a discriminação racial, sexual, os direitos dos animais, a preservação da natureza, aborto, eutanásia e a redistribuição de renda. O papel do filósofo, então, será o de colocar as diferentes posições às claras, a fim de que se possa tomar uma decisão refletida sobre o conflito moral. A ética prática proposta por ele assume uma tendência utilitarista que procura maximizar a utilidade geral de uma ação em função de um todo. Útil será tudo aquilo que minimize a dor e aumente o prazer. Sem recorrer a uma construção de mundo ou vida ideais, Singer constrói uma teoria ética a partir de casos particulares, nos quais problemas éticos surgem da falta de um padrão que possa prever todas variáveis: escassez de recursos, a constituição física da pessoa moral e a preocupação com o impacto ambiental do comércio internacional, além do cuidado para com as gerações futuras e o uso dos animais como cobaias e fonte de alimentos. 27 CAPítulo 3 o Senso Comum, a Ciência e a filosofia o senso comum, a ciência e a filosofia como saber reflexivo e crítico Por senso comum, entendem-se aquelas explicações aceitas por um determinado grupo de pessoas, sem que elas passem por um exame detalhado que as problematizem ou questionem. As questões de conteúdo filosófico não são exclusividades apenas de uma forma de conhecimento chamado filosofia. Seja por meio de mitos ou de teorias ingênuas, cada um desenvolve sua própria explicação sobre o mundo, os temas propostos pela metafísica e pela ética também são abordados por um tipo de interpretação caracterizada como senso comum. Fatores como crenças, desejos, apego à tradição histórica ou influências sociais fazem com que, mesmo depois do advento da filosofia, ainda persista na maior parte dos seres humanos uma aceitação das coisas tais como elas são, quando não se cai em superstições. Longe de ser uma posição comodista, o apego ao senso comum decorre da falta de motivos fortes para a fomentação de dúvidas sobre as noções dominantes que a maioria das pessoas têm como certas. Neste instante, é que se tenta encontrar outras explicações que acomodem aquilo que está fora da ordem ao conjunto de crenças e desejos partilhados pelo grupo social. Isto é uma forma de conhecimento bruto sobre as coisas que precisava ser ajudada e aperfeiçoada pelo rigor e exatidão do pensamento filosófico, a fim de evitar a indução de falsas conclusões, a partir de observações precipitadas, que poderiam engendrar iniciativas desastrosas. O fator surpresa exigiria um esforço, por parte das pessoas, de integrar toda informação inesperada ao modelo constituído em suas mentes. Graças a esse esforço generalizado na espécie de interpretar os fenômenos à luz de uma teoria doméstica própria de cada um, é que ao longo da história poucos foram aqueles que se atreveram a se afastar dessa forma ingênua de encarar o mundo. Eis porque são poucos os filósofos e muitos aqueles que se detém numa forma de saber pré-filosófico: o senso comum. Entretanto, por menor que fosse o número daqueles preocupados em ir além do entendimento vulgar, nada os impediu de considerar o senso comum como uma espécie de “primo- pobre” da filosofia. 28 UNIDADE I │ FIlosoFIA DA cIêNcIA A Crítica ao senso comum Não são raros os casos em que as crenças do senso comum produziram comportamentospreconceituosos, com base numa postura dogmática diante da compreensão dos fenômenos. Durante muito tempo, acreditou-se que o Sol girava em torno da Terra, que uma determinada raça fosse superior a outra, na influência dos astros nas vidas das pessoas etc. O senso comum constrói suas teses a partir de um método indutivo, pelo qual a regularidade da ocorrência de certos fenômenos da natureza geram um hábito de se acreditar que se determinadas condições estão presentes, logo se seguirá um evento a elas relacionado. Por exemplo, se o céu fica coberto de nuvens cinzentas é sinal que vai chover; onde há fumaça, há fogo etc. O senso comum não se preocupa em apresentar provas diretas que validem suas hipóteses, segundo um método de verificação empírica, tais como a falsificação da experiência, exigida pelas teorias científicas contemporâneas. Esse hábito faz parte da constituição de cada um, assim como os sentidos pelos quais as informações do meio ambiente chegam ao sistema nervoso central. Por conta disso, às vezes, as informações que entram na mente humana são tão complexas que provocam um conflito de interpretações por parte do indivíduo. A simples observação de uma torre ao longe não permite dizer com certeza se ela é de base quadrada, triangular ou circular. Apenas uma experiência mais apurada possibilitaria a confirmação da forma correta da edificação. O senso comum não pretende que seu conhecimento seja exaustivo e, nessa condição primária, aceita sem mais esforços as primeiras explicações que lhe ocorrem, segundo um modelo interno pré-estabelecido. Cabe à filosofia fazer a crítica dos modelos padrões do senso comum, permitindo que uma investigação mais apropriada proporcione um conhecimento mais fidedigno e que permita fazer previsões mais precisas. As experiências exaustivas e as contra provas são práticas que fornecem elementos para constatação da verdade ou falsidade de uma proposição, ainda que provisória. Quanto ao conhecimento da melhor forma de ação, a filosofia exige do senso comum a sustentação da validade de suas normas, de acordo com parâmetros de universalização de aplicação da norma. Nesse sentido, o conhecimento deve avançar da simples aceitação de práticas estabelecidas pela tradição, até a formulação de regras de conduta que possam ser avaliadas a partir de um ponto de vista moral, do qual os interesses de todos concernidos sejam levados em conta. 29 FilosoFia da ciência │ UnidadE i Além do senso comum Vários pensadores procuraram solucionar os impasses impostos ao senso comum de maneiras diferentes. O descontentamento com relação à orientação adotada, tendo por base inclinações, crenças desejos e hábitos, é, então, um dos principais motivos para o desenvolvimento de uma crítica racional com características filosóficas. Os platônicos acreditavam que o conhecimento só se daria depois do verdadeiro resgate das ideias pré-existentes às coisas. Enquanto os aristotélicos procuravam extrair do entendimento das causas e dos vários significados de ser, aquele princípio primeiro de tudo. Modernamente, René Descartes inaugurou um método científico a partir de uma dúvida generalizada de todo conhecimento aceito pelo senso comum e adquirido por meio dos sentidos, em Discurso do Método (1637). O fato dela não ser bem aplicada é que, a seu ver, permitiria que surgissem as divergências e os vícios aos quais o ser humano está sujeito. Por causa disso, ele propõe um método de investigação que, na sua obra seguinte, parte de uma dúvida metódica que questiona toda forma de conhecimento adquirida a partir de informações intermediadas pelos sentidos e percepções. Com isso, ele tenta encontrar, exclusivamente na própria razão, o único conhecimento livre das distorções impostas pela experiência, sobre o qual todos os conhecimentos verdadeiros serão fundados. Ao contrário de toda tradição anterior, Descartes voltou-se para aquela capacidade natural que cada um possui e procurou descobrir, fazendo uso apenas da razão, o fundamento da verdade, independente do senso comum. Assim, todas aquelas verdades assumidas pelo senso comum, que fossem contraditas pela observação apurada da natureza e pelo entendimento, deveriam ser postas de lado, em função de uma verdade que pudesse ser revelada sem a influência dos sentidos ou de qualquer crença e desejo. David Hume (1711-1776) na sua Investigação Sobre o Entendimento Humano (1748) fez uma crítica da ligação necessária que a razão humana costuma produzir entre os eventos na natureza sob um suposto princípio de causalidade. Para ele, o hábito e não o raciocínio era o princípio que fazia com que se esperasse a renovação de um ato, tendo em mente a repetição anterior do mesmo ato. Toda crença numa questão de fato ou de existência real deriva de algum objeto presente à memória ou aos sentidos e de uma conjunção habitual entre esse objeto e algum outro. Haveria tão somente um hábito não racional de relacionar uma coisa com a outra, sem qualquer explicação plausível, senão o fato de constituir a natureza humana. Kant logo percebeu que nem o senso comum nem a metafísica mais apurada de sua época poderiam satisfazer o verdadeiro conhecimento da coisa em si. Isso porque a razão teria limites insuperáveis para atingir esse grau de conhecimento, uma vez que a percepção das coisas se daria por intermédio da sensibilidade, formada pelos sentidos do tempo e espaço. 30 UNIDADE I │ FIlosoFIA DA cIêNcIA Por fim, todo ataque da filosofia ao senso comum concentra-se em três fatores representados por esses filósofos. O primeiro é a distorção dos dados de entrada fornecidos pelo meio ambiente e que passam pelos sentidos. O segundo diz respeito à constituição do ser humano que relaciona de modo necessário um evento a uma causa. E o terceiro aponta as limitações da razão em formular juízos empíricos que revelem a coisa em si, na forma dogmática. É certo que sempre que o senso comum esbarra com fenômenos contraditórios, segundo um modelo padrão pré-estabelecido, cada um procura encontrar uma explicação com o intuito de acomodar as ocorrências extraordinárias sob a sua perspectiva. Quando isso não acontece, há uma forte tendência à criação de superstições ou explicações míticas sobre o mundo. Por outro lado, uma postura que tente investigar e propor uma nova teoria com base em testes, argumentos e contra-argumentos só pode ser exercida fora do domínio do senso comum. O âmbito adequado para essa investigação seria próprio da filosofia e das ciências empíricas. A defesa do senso comum Segundo Antonio Rogério da Silva: A crítica cética também não pode servir de alternativa a um modo de vida. Ninguém conseguiria viver duvidando constantemente de tudo. Por conta disso, todos procuram, bem ou mal, seguir a maioria de suas crenças comuns sobre o mundo, por falta de um motivo mais forte para descartá-las, ainda que elas possam ser completamente falsas. No final do século XX e do segundo milênio, apesar de todas tentativas, a filosofia e as ciências não encontraram um fundamento seguro que permitisse o abandono da maior parte das interpretações do senso comum. Todos jornais sustentam colunas de horóscopos; enquanto, no dia a dia, costuma-se dizer que o sol nascerá a leste e morrerá a oeste, como se a astronomia e a física não tivessem provado que a Terra gira em torno do Sol e a distante e fraca influência dos astros na tomada de decisão de uma pessoa. Essa deficiência explicativa para sugerir um argumento definitivo e último, que provasse as coisas no mundo, gerou uma nova forma de abordagem dos temas filosóficos, menos dogmática e mais afeita ao falibilismo. Desta maneira, a incapacidade da filosofia fornecer respostas definitivas que fechassem qualquer uma de suas questões, volta-se a discutir, hoje, os problemas cognitivos a partir de um ponto de vista mais aproximado das características intuitivas, intencionaise explicativas do senso comum. O individualismo metodológico, então, passa a ser a principal marca das investigações feitas pelas ciências humanas, sem que para isso tenha de se perder uma atitude crítica e inquiridora. As ações desastrosas cometidas em nome do desenvolvimento científico e da soberania da razão, ao longo deste século, foram suficientes para abalar essas pretensões. 31 FilosoFia da ciência │ UnidadE i A filosofia do senso comum O senso comum já encontrava um defensor contundente entre um daqueles filósofos que seguem a tradição analítica de abordar um tema filosófico, isto é, tendo como ponto de partida a compreensão precisa do significado das expressões da linguagem. O filósofo George Edward Moore, em Uma Defesa do Senso Comum (1925), sustenta que certos truísmos derivados do senso comum podem ser tidos como verdadeiros. Por exemplo, saber que um corpo humano presente e vivo é meu ou não; que em tempos diferentes, muitas diversas coisas aconteceram e que eu nasci num determinado tempo no passado etc. A confusão criada pelos filósofos em torno desse tipo de conhecimento dar-se-ia pelo fato deles tomarem essas questões do ponto de vista de uma terceira pessoa, fora daquele que afirma saber o que diz. Os seres humanos poderiam ter outros corpos sem que o sujeito soubesse que eram corpos humanos, já que da posição subjetiva não há como saber o que aconteceu no passado com outros seres humanos, além do próprio sujeito. O que Moore (1989) quer garantir é esse conhecimento mínimo de que cada um sabe que sabe a verdade das proposições do senso comum. [...] Falar com desprezo daquelas “crenças do senso comum” que mencionei é certamente o máximo dos absurdos. E há, obviamente, grande número de outras características na “visão do mundo do Senso Comum” que, se aquelas [crenças] são verdades, são certamente verdade também: por exemplo, que viveram sobre a superfície da terra não apenas seres humanos, mas também muitas espécies diferentes de plantas e de animais etc. (MOORE, 1989). O senso comum não precisa de mais nada para provar a sua verdade a não ser do conhecimento interno de alguém que sustenta uma dada afirmação como verdadeira. Além disso, uma vez posto esse conhecimento básico, a verdade do mundo exterior também poderia ser sustentada, do mesmo modo que as sentenças triviais, a partir da certeza de quem sabe. Para se conhecer as verdadeiras causas do ato de um agente, precisaria apelar, então, ao uso de termos como crenças e desejos que interagiriam na mente produzindo uma determinada conduta. Os defensores da psicologia popular afirmam que a complexidade dos mecanismos de decisão para uma ação não permite que se abandone as crenças e desejos do senso comum, em favor de uma simples explicação fisiológica, sem levar em consideração as características intencionais de um evento mental. A informação na mente e o processo de deliberação feitos pelos indivíduos precisam ainda da esfera da psicologia popular, típica do senso comum, para que uma explicação do fenômeno mental seja bem-sucedida. Embora nenhum evento na natureza possa ocorrer sem o suporte material, isso não quer dizer que a melhor interpretação desse evento deva se dar no âmbito das ciências naturais. Sobretudo quando se trata da ação humana, palavras como livre arbítrio, desejos, crenças e hábitos são indispensáveis para o entendimento adequado das causas que estão “por detrás” do ato. 32 UNIDADE I │ FIlosoFIA DA cIêNcIA Apesar de não conseguir, ainda, propor leis sobre esse comportamento, a psicologia popular não pode ser dispensada e o senso comum tem aqui um papel a desempenhar. Nesse sentido, a intencionalidade está além da descrição neurofisiológica do comportamento humano. o falibilismo e o bom senso Outros fatores como a falta de informações suficientes, desejos, influências diversas e observações distorcidas podem ter uma participação efetiva nas tomadas de decisão. As ciências humanas têm como acréscimo a dificuldade de explicar as circunstâncias em que a razão falha, sem que isso seja causado por um distúrbio mecânico funcional do organismo. Se acaso alguém resolve seguir seus instintos, a despeito de todas as razões contrárias, o máximo que se pode dizer é que essa pessoa age de modo irracional. Mas não há uma lei natural que possa descrever com precisão quando a razão falhará ou não. Dada a imponderabilidade dos fatores envolvidos num fenômeno qualquer, a razão deve apoiar-se em última instância no bom senso do senso comum, no qual as chances de algo vir a ocorrer como o previsto se baseiam num hábito consolidado por sucessivas observações empíricas registradas pela tradição. O senso comum deixa de ser, portanto, o “primo-pobre” para se transformar numa fonte rica de informações brutas a serem trabalhadas por uma pesquisa criteriosa, todavia não conclusiva. O reconhecimento das limitações da razão e uma postura crítica diante de normas dogmáticas podem ser a saída mais recomendável nos dias de hoje. A filosofia do senso comum deve, então, estar atenta a esses dois guias que só o amadurecimento da investigação empírica pode gerar. Já não cabem mais apelos a doutrinas idealizantes que tenham respostas para tudo, como também não se aceita mais o recurso a superstições e lendas fantasiosas. O desdobramento dos eventos dos últimos cem anos serviu para reabilitar o conhecimento pré- filosófico da tradição, ao mesmo tempo em que refreou os impulsos fundamentalistas dos filósofos e cientistas reducionistas. Em nenhum campo do conhecimento humano, a filosofia conseguiu sozinha melhores resultados do que o senso comum. Não há uma conclusão sobre a melhor forma de agir ou validar uma ação. Assim como não se sabe com certeza como os eventos do mundo físico irão se comportar no futuro, graças à imponderabilidade gerada pelas complexas interações entre todos elementos na natureza. Nesse caso, a melhor alternativa perante as circunstâncias é que deve ser considerada apropriada a uma ocasião, o que constitui um conhecimento provisório, mas plausível, tendo em vista todos elementos envolvidos. A indeterminação na natureza, reconhecida pelas ciências naturais no início desse século, foi outro fator a tornar o conhecimento cada vez mais relativo ao ponto de vista do observador. Estendida à filosofia, o indeterminismo alimenta o relativismo e outras tendências falibilistas, tais como o pragmatismo que se apoiam numa investigação do mundo desde a ótica assumida de um modo de vida estabelecido. 33 FilosoFia da ciência │ UnidadE i A filosofia e o senso comum seguem lado a lado, permitindo a abertura de novas linhas de pesquisa como a recente abordagem sobre o conhecimento humano sugerida pela “teoria da mente”, que discute o processo mental, a partir da perspectiva da psicologia popular e do desenvolvimento da ciência computacional, e pela “teoria da justiça como imparcialidade”, que tem em John Rawls seu principal defensor e pretende estabelecer princípios de política justos sem apelar para concepções metafísicas, utopias irrealizáveis e fundamentos últimos, supondo um equilíbrio reflexivo de uma sociedade já formada. Oportuno dizer que a filosofia pode trabalhar com os dados do senso comum, a fim de encontrar os esclarecimentos críticos necessários que proporcionem ao homem contemporâneo tomadas de decisões adequadas e uma melhor compreensão da complexidade dos fatos do mundo. Junto ao senso comum, a filosofia contemporânea põe os pés no chão e começa a caminhar, tendo como objetivo atender as exigências explicativas de seres humanos de carne e osso, portadores de crenças, desejos, sofrimentos e histórias particulares. física e conhecimento humano Desde o início, ciência e filosofia caminharam juntas. O que hoje consideramos ciências era antes chamado, de um modo geral, de “filosofia da natureza”. Esses estudos procuravam fornecer uma explicação sobre o mundo que permitisse apontar as leis determinantes de todoseventos naturais, incluindo o movimento dos corpos celestes, as reações dos elementos químicos e a origem dos seres vivos. À medida que essas teorias obtinham êxito na descrição dos fenômenos da natureza, crescia a ilusão de se construir uma teoria pura e completa, capaz de prever com exatidão todos os acontecimentos, muito antes que eles viessem a ocorrer. A concepção do “demônio de Laplace” – uma entidade que, ao observar, ao mesmo tempo, a velocidade e posição de cada elemento na natureza, seria, a partir disso, capaz de deduzir toda evolução do Universo, tanto no passado como no futuro – representa o tipo de mentalidade confiante que foi constituída graças ao sucesso das leis propostas por filósofos, como Isaac Newton e Antoine L. Lavoisier, tanto na física como na química. Essa entidade imaginária – sugerida pelo astrônomo e matemático Pierre Simon Laplace (1749- 1827) – revela o quanto a perspectiva determinista da natureza estava arraigada na pretensão das ciências clássicas. Encontrar uma teoria que descrevesse o comportamento da natureza e pudesse prescrever seus desdobramentos seria suficiente às ciências, enquanto caberia à filosofia a justificativa racional do por que disso ser assim e não de outro modo. Como consequência dessa divisão de tarefas, o positivismo, desenvolvido por Auguste Comte (1798- 1857), na sua forma mais radical, vem propor a redução da filosofia especulativa – sobretudo a metafísica – aos resultados da ciência, cujo método deveria ser aplicado a todas as outras formas de 34 UNIDADE I │ FIlosoFIA DA cIêNcIA conhecimento. Surgem, então, as ciências sociais – a antropologia e a sociologia – como disciplinas voltadas exclusivamente para o exame dos mecanismos e relações que geram os fatos sociais e a interação humana, de uma perspectiva neutra, deixando de lado as motivações e interesses que estão na origem do conhecimento científico. determinismo e indeterminação Enquanto a vertente cientificista ia tomando corpo, outras pesquisas, que produziam resultados divergentes dos paradigmas dominantes, começaram a abalar as certezas em torno das leis clássicas da física. As ciências clássicas, destacadas da filosofia, assumem, portanto, essas características deterministas e de pretensão de neutralidade que permitiram o desenvolvimento de uma tecnologia como produto de um conhecimento positivo da natureza. Ao longo do tempo, seria impossível que o calor dissipado por um corpo fosse reconstituído depois de ele ter esfriado. Isso não permitiria a reversibilidade do tempo, como queria Newton, dificultando a localização de um ponto no passado, desde os dados do presente, uma vez que a energia fora dissipada por um objeto em movimento, não poderia ser totalmente resgatada. O matemático francês Jules-Henri Poincaré, em 1905, observava que mesmo a lei da gravitação – por ele considerada a “menos imperfeita de todas as leis conhecidas” – quando prevê o movimento entre dois corpos no espaço, deve negligenciar a interferência de outros objetos envolvidos nessa relação, a fim de poder calcular com “precisão” as suas trajetórias. A órbita da Lua em torno da Terra, por exemplo, teria de omitir a influência do Sol e outros astros do sistema solar. O deslocamento da Lua só poderia se dar com uma quase certeza, aquém da pretensão suposta pela física clássica: embora essa probabilidade seja praticamente equivalente à certeza, não é mais que uma probabilidade, disse Poincaré em O Valor da Ciência. Para Poincaré, existia uma complexidade existente na interação gravitacional de um sistema com mais de dois corpos e que a física clássica não poderia encontrar uma solução geral, para esse tipo de problema, na trilogia Les Méthodes Nouvelles de la Mécanique Céleste (Os Novos Métodos da Mecânica Celeste,1892-1899). Mas é com o surgimento da física quântica que o determinismo das leis naturais se torna problemático nas experiências que tentam fazer uma medição das partículas subatômicas. A dificuldade de medição decorre do fato de que o próprio ato de observação de uma partícula altera a posição e a velocidade do objeto examinado. Os eventos da física atômica apresentam a impossibilidade de se prever a trajetória de um elétron, por exemplo, no intervalo entre os momentos inicial e final da experiência, por mais preciso que seja o instrumento. Dessa forma, ele procurava descrever os novos fenômenos por meio de uma linguagem complementar que utilizasse os termos consagrados pela tradição, ao lado de um rigoroso cálculo matemático que fosse além da perspectiva determinista ou reducionista das imagens clássicas. 35 FilosoFia da ciência │ UnidadE i Os dados obtidos em diferentes condições experimentais não podem ser compreendidos dentro de um quadro único, mas devem ser considerados complementares, no sentido de que só a totalidade dos fenômenos esgota as informações possíveis sobre os objetos. Assim, nas situações em que a descrição da física clássica falhasse, uma nova interpretação do fenômeno, sob a ótica da matemática formal da mecânica quântica, ampliaria o quadro explicativo, proporcionando maior precisão na explicação do evento físico. Conhecimento e interesse A impossibilidade de se reduzi o comportamento humano a uma explicação meramente mecânica mantém como válida as descrições que levam em conta o livre arbítrio, as crenças e os desejos. Pois, as ciências da natureza não poderiam se valer de conceitos como liberdade e vontade, tradicionais na atribuição de intenções aos agentes humanos, já que da perspectiva externa dos observadores das ciências da natureza, a explicação só poderia se dá utilizando termos como posição dos corpos, aceleração, massa, força, entre outros, sem apelar para fatores intencionais de cada indivíduo envolvido. A impossibilidade de uma construção teórica objetivista e reducionista, por parte das ciências empíricas, atinge também a pretensão de neutralidade, que outrora se imaginava quanto aos interesses subjetivos dos próprios cientistas. Uma vez que, tanto na física como na sociologia, a posição do pesquisador-observador interfere decisivamente nos resultados da experiência, sua postura neutral fica comprometida. Neste instante, os interesses de cada um devem ser considerados. Cabe à epistemologia questionar os métodos da ciência em sua pretensão de formular uma ciência pura da natureza, sem levar em conta os interesses de quem observa e é observado, ao se fazer uma escolha por um determinado encaminhamento da investigação. A crítica epistemológica, do conhecimento científico, pode agora chamar atenção para o fato de que o suposto objetivismo das ciências esconde uma tentativa de fornecer instruções dogmáticas para a ação, sem qualquer reflexão quanto aos interesses incorporados na busca de conhecimento. A aplicação do método das ciências empíricas às ciências humanas não pode mais aspirar ao reducionismo ou eliminação de uma explicação que considere os interesses específicos de cada disciplina. A crítica filosófica das ciências pode afirmar, tendo em vista os desdobramentos das revoluções científicas, que tal neutralidade não impede os cientistas de intervirem na prática social, segundo os interesses sugeridos nas leis deterministas ou não de suas teorias. Um paradigma cientificista imparcial e reducionista revela o tipo de interesse e a estrutura comunitária de um grupo de cientista que opta por uma concepção determinista da natureza e que pensa ter a ciência o poder de predizer os fenômenos, permitindo maior controle sobre eles. 36 UNIDADE I │ FIlosoFIA DA cIêNcIA A sua orientação é feita tendo em mente os interesses e a tradição de um certo grupo de cientista que elaboram suas teorias e executam suas experiências, de acordo com os pressupostos aceitos pela comunidade a qual cada um esteja vinculado. As experiências que fogem dos padrões adotados, como aquelas que demonstraram as características aleatórias, não deterministas,na natureza, serviram para apontar as limitações das pretensões reducionistas e deterministas do conhecimento científico que predominou nas ciências clássicas. A implementação desse novo paradigma indeterminista da física contemporânea contribuiu para que a epistemologia criticasse a neutralidade dos cientistas quanto aos interesses sociais e sua incorporação numa tradição histórica, que nem sempre é assumida pelos próprios pesquisadores, seja nas ciências da natureza, nas exatas ou humanas. A reforma da natureza Cabe ressaltar que a Terra levou cerca de três bilhões de anos para criar as condições necessárias para que a vida em sua superfície pudesse se desenvolver, a ponto de gerar a enorme diversidade que habita o planeta atualmente. Assim, pode-se diagnosticar a pretensão, segundo Antonio Rogério da Silva: que a ciência e a tecnologia tenham o pleno controle da natureza, sendo capaz de moldá-la, segundo os conhecimentos adquiridos nas pesquisas sobre os mecanismos naturais mais secretos. Ao lado disso, a biologia vem desenvolvendo um projeto que tem por finalidade mapear todo código genético humano. A partir das descobertas, advindas do Projeto Genoma, poder-se-á arrecadar cerca de 60 bilhões de dólares na venda de medicamentos. Enquanto se espera os inúmeros benefícios que o conhecimento genético pode fornecer, surgem questões éticas inevitáveis quanto à possibilidade de manipulação dos genes humanos, a fim de selecionar artificialmente as características mais desejáveis para as próximas gerações, um retorno mal disfarçado da famigerada eugenia grega. Também, aparecem problemas em torno do aborto seletivo, que evitaria o nascimento das crianças com genes considerados prejudiciais; da provável discriminação de pessoas cujo exame do genoma acusasse algum defeito congênito; a criação de “super-homens”, entre outras polêmicas que já trazem preocupações aos cientistas e políticos envolvidos na liberação de verbas destinadas a tais pesquisas. Tudo que a humanidade precisasse seria produzido em laboratório, a partir de elementos químicos: seja medicamentos ou alimentos. As cidades urbanizariam todos os ambientes, climatizando-os ao gosto temperado da espécie, como se o planeta pudesse se tornar um imenso centro-comercial, com condicionador de ar central. A destruição provocada na natureza pelos seres humanos poderia ser compensada por esse conhecimento biológico. O que permitiria a sobrevivência da humanidade num mundo totalmente transformado, de acordo com as características mais adequadas à civilização. 37 FilosoFia da ciência │ UnidadE i O meio ambiente selvagem tem posto em risco não apenas a diversidade da vida, mas também a própria existência do homem na face da terra, seja física ou espiritualmente, dado o grande número de doenças psíquicas desenvolvidas pelo progresso da urbanização. A tendência de se encarar a própria espécie humana como algo que não fizesse parte da natureza ou que não tivesse evoluído junto com essa diversidade é que tem gerado essa ação degradadora de todos ecossistemas que sofreram a intervenção humana. O conhecimento do genoma humano servirá para facilitar a prevenção de doenças congênitas, mas as influências externas do meio ambiente sobre o gene permanecerão imponderáveis, diante das consequências inesperadas que a diminuição da biodiversidade poderá acarretar. A função do gene não é suficiente para sustentar uma descrição completa da natureza e do homem, apenas de posições tão simplistas quanto a reducionista e determinista das ciências em geral. Os genes estão em constante interação com um meio ambiente também mutável. Qualquer forma de discriminação entre os genes, do tipo “bom” ou “mau”, não passará de um preconceito que não condiz como o real motivo da existência daquele gene específico. Dos três bilhões de pares de base que compõem o genoma humano, 90% não apresentam nenhuma função conhecida, o restante contém instruções para fabricação de proteínas. As perturbações do meio ambiente parecem exercer um papel de extrema importância na formação das espécies, ainda que impeça um delineamento exato de seu desenvolvimento. Logo, uma interpretação determinista, também nesse campo, está afastada. A proposta feita por Charles Darwin (1809-1882), ainda que seja o agente principal das modificações, nada garante que a “persistência do mais apto” represente o avanço de todas as qualidades corporais e intelectuais do indivíduo em direção à perfeição. Pouco mais de um centésimo separa geneticamente a espécie humana dos símios. Isso revela o quanto é insuficiente o conhecimento das características genéticas para definição precisa da essência humana. o alcance da sociobiologia O comportamento animal pode ser bem explicado desde a perspectiva evolucionista. Todavia, no que diz respeito às ações humanas, ainda há muita lacuna explicativa a ser preenchida. Embora Edward O. Wilson seja um dos biólogos que mais defendem uma ética ambientalista, que procura argumentar em favor da biodiversidade, ele é também um dos mais polêmicos criadores da disciplina sociobiologia, que visa reduzir a economia, sociologia e psicologia à interpretação proposta pela biologia evolucionária. E mesmo na concepção da estrutura genética que está por detrás dessas marcas fundamentais, a teoria da seleção natural teve êxito na descrição de como as características fisiológicas dos homens e animais surgiram. 38 UNIDADE I │ FIlosoFIA DA cIêNcIA A interação das instruções genéticas com o meio ambiente modifica o comportamento que, por ventura, estivesse pré-estabelecido no genoma humano, por mais que os genes possam ser identificados a certas atitudes – agressividade, altruísmo, egoísmo ou timidez –, podem ocorrer mutações no contato com outros elementos da natureza, ou pela duplicação errada do ADN. Sobre esse aspecto, a sociobiologia vem desprezando a capacidade humana de enfrentar as adversidades e a sua inventividade. As intenções relacionadas com qualquer agente racional não podem ser assunto de uma biologia social pois não tem como encontrar, na base do genoma, as motivações intencionais dos indivíduos, oriundas de fonte externa. Motivações essas que são fruto de vários fatores causais do meio ambiente no qual os seres humanos estão envolvidos. Os genes, em meio a tudo isso, tendem a adaptar-se da melhor maneira. Somente quando essas alterações são lentas é que se torna possível uma previsão mais aproximada do que ocorreu ou está por ocorrer. Mas, em sociedades muito complexas, essa explicação só pode ser feita apoiada em estatísticas e probabilidades de ocorrência. Para fornecer uma explicação completa do comportamento dos homens, a teoria evolucionária tem de tratar de um ecossistema em constante transformação e da reação dos organismos a essas mudanças. A escolha racional é com frequência indeterminada e não garante comportamento ótimo, mesmo supondo que as pessoas se livraram de sua tendência a comportar-se irracionalmente. Os processos de seleção são muito lentos na produção de comportamento que esteja otimamente adaptado a um ambiente em rápida mudança (ELSTER, 1994). As mudanças genéticas não dependem de uma atitude afirmativa e racional do agente, quando a própria evolução cuida da adaptação da espécie, e a genética chega a impasses contraditórios. A anemia falciforme decorre de uma alteração na hemoglobina – uma proteína encontrada nos glóbulos vermelhos responsável pelo transporte do oxigênio e gás carbônico no organismo –que é prematuramente destruída, provocando anemia, num primeiro estágio, e interrompendo, em seguida, o suprimento de sangue dos vasos capilares, devido à pouca flexibilidade das células sanguíneas deformadas. Os casos das anemias congênitas são exemplos dessa imponderabilidade da adequação dos genes ao meio. Entre as populações que habitam regiões onde há incidência de malária, foram desenvolvidos três tipos de defesas cujos efeitos colaterais sãoa anemia falciforme, a talassemia e a deficiência da proteína G6PD (glicose 6 fosfato desidrogenase). As doenças ameaçam cerca de 342 milhões de pessoas em todo mundo, das quais 100 milhões têm deficiência de G6PD e o restante portam uma cópia do gene da talessemia ou da anemia falciforme. As doenças surgiram como uma maneira do organismo criar barreiras à procriação do parasita da malária (protozoários do gênero plasmodium) no interior de glóbulos vermelhos que tenham tanto a hemoglobina normal, quanto a modificada. 39 FilosoFia da ciência │ UnidadE i As crianças só são atingidas pela anemia falciforme quando recebem uma cópia do gene para a hemoglobina anormal tanto do pai quanto da mãe. Nos portadores de uma única cópia do gene, os glóbulos vermelhos fabricam ambos os tipos da hemoglobina, só um número muito pequeno de células se deteriora e a doença não se manifesta. Quando essa mutação apareceu na história evolutiva humana, praticamente todo gene defeituoso tendia a ter como parceiro uma cópia do gene intacto, e assim ela conferia proteção contra a malária e deixava os portadores com boa saúde (WILKIE, 1994) Na atual conjuntura, a proliferação do gene alterado ocorrendo na mesma proporção em que subia a taxa de natalidade e sobrevivência das pessoas afetadas, as chances de uma criança receber duas cópias desse gene dos pais são de 25%. Isso mostra o quanto a evolução biológica pode levar a resultados paradoxais em relação à adaptação de um indivíduo ao seu meio. A capacidade de um organismo reagir às agressões externas pode salvá-lo ou destruí-lo, pois as possibilidades de morte por malária das pessoas sem a proteção genética é a mesma de quem herdou a mutação de seus pais. Por fim,uma simples teoria biológica da evolução não é capaz de superar esses problemas, seja na explicação do desenvolvimento social ou das mutações provocadas pela interação com o meio. Há espaço para o surgimento de uma ética ambientalista que vise a formulação de normas para restrição da destruição da biodiversidade, da discriminação genética e do incremento da eugenia. 40 CAPítulo 4 Estudo filosófico As principais partes do estudo filosófico Segundo Antonio Rogério da silva: Conta a história que, numa noite estrelada, Tales de Mileto (624-546 a.C.) caminhava atento, observando os astros, quando, de repente, antes que pudesse perceber, cai em um buraco. Uma mulher que presenciara o tombo do primeiro filósofo, impiedosamente, teria dito: “como sabes o que se passa nos céus se não tens a capacidade de ver o que está debaixo de seus pés”. Humilhado por essa situação constrangedora, nos dias que se seguiram, Tales com o conhecimento adquirido por suas observações astronômicas, alugara todos os bosques de oliveiras disponíveis, antes que a boa safra de azeitona, que ele previra, ocorresse. A busca pelo conhecimento, característico da filosofia, tem trazido consequências inevitáveis para o modo como as pessoas agem no seu dia a dia. Pois, é com base no que sabe que as pessoas sensatas procuram agir, na expectativa de obterem os melhores resultados possíveis para suas ações. Os sofistas achavam que poderiam ensinar, pela retórica, a técnica de produzir discursos contra e a favor de qualquer tema, com o objetivo de convencer o ouvinte. Platão sofreu na pele a experiência desastrosa que teve com o tirano de Siracusa, uma cidade na Magna Grécia (localizada na Sicília), enquanto tentava aplicar sua teoria do rei-filósofo. Desta forma, o valor absoluto dado à ciência e à tecnologia constituiu o cerne da corrente filosófica positivista. Na era moderna, matemática e filosofia estiveram juntas na formulação do sistema newtoniano, principal representante da física clássica. A Revolução Russa de 1927 seguiu as diretrizes de Karl Marx e foi implementada por intelectuais como Lênin. A lógica e a psicologia cognitiva estão influindo no avanço da computação. filosofia na comunidade De acordo com o grau de refinamento da interpretação de sua situação no mundo, cada indivíduo estabelece uma postura que irá interagir com outras, sob a moldura de uma teoria social. O fato é que o ser humano tem uma necessidade de refletir sobre sua própria condição e, refletindo, modificar ou justificar sua conduta. Tal teoria pode vir a esclarecer o fenômeno social e filosófico, observando o modo pelo qual a humanidade gera suas próprias leis e concebe as leis naturais. 41 FilosoFia da ciência │ UnidadE i Os seres humanos tendem a criar histórias e explicações sobre si mesmo e o meio que o cerca, os resultados dessa produção intelectual vão desde os modelos explicativos, típicos do senso comum, passando pelas narrativas míticas, indo em direção a uma aspiração religiosa, até chegar a uma teoria completa de cunho filosófico ou científico, capaz de oferecer razões satisfatórias, ao menos momentaneamente, às inquietações da mente humana. As teorias subjetivas, criadas por cada indivíduo, pretendem atingir um conhecimento objetivo, que seja reconhecido como válido por todos os semelhantes. Para tanto, é necessária a sua divulgação perante os outros e, nesse sentido, surge um novo contexto, no qual as explicações do sujeito têm de atender exigências gerais, formuladas por terceiros. O intercâmbio dos argumentos e contra-argumentos, pró ou contra uma determinada interpretação, faz com que cada um reflita sobre suas proposições de um ponto de vista que vai além do meramente subjetivo, indo ao encontro de uma justificação que considere a perspectiva do outro. Cabe ressaltar que tais teorias são fomentadas por uma sociedade, por meio de perspectivas particulares. Como a filosofia encontra na comunidade o elemento fundamental para sua interação social, o teor filosófico de cada teoria, metafísica, ética, ciências, política ou estética, em algum momento terá de sair do âmbito do indivíduo, autor de seus enunciados no caso o próprio filósofo, no intuito de encontrar a expressão adequada para uma formulação mais ampla, que somente o debate intersubjetivo pode proporcionar com suas demandas explicativas. Uma vez que o indivíduo só pode pretender formular com clareza as teorias iniciadas pela reflexão particular de cada sujeito pensante, depois de ter passado por um longo processo de socialização qualquer, fica difícil delimitar exatamente a fronteira que separa o ponto de vista singular do autor, das influências da comunidade. Duas vertentes podem ser confrontadas: a primeira, a comunitariana, que diz ser toda teoria produzida numa comunidade e restrita a seu contexto histórico; outra, universalista, que sustenta a possibilidade do discurso teórico se afastar do ambiente no qual foi criado, assumindo uma condição geral, capaz de ser válida para toda e qualquer sociedade. O universalista seria possível imaginar que o indivíduo teria a habilidade para se afastar das influências do grupo em que se insere e encontrar o conhecimento absoluto tanto científico como o moral, válido para todos, independente do meio em que vivem, mesmo se ressalvando o falibilismo da razão. Já que a racionalidade e a própria noção de justiça estariam irremediavelmente atreladas a uma perspectiva da comunidade, a tendência é de se implantar o relativismo tanto em relação ao conhecimento, como também nas leis da política, por meio de uma postura comunitariana radical. Mesmo que essa explicação possa cair num círculo vicioso, é preciso estar atento para o fato de que, caso haja uma solução, esta depende da maneira pela qual se compreende o ser humano. Não será possível, por enquanto, esgotar essa compreensão, porém, vale a pena esboçar uma trajetória passível de ser seguida por quem queira se afastar dos dois extremos apontados. 42 UNIDADE I │ FIlosoFIA DA cIêNcIA Para superar o impasse provocado pelo confronto dessas duas posições divergentes – as posturas comunitariana e universalista, aqui caracterizadas de modo extremado, até mesmo superficial, a fim de ressaltarsuas diferenças – torna-se necessário examinar como é possível ao ser humano estabelecer suas teorias e narrativas de uma maneira filosófica. É na ação comunicativa que as pretensões de validade dessas teorias são satisfeitas, pela concordância de todos, que concebe uma teoria discursiva que solucione a disputa entre comunitarianos e universalistas. Assim, por maior que seja a influência que a comunidade pode exercer sobre os indivíduos que a compõem, estes terão a possibilidade de elaborarem interpretações divergentes umas das outras, e, por vezes, opostas aos conceitos geralmente aceitos pela comunidade. As proposições de que os indivíduos estão aptos, nas condições de normalidade fisiológica, a produzirem teorias sobre a sociedade e a natureza, que vão além do ambiente em que vivem e, por causa disso, para atenderem as exigências de objetividade, precisam do contexto comunicativo, inerente à própria sociedade a fim de validarem suas pretensões. Isto posto, observa-se que a filosofia e comunidade se complementam de forma produtiva, proporcionando ao filósofo um papel social relevante toda vez em que suas teorias são expostas à comunidade, seja ela acadêmica ou não. Sempre que houver um debate em torno das ideias propostas, alguma interferência ocorrerá. Entrementes, a publicidade, entendida como o domínio público para divulgação de ideias, e a comunicação são fatores fundamentais para que a filosofia e a sociedade influenciem uma a outra. Uma alternativa às posições comunitarianas e universalistas se apoia no conhecimento neurológico do funcionamento da mente humana. Contudo, se a diversidade de postura de cada indivíduo for também gerada pelo ambiente social, é provável que a argumentação alternativa venha responder a esse afastamento da sociedade por fatores da própria sociedade, o que exigirá uma petição de princípio, sobre qual fator seria capaz de proporcionar ao ser humano o distanciamento indispensável para garantir sua liberdade de expressão. Se a diversidade de opiniões for uma condição natural alheia aos fatores sociais, sendo parte da estrutura inata de cada um, a circularidade estará quebrada e o argumento poderá prosseguir para uma melhor formulação, mais apurada. Por enquanto, basta indicar a plausibilidade de uma posição que não caia no relativismo social, nem num idealismo da liberdade individual, como se pode detectar nas vertentes comunitárias e universalistas. o papel do filósofo Os filósofos procuram marcar suas posições diante de toda atividade humana que envolva a reflexão, pois em todos os ramos do conhecimento a presença do filósofo pode ser notada, seja defendendo ou criticando, sempre na esperança de poder encontrar algum critério ou princípio que justifique uma tomada de decisão ou uma argumentação qualquer. Ao refletir sobre a melhor utilização de uma determinada atividade, cada um estará exercendo uma investigação tipicamente filosófica de busca por um conhecimento geral para um fenômeno particular. 43 FilosoFia da ciência │ UnidadE i A falta de uma função específica para a filosofia, devido ao fato dela procurar discutir todos os temas relativos ao entendimento humano, tornou-a uma disciplina de difícil aceitação quanto a sua participação social. Desta maneira, dadas as exigências de justificação de todos os princípios, a solução filosófica para definir a melhor concepção de filosofia está paradoxalmente enredada numa explicação circular que os próprios filósofos rejeitam. Segundo Antonio Rogério da Silva, o pensamento filosófico está cercado por diversas dificuldades e não possui uma resposta definitiva, mas, ainda assim cabe discutir as consequências que posturas diferentes podem acarretar. Assim, podem ser destacadas três tendências. A primeira diz que a filosofia faz parte de uma tradição de pesquisa historicamente arraigada numa comunidade. A segunda propõe que, por causa dos equívocos de uma conduta influenciada por valores tradicionais, preconceitos, fanatismo e passividade, a melhor atitude para o filósofo seria encontrar uma posição fora do contexto histórico, a fim de julgar com moderação as justificativas e práticas de cada um. Por fim, existem aqueles que não acreditam na capacidade da filosofia fornecer qualquer juízo válido para ação humana, em geral, seja reflexiva ou prática e, por causa disso, todo suposto “saber” filosófico teria uma condição nula quanto ao aspecto social e serviria somente para a constituição de cada um, isoladamente, como uma necessidade poética de autorrealização inerente ao homem, mas sem resultados políticos ou epistêmicos imediatos. o papel de cada filosofia Evidente que as três perspectivas, aqui destacadas, são simples aproximações com as quais alguns traços podem ser detectados em correntes filosóficas como as comunitariana, liberal e entre os nietzschianos de várias espécies. Essas simplificações permitem que se abra uma discussão capaz de revelar as variantes passíveis de serem adotadas por cada um, segundo suas próprias convicções e história. A posição comunitariana, apesar de aparentar certa plausibilidade, pode cair em equívocos de sobrevalorização do papel da tradição. Nem por isso, essa independência do indivíduo, em relação à história, deve ser considerado como característica exclusiva de uma tradição liberal, uma vez que reações do sujeito podem emergir do ambiente social sem que essa postura esteja de acordo com as propostas universalistas do liberalismo. Uma alternativa individualista que não é tipicamente liberal pode ser apontada naqueles pensadores que, depois de Friedrich Nietzsche (1844-1900), procuraram mostrar que a construção do sujeito pode ir além da comunidade a qual este sujeito está inserido, graças a uma afirmação da vontade de cada um em se superar constantemente. Buscando ir além das condições locais nas quais o homem vive, a neutralização do indivíduo perante os outros e o afastamento de seus interesses, para os adeptos de uma vontade de poder se superar, 44 UNIDADE I │ FIlosoFIA DA cIêNcIA em favor de um interesse geral universalizável, é algo também a ser refutado, a fim de que a vontade de cada um prevaleça sobre qualquer generalização. Aqueles que abraçam as ideias nietzschianas adotam uma posição de defesa do indivíduo que não é necessariamente liberal, já que a difusão universal do liberalismo tenderia a subjugar o sujeito numa forma de pensamento único. Por sua vez, os liberais formam outra concepção de sujeito, diferente da nietzschiana, que não está ligada meramente a uma tradição, no sentido de estar preso a certas práticas compartilhadas por uma comunidade específica. Os comunitarianos, entretanto, têm razão em apontar um plano de ação próprio do liberalismo que sugere um tipo de vida típico de uma tradição. Todavia, não se pode dizer que haja um fim último ao qual as práticas liberais estejam comprometidas, posto que cabe a cada um determinar o fim que deseja buscar para realização de seu projeto de vida. A falta de um objetivo específico torna a tradição liberal contrária a qualquer imposição da comunidade na definição de uma boa vida válida para todos os indivíduos. De fato, os liberais estão preocupados com os procedimentos formais adotados para realização de um projeto qualquer e não na determinação do fim que deva ser buscado em detrimento de outro. Por estar preocupado tão somente com os procedimentos que venham a garantir a liberdade do indivíduo poder decidir qual a melhor maneira de agir para obter o fim desejado, é que o liberalismo não pode ser simplesmente considerado uma tradição entre outras. Pois, o filósofo liberal volta- se apenas para o exame do modo pelo qual a razão encontra a maneira mais adequada de agir ou reconhecer a verdade de um enunciado, sem se preocupar, a princípio, com o resultado que tal conhecimento poderá gerar. Para evitar a produção de consequências indesejáveis, quando a escolha do fim possa contradizer o próprio liberalismo, serápreciso que a norma a ser adotada pelos indivíduos na deliberação tenha o reconhecimento universal, isto é, que seja válida para todos os demais, sem contradições. O filósofo, então, deveria ser aquele que permitisse a abertura de um espaço de discussão das diversas concepções e, por meio da razão, garantir que procedimentos neutros proporcionem a troca de argumentos e contra-argumentos, a fim de que a correção da proposta em questão fosse aceita por todos os participantes do debate, sem uso da força. O papel do filósofo, nestas circunstâncias, seria o de guardar a posição de um determinado tipo de prática refletida, na qual cada um poderia defender uma proposição que pudesse atender as exigências de todos os seres racionais, saindo do plano individual e particular para um plano geral e universal. Perante a sociedade, a posição de alguns filósofos mudam de acordo com o tipo de relação adotada pelas diversas correntes filosóficas. Enquanto, os comunitarianos carregam para a filosofia a responsabilidade de afirmar uma determinada tradição e de manter práticas respectivas a cada uma delas, os nietzschianos procuram, ao contrário, centrar no sujeito toda vontade de sua própria realização, devendo o filósofo encontrar as estratégias que permitam a cada um se constituir, segundo sua característica sobre-humana. 45 FilosoFia da ciência │ UnidadE i Já os filósofos liberais sugerem a instituição de um fórum propício para o esclarecimento dos juízos e, em consequência disso, a formulação de princípios universais que todos poderiam assumir, a partir da perspectiva neutra do debate filosófico, livre das influências, por vezes coercitivas do meio social. A tendência é que cada tradição procure se preservar diante das inovações do contato com outras tradições, naquilo que cada uma considere necessário manter para sua sobrevivência. Nenhuma dessas atribuições está livre de dificuldades quanto ao desempenho de um papel social por parte do filósofo. Por ser membro de uma comunidade ou tradição, os problemas de tradução entre posições diferentes podem gerar distorções e má compreensão entre os integrantes de grupos rivais, quando práticas divergentes entram em conflito. A constituição de um indivíduo totalmente oposto a práticas normativas de uma sociedade, voltado exclusivamente para sua autorrealização, concebe um sujeito em tensão permanente com o meio social. Isso pode levar a um isolamento que contradiz a tendência natural dos seres humanos buscarem a cooperação no intuito de executar um projeto qualquer. O filósofo, como um indivíduo que também buscará seu próprio fim, em nada terá a dizer sobre como os outros deverão se comportar para tanto. Mesmo para sua própria constituição, uma pessoa depende de outra. Caso contrário, o esforço de cada um em realizar seus objetivos poderá levar a disputas que acabam por tornar cada vez mais difícil o seu alcance. Diante do exposto, o filósofo, em nome da imparcialidade, não poderia intervir, impondo uma diretriz a todos, ele poderia, no máximo, orientar o debate, a fim de impedir que a coerção pudesse ser mobilizada para a validação da proposta problematizada. Por fim, nem um espaço público neutro, direcionado apenas para solução de disputas em torno de normas ou proposições, pode superar a dificuldade da razão em encontrar princípios gerais, com os quais todos os participantes e interessados na discussão pudessem dar seu assentimento. Assim, o filósofo estaria isento de esbarrar nos problemas esboçados, considerando o envolvimento efetivo com uma filosofia em particular, não problematizada e, na sua aplicação, sem qualquer obstáculo, no seio de uma sociedade. 46 unidAdE iiSoCiologiA dA CiênCiA CAPítulo 1 Surgimento da Sociologia o surgimento da sociologia como ciência A sociologia teve sua origem com a manifestação do pensamento moderno, quando o mundo social, que até então não havia sido incorporado a ciência, passa, por meio da evolução do pensamento científico, a ser o enfoque e o objeto de estudo da sociologia. O esfacelamento das bases da sociedade feudal e o estabelecimento de uma nova ordem social, ou seja, a consolidação da sociedade capitalista, o século XVIII foi referencia para a história do pensamento social e para o surgimento da sociologia. As revoluções constituiram dois lados de um mesmo processo e possibilitaram o surgimento da sociologia, embora, essa palavra só venha ser usada um século depois, em 1930. A revolução industrial representa uma vitória da indústria capitalista que converteu grandes massas humanas em simples trabalhadores desprovidos de quaisquer privilégios. Foram inseridas novas formas de organizar as atividades sociais, gerando um trauma sobre milhões de seres humanos que tiveram suas formas habituais de vida alterados. Como exemplos das mudanças ocorridas, podem ser citados a desaparição de pequenos proprietários rurais, dos artesãos independentes, a imposição de prolongadas horas de trabalho etc. O surgimento do proletariado foi sem dúvida um dos fatos de maior importância, principalmente pelo papel histórico que ele desempenha na sociedade capitalista. Os pensadores ingleses que testemunharam estas mudanças não eram especificamente sociólogos; eram, antes de tudo, homens liberais conservadores e socialistas. Os precursores da sociologia foram recrutados entre militantes políticos, entre indivíduos que participavam e se envolviam profundamente com os problemas da sociedade. A sociologia é a formação de uma estrutura social muito específica na qual a sociedade capitalista impulsiona uma reflexão sobre a sociedade, sobre suas transformações, suas crises, seus antagonismos de classe. 47 SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA │ UNIDADE II O objetivo da revolução francesa, de 1789, não era simplesmente o de mudar a estrutura do Estado, mas abolir radicalmente as convenções e instituições tradicionais. Promoveu profundas inovações na política, na economia, na cultura e rompeu com costumes e hábitos arraigados na sociedade. Durkheim afirmou certa vez que, a partir do momento em que a tempestade revolucionária passou, constituiu-se, como que por encanto, a noção de ciência social. A Sociologia tinha como tarefa intelectual, discutir o problema de ordem social, enfatizando a importância de instituições como a autoridade, a família, a hierarquia social, destacando a sua importância teórica para o estudo da sociedade. Abstendo-se de qualquer discussão sobre a realidade existente, deixando de abordar, a questão da igualdade, da justiça, da liberdade, alguns estudiosos da sociologia deveriam orientar-se no sentido de conhecer e estabelecer aquilo que denominavam de leis imutáveis da vida social. Isolando-as do estudo da sociedade e sendo separada a filosofia e a economia política, aquela sociologia procura criar um objeto autônomo, “o social”, postulando uma independência dos fenômenos sociais em face dos econômicos. Todavia a sociologia de inspiração positivista, procurará construir uma teoria social separada não apenas da filosofia negativa, mas também da economia política como base para o conhecimento da realidade social. A sociedade positivista não colocará em questão os fundamentos da sociedade capitalista e nem será nela que o proletariado encontrará a sua expressão teórica e a orientação para suas lutas práticas. A partir desse momento a sociologia vincula-se ao socialismo e a nova teoria crítica da sociedade passa a estar ao lado dos interesses da classe trabalhadora. É no pensamento socialista que mais tarde o proletariado buscará embasamento e respaldo para por em prática suas lutas na sociedade de classes. Suas explicações sempre contiveram intenções práticas, um desejo de interferir no rumo desta civilização, tanto para manter, como para alterar os fundamentos da sociedade que a impulsionaram e a tornaram possível. Na atualidade poucas pessoas colocam em dúvida os resultados alcançados pela sociologia, no entanto no final do século passadoo matemático francês Henri Poicaré referiu-se à sociologia como sendo uma ciência de muitos métodos e poucos resultados. A existência de interesses opostos na sociedade capitalista penetrou e invadiu a formação da sociologia. A divisão causada pelos antagonismos de classe provocam o desentendimento, comum por parte dos sociólogos quanto a sua ciência. 48 CAPítulo 2 Principais Correntes As principais correntes sociológicas Devemos conhecer as principais correntes da sociologia, de acordo com as classificações geralmente aceitas: o Positivismo, o Weberianismo e o Marxismo. Desta forma, a Sociologia pode ser compreendida como uma das ciências humanas que estuda as unidades que formam a sociedade, ou seja, estuda o comportamento humano em função do meio e os processos que interligam os indivíduos em associações, grupos e instituições. Enquanto o indivíduo na sua singularidade é estudado pela psicologia, a Sociologia tem uma base teórico-metodológica que serve para estudar os fenômenos sociais, tentando explicá-los, analisando os homens em suas relações de interdependência. Atualmente, o Estado é o principal financiador da pesquisa desta disciplina científica, o maior interessado na produção e sistematização do conhecimento sociológico. Cobrindo todas as áreas do convívio humano, desde as relações na família até a organização das grandes empresas, o papel da política na sociedade ou o comportamento religioso, a Sociologia pode vir a interessar, em diferentes graus de intensidade, a diversas outras áreas do saber. Entende-se com isso que a Sociologia pretende explicar a totalidade do seu universo de pesquisa. Ainda isso não seja objetivamente alcançável, é tarefa da Sociologia transformar as malhas da rede com a qual a ela capta a realidade social cada vez mais estreitas. Por meio do conhecimento sociológico, pode-se constituir para as pessoas um excelente instrumento de compreensão das situações com que se defrontam na vida cotidiana, das suas múltiplas relações sociais e, consequentemente, de si mesmas como seres inevitavelmente sociais. A Sociologia ocupa-se, nas relações sociais, para então formular generalizações teóricas. Também se interessa por eventos únicos sujeitos à inferência sociológica, procurando explicá-los no seu significado e importância singulares. Positivismo Fonte da imagem: h<ttp://clicksociologico.blogspot.com.br/2012/02/contexto-historico-do-aparecimento-da_22.html> 49 SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA │ UNIDADE II Foi a primeira construção teórica que surgiu na sociologia e nasceu da síntese que August Comte fez do positivismo, sua tradição intelectual contraditória. Adota como ponto de partida a ciência natural e tenta aplicar seus métodos no exame dos fenômenos sociais, fundamentando a interpretação do mundo exclusivamente na experiência.Desta forma, os primeiros conceitos desta disciplina foram elaborados de acordo com analogias orgânicas, três das quais são fundamentais para a compreensão sociológica: a. o conceito teleológico da natureza; b. a ideia segundo a qual a natureza, a sociedade e todos os demais conjuntos existentes perdem vida ao serem analisados e por isso não se deve intervir em tais conjuntos; c. a crença de que a relação existente entre as diversas partes que compõem a sociedade é semelhante à relação que guardam entre si os órgãos de um organismo vivo. Weberianismo Max Weber, o maior sistematizador da sociologia, na Alemanha, elaborou a corrente de pensamento denominada Weberianismo, que difere-se do Positivismo quanto à forma de encarar a história. A história particular de cada sociedade perde importância, sendo valorizada apenas a lei da evolução, da generalização e da comparação entre as formações sociais. Sob a análise do pensamento positivista, a história é o processo universal de evolução da humanidade. Weber opunha-se a essa forma de visão positivista. Para ele, a pesquisa histórica é essencial para a compreensão das sociedades e permitir o entendimento das diferenças sociais. O conhecimento histórico, entendido como a busca de evidências, torna-se um poderoso instrumento para o cientista social. Segundo a perspectiva de Weber, a caráter particular e específico de cada formação social e histórica contemporânea deve ser respeitado. Weber consegue combinar duas perspectivas: a histórica, que respeita as particularidades de cada sociedade, e a sociológica, que ressalta os elementos mais gerais de cada faze do processo histórico. Assim, o homem passou a ter, enquanto indivíduo, na teoria Weberiana, significado e especificidade. É ele que dá sentido à sua ação social: estabelece a conexão entre o motivo da ação, a ação propriamente dita e seus efeitos. Para Weber (2005), não existe oposição entre indivíduo e sociedade: as normas sociais só se tornam concretas quando se manifestam em cada indivíduo sob a forma de motivação. O motivo que transparece na ação social permite desvendar o seu sentido, que é social na medida em que cada indivíduo age levando em conta a resposta ou reação de outros indivíduos. 50 UNIDADE II │ SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA Marxismo Karl Marx, no entanto, fez diferente. Ele foi o propulsor do materialismo histórico (ou marxismo), a corrente mais revolucionária do pensamento social, tanto no aspecto teórico quanto na prática que propõe. Com o objetivo de entender o capitalismo, Marx produziu obras de filosofia, economia e sociologia. Sua intenção não era apenas contribuir para o desenvolvimento da ciência, mas propor uma ampla transformação política, econômica e social. Desenvolveu, ainda, o conceito de alienação mostrando que a industrialização da propriedade privada e o assalariamento separavam o trabalhador dos meios de produção que se tornaram propriedade privada do capitalista. Marx mostrou, entretanto, que na sociedade de classes o estado representa apenas a classe dominante e age conforme o seu interesse. As ideias liberais consideravam os homens, por natureza, iguais política e juridicamente. Liberdade e justiça eram direitos inalienáveis de todo cidadão. As desigualdades sociais que dividem os homens em proprietários e não proprietários dos meios de produção, Marx proclamava a inexistência de tal igualdade natural e observa que o liberalismo vê os homens como átomos, como se estivessem livres das evidentes desigualdades estabelecidas pela sociedade. A Revolução Industrial acelerou o processo de alienação do trabalhador dos meios e dos produtos de seu trabalho, transformando-o em mercadoria. Marx conseguiu, pela profundidade de suas análises, extrair conclusões de caráter geral e aplicáveis a formas sociais diferentes. Por fim e diante de tamanha inteligência entre tais pensadores, é possível perceber a presença ainda marcante, nos dias atuais, das características referentes a cada corrente teórica da sociologia: o Positivismo, Weberianismo e o Marxismo. Sociologia como ciência Atualmente, a Sociologia estuda as atividades sociais dos seres humanos, instituições sociais e suas interações sociais, aplicando mormente o método comparativo. Esta disciplina tem se concentrado particularmente em organizações complexas de sociedades industriais, assim como nas redes transnacionais e globalizadas que unificam ou associam fenômenos para além das fronteiras nacionais. Em análise, a sociologia como ciência deve obedecer aos mesmos princípios gerais válidos para todos os ramos de conhecimento científico, apesar das peculiaridades não só dos fenômenos sociais quando comparados com os fenômenos de natureza, mas também, consequentemente, da abordagem científica da sociedade. As peculiaridades, no entanto, foram e continuam sendo o foco de muitas discussões, ora tentando aproximar as ciências, ora as afastando e, até mesmo, negando às humanas. 51 SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA │ UNIDADE II Comparação com outras ciências sociais No começo século XX, sociólogos e antropólogos que conduziam estudos sobre sociedadesnão industrializadas ofereceram contribuições à antropologia. Deve ser notado, entretanto, que mesmo a antropologia faz pesquisa em sociedades industrializadas; a diferença entre Sociologia e Antropologia tem mais a ver com os problemas teóricos colocados e os métodos de pesquisa do que com os objetos de estudo. No que diz respeito à psicologia social, além de se interessar mais pelos comportamentos do que pelas estruturas sociais, ela se preocupa também com as motivações exteriores que levam o indivíduo a agir de uma forma ou de outra. (CRUZ, 2010). Karl Marx, entre outros, identifica que a pesquisa em economia é frequentemente influenciada por teorias sociológicas. A economia diferencia-se da sociologia por estudar apenas um aspecto das relações sociais, aquele que se refere à produção e troca de mercadorias. Marx pode ser melhor caracterizado como sociólogo por ter compreendido o capital como uma relação social entre detentores dos meios de produção e aqueles que vendem sua força de trabalho, portanto indo além de uma explicação de cunho econômico. A partir da década de 1960, também ganham importância às críticas feministas à teoria social canônica, as quais progressivamente ganham reconhecimento. Já na década de 1980, o feminismo foi incorporado em muitas teorias e pesquisas sociológicas, ainda que as principais reflexões nesta área pertençam a pesquisadoras com origem na filosofia como Judith Butler. No presente, questões de gênero e sexualidade têm se tornado cada vez mais presentes e não apenas como uma área de pesquisa, antes como uma necessária parte de qualquer investigação sociológica. Desde o início, a sociologia vem se preocupando com a sociedade no seu interior, isto diz respeito, por exemplo, aos conflitos entre as classes sociais. No Brasil, nas décadas de 1920 e 1930, a sociologia estava num estudo sobre a formação da sociedade brasileira e analisando temas como abolição da escravatura, êxodos e estudos sobre índios e negros. A sociologia se preocupou com o processo de industrialização do país, nas questões de reforma agrária e movimentos sociais na cidade e no campo e, a partir de 1964, o trabalho dos sociólogos se voltou para os problemas sociopolíticos e econômicos originados pela tensão de se viver em um país cuja forma de poder é o regime militar. Além da preocupação com a economia política e mudanças sociais apropriadas com a instalação da nova república, volta-se também em relação ao estudo da mulher, do trabalhador rural e outros assuntos. Na década de 1980, a sociologia finalmente volta a ser disciplina no ensino médio e também ocorreu a profissionalização da sociologia. 52 UNIDADE II │ SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA Na atual conjuntura da realidade estatal, fala-se em decomposição dos modelos sociológicos clássicos tais como família, sociedade, capitalismo, divisão de trabalho social, consciência coletiva, classe social, consciência de classe, nação e revolução. Discute-se que o objeto da sociologia deveria ser o indivíduo, o ator social, a ação social, o movimento social, a identidade, a diferença, o cotidiano, a escolha racional. Segundo Marshall, (1967): Os sociólogos não deviam despender todas as suas energias na procura de generalizações amplas, leis universais e uma compreensão total da sociedade como tal. Talvez cheguem lá mais tarde se souberem esperar. Nem recomendo o caminho arenoso das profundezas do turbilhão dos fatos, que enchem os olhos e ouvidos até que nada possa ser visto ou ouvido claramente. Os críticos contemporâneos da sociologia tradicional costumam comentar que “Na realidade, o que esta sociologia denomina sociedade não é senão a confusão de uma atividade social, definível em termos gerais – como a produção industrial ou o mercado – e de um Estado nacional” (TOURAINE, 1984). Observa-se que a vida social, acompanhada da formação de um novo modelo a partir do qual se pode desenvolver uma orientação sociológica mais específica e mais coerente, discutem-se problemas relacionados tanto ao método como ao objetivo da sociologia. A controvérsia entre os clássicos e os contemporâneos, em certos casos, envolve a tese de que a sociologia é uma ciência pouco amadurecida. Todo sociólogo precisa demonstrar um conhecimento de primeira mão daqueles que deixaram a sua marca na sociologia. A pesquisa, experimentação, descrição e explicação, abertas pela ciência da natureza, pouco servem para o estudo da realidade social. Os conceitos, tendências, efeitos e outros só se constituem à medida que se colhem as configurações e os movimentos da realidade social. O primeiro argumento baseia-se na ideia de que a sociologia deveria pautar-se pelo modelo paradigmático das ciências naturais. O segundo argumento diz respeito a seres dotados de vontade, querer, ideais, ilusões, consciência, inconsciência, racionalidade, irracionalidade. Os fatos e acontecimentos sociais são sempre materiais e espirituais, implicando indivíduos, família, grupos, classes, movimentos, comportamentos, fantasias, valores, realidades, utopia, ideologia, sofrimento, resignação etc. O terceiro analisa a sociedade burguesa, industrial, capitalista, moderna e informatizada, que se modifica ao longo do tempo. O dilema indivíduo-sociedade continua essencial na necessidade de entendimento das relações sociais, espaços, liberdade e condições de opressão. Cada cientista social tende a descrever e estudar o seu universo social, de acordo com os fatos e os valores da sua época. No entanto, nem a ciência nem a técnica alteram a natureza essencial das relações, processos, apropriação, distribuição, dominação ou poder. 53 SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA │ UNIDADE II três épocas do pensamento sociológico São três as épocas de principal interesse para o estudo sociológico, razoavelmente nítidas em termos de teorias, modelos, paradigmas, ciência normal, revoluções científicas, caráter cumulativo do conhecimento científico e rupturas epistemológicas. A primeira fase foi em uma época fundamental da história da teoria sociológica. Teve como pensadores os nomes Tocqueville, Comte, Spencer, Marx e Durkheim, além de Saint-Simon, Lorenz Von Stein e outros. Estes são autores que fundam a sociologia, delimitando o seu objeto e formulando o seu método. Os seus principais temas foram: ordem e progresso, evolução e diferenciação, normal e patológico, racional e irracional, racionalização e burocratização, sagrado e profano, povo e cidadania, classe e luta de classes, movimento social e partido político, revolução, contra revolução, dentre outros. A segunda fase, que se deu em fins do século XIX e início do século XX, oriunda de uma crise mais fecunda de efervescência intelectual, buscou alternativas para o evolucionismo, o positivismo, o empirismo, o historicismo e o marxismo, em função das novas dimensões da realidade que o pensamento clássico parecia não contemplar. Foi então que Dilthey, Weber, Tonnies, Pareto, Alfred Marshall, Pierce, Freud, Husserl, Saussure e outros produziram as suas contribuições. Essa foi, sem dúvida, a revolução mais importante na história da sociologia, depois de sua fundação em meados do século XIX. A terceira fase, a sociologia contemporânea, coloca-se mais na esteira dos revolucionários. Dentre seus principais nomes podemos citar Parsons, Merton, Lazarsfeld, Goffman, Lévi-Strauss, Torraine, Bourdieu, Boudon, Giddens e Elster, entre outros. Eles propõem recriar a sociologia, libertando-a mais ou menos dos clássicos, sem deixar de buscar contribuições ocasionais, isoladas, fragmentadas daqueles. São inspirados nas sugestões de filósofos, historiadores das ciências, cientistas, dos quais destacam-se Heidegger, Sartre, Merleau-Pontu, Bachelard, Foucault, Wittgensteine Jakobson, entre outros. Baseiam-se em reflexões compreendidas nos debates sobre paradigmas, ciência normal, revoluções científicas, caráter cumulativo do conhecimento científico, epistemologias globais ou integrais, epistemologiasregionais, rupturas epistemológicas, epistemes. Na sociologia dizem respeito à historicidade do social, que possuem os requisitos lógicos fundamentais da interpretação. A controvérsia sobre paradigmas clássicos e contemporâneos passa pelo problema da historicidade da realidade social. Trata-se de aperfeiçoar, de desenvolver a teoria sociológica, sem perder a dimensão histórica da realidade social. O declínio da perspectiva histórica é algo relativamente generalizado na sociologia e no pensamento social contemporâneos. A influência dos paradigmas emprestados das ciências físicas e naturais tem levado certos sociólogos a uma espécie de pasteurização da realidade social, o que evidentemente se expressa no conceito, na interpretação. Aos poucos, as tecnologias da pesquisa, matemáticas, informáticas invadem o objeto e o método da sociologia. As teorias sociológicas do passado e do presente organizam-se, em última instância, com base em princípios explicativos fundamentais, que constituem os fundamentos dos paradigmas conhecidos na sociologia. 54 UNIDADE II │ SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA Importante ressaltar que, na linguagem da sociologia, um paradigma compreende a articulação dos momentos lógicos essenciais da reflexão, aparência, essência, parte e todo etc. – que se traduzem interpretativamente. Podemos dizer que as teorias sociológicas contemporâneas lidam com alguns princípios explicativos fundamentais, comuns e multiplicam-se. Vista assim, em certos aspectos, a controvérsia sobre paradigmas, bem como teorias e paradigmas, ajuda a explicar determinadas singularidades da sociologia, como ciência social. Vejamos alguns: O primeiro diz que a sociologia pode ser considerada uma ciência que se pensa criticamente, todo o tempo. Ao segundo, cabe reconhecer que o objeto da sociologia é a realidade social em movimento, formação e transformação. O terceiro afirma que a sociologia é uma forma de autoconsciência científica da realidade social, que tem raízes nos impasses, nos problemas, nas lutas e nas ilusões. O quarto diz respeito à relação entre ciência e arte, teoria e prática, conhecimento e poder, ou teoria e prática. O pensamento sociológico clássico sempre tem algo a ver com a prática. No quinto, o sujeito do conhecimento é individual e coletivo. O sociólogo dispõe de todas as condições de estabelecer o seu objeto de estudo e evidencia o estilo pessoal do autor no escrito e na interpretação, e ora expressa o conhecimento como individual ora como do conhecimento geral, alternando os sujeitos eu e nós. Por fim e diante do contexto descrito, o conceito de paradigma é sobre um estudo que deixa de lado a acepção que privilegia o conjunto de hábitos comuns aos que se dedicam ao ensino e pesquisa, às codificações estabelecidas em manuais, aos laços institucionais e ao jargão próprio de cada grupo de sociólogos reunidos em centros, instituições, departamentos e outros lugares. 55 Para (não) finalizar Analise o texto abaixo de Sirinelli: Mais que à direção da paisagem ideológica, é a uma observação da localização dos intelectuais — e eventualmente de seu deslocamento — no interior dessa paisagem que o historiador deve particularmente se dedicar. Como salientava com razão Jacques Julliard, “é tempo de lembrar, contra os excessos de um comparatismo intelectual hoje muito em moda, que as ideias não passeiam nuas pela rua; que elas são levadas por homens que pertencem eles próprios a conjuntos sociais”. Na verdade, na fronteira entre a história das ideias políticas, e a história dos intelectuais, um vasto campo de pesquisa, o da aculturação dessas ideias no meio dos intelectuais, se abre ao pesquisador. E a exploração desse campo se fará pela reinserção dessas ideias no seu ambiente social e cultural, e por sua recolocação em situação num contexto histórico.SIRINELLI, Jean–François. (1996) Os intelectuais. In: Rémond, René. (org.) Por uma história política. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, p. 257–258. 56 referências ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. 6. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1999. ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução: Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969. BORNHEIM, G. A. (Org.). Os Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Cultrix, 1989. BRUNER, J. Realidade Mental e Mundos Possíveis. Tradução: Marcos A. G. Domingues. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2005, 424p. CHERMAN, Alexandre. Cosmo-o-quê? 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