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Aluízio Ferreira Elias Ana Cristina Borges Cultura indígena e afro-brasileira Catalogação elaborada pelo Setor de Referência da Biblioteca Central Uniube © 2019 by Universidade de Uberaba Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, da Universidade de Uberaba. Universidade de Uberaba Reitor Marcelo Palmério Pró-Reitor de Educação a Distância Fernando César Marra e Silva Coordenação de Graduação a Distância Sílvia Denise dos Santos Bisinotto Editoração e Arte Produção de Materiais Didáticos-Uniube Editoração Stela M. Q. D. Revisão textual xxxxxxx Diagramação Douglas Silva Ribeiro Projeto da capa Agência Experimental Portfólio Edição Universidade de Uberaba Av. Nenê Sabino, 1801 – Bairro Universitário Aluízio Ferreira Elias Mestre em História da Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Graduado em História pela Universidade de Uberaba (Uniube). É professor desta Universidade, atuando, principalmente, nas disciplinas de História Antiga e Medieval, História Moderna e Contemporânea, História do Brasil, História da África, História da Educação e Cidadania. Tem experiência nas áreas de História e Educação. Ana Cristina Borges Mestre em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Especialista em História Contemporânea e graduada em História pela Universidade de Uberaba (Uniube). É professora desta Universidade atuando, principalmente nos cursos de Licenciatura e Bacharelado em História, Bacharelado em Ciência Política e nos cursos presenciais, na disciplina institucional de Cidadania. Tem experiência nas áreas de História da América, Culturas Ameríndias, Historiografia, Ensino de História, História da Educação e Cidadania. Sobre os autores Sumário Apresentação ............................................................................................................. VII Capítulo 1 Brasil Indígena: o desafio da diversidade ............................ 1 1.1 Povos indígenas no Brasil de hoje ...........................................................................3 1.2 A política indigenista e a luta por direitos ...............................................................11 1.2.1 O SPI - Serviço de Proteção ao Índio (1918) ..............................................12 1.2.2 A Funai e o Estatuto do Índio (1973).............................................................17 1.2.3 A Constituição Federal de 1988 ....................................................................22 1.3 O direito à diferença e o (não) reconhecimento pelo outro ....................................28 1.4 Conclusão ...............................................................................................................32 Capítulo 2 Culturas indígenas: artes, religião e literatura ................... 37 2.1 As manifestações culturais indígenas ....................................................................39 2.2 Artes indígenas: patrimônio material e imaterial ....................................................42 2.3 Cosmologia e religiosidade indígena ......................................................................51 2.4 Línguas e Literatura: da oralidade à escrita ...........................................................61 2.5 Conclusão ...............................................................................................................70 Capítulo 3 Brasil Africano e o desafio da igualdade ............................ 75 3.1 A categorização étnico-racial no Brasil ...................................................................78 3.1.1 O debate acadêmico (Sociologia e Antropologia) ........................................79 3.1.2 A controversia suscitada pela Genética .......................................................83 3.2 O panorama atual da desigualdade .......................................................................84 3.2.1 O negro e o mercado de trabalho .................................................................85 3.2.2 Criminalidade e crime racial ..........................................................................87 3.3 O legado do período escravagista ..........................................................................90 3.3.1 O regime republicano e a afro-descendência. ..............................................91 3.3.2 Alguns sinais de mudança ............................................................................93 3.4 O mito da democracia racial brasielira ...................................................................95 3.4.1 O afrodescendente e a autopercepção ........................................................96 3.5 Consciência negra e a cidadania plena .................................................................97 3.5.1 O drama etnico-racial em outros países .......................................................98 3.5.2 A Educação e os processos de exclusão .....................................................99 3.6 Conclusão .............................................................................................................101 Capítulo 4 Cultura afro-brasileira: arte, religião e literatura ............... 109 4.1 O legado da ancestralidade africana ....................................................................112 4.1.1 Tradições quilombolas: costumes; crenças e valores. ...............................115 4.2 Expressões artísticas da cultura afrobrasileira .....................................................119 4.2.1 O Tambor de Crioula e a identidade nacional.............................................119 4.2.2 A relevância comunitária do Jongo .............................................................122 4.2.3 A Capoeira como simbolo de resistência ....................................................125 4.3 Expressões da religiosidade .................................................................................128 4.3.1 A força cultural do Candomblé ....................................................................130 4.4 Literatura afro-brasileira ........................................................................................133 4.5 Conclusão .............................................................................................................135 Capítulo 5 Políticas públicas para as relações étnico-raciais ........... 143 5.1 Uma legislação antirracista ...................................................................................145 5.1.1 As desigualdades sociais e étnico-raciais ..................................................147 5.1.2 Os números da desigualdade .....................................................................148 5.1.3 O Brasil miscigenado ..................................................................................151 5.2 A polêmica sobre “raças” ......................................................................................153 5.2.1 O debate acadêmico sobre cotas raciais....................................................155 5.2.2 As ciências sociais e as políticas públicas ..................................................157 5.3 Como se define uma comunidade negra no Brasil? ............................................159 5.3.1 A legitimidade das políticas de discriminação positiva ...............................160 5.4 Os direitos dos povos indígenas ..........................................................................161 5.4.1 A Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas ................................162 5.4.2 O relatório das Nações Unidas (2016) .......................................................165 5.5 Conclusão .............................................................................................................168 Capítulo6 Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena .. 176 6.1 Contextualizando as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 ........................................178 6.2 Educação para as relações étnico-raciais, diversidade e inclusão ......................185 6.3 Práticas de Ensino: subsídios para se trabalhar em sala de aula .......................190 6.3.1 Metodologias de investigação e o uso de diferentes fontes .......................191 6.3.2 Cinema, televisão e literatura......................................................................193 6.4 Conclusão .............................................................................................................202 A proposta deste livro foi pensada como um aporte ao ensino de história africana e indígena, com ênfase no reconhecimento e na valorização das culturas desses povos, matrizes formadoras da nossa sociedade. Enquanto instrumento pedagógico, esperamos que ele possa auxiliar na formação inicial de professores abertos ao debate das relações étnico-raciais. Com uma linguagem didática, procuramos apresentar e problematizar diferentes conceitos que envolvem os direitos humanos e de cidadania das populações negra e indígena em nosso País, bem como levar à reflexão de temáticas sobre diversidade, patrimônio cultural, desigualdade social, etnocentrismo, entre outros. Os capítulos abordam questões que resultaram de uma longa luta dos movimentos sociais, cujas reivindicações por uma educação mais inclusiva foram atendidas pelas Leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008, que estabeleceram a obrigatoriedade do ensino da história e das culturas dos povos africanos, afro-brasileiros e indígenas. A partir das respectivas leis, as diretrizes curriculares nacionais estabeleceram parâmetros para a inserção desses conteúdos nos currículos da Educação Básica, além de impulsionar a formação continuada de professores para atender tal demanda. Nesse sentido, os capítulos foram organizados para que você possa ampliar seus conhecimentos a respeito do protagonismo de índios e negros na formação da sociedade brasileira, bem como refletir sobre questões contemporâneas decorrentes do “silêncio” atribuído a esses Apresentação VIII UNIUBE grupos ao longo da nossa história. Os capítulos foram divididos a partir de temáticas comuns e estão assim organizados: - o capítulo 1, traz um panorama dos povos indígenas na atualidade e trata dos direitos desses povos e da luta pelo reconhecimento da sua diversidade; - no capítulo 2, analisaremos os aspectos culturais que caracterizam a experiência social indígena no Brasil a partir das artes, da religião e da literatura; - seguindo a mesma linha, o capítulo 3 propõe um estudo do Brasil Africano, avaliando o nível de complexidade das relações étnico-raciais cotidianas e refletindo as estruturas históricas que fundamentam as desigualdades e práticas contemporâneas de intolerância étnico-racial contra os negros; - seguindo o estudo sobre a cultura afro-brasileira, o capítulo 4 destaca as principais expressões das artes, da religião e da literatura, identificando as permanências e mudanças relativas às manifestações culturais afro-brasileiras de hoje e suas raízes históricas mais profundas; - no capítulo 5 propomos uma problematização das políticas públicas voltadas às questões étnico-raciais, destacando o papel das ações afirmativas no processo de inclusão e de ampliação dos direitos de cidadania de negros e indígenas no Brasil; - por fim, congregando os aprendizados, o capítulo 6 trata, de forma específica, o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena a partir dos desafios colocados pela legislação educacional. O capítulo também conta com indicações de leituras e subsídios didático-pedagógicos para atuação em sala de aula. A educação brasileira passa por um momento definidor de seus projetos político-pedagógicos, no sentido de abrir o debate diante de questões que envolvem a complexidade das relações humanas, no que se refere aos conflitos étnicos, à xenofobia, ao respeito à diversidade e às diferenças, UNIUBE IX à reafirmação dos princípios históricos dos direitos humanos, entre tantas outras temáticas que nos colocam diante das realidades do cotidiano escolar. Por isso é tão importante compreender a relevância de uma educação para as relações étnico-raciais, que combata preconceitos e estereótipos que dificultam a construção de uma sociedade democraticamente justa. Compreender a multiculturalidade da nossa formação social pressupõe um processo de revisão das práticas educativas, na formação docente e na relação com os discentes, com o objetivo de formar cidadãos mais críticos de sua realidade. As reflexões que propomos ao longo dos estudos da disciplina visam preencher uma lacuna ainda existente na formação de professores, mesmo decorridos tantos anos de aprovação das legislações referidas. Precisamos ampliar nosso olhar para a questão indígena e para a questão afro-brasileira, problematizar concepções arcaicas, desconstruir visões discriminatórias e práticas excludentes. Esperamos, assim, seguir trilhando nosso compromisso com um ensino superior de qualidade, que atenda às diretrizes curriculares e, principalmente, que estimule em você, futuro professor-historiador, uma nova maneira de ver e de pensar as questões étnico-raciais que leve a uma transformação significativa na sua profissão de educador! Boa leitura! Os autores. Ana Cristina Borges Introdução Brasil Indígena: o desafi o da diversidadeCapítulo1 Em nossos estudos sobre a questão indígena nas Américas, já abordamos o equívoco do termo “índio”, empregado pelo genovês Cristóvão Colombo para se referir aos povos que encontrou no território americano. A partir de uma revisão da historiografi a, sabemos que tal denominação é insufi ciente para determinar a diversidade e a coletividade desses povos. Por outro lado, considerando que o termo se perpetuou ao longo do tempo, não há como desconsiderá-lo para impor novas denominações, que também podem recair em equívocos, ao nos referirmos às sociedades indígenas. Em algumas abordagens, expressões como “indígena”, “nativo”, “autóctone”, assim como “aborígene”, remetem à ideia de povos originários de determinado país ou região. Portanto, é com esse signifi cado que devemos nos referir a esses grupos, e não como inferiores ou exóticos. Por esta razão, o estudo da temática indígena deve compreender diferentes perspectivas teóricas a partir da Antropologia, da Arqueologia, da História, da Etnologia, da Linguística, entre outras áreas. Assim como outros grupos humanos, culturalmente, “ser indígena” resulta de uma história de relações com o meio em que vivem, 2 UNIUBE A partir do estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de: • Identificar as raízes de nosso pluralismo étnico em sua expressão indígena. • Conhecer quem são, quantos são e onde vivem os atuais povos indígenas no Brasil. Objetivos que determina seu modo de vida e de ver o mundo. De acordo com Luciano (2006, p. 27) os povos indígenas se autodefinem a partir de alguns critérios que, embora não sejam únicos e nem excludentes, são mais aceitos entre a maioria dos povos: • continuidade histórica com sociedades pré-coloniais; • estreita vinculação com o território; • sistemas sociais, econômicos e políticos bem definidos; • língua, cultura e crenças definidas; • identificação como diferente da sociedade nacional; • vinculação ou articulação com a rede global dos povos indígenas. Como você irá perceber, o estudo dos povos indígenas requer diferentes interpretações e análises, ampliação do olhar para entender as diferentes formas de relações sociais, políticas e econômicas desses povos. Não pretendemos aqui esgotar o tema ou apresentar uma visão única sobre tal história. Ao contrário, nosso intuito é fazer pensar sobre os indígenas e sua contribuição para a história brasileira, suscitar o debate, estimular pesquisase a busca de novos conhecimentos para uma revisão de visões preconceituosas que concorrem com o exercício ativo e crítico da análise historiográfica. UNIUBE 3 1.1 Povos indígenas no Brasil de hoje 1.2 A política indigenista e a luta por direitos 1.2.1 O SPI - Serviço de Proteção ao Índio (1918) 1.2.2 A Funai e o Estatuto do Índio (1973) 1.2.3 A Constituição Federal de 1988 1.3 O direito à diferença e o (não) reconhecimento pelo outro 1.4 Conclusão Esquema • Compreender a atuação das políticas indigenistas no sentido de promover uma integração do indígena à sociedade brasileira no período republicano. • Reconhecer a importância da Constituição de 1988 na promoção e ampliação dos direitos e autonomia indígenas, na manutenção de suas culturas e posse dos territórios que ocupam. • Refletir sobre as estruturas históricas que fundamentam as práticas contemporâneas de intolerância étnico-racial com os povos indígenas. Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos. [...] Nessa confluência, matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, se fundem para dar lugar a um povo novo. Darcy Ribeiro (1995, p. 19) Povos indígenas no Brasil de hoje1.1 Há uma grande diferença cultural e de visão de mundo entre os milhares de povos nativos que habitavam o território antes da chegada dos portugueses e as poucas centenas de povos indígenas que compõem a 4 UNIUBE população brasileira hoje. Dos mais de mil povos existentes, somando entre 2 e 4 milhões de pessoas, restaram cerca de 255 povos, falantes de mais de 180 línguas diferentes que, segundo dados do Censo IBGE 2010, compreendiam 896.917 pessoas, dos quais 517 383 habitam terras indígenas e 379.534 vivem em outros territórios. Dados mais atualizados da FUNAI (Fundação do Índio), apontam que as etnias já chegam a 305 povos, com registro de 274 línguas, dos quais cerca de 17,5% não falam a língua portuguesa. Ao longo da história nacional, vários episódios provocaram essa drástica redução dos povos indígenas, como escravidão, guerras, doenças, massacres, etnocídios, entre outras práticas de dominação cultural e disputas territoriais. Apesar deste cenário, a grande maioria dos brasileiros desconhece a rica diversidade dos povos indígenas que vivem em nosso País. Para muitos, a denominação “indígena” tem um sentido pejorativo em virtude do longo processo histórico de discriminação contra os povos nativos, que reforçou a ideia de que representariam povos sem civilização, selvagens, sem cultura, indolentes, preguiçosos, incapazes ou, o que é ainda mais preconceituoso, que seriam povos românticos, puros, ingênuos, protetor da floresta, seres lendários. Como dissemos na Introdução, a denominação indígena, apesar de genérica e equivocada, é importante para estabelecer uma compreensão da existência de povos originários e demarcar uma fronteira étnica entre Povo Em geral, é definido, primeiro, como um conjunto de pessoas que vive em sociedade; segundo, como um conjunto de indivíduos que integram uma nação específica ou têm uma origem étnica comum. Etnia O termo surgiu no início do século XIX para designar as características culturais próprias de um grupo, como a língua e os costumes, de modo a diferenciar esse conceito do de raça. A etnia é objeto de estudo da Antropologia, e se caracterizou como tema principal da Etnologia, ciência que se propõe a estudar diferentes grupos étnicos, constituindo-se em torno da própria noção de etnia. UNIUBE 5 esses povos e os não-indígenas. Porém, é importante compreender que, para além do termo, a denominação indígena traz implícita uma gama de povos e diversidades culturais, que possuem uma autodenominação. Deste modo, não existe nenhum povo, tribo ou clã com a denominação de índio. Na verdade, cada “índio” pertence a um povo, a uma etnia identificada por uma denominação própria, ou seja, a autodenominação, como o Guarani, o Yanomami etc. Mas também muitos povos recebem nomes vindos de outros povos, como se fosse um apelido, geralmente expressando a característica principal daquele povo do ponto de vista do outro. Ex.: Kulina ou Madjá. Os Kanamari se autodenominam Madjá, mas os outros povos da região do Alto Juruá os chamam de Kanamari. (LUCIANO, 2006, p. 30) Nesse sentido, cada povo constitui-se como uma sociedade própria, marcada por sua organização a partir de uma cosmologia particular, que fundamenta sua vida social, seus costumes, as práticas religiosas e econômicas, o que define, num contexto mais amplo, a diversidade do mundo indígena e a multiplicidade de suas formas, existência coletiva e individual. Da mesma maneira, o termo “tribo” deve ser utilizado com cautela, uma vez que também implica numa generalização quanto ao modo de organização dessas sociedades. Em termos de população, os povos indígenas se dividem entre grupos muito reduzidos e outros mais populosos. Cerca de metade desses grupos possuem menos de 100 pessoas, a exemplo dos Jiahui (Amazonas, 97 pessoas), Xetá (Paraná, 86 pessoas) e Bará (Amazonas, 22 pessoas), que devido ao baixo número de indivíduos sempre se veem ameaçadas de extinção. A Tabela 1 a seguir indica as 15 etnias com maior população, conforme dados do Censo IBGE (2010): 6 UNIUBE Tabela 1: Relação das 15 etnias com maior número de indígenas no Brasil. Etnia População Tikúna 46.045 Guarani Kaiowá 43.401 Kaingang 37.470 Makuxí 28.912 Terena 28.845 Tenetehara 24.428 Yanomámi 21.982 Potiguara 20.554 Xavante 19.259 Pataxó 13.588 Sateré-Mawé 13.310 Mundurukú 13.103 Múra 12.479 Xucuru 12.471 Baré 11.990 Fonte: IBGE (2010). Desde 1991 o Censo Demográfico do IBGE coleta dados sobre a população indígena brasileira, com base na categoria indígena do quesito cor ou raça. No Censo Demográfico 2010, foi introduzido um conjunto de perguntas específicas para as pessoas que se declararam indígenas, como o povo ou etnia a que pertenciam, as línguas indígenas faladas, entre outras características sociodemográficas. Em virtude disso, os resultados do Censo 2010 permitem um delineamento bastante detalhado acerca das pessoas que se declararam indígenas no Brasil, revelando, assim, um país com uma expressiva diversidade. Para saber mais sobre os dados do Brasil indígena acesse o link a seguir, que traz um resumo do Censo Demográfico a partir de gráficos e tabelas: https://indigenas.ibge.gov.br/images/pdf/indigenas/folder_indigenas_web.pdf SAIBA MAIS UNIUBE 7 Territorialmente, os povos indígenas se distribuem ao longo de todo o território brasileiro, como podemos identificar no mapa – Figura 1- a seguir: Figura 1: Mapa da população indígena no Brasil. Fonte: Projeto Jimboê (2010). Adaptação. Com este cenário prévio, a primeira questão a se constatar é que a diversidade sociocultural dos indígenas no Brasil é imensa, com tradições e costumes variados, fora o enorme patrimônio ambiental e cultural abrigado em suas terras, que oferecem significativos ganhos na preservação e manutenção do nosso desenvolvimento sustentável. 8 UNIUBE As terras indígenas ocupam atualmente cerca e 13% do território nacional. De acordo com dados do Instituto Socioambiental (ISA), são 720 em diferentes estágios demarcatórios: 74 já declaradas pelo Ministério da Justiça; 486 homologadas e reservadas pela Presidência da República, cujas terras foram adquiridas pela União ou por terceiros; 42 identificadas, com relatório de estudo aprovado pela Funai e 118 em identificação, cujo estudo está sendo realizado pela Funai. Vale ressaltar que a maior parte dessas terras está localizada na chamada Amazônia Legal (424 terras), onde vivem aproximadamente 60% da população indígena do País. Os outros 40% vivem espalhados ao longo das regiões Nordeste, Sudeste, Sul e do estado do Mato Grosso do Sul. As terras indígenas nessas regiões possuem áreas territoriaisdiminutas e maciçamente povoadas, o que gera constantes conflitos entre índios e não-índios, resultantes de um inchamento populacional (Figura 2), a seguir. Amazônia Legal É uma área que corresponde a 61% do território brasileiro e engloba a totalidade de nove estados: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Mato Grosso, Tocantins e parte do estado do Maranhão, perfazendo um pouco mais de 5 milhões de km². Nela residem 56% da população indígena brasileira. O conceito de Amazônia Legal foi instituído em 1953, pela Lei n° 1806, e seus limites territoriais decorrem da necessidade de planejar o desenvolvimento econômico da região, em virtude de problemas sociais comuns. UNIUBE 9 Figura 2: Mapa das terras indígenas no Brasil. Fonte: Projeto Jimboê (2010). Adaptado. Para informações mais detalhadas a respeito das terras indígenas no Brasil, acesse o site: https://terrasindigenas.org.br/pt-br/brasil#pesquisa, que traz um painel com vários dados por meios de mapas, gráficos e estatísticas sobre territórios, população, desmatamento e mineração. PESQUISANDO NA WEB 10 UNIUBE Entre os povos indígenas existe outra denominação, utilizada como forma de tratamento, que é o termo “parente”. Mas, ao contrário, do que nós entendemos, isso não significa que todos os índios pertençam a um mesmo núcleo familiar. Trata-se de uma maneira de identificar aqueles que compartilham interesses comuns, como os direitos coletivos, por exemplo, a autonomia sociocultural, a história de luta e resistência, as estratégias de sobrevivência, etc. Assim, existe uma aliança política e identitária entre os chamados parentes. Desde a década de 1980, com a expansão dos movimentos sociais indígenas, houve uma preocupação com a reafirmação de identidades. Muitos povos negavam a denominação “índio” ou mesmo negavam suas identidades étnicas e suas origens. A aceitação da denominação indígena foi o primeiro passo para esse processo de reafirmação, que cada vez mais vem reforçando a valorização sociocultural que cada povo deve praticar para recriar suas tradições, como símbolo de recuperação de sua autoestima. O índio de hoje é um índio que se orgulha de ser nativo, de ser originário, de ser portador de civilização própria e de pertencer a uma ancestralidade particular. Este sentimento e esta atitude positiva estão provocando o chamado fenômeno da etnogênese, principalmente no Nordeste. Os povos indígenas, que por força de séculos de repressão colonial escondiam e negavam suas identidades étnicas, agora reivindicam o reconhecimento de suas etnicidades e de suas territorialidades nos marcos do Estado brasileiro. (LUCIANO, 2006, p. 33) Nesse sentido, os termos “indígena” ou “índio”, devem significar uma identidade multiétnica, capaz de unir diferentes povos historicamente distintos na luta por direitos comuns, que lhes garantam um espaço de reconhecimento e visibilidade dentro da sociedade brasileira. Ainda que as distintas formas de aculturação e miscigenação provocaram modificações socioculturais profundas entre os povos indígenas, UNIUBE 11 a crescente revalorização de sua cultura aliada ao movimento por ampliação de políticas públicas específicas, contribuem de forma ativa para essa recuperação de um “orgulho de ser indígena” e da reafirmação da identidade étnica. Porém, esse não foi um processo fácil. Como já foi abordado em estudos anteriores sobre a colonização no Brasil, os índios foram os primeiros povos escravizados, sendo denominados de “gentios da terra” ou “negros da terra”. Essa foi a alternativa encontrada pelos portugueses para exploração do trabalho que beneficiaria as primeiras exportações de produtos nos territórios dominados no litoral. Somente no século XVIII, um alvará de 08 de maio de 1758, aboliu a escravidão imposta aos índios. No século XIX, já no contexto do Império, o lugar do índio na sociedade foi redimensionado, atribuindo-lhe um papel romanceado, como símbolo da nova nação, enquanto seus direitos básicos eram negados. É a partir da proclamação da República que se começa a tratar de uma política indigenista no âmbito das leis. A política indigenista e a luta por direitos1.2 Segundo o Instituto Socioambiental, a expressão “política indigenista” diz respeito a toda e qualquer ação política governamental que tenha as populações indígenas como objeto. (ISA, 2018). Instituídas oficialmente desde a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), as políticas formuladas e executadas pelo Estado brasileiro estão atualmente sob responsabilidade da Fundação Nacional do Índio (Funai), em parceria com outros setores governamentais e não-governamentais (ONGs), organizações indígenas e missões religiosas. No entanto, a longa trajetória de luta pelo reconhecimento dos direitos indígenas trouxe um amadurecimento desses povos e seus representantes, que hoje se estruturam, a partir dos movimentos 12 UNIUBE indígenas, para criar organizações dirigidas pelos próprios índios. O intuito é ampliar sua participação nas questões de cidadania a partir das chamadas “políticas indígenas”, que se distinguem das políticas oficiais justamente por serem elaboradas pela iniciativa indígena, principalmente em prol dos direitos de participação política, de saúde e de educação. “Quando falamos em movimentos indígenas, estamos nos referindo àqueles cujos protagonistas são os próprios índios, seja por meio de associações, representações políticas ou ainda a realização de assembleias e a elaboração de documentos que partem de uma vontade expressa diretamente pelas coletividades indígenas. Já os movimentos ou políticas indigenistas são aqueles elaborados pelo poder público, incentivadas pelos apoiadores dos índios, que podem ser antropólogos, historiadores e outros cientistas sociais, além de ativistas. Uma política indigenista, ou seja, uma política voltada para as populações indígenas deve ser entendida, nesse contexto, como um conjunto de ideias, práticas, programas e projetos políticos dirigidos aos indígenas”. (SILVA; COSTA, 2018, p. 70). EXPLICANDO MELHOR Para compreender a implementação das políticas indigenistas no País, bem como as mudanças empreendidas pelos movimentos indígenas para a conquista e o reconhecimento de seus direitos, é importante conhecermos os diferentes agentes desse processo, que se inter-relacionam com os povos indígenas presentes em todo território nacional. 1.2.1 O SPI - Serviço de Proteção ao Índio (1918) As primeiras legislações republicanas a estabelecerem definições do que era “ser índio” no Brasil foram o Código Civil de 1916 e o Decreto UNIUBE 13 nº 5.484 de 1928. Posteriormente, a Constituição de 1934, promulgada durante o governo de Getúlio Vargas, é o documento nacional mais antigo a tratar sobre políticas indigenistas e a designar à União a proteção dos direitos das populações indígenas e a competência de legislar sobre tais questões. O Código Civil e a tutela dos índios Em 1916, criou-se um Código Civil (Lei 3.071/16) afirmando que “todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”. No entanto, esta lei considerava que algumas pessoas não têm a mesma capacidade de exercer seus direitos. O art. 5º desta lei afirmava que os silvícolas (índios), entre outros grupos, eram relativamente incapazes para certos atos e, em função disso, seriam “tutelados” até que estejam integrados à “civilização do país”. Ao considerar os índios como incapazes a lei não reconhecia que os índios são, na verdade, diferentes culturalmente. Ou seja, os índios são plenamente responsáveis de acordo com os seus próprios padrões. Mas na época em que se escreveu o Código Civil, acreditava-se também que os índios seriam extintos e, portanto, não precisariam de ter seus direitos assegurados. Na verdade, imaginava-se que os índios eram seres primitivos que iriam se educar, adquirir a cultura dos brancos até integrarem-se totalmente à sociedade brasileira,deixando, portanto, de serem índios. Esse princípio da incapacidade e da necessidade de tutela permeou todas as legislações promulgadas posteriormente direcionadas aos índios e reforçou as tentativas do Estado em incorporar os índios à “civilização” sob uma perspectiva assimilacionista, que entendia os índios como categoria social transitória, fadada ao desaparecimento. (ISA, 2000, s/p.) PARADA PARA REFLEXÃO Assimilacionismo Corrente que preconiza a assimilação de culturas periféricas pelas culturas dominantes. Na Sociologia: teoria que defende a integração dos diferentes grupos étnicos e culturais a uma sociedade, a fim de evitar situações de conflito. 14 UNIUBE Anteriormente e nesse contexto, foi criado, em 1910, o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN) - a partir de 1918 tornou-se apenas Serviço de Proteção aos Índios (SPI) - que tinha por objetivo prestar assistência aos índios em âmbito nacional. A criação do SPI foi produto de um pensamento integrador que via o indígena como “incapaz”, possuidor de uma mentalidade “ingênua”, necessitando, assim, da tutela do Estado, que lhe daria condições de evoluir socialmente para um estágio cultural e econômico superior, sendo incorporados, assim, à nação. Portanto, cabia ao SPI defendê- los, demarcar suas terras, proteger de invasores e ampará-los em suas doenças (que, em geral, eram transmitidas pelos próprios agentes). Vale lembrar que um dos principais diretores da agência foi o Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, cuja atuação obteve reconhecimento nacional como “pacificador de índios”, o que lhe atribuiu um caráter de heroísmo nas missões realizadas em diferentes estados brasileiros. A política administrativa da agência não utilizava critérios que incluíssem a diversidade dos povos indígenas, atribuindo-lhe um perfil genérico que, de um lado, visava sua proteção e, de outro, atendia aos interesses territorialistas da política nacional. É possível dizer que o SPI foi formado em continuidade com premissas coloniais. Seu modo de atuação, formado a partir de doutrinas positivistas, incorporou técnicas missionárias tais como: distribuir presentes, vestir os índios e ensinar-lhes a tocar instrumentos musicais ocidentais. Os valores de bravura, coragem, calma e disciplina militar nas expedições pelos sertões, ressoam as clássicas imagens do explorador e do bandeirante. O “governo dos índios”, conforme expressão da época, exigiria também uma boa formação científica e “espírito de dedicação à causa pública”. A produção de informações cartográficas e ambientais era fundamental para subsidiar as atividades de conquista e exploração comercial do interior. Além disso, a proposta de registrar minuciosamente as expedições acabou por contribuir com a formação da antropologia no Brasil e das coleções de cultura material indígena dos museus brasileiros e estrangeiros. (ISA, 2018, s/p.) UNIUBE 15 Na década de 50, a atuação do SPI teve como auge a criação do Museu do Índio no Rio de Janeiro e do Parque Indígena do Xingu (PIX), ambos com atuação do antropólogo Darcy Ribeiro e do Marechal Rondon. A proposta do museu era preservar um acervo artístico e cultural indígena, além de um centro de documentação histórica, etnológica e fotográfica, que serviu de referência para estudos antropológicos. Já o PIX foi concebido como um território único ocupado por diversos povos - incluindo terras dos Xavante, Bakairi, Xinguanos, Kayabi, Munduruku, entre outros grupos autônomos - cuja proposta se diferenciava da política de demarcação de terras que vinha sendo empreendida até então. “A criação do Parque Nacional do Xingu em 1961, no governo do Presidente Jânio Quadros, veio quebrar o modelo até então vigente de demarcação das terras indígenas. Fruto de uma luta iniciada ainda nos anos 50 e da qual participaram diversas personalidades, como Darcy Ribeiro e os irmãos Villas-Boas, o Parque tinha como fundamento de sua criação a necessidade de se preservarem as condições em que viviam diversos povos indígenas da região do Xingu, incluindo o seu meio ambiente. Criava-se assim uma figura que iria inspirar um novo paradigma nos anos 80, quando o conceito de terra indígena passaria a incorporar outros elementos visando à reprodução sociocultural dos povos indígenas. Naquele momento, tratava-se, como diziam os próprios defensores da criação do Parque, de preservar um pedaço do ‘Brasil prístino’, onde os índios ainda mantinham as suas culturas de forma harmoniosa com a natureza e longe da influência do chamado mundo civilizado. [...] Além disso, o Parque do Xingu rompia com a visão predominante desde o final do século XIX: a de que os índios eram seres fadados à extinção, na medida em que deveriam evoluir e perder a sua condição de índios, sendo SAIBA MAIS 16 UNIUBE definitivamente assimilados pela sociedade envolvente. Embora a legislação nesse momento ainda servisse de base para a assim chamada política assimilacionista, o Parque do Xingu foi pensado para ser uma exceção a esta política e ao próprio modelo de integração dos índios. Os índios do Xingu deveriam viver no Parque sob um forte aparato estatal de proteção, o que lhes garantiria, pelo menos em tese, a manutenção de suas formas de vida intactas. [...] Anos depois da sua criação, o Parque Nacional do Xingu foi renomeado Parque Indígena do Xingu”. (ARAÚJO, 2006, p. 28-29). Apesar das políticas implementadas e de avanços na prática indigenista, o SPI não conseguiu impedir a invasão das terras, evitar ataques armados e a drástica redução da população indígena, que na década de 50 eram pouco mais de 100 mil, voltando a crescer lentamente somente a partir da década de 1970. Por outro lado, como afirma Gomes (2012, p. 100), A principal contribuição do SPI ao indigenismo nacional está na efetivação de uma política de respeito à pessoa do índio, de responsabilidade histórica por parte da nação brasileira, pelos destinos dos povos indígenas que habitam o território nacional e no modo dedicado e altruísta pelos quais seus agentes foram treinados para respeitar a autonomia inerente dos índios e a atender as suas necessidades básicas. Que os resultados tenham ficado muito aquém do esperado constitui um óbice não somente de uma política que sempre foi pouco valorizada pelo poder (e também por seus desvios pessoais), mas também se deve à falta de força política entre os aliados históricos dos índios diante das forças anti-indígenas predominantes. Devido à má gestão, falta de recursos e corrupção funcional, no final da década de 60, o SPI sofreu uma série de denúncias sobre irregularidades administrativas e fraudes, em especial em relação às terras indígenas e aos recursos naturais. Em meio às investigações, o governo federal acabou por extinguir oficialmente a agência em 1967, criando um novo UNIUBE 17 órgão para centralizar a prestação de serviços aos povos indígenas: a Fundação Nacional do Índio (Funai), com competência para exercer o papel de tutor dos índios e, dentre outras funções, “garantir a posse permanente” das terras habitadas pelos índios e o usufruto exclusivo dos recursos naturais nelas existentes. (ARAÚJO, 2006, p. 31). 1.2.2 A Funai e o Estatuto do Índio (1973) A Funai é o órgão indigenista oficial responsável pela proteção dos índios e promoção dos seus direitos em âmbito nacional. Entretanto, sua criação no contexto da Ditadura Militar condicionou os interesses do órgão aos planos de defesa nacional e à expansão político-econômica para o interior do País, o que gerou inúmeros conflitos. A própria atuação da Funai até o ano de 1985 esteve vinculada a aparelhos responsáveis por implementar políticas que visavam a construção de estradas e hidrelétricas, expansão de fazendas e extração de minérios, principalmente na região amazônica, a exemplo do Conselho de Segurança Nacional (CSN), Plano de Integração Nacional (PIN), InstitutoNacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Vale destacar ainda que os presidentes nomeados entre as décadas de 1970 e 1980, em grande maioria, foram militares ou políticos de carreira que pouco se comprometiam com a questão indígena, sendo, por vezes, contrários ao reconhecimento de seus direitos. Em termos administrativos, a Funai se estruturou em bases semelhantes ao SPI embora com uma gestão mais rígida e burocrática, com atuação em nível nacional, regional e local. Com a aprovação do Estatuto do Índio em 1973 (Lei nº 6.001), que dispõe sobre as relações do Estado e da sociedade brasileira com os índios, as premissas de integração dos indígenas foram reafirmadas, mas com o intuito de isolá-los e afastá-los de áreas consideradas de interesse estratégico para o governo. Para tanto, seguiu-se o 18 UNIUBE princípio do Código Civil de 1916 de que os índios eram “relativamente incapazes” e deveriam ser mantidos em regime tutelar pelo Estado até que estivessem “integrados à comunhão nacional”. Dentro dessa perspectiva assimilacionista competia à Funai centralizar os projetos de assistência, saúde, educação, habitação, etc., além de limitar o acesso de pesquisados, órgãos vinculados à Igreja, entre outros apoiadores, às terras indígenas. Na prática, a Funai defendia mais os interesses do Governo que dos índios, que não tinham autonomia para buscar seus próprios direitos. Conforme análise do Instituto Socioambiental, O órgão [Funai] foi permeado, em todos os níveis, por redes de relações pessoais, clientelistas e corporativas, que remetem ao paternalismo e ao voluntarismo que dominaram o velho SPI. A criação da Funai foi marcada pela ineficiência, desinteresse e dificuldade de operação, o que levou o órgão a limitar sua intervenção a favor dos índios a situações altamente críticas, conflituosas e emergenciais, consequentes dos planos de colonização e exploração econômica que chegavam aos extremos do país. (ISA, 2018 s/p.) Apesar desse cenário político desfavorável, foi nesse contexto da década de 1970 que surgiu a maior parte das organizações de apoio aos povos indígenas, entre as quais se destacam as Comissões Pró-Índio (CPIs), as Associações Nacionais de Apoio ao Índio (ANAIs), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), a Operação Amazônia Nativa (OPAN), o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI) e o Núcleo de Direitos Indígenas (NDI), sendo que estas duas últimas se juntaram para fundar o atual Instituto Socioambiental (ISA). Os objetivos dessas organizações eram de conferir apoio à questão indígena, questionar as políticas oficiais, formular alternativas para a causa indigenista e manter a interlocução entre os índios e a Funai. Com o apoio dessas entidades, diversas manifestações indígenas passaram a ter visibilidade a partir da década de 1980, que culminaram no marco jurídico da Constituição de 1988 - da qual trataremos mais adiante. UNIUBE 19 Ainda sobre o Estatuto do Índio, um dos principais pontos do documento é a questão das terras. O Art. 19 determina que as terras indígenas serão administrativamente demarcadas por iniciativa e sob orientação da Funai e homologação do Poder Executivo. O artigo, assim como o Estatuto, vigente até hoje se constitui base jurídica para outros decretos que surgiram posteriormente para tratar dos procedimentos de demarcação. A questão da terra “Boa parte do Estatuto é dedicada ao tema das terras indígenas, as quais se subdividem, nesta lei, em três categorias: Terras Ocupadas Tradicionalmente, Terras Reservadas e Terras de Domínio dos Índios. O conceito de Terras Ocupadas Tradicionalmente pelos índios advinha dos termos das Constituições de 1967 e 1969. Já as Terras Reservadas seriam aquelas destinadas para os índios pela União em qualquer parte do território nacional, com o fim de permitir a sua posse e ocupação, ficando expressamente consignado na lei que estas não se confundiam com a figura jurídica das terras tradicionais. Isso pressupunha, por exemplo, dependendo do caso, a necessidade de serem indenizados os donos dos eventuais títulos incidentes sobre uma terra que viesse a ser reservada para os índios. Por fim, as Terras de Domínio dos Índios seriam aquelas obtidas pelos meios normais de aquisição, como a compra e a venda, por exemplo. Mas o Estatuto previa que os índios poderiam também adquirir terras por meio do instituto da usucapião que, neste caso, poderia ocorrer quando os índios ocupassem como sendo seu, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a 50 hectares, excluída logicamente, uma vez mais, a ocupação sobre terras tradicionais. No que se refere às Reservas Indígenas, o Estatuto prevê que poderiam se organizar sob diferentes modalidades, entre as quais a Reserva propriamente dita, nos moldes acima explicitados, o Parque Indígena, a PONTO-CHAVE 20 UNIUBE Colônia Agrícola Indígena e o Território Federal Indígena. O Território seria uma unidade administrativa subordinada à União, instituída em região na qual pelo menos um terço da população fosse formado por índios. Embora a sua aplicação seja possível em algumas regiões do estado do Amazonas, inclusive nos dias de hoje, e no próprio estado de Roraima ao tempo em que ainda não havia adquirido este status político, nenhum Território Federal Indígena foi jamais criado”. (ARAÚJO, 2006, p. 32-33). Por outro lado, o Estatuto determina, em seu Art. 25, que o reconhecimento do direito dos índios à posse das terras não depende de sua demarcação, colocando-o como preexistente. Por esse entendimento, a demarcação das terras é um ato de reconhecimento de uma situação já existente. Contudo, não define claramente que as terras pertençam aos indígenas independentemente de qualquer reconhecimento oficial. Essa interpretação gerou algumas das problemáticas que permeiam as reivindicações dos movimentos indígenas que dizem respeito ao não reconhecimento do seu direito à terra, bem como das invasões e do garimpo em seus territórios. Apesar dos dispositivos legais, na prática o que ocorreu foi um processo de negação dos direitos territoriais indígenas, cuja herança histórica remonta aos tempos coloniais. A demarcação das terras reservada aos índios por vezes eram terras diminutas, sem produtividade, permitindo que grandes áreas e as riquezas ali existentes fossem exploradas por empresas com grande poder econômico. Os inúmeros conflitos e debates políticos que surgiram a partir dessa questão ainda são refletidos nos dias de hoje, sendo a principal pauta de luta pelos direitos indígenas. Somado aos massacres e à desagregação desses povos, definitivamente, o saldo do período militar não foi positivo para os índios. UNIUBE 21 Relatório Figueiredo Depois de 45 anos desaparecido, o Relatório Figueiredo, que apurou matanças de comunidades inteiras, torturas e toda sorte de crueldades praticadas contra indígenas em todo o País – principalmente por latifundiários e funcionários do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) –, ressurgiu quase intacto em abril de 2013. Supostamente eliminado em um incêndio no Ministério da Agricultura, ele foi encontrado no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, com mais de 7 mil páginas preservadas e contendo 29 dos 30 tomos originais. Entre denúncias de caçadas humanas promovidas com metralhadoras e dinamites atiradas de aviões, inoculações propositais de varíola em povoados isolados e doações de açúcar misturado a estricnina – um veneno –, o texto, redigido pelo então procurador Jader de Figueiredo Correia, deve ser analisado agora pela Comissão da Verdade, que apura violações de direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988. A investigação, feita em plena ditadura, a pedido do então ministro do Interior, Albuquerque Lima, em 1967, foi o resultado de uma expedição que percorreu mais de 16 mil quilômetros, entrevistou dezenas de agentesdo SPI e visitou mais de 130 postos indígenas. Órgão criado em 1910, quando várias frentes de expansão avançavam para o interior do país, o SPI era ligado ao Ministério do Interior e funcionou até 1967, quando foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Os únicos registros do relatório disponíveis até então eram os presentes em reportagens publicadas na época de sua conclusão, quando houve uma entrevista coletiva no Ministério do Interior, em março de 1968, para detalhar o que fora constatado por Jader e sua equipe. (MINISTÉRIO Público Federal. ) AMPLIANDO O CONHECIMENTO 22 UNIUBE O Ministério Público Federal, a fim de possibilitar que a população brasileira tenha acesso a tais informações, disponibiliza em sua página a íntegra do relatório. Acesse: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/dados-da-atuacao/ grupos-de-trabalho/ violacao-dos-direitos-dos-povos-indigenas-e-registro- militar/docs-1/relatorio-figueiredo/relatorio-figueiredo.pdf Obs.: O link para acesso também será disponibilizado na semana de estudos do capítulo. PESQUISANDO NA WEB 1.2.3 A Constituição Federal de 1988 Como vimos até aqui, os direitos dos povos indígenas foram sendo conquistados e amadurecidos ao longo da formação da nação brasileira, com avanços e retrocessos. Mas a principal conquista se efetivou com a promulgação da Constituição Federal de 1988, após o fim do governo militar, no contexto de criação da nova república. A partir das mobilizações dos movimentos indigenistas e das organizações de apoio, a Constituição rompeu com a tradição assimilacionista legitimada pelas legislações anteriores e reconheceu, pela primeira vez, os direitos à autodeterminação, à diferença, à posse originária sobre as terras que tradicionalmente ocupam, com usufruto exclusivo, definidos a partir de seus usos, costumes e tradições. Com isso, os índios deixaram, definitivamente, de ser tratados como “relativamente incapazes” e, por conseguinte, o “poder de tutela” do Estado perdeu sua validade. Apesar disso, o Estatuto do Índio ainda UNIUBE 23 vigente mantém o princípio da tutela. Daí a necessidade urgente de promover mudanças na lei ou de se criar um estatuto novo, que esteja em consonância com o ordenamento jurídico atual. A existência da tutela atrapalha a livre expressão política dos índios, a administração direta dos seus territórios, o seu acesso aos serviços públicos, ao mercado de trabalho, às linhas oficiais de crédito etc. Além de reduzir a capacidade civil dos índios, a tutela é um obstáculo à autogestão das terras e dos projetos de futuro dos povos indígenas. (ISA, 2000, s/p.) Vale ressaltar que, para além dos direitos específicos, a Constituição de 1988 também inclui os indígenas entre os sujeitos de direitos comuns a todo cidadão brasileiro, sendo mencionados em diferentes dispositivos ao longo do texto, a saber: • assegura os direitos fundamentais, entre eles, o direito à vida, à igualdade, à liberdade, à segurança, e à propriedade (Art. 5) • a responsabilidade de defender judicialmente os direitos indígenas inclui-se dentre as atribuições do Ministério Público Federal (Art. 129, V) • legislar sobre populações indígenas é assunto de competência exclusiva da União (Art. 22. XIV) • processar e julgar a disputa sobre direitos indígenas é competência dos juízes federais (Art. 109. XI) • o Estado deve proteger as manifestações das culturas populares, inclusive indígenas (Art. 215, § 1) • respeito à utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem (Art. 210, § 2) Os direitos específicos reservados aos índios são tratados no Capítulo VIII “Dos Índios” (Título VIII Da Ordem Social). Um dos principais pontos diz respeito ao direito originário à posse e usufruto da terra. O texto 24 UNIUBE constitucional traz no caput e nos primeiros parágrafos do Artigo 231, a seguinte afirmação: Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Portanto, o direito à posse da terra existe e se legitima independente de qualquer dispositivo legal, o que significa dizer que “a demarcação de uma terra Indígena, fruto do reconhecimento feito pelo Estado, é ato meramente declaratório, cujo objetivo é simplesmente precisar a real extensão da posse para assegurar a plena eficácia do dispositivo constitucional.” (ISA, 2018 s/p.) No que se refere às Terras Indígenas, a Constituição de 88 ainda estabelece que: • incluem-se dentre os bens da União (art. 20, XI); • são destinadas à posse permanente por parte dos índios (art. 231, § 2); • são nulos e extintos todos os atos jurídicos que afetem essa posse, salvo relevante interesse público da União (art. 231, § 6); • apenas os índios podem usufruir das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (art. 231, § 2); UNIUBE 25 • o aproveitamento dos seus recursos hídricos, aí incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, só pode ser efetivado com a autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada a participação nos resultados da lavra (Art. 231, § 3, Art. 49, XVI); • é necessária lei ordinária que fixe as condições específicas para exploração mineral e de recursos hídricos nas terras indígenas (Art. 176, § 1); • as terras indígenas são inalienáveis e indisponíveis, e o direito sobre elas é imprescritível (Art. 231, § 4); • é vedado remover os índios de suas terras, salvo casos excepcionais e temporários (art. 231, § 5). As constituições brasileiras, referentes ao período republicano, reconheceram aos índios alguns direitos sobre os territórios por eles habitados. Somente a Constituição de 1891 não tratou dos interesses relativos aos direitos indígenas. A única referência consta do Art. 64, que transferiu para os Estados o domínio das terras devolutas, entre as quais incluíam-se também as terras indígenas. Vejamos os que determinava as constituições anteriores: Constituição de 1934 “Art. 129 – Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.” Constituição de 1937 “Art. 154 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”. RELEMBRANDO 26 UNIUBE Constituição de 1946 “Art. 216 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem.” Constituição de 1967 “Art. 186 – É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes”. Emenda Constitucional número 1/ 1969 “Art. 198 – As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos em que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas e de todas as utilidades nelas existentes”. (Fonte: ISA, 2018) Apesar dos dispositivos bastante claros e definidos a respeito dos direitos territoriais indígenas, as demarcações ainda hoje são um assunto pendente e polêmico. Embora o texto constitucional, em suas disposiçõestransitórias, tenha fixado um prazo de 5 anos para que todas as terras indígenas estivessem demarcadas, o não reconhecimento desses territórios, passa, por vezes, pelo não cumprimento da legislação e pelos mais diversos interesses econômicos que simplesmente ignoram a existência desses povos. O próprio Estatuto do Índio já foi alterado diversas vezes a respeito dessa questão. Uma das últimas propostas pretende transferir a responsabilidade sobre a demarcação das terras do Poder Executivo para o Legislativo. Além disso, são recorrentes as tentativas de aprovar medidas que facilitem a exploração de recursos em terras indígenas e a retirada do direito de consulta aos povos originários, UNIUBE 27 que são contrárias à Constituição e à própria Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Nesse sentido, é importante reconhecer que a nova Constituição estabeleceu novos marcos legais para a manutenção das relações entre os povos indígenas, a sociedade não indígena e o Estado. Mas assegurar na prática o que está posto na Carta Magna ainda é um desafio, pois trata-se de um processo lento e gradual que passa pela conscientização não somente dos órgãos estatais como da própria sociedade brasileira. Nos últimos anos, os indígenas têm se organizado a partir dos movimentos sociais para ampliar a base legal no que se refere aos seus direitos e à sua participação política representativa como cidadão brasileiro. Ao aprovar um capítulo para os índios, a Constituição de 1988 estabeleceu que a política de transformar os índios em brancos não poderia continuar, pois os índios deveriam existir para sempre, vivendo segundo seus usos, costumes, tradições, suas formas de vida e de organização. Esta mudança trazida pela Constituição fez com que o Estatuto do Índio virasse uma lei velha, obrigando o governo a mudar sua política para índios. Por isso, hoje os povos indígenas precisam de uma nova lei, de um novo Estatuto, que exija do governo a proteção e o apoio de que os índios precisam, para que possam tomar suas próprias decisões sem ter que pedir autorização para a FUNAI. Este novo Estatuto deve garantir aos povos indígenas sua sobrevivência como sociedades diferenciadas, incumbindo o governo de prestar serviços básicos de educação e saúde e a apoiar os projetos culturais, econômicos e ambientais dos índios. (ISA, 2000, s/p.) A criação de um novo Estatuto do Índio passa pela necessidade de que sejam incluídas questões já consolidadas por debates jurídicos nacionais e internacionais sobre os direitos indígenas. Em 1994, foi aprovada por uma comissão especial da Câmara dos Deputados uma proposta para criação do “Estatuto das Sociedades Indígenas” (PL nº 2057/91), mas sua 28 UNIUBE tramitação está paralisada. Em 2009, por iniciativa da Comissão Nacional de Políticas Indígenas – que a partir de 2016 se instituiu como Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) –, foi elaborado um projeto substitutivo para criação do “Estatuto dos Povos Indígenas” , que também permanece parado na Câmara dos Deputados. Recentemente, uma nova proposta apresentou uma revisão deste último estatuto por meio de um projeto de Lei (PLS nº 169/2016) que tramita no Senado. O documento com 175 artigos, define o indígena e trata dos princípios básicos que devem ser garantidos aos povos indígenas quanto a igualdade jurídica, a proteção social, cultural e territorial. CNPI O Conselho Nacional de Política Indigenista, criado pelo Decreto n.º 8.593, de 17/12/15 e instalado no dia 27 de abril de 2016, é um órgão colegiado de caráter consultivo, responsável pela elaboração, acompanhamento e implementação de políticas públicas voltadas aos povos indígenas. O CNPI é uma conquista dos povos indígenas na busca por ampliar sua participação na elaboração e execução da política indigenista brasileira. O direito à diferença e o (não) reconhecimento pelo outro1.3 Diminuir, mistificar e desmerecer o comportamento e o pensamento indígena foi, ao longo da história do Brasil, quase uma necessidade, uma justificativa para o processo civilizador. E, ainda hoje, esses estereótipos nos perseguem. Na maioria das vezes pelo quase desconhecimento que temos sobre os povos indígenas e suas práticas sociais e culturais. Por vezes sequer sabemos como nos referir a eles sem colocá-los numa posição distinta, sem considerá-los como brasileiros, como pertencentes à nossa sociedade. É fato que esses povos por sua característica étnica marcante possuem um modo de vida particular. Mesmo com o processo de miscigenação e às inúmeras tentativas de aculturação, os povos indígenas buscaram se integrar à nação brasileira por sua sobrevivência. Isso refletiu no seu UNIUBE 29 modo de vida, nas suas crenças, no seu comportamento social, que levou muitos indígenas a abandonar suas comunidades e viverem nas cidades. Os que permaneceram em seu habitat buscam, constantemente, manter seus costumes como forma de preservação de uma cultura milenar. Isso não faz deles seres inferiores ou exóticos. Não os tornam cidadãos brasileiros menores, de segunda ou terceira classe. Embora seja esse o pensamento que predomina no senso comum. Ao longo da nossa formação, os índios foram interpretados de diferentes maneiras para atender aos interesses de dominação e submissão desses povos. Essas visões foram elaboradas por um pensamento ideológico predominante desde o período colonial, que ainda hoje permeia o imaginário coletivo, seja por meio da literatura, do cinema ou mesmo da limitada abordagem dos livros didáticos que, infelizmente, é a principal fonte de informação da maioria dos brasileiros sobre a história dos povos indígenas. É urgente avançarmos no debate dessa questão. Antes de se tornarem os “bons selvagens” pelo olhar dos filósofos iluministas, os índios permaneceram por um longo período entre a barbárie e a humanidade, entre a inocência e a selvageria, entre a indolência e a domesticação, entre o pecado e a salvação. As missões jesuíticas foram o primeiro empreendimento na tentativa de integrar e assimilar o índio à sociedade brasileira. O resultado da catequese foi o produto do sincretismo religioso que hoje está presente em nosso cotidiano. Após a independência, quando se buscou um projeto de identidade nacional, buscou-se a partir de um pensamento liberal integrar o índio à nova nação por meio de um movimento literário indigenista. Os poemas e romances de Gonçalves Dias, José de Alencar, entre outros, contribuíram para compor uma visão romântica sobre os índios, na qual eram representados de forma idealizada, como seres puros, altivos e 30 UNIUBE honrados que estariam na base da formação da nação brasileira. Por esta razão, prevalecia a ideia de um evolucionismo, no qual o indígena seria o mito da criação do Brasil. Posteriormente, em meados do império, as rebeliões e a nova Lei de Terras de 1860, aumentou o processo de perseguição e extermínio e inúmeras comunidades indígenas. A visão romântica novamente cedeu lugar ao espectro da barbárie e à crença de que a civilização não deveria ser imposta ao índio, pois este não era digno de humanidade. Embora integrado à nação, seu status jurídico passa a ser de “órfão de nacionalidade”, colocado como dependente, relativamente incapaz, considerados como indivíduos irresponsáveis ou que não teriam condições de assumir integralmente suas responsabilidades. Para o positivismo republicano, o índio é uma “criança rebelde” que precisa ser pacificada. Em razão disso, deveriam ser “protegidos” pelo Estado paternalista, até que estivessem aptos a conviver em sociedade. O resultado desse processo foi a implementação das políticas indigenistas que tratamos nos itens anteriores. Embora o assimilacionismo, o poder tutelar e o assistencialismo ainda estejam presentes nas relações entre índios e não-índios, após cinco séculos de lutas e reivindicações, os povos indígenas conquistaramlegalmente os direitos de respeito à sua organização social, aos costumes, o reconhecimento de suas línguas, crenças e tradições. Ou seja, reconhece-se aos índios no Brasil o direito a serem diferentes culturalmente, de existirem e se manifestarem como índios, seja dentro de seus territórios ou não, sem sofrer qualquer tipo de discriminação. Em 1969 foi realizada uma Convenção da ONU para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD), da qual o Brasil é signatário e reconhece sua competência no combate à discriminação UNIUBE 31 indígena. Sob este aspecto, o Comitê CERD (ISA, 2018) orienta os Estados para que reconheçam e assegurem em suas legislações: • o respeito às culturas, histórias, línguas e modos de vida indígenas como forma de enriquecer a identidade cultural dos Estados e promover sua preservação; • que os membros dos povos indígenas sejam livres e iguais em dignidade e direitos e estejam livres de qualquer discriminação, em especial da discriminação fundada na sua origem ou identidade indígena; • a garantia aos povos indígenas das condições que permitam o desenvolvimento econômico e social sustentável e compatível com suas características culturais; • que os membros dos povos indígenas tenham direitos iguais no tocante à efetiva participação na vida pública e que nenhuma decisão relacionada a seus direitos e interesses seja tomada sem o seu consentimento informado; • que as comunidades indígenas exercitem seu direito de praticar e revitalizar suas tradições culturais e costumes, e preservem e usem suas línguas. Ao contrário do que se pensava, os indígenas não desapareceram nem foram totalmente assimilados pela cultura ocidental que herdamos. Nos últimos anos muitas etnias vêm recuperando suas origens e costumes. Muitos indígenas mudaram seu comportamento perante a sociedade brasileira e buscam conviver em meio aos demais. O índio não se parece mais com o “bom selvagem”, como nós o romanceamos. Isso causa um certo “estranhamento” e não se sabe mais como interpretá-lo. Nos últimos 30 anos, a vida dos povos indígenas mudou. As relações das comunidades indígenas e de suas lideranças com o mundo dos brancos se tornou muito mais frequente. Os índios passaram a compreender muito melhor como vivem os brancos e quais são suas leis. Os índios também criaram organizações e passaram a estar presentes em reuniões e eventos nacionais e internacionais para 32 UNIUBE defender seus direitos. Hoje, muitas comunidades indígenas veem televisão, ouvem rádio e acompanham o mundo que gira fora de suas aldeias. Muitos índios ocupam cargos importantes como funcionários da FUNAI. Talvez possamos afirmar que as mudanças nas relações entre índios e brancos nestes últimos 30 anos foram mais profundas que as dos 470 anos anteriores. (ISA, 2000, s/p) Este talvez seja o grande desafio da historiografia atual: reinterpretar o indígena, desvencilhando sua imagem dos estereótipos e preconceitos construídos socialmente. Não podemos considerar os povos indígenas como sociedades do passado, estáticas. Ao contrário, devemos reconhecer e valorizar sua identidade étnica, compreender a especificidade de suas culturas, as formas tradicionais de organização e uso das terras e recursos e, acima de tudo, respeitar os direitos coletivos e individuais como forma de se promover um intercâmbio cultural. Seus conhecimentos, territórios e valores ajudaram a construir o Brasil, portanto, os povos indígenas fazem parte da nossa sociedade, cujos direitos e modos de vida devem ser assegurados, assim como os de qualquer cidadão brasileiro. Conclusão1.4 Compreender o indígena com elemento fundador da sociedade brasileira não tem sido tarefa fácil. A História aliada a outras ciências, como a Antropologia e a Sociologia, tem se esforçado em promover uma visão da historiografia nacional que não seja excludente ou ufanista. Daí a importância de se abordar a temática indígena (e também a africana) sob um viés sociocultural, que aprofunde o debate sobre o respeito e a convivência mais tolerante com as diversidades. Nesse processo, os movimentos indígenas têm papel fundamental em buscar o reconhecimento de seus atores políticos e exigir mudanças significativas nas políticas públicas, principalmente educacionais, no UNIUBE 33 sentido de garantir sua cidadania étnica, ou seja, a inclusão do indígena nas instituições políticas e sociais existentes. Esta talvez seja a pauta mais recente no processo de conquista de direitos que tratamos aqui. O conceito de cidadania étnica inclui não só a participação política, mas defende condições materiais de existência e sobrevivência dos povos nativos, a defesa contra a violência e a preservação de sua identidade e tradições culturais. Este é um movimento que já existe em diferentes países da América Latina em que comunidades indígenas reivindicam direitos de autodeterminação e lutam por seu reconhecimento junto ao Estado. A garantia de direitos de cidadania a segmentos sociais marginalizados ganhou maior expressividade a partir da Declaração Universal do Direitos Humanos (1948) e, mais recentemente, pela aprovação, em 2007, da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas (DDPI), cujo documento reconhece o direito de autonomia e autogoverno dos povos indígenas como nações preexistentes aos Estados nacionais. Mas o que isso quer dizer? Significa que a temática indígena deixou de ser uma questão étnica, antropológica e social para se tornar também política. Para além de seus direitos referentes às constituições de cada país, os povos indígenas possuem direitos universais orientados por uma política internacional. Particularmente, no caso da América Latina, que abriga cerca de 10% da população indígena mundial, a fundamentação desses direitos afeta um alto índice de pessoas que ainda vive sob o signo da exclusão social. Cabe a nós, enquanto sociedade, a corresponsabilidade de que as políticas públicas e de cidadania referente aos indígenas sejam efetivadas na prática, reafirmando nosso compromisso de construir uma sociedade democraticamente justa. 34 UNIUBE Resumo Neste capítulo, dedicamo-nos a apresentar os dados da população indígena no Brasil: quem são? quantos são? e onde estão?, entre outras informações relevantes com base nos dados organizados pelo Censo do IBGE, pela Funai e outros órgãos governamentais, a exemplo do Instituto Socioambiental. Conhecemos também a trajetória histórica das principais políticas indigenistas e de que maneira elas atuaram no sentido de promover uma integração do índio à sociedade brasileira. A ampliação dos direitos indígenas a partir da Constituição de 1988 é o ápice das conquistas empenhadas pelos movimentos indígenas e que hoje passa por um momento de reafirmação. Por fim, propomos uma reflexão a partir da “visão do outro”, no sentido de anular estereótipos socialmente construídos, reconhecer sua cidadania e promover uma conscientização sobre o respeito à diversidade étnica indígena como matriz cultural fundadora da nossa sociedade e identidade nacional. Referências AFONSO, Germano Bruno (Org.). Ensino de história e cultura indígenas. Curitiba: InterSaberes, 2016. ARAÚJO, Ana Valéria [et all]. Povos indígenas e a lei dos “brancos”: o direito à diferença. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao.htm. Acesso em: 15 out. 2018. BRASIL. Ministério da Justiça. Estatuto dos Povos Indígenas. Proposta da Comissão Nacional de Política Indigenista. Brasília: CNPI, 2009. 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Assim, é importante considerar que um povo indígena se difere de outros, principalmente no que diz respeito à diversidade de visões de mundo. Apesar de possuir alguns elementos em comum, as identidades indígenas se constituíram historicamente dentro de cada etnia, adquirindo traços particulares que as diferenciam entre si. Mediante tal diversidade, não pretendemos aqui abarcar todas elas. Vamos priorizar algumas manifestações que já são de conhecimento geral dos brasileiros, por estarem também inseridas em nossa cultura popular, e outras mais específi cas, presentes nas diferentes etnias, no intuito de nos aproximarmos das culturas indígenas, conhecê-las mais de perto e reduzir visões estereotipadas e preconceituosas. 38 UNIUBE Objetivos A partir do estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de: • Analisar as principais tradições, costumes, crenças e valores culturais que caracterizam a experiência social indígena no Brasil. • Conhecer as formas de expressão cultural indígena mais significativas, no que tange às artes, à religiosidade e à literatura. • Reconhecer as manifestações culturais indígenas como patrimônio material e imaterial. • Compreender a diversidade dos saberes indígenas e valorizá- los como parte integrante da nossa formação sociocultural. • Adquirir subsídios sobre o conhecimento da cultura indígena que possibilite ampliar a abordagem sobre essa temática em sala de aula. Esquema 2.1 As manifestações culturais indígenas 2.2 Artes indígenas: patrimônio material e imaterial 2.3 Cosmologia e religiosidade indígena 2.4 Línguas e Literatura: da oralidade à escrita 2.5 Conclusão Os Povos Indígenas têm direito a que a dignidade e diversidade de suas culturas, tradições, histórias e aspirações, sejam adequadamente refletidas na educação pública e nos meios públicos de informação. Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas [Art.15, Nações Unidas, Rio de Janeiro, 2008, p.10-11] UNIUBE 39 As manifestações culturais indígenas2.1 O reconhecimento pela Constituição de 1988 de que os povos indígenas possuem especificidades culturais e que têm o direito de viver conforme suas visões de mundo, de ter autonomia sobre sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições (Art. 231) trouxe consequências diretas às políticas educacionais no sentido de promover novos saberes sobre esses povos e permitir o desenvolvimento de uma educação escolar indígena. Ainda hoje é bastante comum que as pessoas vejam os índios atuais com as ideias que lhes foram passadas na escola básica, de que são povos que pertencem ao passado, com culturas atrasadas e primitivas, não produtores de saber científico. O “índio autêntico” é aquele descrito na Carta de Pero Vaz de Caminha, nu ou de tanga, que vive no meio da floresta, de arco e flecha. Não o índio que convive conosco, até por que, “brasileiro não é índio”, já que predomina entre nós a cultura ocidental. Aos índios não foi dado o direito de se modificar, de se transformar culturalmente, como qualquer povo. A principal consequência desse pensamento foi o isolamento histórico, que não nos permitiu conhecer e valorizar as manifestações culturais indígenas que fazem parte da nossa identidade. Mesmo que por força da legislação seja obrigatório o ensino da História e Cultura Indígena nas escolas, o assunto ainda é complexo. Na prática, no cotidiano de sala de aula, tivemos poucas mudanças a partir da Lei 11.645/2008, no sentido de mudar a forma como nossos alunos enxergam os índios. As comemorações escolares do “Dia do Índio” estão aí para reforçar toda uma carga de preconceitos e estereótipos que em nada contribui para modificar essa realidade. Falta conhecimento e, principalmente, ainda falta vontade de conhecer. 40 UNIUBE Em contrapartida, nos últimos anos, a historiografia tem se esforçado para emancipar essa “visão congelada” sobre as culturas indígenas. Muito tem se produzido na academia – inclusive pelos próprios índios – sobre os saberes, as ciências, a literatura, a música e a religião dos diferentes povos indígenas brasileiros, no intuito de modificar nosso olhar a respeito deles e de promover um ensino mais abrangente, que considere o papel doindígena ao longo da construção de toda a história do Brasil. Essa visão emancipadora, passa, inevitavelmente, pela compreensão do que que seja cultura, ou culturas, no plural, como preferem definir os antropólogos. De acordo com fundador da chamada Antropologia Cultural, o antropólogo inglês Edward B. Taylor, compreende-se por cultura “aquele todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. (TAYLOR, 2005, p. 69). A partir dos estudos de Taylor, o antropólogo Roque de Barros Laraia, analisa a cultura como resultado de “um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquirida pelas numerosas gerações que a antecederam”, afirmando ainda que “o homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado”. (LARAIA, 2001, p. 45). Daí termos a ideia de pluralidade, de culturas heterogêneas. Por mais que as sociedades possam ser identificadas por uma série de características próprias, quanto ao seu modo de ver o mundo, elas são produto de uma herança cultural. Por essa ótica, podemos afirmar que a cultura não está apenas naquilo que permanece, nas suas tradições, mas também em tudo aquilo que se transforma, que se inventa e se recria a partir de novos elementos. Ainda sobre o conceito de “cultura”, a filósofa Marilena Chauí compreende que, num sentido histórico-antropológico, UNIUBE 41 a Cultura é a maneira pela qual os humanos se humanizam por meio de práticas que criam a existência social, econômica, política, religiosa, intelectual e artística. A religião, a culinária, o vestuário, o mobiliário, as formas de habitação, os hábitos à mesa, as cerimônias, o modo de relacionar-se com os mais velhos e os mais jovens, com os animais e com a terra, os utensílios, as técnicas, as instituições sociais (como a família) e políticas (como o Estado), os costumes diante da morte, a guerra, o trabalho, as ciências, a Filosofia, as artes, os jogos, as festas, os tribunais, as relações amorosas, as diferenças sexuais e étnicas, tudo isso constitui a Cultura como invenção da relação com o Outro. (CHAUÍ, 2000, p. 376). Do mesmo modo que nenhuma sociedade possui uma cultura “única” e “pura”, não podemos falar em cultura “superior” ou “inferior”, apenas em culturas diferentes e singulares. De acordo com a maior ou menor influência de determinado grupo, em cada região e em cada época, sobressai uma forma de cultura particular. Nessa perspectiva, podemos ir além e afirmar que as culturas são vivenciadas a partir de um processo dinâmico, de trocas, transformações e contribuições de vários povos. Quando comparamos a cultura em que vivemos com outras é comum estabelecermos um contraponto com base em pré-conceitos, daquilo que supostamente conhecemos sobre o outro. Essa comparação parte de uma hierarquização e de uma tendência em se atribuir valor, geralmente inferior, a algo que nos é diferente. Esse julgamento a partir de uma visão própria, sem considerar a diversidade e a singularidade cultural, gera uma visão idealizada do que seja cultura. Tomando como exemplo as culturas indígenas, como comentamos no início deste capítulo, para a maior parte dos brasileiros, o índio continua sendo um selvagem, possuidor de uma cultura inferior, pelo fato de terem preservado hábitos antigos. Essas ideias enraizadas impedem que se atribua um valor positivo aos saberes indígenas, ou mesmo que os reconheça como parte integrante da nossa formação sociocultural. 42 UNIUBE As manifestações culturais indígenas vão muito além do que conhecemos comumente em museus e feiras, como, máscaras, redes, cocares, cuias, cestos... somam-se a elas a dança, a música, as línguas, a literatura, as esculturas, as crenças e os ritos. Em todas essas expressões a estética está diretamente ligada às formas de pensamento e aos modos de ver e compreender o mundo. Assim como qualquer povo, as culturas indígenas são diversificadas e multiculturais, fruto de suas origens e das relações estabelecidas com outras civilizações ao longo de sua história. Artes indígenas: patrimônio material e imaterial2.2 A referência que temos sobre a produção cultural indígena é da simplicidade. É muito comum os livros didáticos reforçarem que os índios moram em ocas feitas de palha e folhagens, utilizam arco e flecha (e não armas de fogo ou feitas de ferro), seus utensílios são de barro, não possuem vestimenta, enfim, caracterizam os índios a partir de suas poucas referências materiais. Porém, os modos de fazer não podem ser reduzidos a uma ideia de cultura “primitiva” ou de pouco desenvolvimento tecnológico, “menos evoluída”. Como dissemos anteriormente, cada cultura possui uma singularidade, que as identifica e diferencia de outras. Não devemos, portanto, confrontar as diferenças no sentido de hierarquizar os povos. Quando estudamos culturas milenares, como é o caso dos povos indígenas, é preciso considerar seu legado histórico quanto aos modos de ser e de fazer, as experiências compartilhadas, as organizações sociais e religiosas complexas, independente se elas seguem o padrão da civilização ocidental atual ou não. Esse processo de revisão da cultura indígena e do reconhecimento de suas manifestações como propriedade intelectual de um povo ainda é recente e vem ganhando visibilidade, principalmente devido à contribuição da Antropologia, que tem procurado recuperar um conjunto de saberes UNIUBE 43 e práticas que passaram a ser considerados como patrimônios culturais indígenas e, como tais, precisam ser preservados. O Artigo 216 da Constituição conceitua patrimônio cultural como sendo os bens “de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. (BRASIL, 1988). De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), nesta definição estão incluídas “as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”. (IPHAN, 2018) Sobre o conceito de patrimônio material, o Iphan define como sendo, os bens tombados de natureza material podem ser imóveis como os cidades históricas, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais; ou móveis, como coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos” (IPHAN, 2018). Já o patrimônio imaterial são os bens culturais de natureza imaterial [que] dizem respeito àquelas práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas). (IPHAN, 2018). Esta definição é bastante recente e foi ampliada, a partir da noção de diversidade cultural, para incorporar à ideia de patrimônio as práticas e representações culturais, suas expressões e conhecimentos que são 44 UNIUBE passados de geração em geração, sendo constantemente recriadas em função do contato com outros povos, e que reforçam uma identidade e a manutenção de uma cultura. Quando analisamos os povos indígenas, é possível considerar que seu patrimônio imaterial é bem mais amplo que o material, uma vez que se integram aos bens imateriais as “expressões orais (incluindo as línguas); a dança, a música e artes tradicionais; os rituais e eventos festivos; os conhecimentos relacionados à natureza e ao universo; e as técnicas artesanais tradicionais”. (GALLOIS, 2006, p. 10-11) Definido desta maneira, opatrimônio cultural imaterial tanto decorre do como alimenta o diálogo entre pequenos grupos, entre povos, civilizações e mesmo continentes. O reconhecimento das condições de criação e de renovação cultural, assim como das redes de intercâmbio, poderão assim contribuir com a tolerância. A diversidade cultural se configura, cada vez mais claramente, como uma condição essencial para o desenvolvimento. Pois nenhuma comunidade poderia se desenvolver sem o reconhecimento político de sua contribuição particular à criação e transmissão de valores culturais. (GALLOIS, 2006, p. 24) Entre a diversidade dos modos de fazer e de saber, destacamos as artes indígenas, que também devem ser denominadas no plural, em virtude das singularidades da manifestação de cada povo, seja na forma material de seus produtos (madeiras, pedras, fibras, argila, pigmentos, etc.), seja quanto ao uso que fazem das expressões artísticas, presentes tanto nas construções e mobiliários, como no corpo humano por meio das pinturas. Igualmente, devemos considerar a preservação dessas artes como patrimônio cultural material e imaterial, como veremos a seguir. Existe uma visão de senso comum que não considera tais produções como “arte”, identificando-a somente como “artesanato”, atribuindo um valor menor a essas expressões culturais, reduzindo a carga simbólica de suas esculturas, grafismos, cestarias, entre outros trabalhos. É preciso UNIUBE 45 observar que as artes indígenas resultam de concepções distintas da arte ocidental e são, na maioria das vezes, confeccionadas para uso ritual ou cotidiano, havendo restrições, inclusive quanto à sua produção para circulação comercial. É por meio da sua arte que os povos indígenas transmitem suas referências sobre a vida em sociedade. Uma das expressões artísticas mais antigas são as pinturas rupestres. Estes registros arqueológicos são importantes testemunhos da existência das populações nativas, ou seja, dos povos e grupos habitantes das regiões que atualmente denominamos Brasil e América, em período anterior à chegada dos colonizadores europeus. As pinturas guardam cenas cotidianas, referentes aos rituais, costumes, religiosidades e modos de vida variados, que configuravam a forma como esses povos percebiam o mundo, a sua cosmovisão. Muitos desses conhecimentos foram incorporados pela população brasileira e estão presentes, por exemplo, nos “saberes, tradições e costumes das populações rurais e sertanejas (herdeiros de conhecimentos seculares, ancorados na observação da Natureza, dos animais, das plantas, do solo etc.)”. (GOMES, 2017, p. 125) Entre os bens culturais atualmente preservados está o Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, região em que foram encontradas as mais antigas pinturas rupestres entre outros vestígios arqueológicos da presença do homem na América do Sul. (Figura 1) 46 UNIUBE Figura 1: Pinturas rupestres encontradas no Nordeste do Brasil. Fonte: Getty Images (2018). Outra forma de expressão que agrega o patrimônio material e imaterial são os artefatos em cerâmica e cestarias. Esses objetos são utilizados tanto na vida cotidiana quanto em cerimonias rituais, conforme a sua característica. Em geral, as artes indígenas são marcadas por um conjunto específico de motivos decorativos e pinturas, além dos modos de se moldar e trançar utilizados na sua confecção. Embora exista um padrão técnico e artístico adotado por cada artesão, essas marcas são tradicionalmente identificadas por motivos geométricos, imagens abstratas, figuras que simbolizam pessoas, plantas ou animais, ou ainda desenhos que registram cenas cotidianas, elementos naturais ou mitológicos de sua cosmovisão. A pintura das imagens utiliza, na maioria das vezes, cores naturais extraídas de plantas ou algum mineral. As cores vermelha, preto e branco são predominantes, retiradas de produtos como carvão, barro, urucum e jenipapo. Os principais utensílios em que se inscrevem as pinturas são potes de barro e cerâmica, cestos, peneiras e abanos trançados (Figura 2), instrumentos musicais como tambores e maracás, além do próprio corpo. UNIUBE 47 Figura 2: Tipos de arte indígena, feitos por grupos localizadas no estado do Mato Grosso. Fonte: Getty Images (2018). Um dos exemplos mais conhecidos e característicos, é a arte marajoara, produzida pelos descendentes pelos povos da Ilha do Marajó, região amazônica do estado do Pará. As peças em cerâmica, como vasos, tigelas, pratos, estatuas, urnas funerárias, entre outros, são decoradas com desenhos zoomorfos, que representam animais, e antropozoomorfos, que representam humanos/animais, além de traços gráficos e geométricos, como se formassem um labirinto. (Figuras 3 e 4). Essas diferentes formas podem ser desenhadas num mesmo objeto, sendo utilizados apenas em festas, cerimônias e rituais. Figura 3: Urna funerária com motivos típicos da cultura marajoara do norte do Brasil. Fonte: Getty Images (2018). Figura 4: Pote de cerâmica indígena da região amazônica representando uma mulher grávida. Fonte: Getty Images (2018). 48 UNIUBE Entre certos grupos indígenas, como os Wajãpi, Tapirapé, Kaingang, Baniwa, Arawak, Tukano, Wayana, Xavante, a produção de alguns objetos e a pintura dos corpos estão vinculadas à tradição cosmológica, como forma de representar os personagens mitológicos que permeiam sua visão de mundo. Nesse sentido, existe uma diferença entre imagens e desenhos, que em geral reproduzem elementos anatômicos, e os grafismos, que são uma representação de símbolos e criaturas ligadas à origem dos povos, e possuem significados específicos para cada sociedade. Os padrões gráficos utilizados como pintura corporal e nos objetos de cerâmica vão muito além da simples decoração, são um complemento às narrativas orais. Trata-se de uma maneira de “trazer” as criaturas antigas de volta ao tempo presente. Essa é uma distinção muito importante para entender a arte desse[s] grupo[s] indígena[s] que não se limita ao seu significado, mas à sua eficácia visual. São desenhos concebidos de forma que permitam “ver” esses seres. São desenhos que fabricam, trazem de volta o mundo das origens. O que significa que [...] a arte gráfica nem simplesmente “representa”, nem apenas “significa”. Sua principal função é de estabelecer uma comunicação com os seres primordiais e permitir uma interação com eles. (GALLOIS, 2006, p. 43) A produção das artes indígenas é considerada um patrimônio cultural material e imaterial, que nos contam como esses povos se relacionavam com o mundo. Na atualidade, devido ao valor estético agregado pela própria comercialização de alguns objetos, determinados artefatos não carregam o mesmo simbolismo da arte antiga, adquirindo novos significados. Apesar disso, muitas comunidades buscam preservar os modos artesanais e tradicionais de se confeccionar os objetos, principalmente o de uso próprio. Por isso, embora muitas comunidades encontrem uma fonte de renda na venda de produtos, é comum a distinção entre a produção dos “artesanatos” que serão comercializados, denominados de “profanos”, e dos artefatos que serão de uso cotidiano UNIUBE 49 ou considerados “sagrados”, por vezes proibidos de serem utilizados para fins lucrativos. Ao considerarmos os itens da cultura material destinados também à comercialização e, portanto, alguns deles produzidos em série, não nos afastamos da ideia de sua conservação para dentro da aldeia. Numa conjugação de interesses voltados à produção artesanal destinada ao próprio uso e à comercialização, os índios atentam-se às necessidades e às funções dos objetos na contemporaneidade. A produção e circulação de artefatos, portanto, encontram-se inseridas em contextos culturais, espaciais e temporais que motivam os indígenas a produzirem bens artesanais. Nesse caso, é preciso salientar que nem todos objeto pertencente à cultura material carrega o cunho de “mercadoria”, quando, ao sair da aldeia,encontra por exemplo, visibilidade em museus, centros de memória e casas de cultura. Nestes ambientes, os artefatos indígenas não escapam à reflexão acerca de seus sentidos e significados, já que a discussão leva a revelações com aspectos imateriais, muitas vezes invisíveis aos olhos do observador. (SILVA; COSTA, 2018, p. 58) Sendo assim, a arte indígena carrega em si aspectos de uma tradição, ainda que reinventada. É importante lembrar que tantos os elementos e símbolos, quanto os estilos de criação dos artefatos estão ligados à história e cultura de cada grupo, que imprimem nas artes seu jeito de fazer e seu modo de ver, o que muitas vezes contribui para que um determinado povo seja lembrado ou identificado por sua cerâmica ou pelos grafismos e códigos visuais presentes em seus objetos e corpos. A valorização dos saberes e práticas das comunidades indígenas passa, inevitavelmente, pelo compromisso de órgãos públicos e da sociedade brasileira em conhecê-las e preservá-las como referência cultural e memória coletiva, que expressam sua história e vivências culturais. 50 UNIUBE O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é o órgão responsável por registrar os bens culturais brasileiros, dos quais destacamos os bens culturais materiais e imateriais indígenas. A seguir, você pode conhecer alguns dos patrimônios já registrados, que devem ser preservados como parte da diversidade cultural brasileira: Os saberes e práticas associados ao modo de fazer bonecas karajá [Patrimônio imaterial] - Com motivos mitológicos, de rituais, da vida cotidiana e da fauna, as bonecas karajá são importantes instrumentos de socialização das crianças que se veem nesses objetos e aprendem a ser Karajá, recebem ensinamentos, conhecem as técnicas e saberes associados à sua confecção e usos. Rtixòkò: expressão artística e cosmológica do povo karajá [Patrimônio imaterial] - A pintura e a decoração das cerâmicas estão associadas à pintura corporal dos Karajá e às peças de vestuário e adorno consideradas tradicionais. Indicativos de categorias de gênero, idade e estatuto social, a pintura e os adereços complementam a representação figurativa das bonecas. Sistema agrícola tradicional do Rio Negro [Patrimônio imaterial] - É entendido como um conjunto estruturado, formado por elementos interdependentes: as plantas cultivadas, os espaços, as redes sociais, a cultura material, os sistemas alimentares, os saberes, as normas e os direitos. O ritual yaokwa do povo indígena Enawene Nawe [Patrimônio imaterial] - é a mais longa e importante celebração realizada pelo povo indígena Enawene Nawe, que habita uma única aldeia localizada na região noroeste EXEMPLIFICANDO! UNIUBE 51 do Estado do Mato Grosso. Parte fundamental do Yaokwa ocorre quando se dá a saída dos homens para a realização da pesca coletiva de barragem. Arte kusiwa – pintura corporal e arte gráfica wajãpi [Patrimônio imaterial] - é um sistema de representação gráfico próprio dos povos indígenas Wajãpi, do Amapá, que sintetiza seu modo particular de conhecer, conceber e agir sobre o universo. Tava, lugar de referência para o povo guarani [Patrimônio material] - A Tava é considerada um lugar de referência por ser um espaço vivo que articula concepções relativas ao bem-viver, integra narrativas sobre a trajetória deste povo e é diariamente vivenciada como lugar de atividades diversas e de aprendizado para os jovens. Seu valor patrimonial reside na sua capacidade de comunicar temporalidades, espacialidades, identidades e elementos da cultura indígena cravada na história brasileira. Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes [Patrimônio material] - É uma das mais célebres obras cartográficas produzidas no Brasil, em 1943, considerada um marco dos estudos sobre as línguas e culturas indígenas. São mais de 900 referências sobre etnias e línguas indígenas coletadas entre os séculos XVI e XX catalogadas no Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes, de Curt Nimuendajú. (IPHAN, 2018) Cosmologia e religiosidade indígena2.3 A primeira manifestação religiosa que se tem conhecimento em nosso continente é a dos povos indígenas. Durante o período de conquista e colonização, os índios foram submetidos ao processo de catequese com o intuito de convertê-los à fé cristã e domesticá-los ao trabalho colonial. O que pouco se conhece é sobre a diversidade de significados e de 52 UNIUBE elementos atribuídos por cada povo indígena na sua interpretação sobre a criação do mundo. É de conhecimento geral que a religiosidade indígena não cultua um deus único. A cosmovisão indígena, ou seja, a maneira subjetiva pela qual eles pensam, ordenam, interpretam e sentem o mundo e as relações entre os indivíduos, se fundamenta pelo chamado “animismo”, crença segundo a qual não existe separação entre o mundo material e o espiritual, que pressupõe a existência de espíritos e fenômenos ligados à natureza, como animais, plantas e objetos inanimados. Trata-se, portanto, de uma visão muito diferente do cristianismo ocidental monoteísta ao qual foram impostos. Por esta razão, não cabe julgarmos a cosmovisão indígena a partir da crença judaico-cristã que predomina em nossa sociedade. Não se trata de superstição, idolatria ou ateísmo. Suas manifestações devem ser compreendidas no contexto dos seus conhecimentos e valores culturais próprios. Conforme afirma o sociólogo francês Émile Durkheim (2000, p. VII-VIII), as religiões primitivas, entre as quais se incluem as das sociedades indígenas, “[…] não são menos respeitáveis do que as outras. Elas respondem às mesmas necessidades, desempenham o mesmo papel, dependem das mesmas causas; portanto podem perfeitamente servir para manifestar a natureza da vida religiosa”. A espiritualidade para os nativos se diferencia do conceito de religião adotado pela tradição cristã. Sua divindade está na natureza. A relação entre natureza e religião está intrinsecamente ligada ao modo de vida de cada etnia que, de modo geral, não separa uma da outra. Cada elemento que compõe a natureza – a floresta, os rios, fauna e flora, o céu e a terra – é sagrado para os povos indígenas e cada um deles tem um espírito protetor. Uma das maneiras pelas quais os indígenas interpretam UNIUBE 53 sua visão de mundo se dá por meio dos mitos, que são narrativas orais passadas de geração em geração, que contam como tudo foi criado e ordenado no início dos tempos. Nesse sentido, “os mitos se articulam à vida social, aos rituais, à história, à filosofia própria do grupo, com categorias de pensamento localmente elaboradas que resultam em maneiras peculiares de conceber a pessoa humana, o tempo, o espaço, o cosmos”. (SILVA, 2000, p. 75). Os mitos indígenas são variados, uma vez que são criações originárias de cada etnia, que marcam sua identidade cultural e social, relacionados às condições de existência e da cosmologia seguida por determinado grupo. Portanto, não se trata somente de crença, são lugares de reflexão sobre a vida social, que abordam problemáticas complexas, carregadas de significação, que dão sentido ao seu modo de viver, próprios de cada sociedade. Sobre a importância da cosmologia para as práticas religiosas das sociedades indígenas, vejamos a análise da antropóloga Aracy Lopes da Silva: Cosmologias são teorias do mundo. Da ordem do mundo, do movimento no mundo, no espaço e no tempo, no qual a humanidade é apenas um dos muitos personagens em cena. [...] Na vivência cotidiana, essas concepções orientam, dão sentido, permitem interpretar acontecimentos e ponderar decisões. São, de modo sintético, expressas com clareza exemplar através da linguagem altamente simbólica da dramaturgia dos rituais. Música, gestualidade estereotipada, mas sempre criadora, ornamentos corporais mais ou menos exuberantes, entre outros recursos, permitem o contato com outras dimensões cósmicas que aquela habitualmente ocupada pelos humanos ecom momentos outros do mundo e do processo da vida (e da morte). (SILVA, 2000, p. 75) 54 UNIUBE Vejamos como as mitologias e as cosmologias indígenas tratam de temas com que se preocupam todos os homens, com menor ou maior grau de elaboração, expressão ou consciência. Povos Jê Entre povos da família linguística Jê, o cosmos é concebido como habitado por diferentes humanidades - a subterrânea, a terrestre, a subaquática e a celeste – que existem desde sempre. O tempo das origens é o da indiferenciação e da desordem, da convivência e da interpenetração daqueles domínios. Astros, como o Sol e a Lua, são gêmeos primordiais que vivem aventuras na terra e aqui deixam o seu legado, antes de partirem para sua morada eterna. Nos mitos Jê, há referências explícitas às atividades de subsistência e às práticas sociais de modo geral. Instituições sociais – a nomeação dos indivíduos, a guerra, o xamanismo... – têm no mito descritas as suas origens e exposta a sua essência. Povos do Alto Rio Negro Por contraste, caberia mencionar, a região do alto rio Negro, o noroeste amazônico, morada de povos de língua tukano. No início dos tempos, antepassados míticos criaram o mundo que, antes, não existia. Das entranhas de uma cobra grande ancestral, que fazia o percurso do rio, saíram, em pontos precisos daquele percurso, os primeiros antepassados de cada um dos vários povos da região, determinando, assim, seus respectivos territórios, suas atribuições específicas e um padrão hierarquizado de relacionamento entre eles. Em muitas cosmologias, as relações entre humanos e os demais seres são pensadas através da ideia da predação, numa metáfora que simbólica e logicamente aproxima caça, guerra, sexo e comensalidade. Ainda no alto rio Negro, o xamã parece estar encarregado de garantir que fluxos e volumes EXEMPLIFICANDO! UNIUBE 55 de energia vital compartilhada por humanos e animais mantenham-se em níveis adequados. Exageros na matança de animais deflagrariam, como contrapartida, epidemias e malefícios entre os homens, provocados por espíritos protetores dos animais. Um equilíbrio vital nas lembranças e o convívio com a ideia da morte são experiências diárias na apreciação e na condução da vida. Povos Tupi-Guarani Desde há mais de 500 anos, os não-índios produzem análises na tentativa de compreender as práticas sociais e as concepções cosmológicas dos Tupi-Guarani. Do espanto inicial à sistematização das informações dos cronistas, realizada entre as décadas de 1940 e 1950, passando pela catequese jesuítica e pelos episódios dramáticos da Conquista, é constante a referência central a temas como a guerra, o canibalismo, a vingança da morte através de novas guerras e novas mortes e novas vinganças. Uma compreensão destes povos, suas sociedades e suas cosmologias, adequada aos tempos recentes de amadurecimento teórico e metodológico da antropologia, revela – apesar da grande diversidade existente entre elas, tanto no plano sociológico, quanto nas variações entre suas cosmovisões respectivas – a centralidade da noção de temporalidade como eixo sobre o qual constroem-se noções fundamentais como a de pessoa e de cosmos. Temporalidade está aliada às relações de alteridade que os Tupi-Guarani buscam sistematicamente situar fora do domínio social propriamente dito, encarnadas nos inimigos, nos espíritos, nos animais, nos mortos e nas divindades. (Fonte: ISA, 2018, s/p.) Se os mitos são as narrativas que contam como se deu a formação do mundo, os rituais, por sua vez, são a forma de se recriar os mitos por meio de expressões corporais e outras formas de comunicação. Não 56 UNIUBE por acaso, uma das maneiras que os povos indígenas encontraram ao longo do processo colonizador para manter sua religiosidade, apesar da imposição da catequese cristã e do inevitável sincretismo, foi salvaguardar algumas práticas rituais. Na atualidade, muitas comunidades incorporaram elementos do Cristianismo, mas preservam hábitos e crenças que mantém vivas suas matrizes religiosas ancestrais, como os cantos, as danças e as práticas de magia, que compõe as cerimônias ritualísticas. Sobre o significado do ritual para a coletividade indígena, a antropóloga Aracy Lopes da Silva afirma que este [...] permite a experiência e, nela, a transformação e, ainda, a ação. Sai-se dele renovado, em outra condição. Em muitas sociedades indígenas, o ritual é o momento mesmo da inserção da humanidade no universo mais amplo; é o lugar mesmo da confluência e da presença concomitante do sobrenatural, da natureza e da humanidade. E, por outro lado, da reafirmação dos laços de solidariedade interna, da troca recíproca, da expressão concreta da dimensão econômica dos ritos, através de redistribuição e partilha de alimentos. É assim que símbolos, sentimentos, concepções e matérias se encontram e se mesclam no universo do mito e da cosmologia, permeando vida e pensamento, sociedade e natureza, dando sentido à experiência humana no mundo. [...] São processos próprios à vida social e à cultura, em qualquer momento histórico. São mecanismos de produção de variação e de criação culturais. [...] Os mitos se reafirmam e se transformam, dialogando com a história. (SILVA, 2000, p. 76) Como podemos perceber, existe uma complexidade em torno dos rituais indígenas, assim como seus costumes e ornamentações, por meio dos símbolos e pinturas corporais, por exemplo. Portanto, é um equívoco representar os indígenas simplesmente dançando e emitindo sons onomatopaicos em torno de uma fogueira, como um bando de selvagens. É preciso compreender e respeitar o sentido desses elementos para a religiosidade e a cultura indígena: 1. O fogo é guardião da sabedoria ancestral e é reverenciado como a memória viva de todos os ancestrais, uma vez que está presente em UNIUBE 57 momentos importantes da vida da comunidade sendo testemunha das histórias vividas na aldeia desde tempos muito antigos. 2. Os sons emitidos são muitos, variando de nota e intensidade conforme a ocasião, portando significados diversos. Cada som produzido repercute no espírito mobilizando forças existentes na natureza interior das pessoas, estes sons sagrados são emitidos também por todas as formas de vida que habitam as florestas. Ao produzir seus sons o índio comunga com a natureza da força do som que se encarna e produz energia de vida. 3. Aquele velho ensinamento escolar “os índios não possuíam fé, nem rei e nem lei” representa uma ideia completamente equivocada da cultura indígena. A fé indígena está na raiz de sua vida. Para os povos das florestas tudo é sagrado, portanto seu relacionamento com as diferentes formas de vida, incluindo o fogo, a água e tudo mais, é vivido de modo respeitoso. O ser indígena se encontra unido ao todo e, portanto, sua fé se expressa em seu cotidiano, está dentro e fora, não dissociado. Ele vive a fé que dá origem às leis que ele segue e que inspira os caciques, os pajés e os guias conduzem o povo para uma vida de harmonia. (SCHLÖGL, 2015, p. 10). Os ritos são fonte de memória e conhecimento, fundamentando toda a realidade social. Há os rituais de iniciação, em geral do adolescente no convívio social adulto; ritos de nascimento e casamento; rituais funerários, que manifestam as relações entre vida e morte; e ainda celebrações de culto a divindades, à natureza, à colheita, à vitória em guerras e às diferenças culturais. Entre estas manifestações estão presentes as festividades que consagram as diferentes celebrações. Os instrumentos musicais, em geral, são construídos pela própria comunidade, a partir de madeiras, bambus, cascas de frutas, entre outros. (Figura 5). Tanto homens quanto mulheres participam dos ritos, havendo especificidades conforme cada celebração. 58 UNIUBE Figura 5: Nativos brasileiros tocando flauta de madeira em uma tribo indígena na Amazônia. Fonte: Getty Images (2018). Um exemplo de festividade indígena é o “Toré”, presente emdiferentes comunidades do Nordeste (Pankararu, Tremebé, Potiguara, Kariri-Xocó, entre outros), de Minas Gerais (Xakriabá, Xucuru-Kariri, Pataxó) e no Sul do Brasil (Guaranis). Trata-se de um ritual sagrado, dançado ao ar livre por homens e mulheres, que formam um grande círculo e entoam cantos no idioma nativo ao som de instrumentos musicais como maracás (Figura 6), zabumbas e gaitas (flautas), apresentando variações de ritmos e toadas dependendo de cada povo. Figura 6: Maracas - tipo de chocalho usado no ritual litúrgico dos índios guaranis no sul do Brasil. Fonte: Getty Images (2018). UNIUBE 59 Essa festividade ocorre por diferentes ocasiões, como cultos religiosos, casamentos, batizados, recepção de visitantes, entre outras confraternizações, como forma de manter viva a preservação dos costumes e da identidade do grupo. A manifestação da religiosidade indígena também se dá por meio do chamado totemismo ou xamanismo. Novamente recorrendo a Durkheim (2000), em seus estudos sobre a religiosidade dos povos aborígenes australianos, o autor identifica o totemismo como uma das mais antigas manifestações religiosas, a partir da qual se originou outros cultos. O totemismo é a base em se fundamenta algumas sociedades organizadas por clãs, sendo bastante expressivo em populações indígenas que habitam as regiões da América do Norte, a exemplo dos Sioux, Iroqueses, Dakotas e Iowas. Trata-se de uma representação a partir de símbolos, os chamados totens, de objetos ou seres considerados sagrados, como animais e plantas, que estabelece uma ligação mística entre os seres da natureza e o homem, baseado na crença de um parentesco entre eles. Entre os povos indígenas da Amazônia, o xamanismo equivale ao totemismo, sendo uma prática religiosa partilhada por povos que se estendem da Ásia até o extremo sul da América. O “xamã” ou “pajé”, como denominado na língua tupi-guarani, exerce funções de sacerdote- médico, sendo responsável pelos rituais. O xamanismo não pode ser considerado propriamente uma religião, o mais adequado é identificá-lo como um sistema ritual. Por esta razão, sobreviveu ao surgimento e enfrentamento das grandes religiões, como o budismo, o confucionismo, o taoísmo, o cristianismo e o islamismo (ISA, 2018, s/p.) É interessante observar a relação existente entre as expressões religiosas, suas representações iconográficas e o simbolismo de sua cosmologia com as artes indígenas. Ambas estabelecem uma espécie de comunicação, que não é apenas visual, mas sobrenatural. Tanto a 60 UNIUBE religiosidade quanto a arte são elementos essenciais para a valorização da identidade étnica. Analisar as características de tais manifestações nos permite compreender melhor a cultura indígena e nos revela muito do preconceito e da falta de conhecimento que ainda temos em relação ao modo de vida desses povos. Vejamos outros exemplos de rituais indígenas, que demonstram um pouco da diversidade dessas práticas entre as diferentes etnias: Bororo O ritual funerário dos Bororo (MT) marca um momento especial de socialização dos jovens. Não só porque muitos deles são formalmente iniciados, mas, também, porque é por meio de sua participação nos cantos, danças, caçadas e pescarias coletivas que eles têm a oportunidade de aprender e perceber a riqueza de sua cultura. Kanela Entre os Canela (MA), grupo Timbira, os meninos são introduzidos na sua classe de idade por meio de alguns rituais de iniciação. Esses rituais treinam os meninos para se tornarem guerreiros. Tradicionalmente, a maioria das meninas está associada de modo a receber cintos de maturidade, necessários para que elas se casem. Karajá A primeira iniciação dos meninos Karajá (MT/TO) se dá por volta dos sete ou oito anos de idade. Consiste na perfuração do lábio inferior, que irá receber um adorno. A perfuração é feita com a clavícula de um macaco, e se dá na presença dos pais. EXEMPLIFICANDO! UNIUBE 61 Alto Xingu Homens xinguanos disputam o huka-hukana aldeia dos Yawalapiti (MT). A luta integra o ritual intertribal kwarúp, que se dá em homenagem aos mortos dos diferentes grupos que habitam a região do alto Xingu. Kadiwéu Os bobos (bobotegi) são personagens que figuram na Festa do Navio, realizada pelos Kadiwéu. Este longo ritual remonta aos tempos da Guerra do Paraguai, quando este povo lutou pelo Brasil. (ISA, 2018, s/p.) Você pode conhecer mais sobre as manifestações culturais indígenas, entre outros temas, acessando a Enciclopédia dos Povos Indígenas do Brasil, organizada pelo Instituto Socioambiental. Acesse o link: https://pib.socioambiental.org/pt/Página_principal Línguas e Literatura: da oralidade à escrita2.4 Entre as etnias presentes no território nacional existe uma diversidade de línguas e tradições. Segundo levantamento do Censo IBGE 2010, são faladas cerca de 274 línguas entre as 305 etnias indígenas diferentes no Brasil. Os principais troncos linguísticos são o Macro-jê (que inclui entre outras, o Boróro, Jê, Karajá, Krenák), o Tupi (que inclui as famílias de línguas Jurúna, Munduruku, Tuparí, Tupi-Guarani, entre outras), o Aruak e o Karib, que possuem um grande número de dialetos. A língua Tupi-Guarani, também é falada por grupos indígenas de países vizinhos, como Peru, Colômbia, Venezuela, Bolívia, Paraguai e Argentina. Mas existem inúmeras famílias linguísticas e outras línguas não classificadas nem em troncos e nem em famílias, além das chamadas “línguas isoladas”, que possuem poucos indivíduos falantes. 62 UNIUBE A título de comparação, o grupo de línguas mais documentado no mundo é o chamado tronco Indo-europeu, que se estende por toda a Europa, parte da Ásia, das Américas, Austrália e parte da África, incluindo as principais línguas mundiais: índicas, irânicas, bálticas, eslavas, celtas, itálicas, anatólicas, germânicas, e inclui também línguas como o grego, o albanês, o arménio, o tocário. O nosso português atual também está incluído entre as línguas descendentes do latim, da família itálica (francês, espanhol, português, italiano, romeno, etc.). (MONTSERRAT, 2000, p. 94-95). O mapa a seguir (Figura 7) nos dá uma ideia de como estão distribuídas as principais línguas indígenas na região sul-americana: Figura 7: Línguas indígenas da América do Sul. Fonte: Adaptado (FUNARI e PIÑÓN, 2011). UNIUBE 63 Os dados do Censo 2010 também apontaram que um total de 37,4% dos indígenas falava no domicílio uma língua indígena. Esse percentual aumenta para 57,3% quando considerado somente os povos que vivem em terras indígena. Em relação à língua portuguesa, cerca de 17,5% da população indígena não fala o idioma, considerado a língua nacional. Da mesma forma, aumenta para 28,8% o percentual dos que não falavam o português dentro das terras indígenas. Os dados são relevantes para se considerar o papel desempenhado pelos territórios indígenas no que diz respeito à preservação das características socioculturais. As línguas indígenas mais faladas são aquelas que também dispõe de maior registro documentado e de descendentes contemporâneos, o que possibilita um maior conhecimento sobre elas, a exemplo do Tupinambá ou Tupi antigo, falado em toda a costa brasileira quando da chegada dos portugueses; o Guarani Antigo, o Kiriri e o Nheengatú ou Língua Geral do Amazonas, que possui formas muito alteradas de expressão devido à diversidade de povos falantes. Mas vale registrar que o número de povos indígenas que também falam o português é bastante expressivo, como se pode analisar no gráfico da Figura 8: Figura 8: Distribuição percentual dos indígenas por língua falada, segundo o domicílio. Fonte: IBGE (2010). 64 UNIUBE Apesar da grande quantidade de línguas registradas existe uma ideia de senso comum de que os povos indígenas transmitem seus conhecimentos somente de forma oral, que não conhecem a escrita e, portanto, não possuem história. Ao contrário, nas últimas décadas as escolas indígenas cresceram em todo o territórioe têm contribuído para o desenvolvimento de uma produção escrita indígena. Além de difundir e manter vivas suas línguas, os escritores indígenas têm aberto um caminho possível para se relacionar com os outros setores da sociedade e com culturas não-índias. Esse trabalho é fundamental para que as línguas indígenas se tornem efetivamente línguas escritas. Quando se fala em literatura indígena existe um grande desconhecimento sobre a produção escrita dos nativos das Américas. É importante perceber as obras indígenas como um processo de reflexão sobre o outro, sobre seu modo de perceber sua história. Assim como ocorreu com demais registros e documentos, a identidade do nativo foi sendo progressivamente retirada da historiografia - predominantemente europeia - e moldada segundo a visão dos cronistas dos séculos XV e XVI. Conhecemos bem a história sob o olhar do colonizador, mas poucos se interessaram em dar “voz aos vencidos”, e buscar a história também pelo olhar do colonizado. A própria imagem que fazemos dos índios faz parte dessa visão eurocêntrica e positivista da história que, no último século, a Nova História buscou desconstruir a partir de novas fontes e novos objetos de estudo. E a Literatura se tornou uma importante fonte nesse diálogo da História com outras disciplinas, para buscar se aproximar da realidade dos fatos. À época da colonização, o índio foi concebido pelos cronistas como “selvagem” ou “bárbaro”, muito em virtude de suas práticas culturais tão distintas do modo de vida europeu. As teorias científicas civilizatórias que começavam a vigorar na Europa naquele período contribuíram muito para essa construção. O modelo de civilização passava a ser o europeu UNIUBE 65 e seus costumes. A representação do outro – e aqui se incluem também africanos e asiáticos – como primitivo e inferior se tornou um instrumento de poder, que conduziu o processo de dominação do Novo Mundo. No século XIX, o índio se torna um personagem mais relevante na construção de uma identidade nacional. Nesse período, muitos escritores brasileiros contribuíram para reforçar novas imagens que ainda hoje permeiam nosso imaginário social sobre os indígenas. Não mais como selvagem e bárbaro, mas como um “bom selvagem”, dócil, romantizado, corajoso, honrado, símbolo daquilo que viria a se tornar o povo brasileiro. Principalmente as obras de Gonçalves Dias (“I-Juca-Pirama” (1851); “Os Timbiras” (1857)) e José de Alencar (“O Guarani” (1857); “Iracema” (1865); “Ubirajara” (1874)) serviram para edificar um ideal nacionalista, idealizando a natureza e os povos nativos. Influenciados pelas teorias iluministas do francês Jean-Jacques Rousseau, as obras reforçavam a ideia de que o indígena pertenceria a um mundo natural, vivendo em um “estado de natureza” ainda não corrompido pelos aspectos negativos e imorais da civilização. O índio investido de tais ideais e transformado em personagem da literatura romântica possuía características dos heróis medievais, como nobreza, honra e bravura. Com o advento das teorias racistas em fins do século XIX, a imagem romântica do indígena passou a ser signo de atraso e o país visto com inferioridade, a ponto de a intelectualidade brasileira defender novamente a superioridade dos povos europeus sobre os demais. A defesa da mestiçagem como caminho necessário para o branqueamento das raças foi a solução encontrada para justificar a exclusão de negros e indígenas, que passaram a ser marginalizados. No campo da literatura, os movimentos realista/naturalista e depois o modernista se encarregaram de difundir tais ideias, presentes em obras clássicas como “O mulato” (1881), de Aluízio Azevedo e “Macunaíma” (1928), de Mário de Andrade. 66 UNIUBE Mas a visão idealizada do indígena influenciou também o que se configurou chamar de “folclore brasileiro”. Muitas das estórias e lendas que as crianças aprendem na escola são de origem indígena: Saci Pererê, Mula sem cabeça, Curupira, Boto, Lenda da Vitória Régia, Lenda do Pirarucu, Negrinho do Pastoreio, entre outras. São histórias de aventuras fantásticas, cheias de mistério e magia, para traduzir de forma lúdica uma realidade fantasiosa do mundo indígena. É fato que as histórias são relevantes no contexto dos mitos indígenas. O que se critica aqui é a criação de estereótipos e redução de sua importância como elemento cultural. As lacunas de nosso sistema educacional não são responsáveis apenas pelo desconhecimento sistemático dos universos indígenas, mas também pela disseminação de uma série de estereótipos que inviabilizam uma compreensão, ainda que mínima, de tais povos. Imaginamos assim (e mesmo quando simpatizamos com os habitantes da floresta) que eles ainda permanecem no estado de natureza, que são primitivos, simplórios, pouco sofisticados, repetitivos ou mesmo ingênuos. Donde a razão para publicar e traduzir as suas histórias em livros infanto-juvenis, aproximados automaticamente de toda aquela cultura popular genérica povoada pelos sacis, cecis, peris e mulas sem cabeça. Imaginamos, assim, que se trata de algo bastante distinto das literaturas clássicas, provenientes da Grécia antiga e do velho continente, produzidas pela civilização por meio da escrita. Este panorama, claramente etnocêntrico, serve para justificar, ainda que silenciosamente, a submissão dos povos indígenas aos nossos critérios políticos, econômicos e culturais. Mas o que, afinal, eles têm a ver com isso? Que espécie de pensamento criativo produziram nos últimos milênios? (ISA, 2018, s/p) É dentro desse contexto de pensamento criativo que se insere a literatura indígena. Todo esse panorama é fundamental para se compreender por que não buscamos conhecer a cultura indígena por meio de seus próprios escritos? Conhecemos o índio pelo olhar do outro, carregado de preconceitos e pré-conceitos. As primeiras obras indígenas foram UNIUBE 67 difundidas pela tradição oral. Após o contato com os colonizadores, as narrativas passaram a ser escritas como forma de se preservar a memória de cada povo. E, embora não tenha adquirido a mesma visibilidade, sendo ocultadas da história nacional, os escritos indígenas foram produzidos paralelamente à literatura ocidental. Mas somente a partir da década de 1990 é que os autores indígenas brasileiros passaram a ser mais conhecidos no mercado editorial, muito em função dos movimentos indígenas. Boa parte dos textos são bilíngues, escritos na língua nativa, como forma de legitimar a autonomia identitária, e na língua portuguesa, como estratégia de comunicação e divulgação de suas culturas. Devido a essa heterogeneidade narrativa, surge o questionamento sobre como classificar a textualidade indígena. Não há uma textualidade narrativa indígena, mas textualidades. Elas são construídas segundo a diversidade cultural das nações indígenas, seus contextos e formas de utilização de multimodalidades discursivas. [...] as especificidades das textualidades indígenas e seus parâmetros próprios de leitura e análise precisam ser discutidos nas aulas de literatura. É importante que o aluno do Ensino Médio, que já possui um repertório de leituras literárias solicitadas pela escola, perceba que as obras literárias são construções culturais e que há formas de expressão literária diferentes daquelas comumente trabalhadas. Elas nem sempre correspondem aos critérios canônicos ocidentais e possuem valores estéticos próprios. (THIÉL, 2012, p. 47). No caso da Historiografia, como dissemos anteriormente, a Literatura pode ser importante fonte para se compreender melhor a cultura indígena. A narrativa literária, com seus elementos do imaginário e da ficção, oportunizaria o acesso ao modo como as pessoas pensam o mundo e a si próprias. São informações que não se encontram em documentos oficiais, as quais o historiador pode se valer para se aproximar do real e, principalmente, para compreender as manifestações da cultura popular. Além disso,os textos indígenas contribuem para uma revisão da visão tradicional da história do Brasil e dos estereótipos 68 UNIUBE construídos pelos colonizadores. Muitos textos abordam a história de suas etnias, ou mesmo autobiografias, transitam entre as tradições tribais e ocidentais, sendo direcionados principalmente para os não-índios. É como redescobrir nossa própria história! Enquanto a História narrada pelo europeu relegou o índio a uma vida “sem história”, as contranarrativas indígenas preenchem vazios e, ao fazê-lo, constroem novas e distintas versões sobre seus povos. Em outras palavras, novos começos são propostos, por novos cronistas; seus relatos reportam-se a memórias ancestrais transferidas da oralidade para a escritura impressa. [...] Nasce, então, outra História, paralela àquela celebrada pela colonização europeia, que documenta e discute a ação e interação dos povos ameríndios no continente. Nos seus relatos, as comunidades indígenas deixam seu papel estereotipado, passivo, de coadjuvante da História. (THIÉL, 2012, p. 103). A pesquisadora Janice Thiél, em seu livro “Pele silenciosa, pele sonora: a literatura indígena em destaque” (Autêntica, 2012), apresenta algumas obras literárias indígenas que podem ser utilizadas pelo professor para se trabalhar algumas temáticas sob o olhar do índio. Relacionadas à revisão da História do Brasil: 1. JECUPÉ, Kaka Werá. A terra dos mil povos: história indígena do Brasil contada por um índio. São Paulo: Peirópolis, 1998. (Série Educação para a paz). 2. JEKUPÉ, Olívio. Literatura escrita pelos povos indígenas. São Paulo: Scortecci, 2009. 3. MUNDURUKU, Daniel. O banquete dos deuses: conversa sobre a origem da cultura brasileira. São Paulo: Angra, 2000. 4. MUNDURUKU, Daniel. O Karaíba: uma história do pré-Brasil. Barueri: Manole, 2010. INDICAÇÃO DE LEITURA UNIUBE 69 5. POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. São Paulo: Global, 2004. (Série Visões Indígenas). Relacionadas à construção das identidades indígenas e à diversidade étnica no Brasil: 1. GUARANI, Emerson; PREZIA, Benedito (Orgs.). A criação do mundo e outras belas histórias indígenas. São Paulo: Formato Editorial, 2011. 2. JEKUPÉ, Olívio. Tekoa: conhecendo uma aldeia indígena. São Paulo: Global, 2011. (Coleção Muiraquitãs). 3. MACUXI, Ely. O curumim da selva. São Paulo: Paulinas, 2010. (Coleção O Universo Indígena. Série Raízes). 4. VALLE, Cláudia Netto do (Org.). Histórias antigas do povo Kaingáng. Maringá: Eduem, 2010. 5. YAMÃ, Yaguarê. Kurumi Guaré no coração da Amazônia. São Paulo: FTD, 2007. Relacionadas à escritura indígena, à tradição oral e o papel dos narradores: 1. JEKUPÉ, Kaka Werá. Aré awé roiaru’a ma: todas as vezes que dissemos adeus. São Paulo: Fundação Phytoervas de Proteção ao Índio Brasileiro, 1993. 2. JEKUPÉ, Kaká Werá. Tupã Tenondé: a criação do Universo, da Terra e do Homem segundo a tradição oral guarani. São Paulo: Peirópolis, 2001. 3. MUNDURUKU, Daniel. Coisas de índio. 2.ed. São Paulo: Callis, 2010. Dos autores citados, Daniel Munduruku, da etnia de mesmo nome da região do Pará, possui um site no qual divulga outros textos sobre a história e a cultura indígena. O escritor é formado em Filosofia, licenciado em História e Psicologia e doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Já ganhou vários prêmios nacionais e internacionais de literatura, entre eles o Jabuti, o Melhor Livro Infantil (Academia Brasileira de Letras), o Érico 70 UNIUBE Vanucci Mendes (CNPq) e o Tolerância (Unesco), além do selo Altamente Recomendável (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil). Conheça outras obras e textos do autor em seu blog: http:// danielmunduruku.blogspot.com e o site: http://www.danielmunduruku. com.br/ Como futuro professor, você também pode buscar outras referências sobre textos indígenas, pesquisando em bibliotecas e na internet. Conclusão2.5 A cultura material indígena traz uma linguagem simbólica capaz de expressar diferentes manifestações de sua organização social e de sua cosmovisão. A matéria-prima e os conhecimentos empregados na sua confecção traduzem uma tradição milenar, que reforçam a manutenção de sua identidade étnica e permite transmitir às gerações atuais os saberes ancestrais. A cultura imaterial, por sua vez, diz respeito à formação do humano, cumprindo um papel importante na concepção dos valores morais, religiosos e sociais, marcada pela relação entre o sagrado, o simbólico e o sobrenatural, que regem e influenciam a vida indígena. Os índios conservam suas línguas, suas experiências e sua relação com a natureza e com a sociedade. Eles mantêm a tradição oral e os rituais como manifestação artística e maneira de vinculação com a natureza e o sobrenatural. Mantêm o papel socializador e educador da família, aplicam os sábios conhecimentos milenares e praticam o respeito à natureza. Com isso, as culturas indígenas seguem manifestando sua personalidade coletiva e de alteridade, seja no trabalho ou na festa, e por isso são democráticas e populares. (LUCIANO, 2006, p. 50) UNIUBE 71 Ao apresentar alguns exemplos das artes indígenas e seus significados, sua cultura material e imaterial, seus modos de ver o mundo, buscamos nos aproximar e refletir sobre os saberes indígenas, como forma de ampliar o conhecimento sobre esses povos e explorar novas formas de se promover o ensino da história e cultura indígena. Os aspectos aqui apresentados demonstram que ainda temos muito que estudar e compreender sobre a cultura indígena, suas tradições e manifestações, pois há lacunas a serem preenchidas na história brasileira a partir do reconhecimento do papel desses povos em nossa formação. Em conjunto, essas manifestações representam uma matriz importante da nossa identidade. Conhece-las, preservá-las e respeitá-las é um compromisso que devemos assumir enquanto cidadãos brasileiros, mas acima de tudo, como profissionais da educação no sentido de promover aos nossos alunos um contato mais próximo com essa temática. Para se compreender melhor as culturas indígenas é preciso não apenas ver o que está aparente, mas enxergar os modos de ser, de sentir, de crer e de fazer, expressões de uma cultura diversificada que deve fazer parte do que consideramos cultura brasileira. Resumo Neste capítulo abordamos alguns exemplos da cultura material e imaterial indígena, como as artes em cerâmica e cestarias, as pinturas e grafismos, as práticas religiosas, e outras manifestações artísticas por meio da língua, da dança, da música e da literatura. Nosso objetivo foi oferecer subsídios sobre o conhecimento da cultura indígena que possibilite a você, futuro professor, ampliar sua abordagem sobre essa temática em sala de aula. Conhecer a história indígena é fundamental para não apresentarmos uma visão romantizada e estereotipada aos alunos. Assim como qualquer grupo humano, os indígenas possuem aspectos próprios de sua formação, dificuldades e conflitos sociais, formas particulares 72 UNIUBE de se expressar e de manter viva suas tradições. Devemos, portanto, apresentar e estudar o índio em toda sua complexidade, destacando concepções significativas sobre sua organização social, seu modo de vida e da riqueza de sua cultura. Referências AFONSO, Germano Bruno (Org.). Ensino de história e cultura indígenas. Curitiba: InterSaberes, 2016. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_ 03/Constituicao/ Constituicao.htm>. Acesso em 20 dez. 2018. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000. CYLINDRICAL VESSEL COLLECTION H LAW, Wikipédia. 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O valor zero representa a situação de igualdade, ou seja, todos têm a mesma renda. O valor um (ou cem) está no extremo oposto, isto é, uma só pessoa detém toda a riqueza. Na prática, o Índice de Gini costuma comparar os 20% mais pobres com os 20% mais ricos. No Relatório de Desenvolvimento Humano 2004, elaborado pelo Pnud, o Brasil aparece com Índice de 0,591, quase no fi nal da lista de 127 países. Apenas sete nações apresentam maior concentração de renda. (WOLFFENBÜTTEL, 2004) Embora o maior país da América do Sul tenha feito progressos na redução das desigualdades, especialmente entre negros e brancos, os dados estatísticos mostram que as diferenças relativas à educação, renda e habitação ainda são signifi cativas. 76 UNIUBE Em 1976, por exemplo, 5% dos brancos com mais de 30 anos tinham um diploma universitário. Nesse mesmo ano, apenas 0,7% dos negros com mais de 30 anos tinham algum diploma. Em 2006, os brancos com diploma universitário representavam 18% da população, contra 5% dos negros (HERINGER, 2009). Da mesma forma, 7,8% dos brancos, com 25 anos ou mais, estudaram por apenas um ano ou menos; dentre os negros foram 15,2% (IPEA, 2014). Vejamos o seguinte gráfico (com os dados mais recentes) sobre o acesso às universidades, organizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2016): Figura 1: Acesso à universidade. Fonte: Agência IBGE Notícias (dez.2017). Em termos de renda, em 2006, os negros receberam metade do salário dos brancos (IPEA, 2008) e em 2014 receberam 40%. Lembrando que, quando o assunto é habitação, as favelas são majoritariamente povoadas por negros (SHERIFF, 2011). O censo mostrou que, em 2010, 70% das pessoas que viviam nas favelas eram negras (MEIRELLES E ATHAYDE, 2014). UNIUBE 77 Objetivos A partir do estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de: • identificar as raízes de nosso pluralismo étnico em sua expressão afrodescendente; • problematizar as disparidades econômicas e sociais, propondo o abismo estrutural evidente que expõe a desigualdade entre brancos e negros; • avaliar o nível de complexidade das relações étnico-raciais cotidianas, olhando de forma crítica para os embates que se dão em meio comum; • comentar as estruturas históricas que fundamentam as práticas contemporâneas de intolerância étnico-racial com os afrodescendentes.Esquema 3.1 A categorização étnico-racial no Brasil 3.1.1 O debate acadêmico (Sociologia e Antropologia) Embora, possamos constatar que as diferenças, relativamente, diminuíram nas últimas décadas, elas ainda são significativas. Importa, portanto, [e este é o propósito deste capítulo] identificar as origens históricas dessa desigualdade, seu impacto sobre a mentalidade coletiva e as distintas perspectivas projetadas sobre a questão. Neste capítulo vamos, em síntese, falar da negritude brasileira, suas lutas, de sua exuberância e importância para a formação de uma identidade nacional. Mas, sobretudo, iremos problematizar a nossa diversidade étnica e identificar os desafios que o ideal de igualdade e justiça social ainda terá que enfrentar. 78 UNIUBE 3.1.2 A controvérsia suscitada pela Genética 3.2 O panorama atual da desigualdade 3.2.1 O negro e o mercado de trabalho 3.2.2 Criminalidade e crime racial 3.3 O legado do período escravagista 3.3.1 O regime republicano e a afro-descendência 3.3.2 Alguns sinais de mudança 3.4 O mito da democracia racial brasileira 3.4.1 O afrodescendente e a auto-percepção 3.5 Consciência negra e a cidadania plena 3.5.1 O drama etnico-racial em outros países 3.5.2 A Educação e os processos de exclusão 3.6 Conclusão “...a fila de soldados, quase todos pretos Dando porrada na nuca de malandros pretos De ladrões mulatos e outros quase brancos Tratados como pretos Só pra mostrar aos outros quase pretos (E são quase todos pretos) E aos quase brancos pobres como pretos Como é que pretos, pobres e mulatos E quase brancos quase pretos, de tão pobres, são tratados.” Haiti. Caetano Veloso e Gilberto Gil, 1993. A categorização étnico-racial no Brasil3.1 Em geral, no que tange à categorização e problematização do perfil étnico-racial brasileiro, identificamos dois tipos de estudos: um primeiro, com finalidade mais estatística, e um segundo mais crítico-analítico. Enquanto as pesquisas quantitativas evidenciaram a desigualdade UNIUBE 79 socioeconômica entre negros e brancos, aquelas com viés mais qualitativo, essencialmente etnográficas, buscaram explicar as relações na sua expressão cotidiana, na sua intimidade; demonstrando a complexidade das classificações étnico-raciais convencionais. Sim, porque a população brasileira não pode ser reduzida a uma estrutura binária: negros e brancos. Por isso, esses estudos chamaram a atenção para a importância do fator social e do fator histórico, como componentes determinantes no quadro atual. Além disso, eles reiteraram a ideia de que raça é um conceito cujo significado é, constantemente, “renegociado”, movimentando-se conforme a dinâmica cultural, econômica e política (SCHWARCZ, 2001). Aliás, tais considerações levantam a seguinte questão: O que seria, realmente, uma comunidade negra no Brasil? O atual contexto social e político brasileiro apresenta, portanto, profundos desafios às ciências sociais que buscam compreender e explicar o fenômeno da “raça” e do racismo. No centro desses desafios destaca- se a dificuldade em conciliar, do ponto de vista teórico e metodológico, dois aspectos do problema: por um lado, o fato objetivo e estatísticas irrefutáveis que revelam a dimensão estrutural da desigualdade entre negros e brancos (saúde, educação, emprego, etc.). Por outro lado, a dimensão fenomenológica da classificação simbólica, que revela um campo complexo e inadequado de identificação com relação às categorias rígidas propostas pelas políticas públicas. 3.1.1 O debate acadêmico (Sociologia e Antropologia) Vozes consensuais de sociólogos e antropólogos foram ouvidas. Eles procuraram demonstrar a necessidade de abordar essa visível desigualdade socioeconômica como um plano vertical de relações, assimétrico e naturalmente tenso (TELLES, 2003). Mas, sem deixar de considerar a existência dos aspectos "horizontais"; aqueles que se dão nas áreas sem tensões; compartilhadas por negros e brancos, nos 80 UNIUBE espaços recreativos, nos espaços religiosos e até mesmo naqueles que são considerados específicos para os negros [nos terreiros de Candomblé, Jongos e rodas de Capoeira.]. A urgência de encontrar soluções para a flagrante desigualdade racial do Brasil levou intelectuais e acadêmicos a adotar uma postura ativa nas discussões sobre o assunto. Isso provoca o debate sobre o papel das ciências sociais e do "conhecimento especializado" nos processos de construção das políticas públicas voltadas para os anseios da comunidade afro-descendente. No que diz respeito à Antropologia, a discussão também levou a um debate mais amplo dentro da disciplina, em que conceitos fundamentais como raça, etnia, comunidade e cultura foram revisitados. Deve-se lembrar que políticas positivas de inclusão surgiram no Brasil no contexto de uma discussão sobre multiculturalismo na América Latina. Tais políticas pressupõem o reconhecimento na esfera pública por meio da adoção de leis especiais e arranjos institucionais específicos para diferentes grupos socioculturais. Embora a ação afirmativa seja definida como uma política de medidas direcionadas contra a discriminação, ela também responde à demanda por reconhecimento dos afrodescendentes como sendo uma comunidade culturalmente distinta (IGREJA, 2005). Esse tipo de abordagem, como aquelas que se debruçam sobre o cotidiano quilombola, por exemplo, tende a negligenciar o fato de que a grande maioria da população negra brasileira é urbana e a dar pouca importância ao estudo das etnias e das culturas na grande cidade, um ambiente caracterizado por fenômenos típicos da globalização [e, consequentemente, multiculturalistas] (SANSONE, 2008). Além disso, deve-se considerar que o patrimônio cultural afro-brasileiro não foi suficiente para afirmar uma forte identidade racial no País, UNIUBE 81 uma vez que, historicamente, era considerado como um contingente da identidade nacional genuinamente brasileira. E, assim, os espaços culturais têm sido usados pelos negros para transacionar com o “mundo branco” e para se mover com maior liberdade e poder (SANSONE, 2002). Como apontam os antropólogos, o risco seria considerar essas tradições culturais como específicas do negro, centralizar as diferenças e estabelecer uma cultura que sempre foi muito dinâmica e se desenvolveu no contexto da cultura nacional. Fica complicado, portanto, pensar o drama de um grupo específico a partir de manifestações tão polifacetadas. Como falar de consciência negra, a partir da cultura, se aquilo que reconhecemos como cultura afro, na verdade, é afro-brasileira? Não é fácil categorizar, classificar, denominar algum fenômeno, segundo o estigma da africanidade, sem negligenciar o aspecto híbrido e missigenado de nossas tradições. Não obstante essas dificuldades levantadas pelas interpretações antropológicas [sobre o aspecto globalizador da vida do negro urbano, em descompasso com as manifestações do negro provinciano e rural], é necessário reconhecer a legitimidade das demandas por igualdade nas relações étnico-raciais propostas pelo movimento negro. Estes grupos, em suas reinvindicações, encontram uma maneira possível de combater a persistente discriminação racial no país. Os antropólogos brasileiros são, portanto, convidados a engajar-se na luta política ao lado dos movimentos afro-brasileiros e, além disso, contribuir para o aprimoramento das políticas positivas propostas. É que a discussão sobre categorização racial permanece relevante. Devido ao progresso das políticas positivas e sua generalização em nível nacional, torna-se cada vez mais necessário priorizar a identificação dos beneficiários. 82 UNIUBE A ausência de um sistema de classificação binária (negros e brancos) não deve ser considerada sinônimo de uma sociedade efetivamente livre de racismo. Tal abordagem, bastante comum no Brasil, tem vista para o fato de que as inúmeras categorias que descrevem as características fenotípicas de brasileiros– moreno, marrom, mulatos, mestiços – são a realidade racial, herdada de uma classificação social racista e que, historicamente, acompanhou a escravidão dos negros e persiste com a inferiorização dos afrodescendentes. Então, como pensar em raça sem reproduzir esse racismo? Essa questão surge porque nos remete ao problema crucial do papel dos cientistas sociais, ou do conhecimento social, no desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a correção de injustiças. Se a ciência não revela apenas algo que é empiricamente dado a ela, mas ajuda – a partir de suas referências teóricas e instrumentos analíticos – para construir a realidade que procura analisar, então parece claro para nós que é impossível dissociar a ciência do poder e, portanto, da política. Esse fato, por si só, tão crucial para o desenvolvimento de um conhecimento crítico e reflexivo da realidade social, não deve, no entanto, ser traduzido como mera instrumentalização das ciências sociais com o objetivo de legitimar políticas públicas. Em vez disso, uma pesquisa propondo a crítica social deve adotar uma postura reflexiva permitindo-lhe estar atenta ao contexto e a natureza política de qualquer interpretação da realidade; sem que tal implique em um compromisso imediato com as explicações usuais dos fenômenos sociais (e o racismo é o que aqui está em pauta). No que diz respeito ao fenômeno social da raça e do racismo em particular, tal postura envolve, sobretudo, um compromisso com a procura por processos sociais, políticos e históricos específicos, a partir dos quais a raça possa, ou não, tornar-se uma categoria socialmente significativa e a ser problematizada. UNIUBE 83 3.1.2 A controversia suscitada pela Genética Mas, se a questão cultural cria um certo embaraço no que tange à categorização, os aspectos genéticos potencializam sobremaneira esse impasse. Vejamos! Houve um caso muito famoso em que a realidade genética do mestiço brasileiro confrontou o panorama multi-étnico da sociedade. O fato diz respeito à difusão de análises de DNA de alguns artistas brasileiros. Celebridades do meio artístico se submeteram à uma coleta sanguínea para a análise do conteúdo genética de seu sangue e concordaram, ainda, que os tais resultados se tornassem públicos. A pesquisa realizada pelo geneticista Sérgio Danilo Pena, em 2007, a pedido da BBC Brasil, mostrou, por exemplo, que o DNA de Neguinho da Beija-Flor, o personagem mais famoso do carnaval brasileiro, era 67% de origem européia e 31% de origem africana. O artista teve dificuldade em entender que seu sangue era mais europeu que africano. Em uma entrevista à BBC, ele disse que não tinha "olhos azuis, cabelos lisos, nada europeu". Por outro lado, o geneticista explicou que a cor da pele não tem quase nada a ver com o DNA. Pena disse ainda que o estudo provou que o sangue dos brasileiros é muito mais misto do que se supunha. Portanto, quem pode assegurar que os negros de hoje são netos ou netas de escravos do Brasil? (KENT e WADE, 2015). Depois de saber que o sangue de uma das celebridades negras mais famosas do Brasil tinha origens mais européias do que africanas, o debate sobre o sentido da desigualdade se acirrou. Muitos grupos argumentam que há apenas uma raça no planeta e que, por essa razão, não pode haver o favorecimento de um grupo étnico em relação aos demais. Por outro lado, esse argumento é visto pelos ativistas do Movimento Negro como 84 UNIUBE uma estratégia para despolitizar o debate sobre ações positivas. O fato é que o ângulo do debate sobre a desigual relação entre brancos e negros está pendendo para a inexistência de diferenças biológicas (KENT e WADE, 2015). Desse modo, embora alguns pretendam negar a existência de desigualdades entre raças porque elas não existem, a realidade demonstrada pelas estatísticas, assim como pelo que vemos diariamente nas ruas, demonstra que a cor da pele é um fator discriminatório. Embora Neguinho e outros negros tenham genes mais europeus do que africanos, não é por causa de seu conteúdo genético que são excluídos da sociedade, mas, simplesmente, por causa da cor de sua pele. O panorama atual da desigualdade3.2 Fácil compreender o panorama social e étnico-racial brasileiro quando nos deparamos com os dados mostrados na Figura 2, seguinte: Figura 2: Panorama da desigualdade racial no Brasil. Fonte: Uniube – EAD* UNIUBE 85 É que entre um discurso culturalista adaptado à demanda de reconhecimento cultural e étnico e a denúncia de discriminação racial, tal qual a vista na Figura 2 anterior, que relega os negros às classes sociais mais desfavorecidas, há um consenso sobre a necessidade de aplicar ações políticas positivas no Brasil. O debate tornou-se ainda mais importante após a preparação da Conferência do Terceiro Mundo nas Nações Unidas contra o Racismo, a Discriminação Racial e a Xenofobia, em Durban, África do Sul, em 2001. Na ocasião, uma organização de pesquisa governamental, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), destacou-se em particular pela divulgação de dados estatísticos socioeconômicos que confirmaram a desigualdade racial existente no País (HENRIQUES, 2001). A ampla disseminação desses dados atestando a situação social desfavorável da população negra brasileira – que, nesse caso, incluiu toda a população classificada como "negra" e "parda" no censo nacional – justificou a demanda. Dentre os dados, nacionais e internacionais, aqueles relativos ao mercado de trabalho são os mais impressionantes. Por eles é que podemos analisar, com mais segurança, o grau de autonomia social e, consequentemente, cidadania alcançados por essa população. 3.2.1 O negro e o mercado de trabalho Segundo a ONU (2016), os afrodescendentes representam 70,8% dos brasileiros que vivem em extrema pobreza. Essa informação é ainda mais surpreendente quando se considera que o Brasil é o segundo país com a maior população negra do mundo. Na frente dele, existe apenas a Nigéria (IPEA, 2003). 86 UNIUBE As lacunas também são muito grandes quando se compara o número de trabalhadores que ganham a vida fazendo tarefas domésticas. Em 1995, 0,7% dos trabalhadores do País era pessoas brancas que trabalhavam com algum tipo de serviço doméstico (jardineiros, motoristas particulares, cozinheiros, faxineiros...), enquanto 0,9% era negro. Em 2014, esse número, entre os brancos, aumentou para 0,8% e, entre os negros, para 1%. A questão salarial, no entanto, parece ser o aspecto que causa maior desconforto. Vejamos os dados fornecidos pelo IBGE (2010): Figura 3: Desigualdade salarial (negros e brancos). Fonte: Balbani (2016). A diferença é mais pronunciada quando se comparam as mulheres. Um percentual de 13% das trabalhadoras desse setor de serviços domésticos eram mulheres brancas [pesquisa de 1995]. Comparativamente, no mesmo ano, as mulheres negras representavam 22% das trabalhadoras do setor. Em 2014, uma outra pesquisa apontava que 10% da população de mulheres brancas brasileiras trabalhavam em empregos domésticos, enquanto o percentual entre as mulheres negras era de 17,6% (IPEA, 2014). UNIUBE 87 Da mesma forma, o aparecimento de negros na imprensa, geralmente, se dá nas páginas criminais (MIRANDA e SILVA, 2014). Segundo o "Imprisonment Card" emitido pelo governo brasileiro, em 2012, os negros representavam 60,8% da população carcerária. A análise também concluiu que os negros permanecem presos mais tempo que os brancos. Os negros também são mais propensos a serem vítimas de homicídio. Segundo o estudo, 77% dos jovens entre 15 e 29 anos que morreram por homicídio em 2012 eram negros e 93,30% eram do sexo masculino. E ainda há escassez de vagas dedicadas para eles no sistema legislativo e judicial. Essas posições consideradas como "posições de confiança" carecem de representação negra. No Judiciário, 15,7% dos juízes são negros. No Supremo Tribunal, eles não têm representação. As cotas nesses setores nãoforam aprovadas pela Câmara, em parte devido à baixa representação de negros na legislatura, enquanto apenas 8,5% são descendentes de africanos (ONU, 2018). Assim, a posição desvantajosa dos negros na sociedade brasileira também se reflete na falta de representação que sofrem no sistema político. Não só a economia cria disparidades baseadas em uma divisão desigual do trabalho, mas a política, ao não proteger ou muito pouco de dignidade e humanidade de cidadãos pobres, tolera implicitamente o reconhecimento desigual de pessoas que são iguais em princípio (DE ADESKY, 2001). 3.2.2 Criminalidade e crime racial O saldo da criminalidade urbana no Brasil é pesado. No Rio de janeiro, por exemplo, a taxa de homicídios por 100.000 habitantes por ano é de 32. Isso é mais do que a média da América Latina (24 por 100.000). Essa estatística é 20 vezes superior à taxa de homicídios da França. Estes são dados fornecidos pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento - 88 UNIUBE BID em um estudo recente sobre o custo da violência urbana no Brasil (JAITMAN, 2017). No total, quase 60 mil assassinatos foram cometidos no Brasil, mais de 10% do total registrado no mundo. As desigualdades sociais (e a questão étnico-racial está acoplada ao contexto) são notadas por esses estudos oficiais. Um indivíduo que tem menos de oito anos de estudo tem uma probabilidade 5,4 vezes maior de ser assassinado alguém que estudou. E, é claro, os dados ainda revelam que, nos últimos doze anos, o número de homicídios de negros aumentou muito mais rapidamente que o de brancos (IPEA, 2010). Igualmente, cresce o número de crimes relacionados, diretamente, ao racismo. Acompanhe, a seguir, a matéria do Portal G1 que aborda a questão: Crimes raciais são 68% dos casos em delegacia especializada em SP Dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP/SP) apontam que há três anos cresce a representatividade dos crimes raciais entre os inquéritos instaurados pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), órgão especializado nesse tipo de ocorrência no Estado. Entre janeiro e outubro desse ano, 68% das investigações tratavam de racismo, um total de 75 casos. No ano passado, os inquéritos sobre o tema instaurados no mesmo período representavam 60,4% do total. Em 2013, por sua vez, o número de averiguações de intolerância de raça, cor e etnia eram 44,9% do total. SAIBA MAIS UNIUBE 89 Apesar de estar localizada na capital paulista, a Decradi recebe denúncias de todo o Estado e é a única que investiga crimes como racismo, homofobia, xenofobia e outros tipos de preconceito, como o religioso. Para a pedagoga Silvia Helena Seixas, diretoria da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), os dados reforçam que a sociedade está cada vez mais intolerante aos comportamentos racistas. Mais do que isso, apontam um reconhecimento de direitos por parte da própria população negra. “Elas estão tendo mais coragem de denunciar, mas, mais importante do que a denúncia, é saber que eu, enquanto cidadã, ser humano, negra, preciso ser respeitada. Você começa a entender que nós temos que ser diferentes, porque somos, mas não podemos ser desiguais”, afirma. Repercussão Um dos casos de maior repercussão é o que envolveu a jornalista da TV Globo Maria Júlia Coutinho, alvo de diversas mensagens racistas em uma rede social, em julho desse ano. No mesmo mês, um adolescente de 15 anos foi identificado pelo Decradi, por suspeita de ter postado comentários ofensivos. “Ações como essa nos fortalecem porque parece que o racismo, que a discriminação racial, se confunde com a discriminação social. E fica muito claro, nesse caso, que o racismo supera a classe social”, diz a pedagoga. Silvia relembra também as denúncias de racismo, discriminação e violência sexual em um hino da faculdade de medicina da USP em Ribeirão Preto (SP). O caso ganhou destaque em novembro do ano passado, após divulgação da letra, que tem expressões como “morena gostosa” e “preta imunda”. 90 UNIUBE “Como é que uma universidade pública permite um texto desses? Além de ser um crime, é um crime contra a humanidade, contra toda a raça negra, não só contra a mulher negra. Não há adulto negro no nosso país, que nunca tenha sofrido racismo”, afirma. Na época, a USP enviou nota à imprensa explicando que o folheto entregue aos calouros, que contém o hino em questão, não se trata do material oficial impresso e distribuído pela Faculdade. A Universidade também alegou que não tinha conhecimento da letra, e que o hino não é utilizado pela bateria do curso nos eventos oficiais. Injúria x racismo O advogado Paulo Patrezze explica que embora sejam crimes raciais, a injúria e o racismo são diferentes perante à legislação brasileira. Enquanto a injúria racial consiste em ofender a honra de alguém, o outro atinge uma coletividade, a integralidade de uma raça. Além disso, o racismo é inafiançável e nunca prescreve. “Apesar da dificuldade de definir quando ocorre um e quando ocorre outro, esse aspecto de ser subjetivo em relação a uma pessoa, ou coletivo, contra toda uma raça, é o que define esses dois crimes”, conclui. (G1/RIBEIRÃO PRETO E FRANCA, 2015). O legado do período escravagista3.3 O Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão e esse é um fator que contribui para a permanência das desigualdades sociais entre negros e brancos. A ratificação da Lei Áurea, em 1888, pela princesa Isabel de Bragança, não significou, conjuntamente, o fim do preconceito e da opressão étnico-racial; uma vez que esta lei não foi acompanhada de políticas de integração e acolhimento. UNIUBE 91 Os escravos libertados após a promulgação da Lei Áurea estavam, então, ansiosos para entrar no mercado de trabalho com alguma dignidade, mas não obtinham êxito [porque eram, em sua maioria, analfabetos]. Associada à essa ausência de educação formal, temos a exclusão política. Isso tudo compõe um destino pouco surpreendente: mendicância, alcoolismo e, em alguns casos, suicídio (MARINGONI, 2011). O destino dos ex-escravos também era atribuível à postura segregacionista da elite brasileira (composta por uma maioria de brancos ricos) que consideravam que os negros eram inferiores a eles em termos de atributos intelectuais [inclusive com uma pretensa justificação científica]. Assim, os negros brasileiros passaram a ser marginalizados pela parcela branca e rica da sociedade que passou a pagar pelos serviços de pessoas que já haviam sido seus escravos; ou pelos serviços dos descendentes dos escravos de seus ancestrais (MARINGONI, 2011). 3.3.1 O regime republicano e a afro-descendência. O Brasil do final do século XIX e início do século XX não queria se admitir, também, negro. A escravidão parecia ser a expressão de um atraso civilizatório para a elite cafeicultora e branca em ascensão. Vejamos, na Figura 4, como o Estado representava, por documentos oficiais, a população brasileira da época (ou aquilo que se pensava a respeito dela). 92 UNIUBE Figura 4: População brasileira - final do século XIX. Fonte: Agência IBGE. Notícias. 2018 Por essa razão, uma das “soluções” do novo governo republicano do Brasil para o “problema” da população negra foi implementar o chamado "branqueamento da população". Segundo esse movimento pensado e empreendido pelo Estado republicano, era importante incentivar a imigração europeia para o Brasil. Entre o final do século XIX e o início do século XX, em um período de 30 anos, três milhões de imigrantes chegaram ao Brasil, tendo se beneficiado de um subsídio do governo brasileiro (IBASE, 2008). Era a garantia de que a população, pouco a pouco, ficaria mais europeia. E, é claro, para os padrões do racismo institucional, uma população europeia é mais ordeira e virtuosa. UNIUBE 93 Durante esse período, os negros foram proibidos de entrar legalmente no Brasil, de acordo com o Decreto nº 528 da década de 1890 da Constituição Brasileira.O Artigo 1 afirmava que a entrada nos portos da República brasileira era inteiramente gratuita para as pessoas que podiam trabalhar, que não eram objeto de procedimentos criminais em seu país de origem, com exceção dos brasileiros natos. Asiáticos e africanos, no entanto, só poderiam ser admitidos com uma autorização expressa do Congresso Nacional. Até a crise de 1929, o boom do café atrai 4 milhões de imigrantes da Europa, pouco preocupados com o passado colonial e as raízes de sua nova pátria. Estes, orgulhosamente, exibem sua identidade quando triunfam em toda parte, fortalecendo o mito da "superioridade do homem branco". Fato é que, assim que o Brasil se tornou independente em 1822, as elites não pararam de negar a matriz africana. Até mesmo o escritor, supostamente abolicionista, Ruy Barbosa de Oliveira (1849-1923) autorizou, em 1890, como ministro das finanças, a destruição da maioria dos arquivos do governo relacionados à escravidão. Uma maneira desastrosa de ocultar uma marca vergonhosa e evitar qualquer forma de compensação. Escravidão abolida, os antigos cativos são deixados para se defenderem sozinhos. Enquanto nos Estados Unidos, o presidente Lincoln abre 4.000 escolas para escravos, o Brasil não cria nenhuma. Sem terra, sem educação, cortado de toda estrutura social, o negro livre foi condenado à miséria. A tão esperada abolição está na gênese desigualdade. 3.3.2 Alguns sinais de mudança É com o "modernismo" brasileiro da década de 1920, que rejeita energicamente o servilismo ao academicismo europeu, e também com os romances de Mário de Andrade, que evocam a passagem da cultura 94 UNIUBE branca para a cultura brasileira genuína, que o quadro se modifica um tanto. E ainda é com o trabalho de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala (senhores e escravos), em 1933, que se abre uma perspectiva que exalta a miscigenação como uma "especificidade sublime" brasileira. Se o sociólogo de Recife desenvolve versão controversa do colonialismo português, ele tem o grande mérito de problematizar qualquer noção de hierarquia entre as "três raças" fundadoras da nossa brasilidade (africanos, índios e portugueses). Definida como contraponto ao modelo segregacionista norte-americano, essa noção foi um sucesso rápido no Brasil. Meio branca, meio negra, Nossa Senhora da Conceição Aparecida se torna a padroeira do País. Um prato de escravos, a feijoada é consolidada como o prato nacional por excelência. Também, uma música "negra", o samba, se torna o típico som brasileiro. Pelo menos até o final da década de 1970, é através desse estereótipo (de hibridização biológica e cultural) que o País se mostra ao mundo exterior. Foi somente na década de 1970, com o crescimento do Movimento Negro [movimento militante], que o racismo se tornou um tópico de discussão entre os brasileiros minimamente comprometidos com a justiça social. É que os integrantes do Movimento Negro passaram a reivindicar o reconhecimento da cidadania negra e a denunciar que "a sociedade brasileira não foi capaz de resolver a desigualdade econômica e os problemas de discriminação que pesam sobre a população afrodescendente do país" (D’ADESKY, 2001). O Movimento Negro surgiu como um movimento associado à esquerda política e vinculado a outros movimentos, como o feminista e os sindicatos. Suas conquistas foram significativas apenas a partir dos anos de 1989, quando uma lei de criminalização do racismo foi colocada em vigor. Da mesma forma, o governo brasileiro estabeleceu o dia 20 de UNIUBE 95 novembro como sendo o dia de comemoração da "Consciência Negra", a fim de promover uma reflexão sobre a inclusão definitiva dos negros na sociedade brasileira. Este dia foi escolhido por se tratar do dia em que Zumbi do Palmares, um dos líderes do quilombo de Palmares, morreu em 1695. Zumbi permanece até hoje como um símbolo da resistência do povo negro ao açoite do preconceito e da discriminação racial. Além disso, o primeiro presidente a confessar publicamente a existência da discriminação racial no Brasil foi Fernando Henrique Cardoso, que governou o país de 1995 a 2003. Mas só com os governos de Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) e Dilma Housseff do Partido dos Trabalhadores (PT) é que o Brasil avançou, de fato, no campo da inclusão social dos afrodescendentes brasileiros (JÚNIOR, DAFLON e CAMPOS, 2012). O mito da democracia racial brasielira3.4 A socialdemocracia brasileira foi construída sobre o mito da democracia racial, segundo a qual todos no Brasil vivem juntos sem conflito ou segregação. É verdade que, ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos e na África do Sul, a segregação racial nunca foi legalmente estabelecida no Brasil republicano (IBASE, 2008). Por essa razão, não houve grandes conflitos entre negros e brancos, como vimos nesses outros dois países. A discriminação permaneceu bastante oculta e velada em terras brasileiras. O drama vivido pelo afrodescendente em nosso país se evidencia, sobretudo, através da falta de oportunidade social. Só com os estudos realizados por intelectuais paulistas financiados pela UNESCO, na década de 1950, evidencia-se essa diferença na integração social e na sobrevivência de preconceitos contra pessoas de cor, de fato raciais e não sociais (FERNANDES, 1965). Esses estudos indicam a existência do racismo mascarado no Brasil, apoiado por uma ideologia 96 UNIUBE de harmonia racial que mantém o status quo, impedindo a mobilização política em torno dos problemas raciais. A este respeito, devemos mencionar também os estudos realizados na década de 1970 e 1980 por Carlos Hasenbalg (1979) e Nelson do Valle Silva (1981) que debatem a associação imediata entre o preconceito e a escravidão como uma relíquia histórica, e mostram que a discriminação racial está sendo atualizada em novas formas, contribuindo para perpetuar uma situação de desigualdade social dos negros. 3.4.1 O afrodescendente e a autopercepção Esta situação de negros vivendo em extrema pobreza, em lugares perigosos e com más condições sanitárias, também foi retratada pelo antropólogo Robin E. Sheriff (2011), que morou um tempo no Rio de Janeiro para escrever seu livro "Sonhando com a igualdade: cor, raça e racismo no Brasil urbano”. O autor aponta que as vagas de empregos mal remunerados e braçais, em sua maioria, são preenchidas por negros. Depois de viver por mais de um ano no Morro do Sangue Bom, Rio de Janeiro, o autor notou que as pessoas que moram lá, frequentemente, se referem às favelas como sendo "lugar de preto". Além disso, fazem a comparação entre as favelas e as antigas senzalas. Sheriff (2011) percebeu que o sentimento de inferioridade, de baixa autoestima, é evidente nos relatos dessa população. Muitos aceitam essa situação, acreditando que a pobreza é o seu destino [simplesmente, porque nasceram afrodescendentes]. Fácil, aliás, compreender essa passividade autodepreciativa na fala de muitos afrodescendentes, se considerarmos que os próprios governantes brasileiros sempre defenderam a tese de que existe no país uma "democracia racial". UNIUBE 97 Inevitavelmente, essa noção equivocada sobre si, acaba influenciando no auto definição. Claro, se alguém entende a negritude como coisa ruim, dificilmente, se admitirá negro. Baseado nessa perspectiva é que Araújo afirma: [...] a percepção social da cor e a escolha e/ou atribuição de categorias de cor é uma operação complexa que envolve não apenas uma apreensão de características fenotípicas, aqui imbuídas de valor e carregadas de significado, mas em que as categorias compõem um sistema e esta operação se processa num contexto de interação social. (ARAÚJO, 1987, p. 15) A verdade é que essa "democracia racial" é falaciosa. Porque não há possibilidade de se estabelecer um ambiente democrático e essa enorme parcela da população brasileira não tem acesso a uma boa educação. Como já mencionamos, os negros fazem parte da população mais pobre do Brasile, consequentemente, eles não podem se dar ao luxo de estudar em escolas particulares, então as chances de sucesso no mercado de trabalho são muito improváveis. Nunca houve uma institucionalização da segregação racial no Brasil republicano, como ocorreu em outras repúblicas. Aqui, falamos de uma suposta "cordialidade", ofuscada pelo calor das relações sociais. A verdade é que se trata de um racismo perverso e hipócrita, travestido de democracia. O movimento negro, a muito custo, está se fortalecendo e sendo muito melhor retransmitido do que antigamente. Aos poucos a máscara do racismo brasileiro cai e a sua face verdadeira se revela. Consciência negra e a cidadania plena3.5 O surgimento de uma consciência negra, no entanto, ainda sofre com o peso do antigo mito racial brasileiro. O louvor à miscigenação, o fundamento da ideologia da democracia racial, visava negar a existência 98 UNIUBE de divisões raciais e impedir o despertar da negritude. Também foi posta a serviço de um ideal de "mobilidade social" que os negros eventualmente internalizam. Acaba sendo um discurso oportuno porque o dinheiro e o poder sugerem um “branqueamento” da pessoa e que finda por silenciar muitas vozes negras. Faz-se necessário, no momento, olhar para fora e assistir como muitos países, com dramas sociais semelhantes, começam a lidar com o problema. As marcas históricas deixadas por períodos de segregação explícita e institucionalizada precisam ser ressignificadas e a dívida social com os segregados (ou descendentes dos mesmos) ser paga. 3.5.1 O drama etnico-racial em outros países Podemos ver que a Índia, os Estados Unidos e o Brasil compartilham um passado onde certos grupos étnicos têm sido inegavelmente vítimas de injustiças sociais e são discriminados até hoje. Para reparar as injustiças sofridas por esses grupos, os três países implementaram ações positivas a fim de "desempenhar um papel desencadeador para dotar a filosofia da igualdade de direitos com um objetivo mais operacional" (SIMON, 2005). Em 2011, 16% da população da Índia eram dalits, enquanto nos Estados Unidos os negros e hispânicos representavam 30% da população (GARCES e MICKEY-PABELLO, 2015). No entanto, no Brasil, como já mencionamos, o grupo mais desfavorecido da sociedade representa quase 50% da população, mas, ironicamente, fomos os últimos a adotar políticas de ação positiva. As primeiras conquistas em termos de direitos e liberdades de negros e mestiços no Brasil foram devidas principalmente aos esforços do Movimento Negro. Os representantes deste grupo fizeram campanhas para aumentar a conscientização quanto a tragédia histórica que a escravidaõ significou. A pressão política exercida por grupos organizados UNIUBE 99 aumentou; a mídia sedeu algum espaço à essas vozes militantes e, por fim, alguma coisa acabou acontecendo. O presidente Fernando Henrique Cardoso, de maneira inédita, reconheceu que o Brasil era um país racista, na terceira conferência mundial da ONU contra o racismo em 2001 (JÚNIOR Et al., 2015). Foi aberto um caminho para que, durante os mandatos dos governos de Lula e Dilma (os dois representantes do Partido dos Trabalhadores, o PT), o Movimento Negro visse suas demandas atendidas e ações implementadas para se reduzir as desigualdades sociais. Este é, no entanto, um assunto que trataremos em capítulo posterior. 3.5.2 A Educação e os processos de exclusão O panorama educacional brasileiro é aquele em que as escolas públicas de Educação Básica são conhecidas por sua baixa qualidade [em contraste com as universidades públicas, que ainda estão entre as melhores do país]. O acesso a estas boas universidades públicas é mais fácil para as pessoas de classe média, ou pessoas ricas; porque as pessoas mais pobres não têm recursos suficientes para matricular seus filhos em instituições com um bom programa de preparação pré-vestibular. No Brasil, o que determina o acesso às universidades públicas é o sucesso no vestibular. Por essa razão, os alunos que estudaram em escolas particulares têm maior probabilidade de sucesso porque tiveram uma educação de melhor qualidade. Essa competição é, assim, vista pela maioria dos cientistas sociais como uma forma de selecionar os “melhores alunos”, reproduzindo, ou perpetuando, as velhas hierarquias sociais do Brasil. 100 UNIUBE O abismo social brasileiro acaba sendo legitimado por essa forma de avaliação excludente, que premia o jovem branco de classe média com a Universidade gratuita e de qualidade e condena o jovem negro com a impossibilidade de cursar uma faculdade [já que, frequentemente, faltam recursos para o ingresso na universidade privada]. Vale lembrar que, segundo os dados relativos à Educação Básica, pelo critério de cor ou raça, a taxa de escolarização de brancos (37,4%) levou vantagem sobre a de negros e/ou pardos (29,4%), coisa que pode ser observada em todas as macrorregiões do país. Vejamos o gráfico da Figura 5: Figura 5: Escolaridade básica (negros e brancos). Fonte: Agência IBGE (2017). Em um estudo mais antigo, do Instituto Nacional de Avaliação do Ensino Fundamental (antigo Saeb), entre 1995 e 2001, os resultados dos brancos, obtidos na escola, já eram muito superiores aos obtidos pelos negros. Em um exame para medir a proficiência em leitura em uma escola pública, 67% dos estudantes negros tiveram um desempenho ruim, ou muito ruim, em comparação com 44% dos brancos que tiveram o mesmo resultado (IBASE, 2018). UNIUBE 101 O mesmo estudo foi feito com as crianças de uma escola particular e houve diferenças semelhantes entre o desempenho de negros e brancos. O primeiro marcou 179 pontos em um exame, enquanto o segundo ganhou 228 pontos. A conclusão foi que, em todas as esferas socioeconômicas, os estudantes negros têm um desempenho mais baixo no nível da escola do que os brancos, e esse resultado está relacionado à discriminação dos estudantes negros (IBASE, 2018). O difícil acesso a empregos que exigem certas “qualificações” explica a grande presença de mulheres negras no setor doméstico, onde, na maioria dos casos, não é necessário diploma universitário. Essa situação está bem exposta na mídia brasileira, particularmente nas telenovelas, onde os negros são, frequentemente, associados ao trabalhador braçal e/ou doméstico. Em outras palavras, os negros estão claramente em desvantagem em relação aos brancos em muitos setores da sociedade brasileira. A dificuldade de acesso a uma boa educação escolar impede que eles ingressem em uma universidade pública e, como a maioria não tem dinheiro para estudar em universidades particulares, continuam impedidos de competir com a elite branca, de igual para igual, no mercado de trabalho. Conclusão3.6 As ações políticas positivas e valorização cultural implementadas no Brasil desde a década de 1990 tornaram possível reduzir a discriminação racial, mas ainda estão longe de tê-las erradicado. Ex-país escravo, com uma população da qual mais da metade é negra ou mestiça, o Brasil só tomou conhecimento muito tarde da violenta realidade da discriminação racial. Os primeiros passos tomados consistiram, antes 102 UNIUBE de tudo, em valorizar a cultura afro-brasileira, com a Constituição de 1988, que criou a Fundação Cultural Palmares. Talvez, dos processos de resgate e valorização da memória negra no brasil, tenha sido a descoberta arqueológica do Cais do Valongo no Rio de Janeiro. O que as informações resgatadas do subterrâneo carioca nos propõem, pode oferecer o mais coerente resumo sobre o sentido histórico de tudo que apresentamos nesse capítulo. Consideremos, primeiramente, que, aproximadamente, 1 milhão de pessoas vieram para o Brasil e aqui chegaram, na condição de escravas, através do Cais do Valongo (cuja a extensão ia até a atual Praça da República). Valongo foi o portal que, possivelmente, recepcionou 25% da população escrava que aportara no Brasil. É nesse cais que se inicia a epopeia deluta e sofrimento vivida por gerações e gerações de afrodescendentes brasileiros. O que isso significa? Bem, dia após dia, Valongo também ajudou a dar substância à extensão do tráfico de escravos no Brasil: dos 9,5 milhões de africanos capturados na África e enviados para o Novo Mundo entre os séculos XVI e XIX, quase 4 milhões desembarcaram nessas terras. Dez vezes mais que os escravos que foram enviados para os Estados Unidos. Imaginar um contingente populacional com essas dimensões e reconhecê-lo em quantidade relevante nas estruturas de poder econômico e político do país é, no mínimo, significativo. Por isso, vivamente incomodado com o cenário social inequívoco que se apresenta, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, declarou em 2015, em seu discurso de posse no STF: “O racismo do Brasil é oculto, sutil, não confirmado em sua expressão, mascarado e subestimado pela mídia". Essas as palavras do primeiro juiz negro a se sentar na Suprema Corte do Brasília. E ele seguiu, UNIUBE 103 relatando que, já sendo uma das figuras públicas mais famosas do Brasil, foi-lhe dado, por duas vezes, um par de chaves na porta de restaurantes, entregues por homens brancos que o acreditaram em manobrista do estabelecimento. E conclui Joaquim Barbosa: "...as coisas estão mudando, lentamente, uma consciência está tomando forma." (BARBOSA, 2015) Resumo Vimos nesse capítulo que o estudo da questão étnico-racial é multidisciplinar por natureza (CHICHA-PONTBRIAND, 1998) e que "resulta das práticas, decisões e comportamentos de vários atores, que se somam e reforçam, ao longo do tempo, a situação de desigualdade dos membros dos chamados “grupos-alvo" (CHICHA-PONTBRIAND e CHAREST, 2013). Ou seja, é essencial trabalhar para sensibilizar a sociedade brasileira elitista e às vezes, racista para que ela acolha o afrodescendente como um igual, nunca como um inferior. Os avanços dos últimos anos não podem ser tomados como garantias absolutas, mas devem ser usados como encorajamento para as pessoas que lutam pelo seu lugar na sociedade; o lugar que lhes foi injustamente negado durante séculos. Vimos, ainda, que, eventos recentes no cenário político brasileiro certamente enfraqueceram as esperanças e oportunidades dos negros na sociedade. Os governos mais recentes cuidaram de cortar o orçamento para programas sociais. Nomearam para os cargos de maior importância na estrutura administrativa, em sua maioria, homens brancos. O negro foi negligenciado nas nomeações ministeriais. Estamos testemunhando um retrocesso na democracia brasileira. Essas ações vão contra as recomendações do relatório da ONU de 2016 sobre desigualdade no Brasil. As Nações Unidas afirmaram que tudo 104 UNIUBE deve ser feito para que possamos "evitar a regressão nessas áreas, de acordo com o devido processo legal" (ONU, 2016). Seguir esta recomendação parece ainda mais difícil com governos conservadores. Referências AGÊNCIA IBGE Notícias. Estatísticas sociais. PNAD Contínua 2016: 51% da população com 25 anos ou mais do Brasil possuíam apenas o ensino fundamental completo. 21.dez.2017. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia- noticias/2013-agencia-de-noticias/releases/ 18992-pnad-continua-2016-51-da- populacao-com-25-anos-ou-mais-do-brasil-possuiam-apenas-o-ensino-fundamental- completo.html. Aceso em: jan.2019. 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Certas manifestações de arte e cultura popular em nosso país são chamadas, por alguns, de “afrobrasileiras” e, por outros, de "brasileiras". É que existe, por trás da denominação “brasileira”, um crescente orgulho nacionalista, maneiras convenientes de promover agendas locais e, quem sabe, de acondicionar mercadorias culturais ao gosto nativo. Por vezes, também são rotuladas como manifestações "afro-brasileiras" para enfatizar suas "raízes" africanas ou suas origens no contexto da cultura original, passando pelas experiências traumáticas da sociedade escravista brasileira e a necessidade afi rmativa. Os movimentos de consciência negra no Brasil criticaram o fato de que o nacionalismo brasileiro subestima a contribuição cultural dos 110 UNIUBE escravos africanos. Eles afirmam que o samba e a capoeira, por exemplo, são, acima de tudo, expressões culturais dos africanos da diáspora e, portanto, representam "extensões" africanas, em vez de "invenções" genuinamente brasileiras. Alguns estudiosos afirmam que o que é visto em muitos países latino-americanos como sendo danças típicas nacionais - rumba, tango, merengue e samba - deve ser entendido como uma simples continuação da estética artística da África. Este debate levanta uma questão mais ampla e relativa à continuidade cultural e de especificidades de países no contexto das sociedades escravocratas e da pós-emancipação. Classificar a capoeira ou o samba como expressões brasileiras é enfatizar a mudança, enquanto que descrevê-los como africanos (ou afrobrasileiros) é destacar a permanência. Em seu zelo por mostrar a irrelevância das tradições africanas, estudiosos eurocêntricos, frequentemente, ignoraram importantes semelhanças entre os escravos africanos, o que permitiu continuidades significativas na música, dança e religião. Os escritores afrocêntricos, por outro lado, ansiosos por provar a extensão das continuidades entre as culturas africana e afro-americana, desconsideraram as rupturas e negligenciaram os mecanismos cativos usados para compensar a perda de tradições. Demasiada insistência com continuísmos culturais, ou com mudanças abruptas, pode levar a uma subestimação da brutalidade da escravidão e/ou de uma reabilitação das instituições originais. Por mais legítima que seja cada perspectiva em suas aspirações para fornecer identidade à comunidade afrodescendente, ao deixar de enfatizar um lado da equação, arrisca-se a menosprezar a complexidade do processo histórico. UNIUBE 111 Objetivos • Analisar as principais tradições, costumes, crenças e valores culturais que caracterizam a experiência social afro-brasileira. • Conhecer as formas de expressão artística afro-brasileiras mais significativas, atentando para os mecanismos de aculturação de que são resultantes. • Perceber as formas de expressão da religiosidade que floresceu do sincretismo afro-brasileiro. • Problematizar a construção do ideário brasileiro em torno das tradições afro-brasileiras a partir das produções literárias relativas ao tema. • Identificar as permanências e mudanças relativas às manifestações culturais afro-brasileiras de hoje e suas raízes históricas mais profundas. De uma perspectiva transatlântica, África e Brasil, é possível conceber essas expressões como não "brasileiras", nem "africanas", mas como desenvolvimentos híbridos. A rígida dicotomia entre africanos e brasileiros é, em grande parte, devido a projeções anacrônicas sobre o passado, resultado de nacionalismos do século XX que tentam se reapropriar da história para honrar suas próprias agendas. No início do século XIX, o Brasil e a África não eram muito mais que conceitos geográficos, formando identidades não-estáveis com os atores históricos identificados. No Brasil, nações neo-africanas como Mina ou Angola, divindades da África Ocidental ou Central, santos católicos e identidades regionais e locais assumiram uma importância muito maior na vida dos escravos e das pessoas libertadas e seus descendentes. 112 UNIUBE Esquema 4.1 O legado da ancestralidade africana. 4.1.1 Tradições quilombolas: costumes; crenças e valores. 4.2 Expressões artísticas da cultura afrobrasileira. 4.2.1 O Tambor de Crioula e a identidade nacional. 4.2.2 A relevância comunitária do Jongo. 4.2.3 A Capoeira como símbolo de resistência. 4.3 Expressões da religiosidade 4.3.1 A força cultural do Candomblé. 4.4 Literatura afro-brasileira 4.5 Conclusão “Será que ela tá na cozinha guisando a galinha à cabidela Será que esqueceu da galinha e ficou batucando na panela Será que no meio da mata, na moita, a morena ainda chocalha Será que ela não fica afoita pra dançar na chama da batalha”. Morena de Angola, de Chico Buarque de Holanda, 1980. O legado da ancestralidade africana4.1 A abolição da escravatura foi formalizada no Brasil por uma lei aprovada noParlamento e promulgada em 13 de maio de 1888, quando o País era uma monarquia constitucional. A lei, conhecida como Lei Áurea, foi assinada pela Princesa Regente, Isabella de Orleans-Bragança, que se tornou, de certo modo, uma figura redentora. A imagem de uma princesinha branca libertando, por decreto, os “bem tratados” escravos brasileiros tem sido retransmitida pela historiografia tradicional através da educação básica de nosso País. Contudo, essa imagem se opõe drasticamente, àquela de um sistema escravagista cruel e violento, UNIUBE 113 ao qual o preto resistiu, sobretudo, fugindo e formando quilombos. A aprovação da Lei no Parlamento foi seguida por fugas maciças de trabalhadores escravos para os quilombos. Segundo os revisionistas da memória e do imaginário em torno da afro-descendência no Brasil, um número significativo de escravos alforriados pelo decreto da Princesa Isabel preferiram a vida nos quilombos. Com a abolição, imagina-se que o contigente populacional dessas comunidades triplicou. Assim, os descendentes quilombolas de nossos dias podem ter como antepassados negros fugitivos, ou negros alforriados pela Lei Áurea. A Constituição Brasileira de 1988 preparou o caminho para políticas de correção da escravidão africana no Brasil. Entre elas aparece a possibilidade de obter os títulos de propriedade coletiva da terra para comunidades negras tradicionais reconhecidos como descendentes de comunidades [remanescente de quilombo] e reconhecimento oficial dos ativos intangíveis relacionadas com o património das pessoas escravizadas. A princípio, para uma leitura mais restritiva do texto constitucional brasileiro, apenas os descendentes de escravos fugitivos que viveram nos quilombos estariam protegidos pela lei. Essa leitura pragmática da Carta Constitucional tem dificultado o estabelecimento de direitos contemporâneos para comunidades que se apresentam como polos mantenedores e irradiadores das tradições afro-brasileiras mais genuínas (visto que muitos desses quilombolas descendem dos negros alforriados após a Lei Áurea). Essas comunidades negras rurais espalhados por todo o País, lutando para o reconhecimento da propriedade tradicional de terras coletivas, devem ser considerados os legítimos guardiões da herança cultural 114 UNIUBE afro-brasileira. Juristas, historiadores, antropólogos e, em particular, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) têm desempenhado um papel importante nessa luta quilombola. Valorizando o componente da resistência cultural permitiu-se a manutenção histórica de tais comunidades. A promulgação do Decreto do Patrimônio Imaterial em 2000 reforçou essa posição e permitiu aos quilombolas atribuir o status de patrimônio cultural à sua própria história, memória e expressões culturais. Os artigos 215 e 216 da Constituição de 1988 entendem que o conceito de patrimônio cultural precisa ser ampliado. Não se trata apenas de edifícios suntuosos em pedra e cal, mas também de uma herança intangível resultante das manifestações da cultura popular. A Constituição de 1988 expandiu as noções de direitos para as comunidades quilombolas e incluiu essas práticas culturais. A legislação brasileira passa, então, a promover a proteção do patrimônio cultural brasileiro, inclundo em um sentido mais amplo, em termos culturais e sociais, os ativos tangíveis e intangíveis, os espaços e a memória dos diferentes grupos que constituiram a sociedade brasileira ". Entre eles, é claro, estão os afro-descendentes quilombolas. Em 2004 a lista do patrimônio imaterial brasileiro, muito em função da militância quilombola, passou a incluir, entre outros, os comerciantes de rua que trabalham com a gastronomia tradicional afro-descendente (os populares vendedores de acarajé em Salvador, por exemplo). No mesmo ano, o Jongo, igualmente, tornou-se património cultural brasileiro. No rastro veio a titulação de outras tantas manifestações afro-descendentes: o Samba de Roda, a Capoeira, Tambor de Crioula, Jongo etc. UNIUBE 115 4.1.1 Tradições quilombolas: costumes; crenças e valores. Este capítulo lida historicamente com a constituição dessas novas referências legais e seu impacto na produção de novos atores políticos a partir da valorização da identidade negra e da memória dos ancestrais cativos. Com base na análise de casos concretos no estado do Rio de Janeiro, vamos propor uma discussão em torno de algumas consequências políticas e culturais da adoção dos artigos, diretamente relacionadas à implementação do Decreto Federal 3.551 de 4 de agosto. 2000, que permitiu considerar manifestações culturais imateriais como patrimônio da nação. Como resultado dessa conquista, a tradição oral, celebrações, lugares e formas de expressão musicais e festivas, passaram a receber o título de patrimônio cultural brasileiro. Para entender a redação do Artigo 68 (que trata, especificamente, da imaterialidade cultural) é necessário levar em consideração, em primeiro lugar, o fortalecimento dos movimentos negros no País ao longo da década de 80 e a atenção que foi dada à memória pública da escravidão e da abolição; propostas pelos órgãos de representatividade étnica e cultural. De acordo com o decreto de aplicação do Artigo 68 (Decreto 4887 de 20 de novembro de 2003), o reconhecimento dos descendentes de comunidades quilombolas será realizado com base na autodefinição. Para essas comunidades, o critério de auto-definição pode significar um campo aberto para o estabelecimento de critérios de demarcação territorial específicas e o fortalecimento das raízes ancestrais desses quilombolas. Todo o sofrimento ocasionado pelo tráfico negreiro reforçou as reivindicações e é, atualmente, o mais forte argumento para legitimar o processo de demarcação dos territórios coletivamente ocupados pelos descendentes das últimas gerações de africanos trazidos como escravos no Brasil. 116 UNIUBE De acordo com a Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura, em 2009, 1.342 comunidades quilombolas, agora classificados como patrimônio cultural brasileiro, tinham sido reconhecidas. Essas comunidades puderam definir o que deveria ser mantido como coisa própria; parte de sua identidade. A importãncia de um quilombo está no estilo de vida, na forma de organização social, que ele preserva. Existe um modo de vida afro-brasileiro original que se manifesta através de festivais, músicas, danças, narrativas e religiosidade. O decreto criou novos canais para esse paradigma cultural. Uma vez licenciados, esses grupos passam a ser detentores legais de práticas culturais intangíveis, consideradas tradicionais; manifestações fundamentais no processo de reconhecimento da cultura afro-brasileira. Valença, no estado do Rio de Janeiro, é um caso exemplar. A disseminação e notoriedade do Jongo tem desempenhado um papel estratégico na luta pela terra e pelo reconhecimento dos remanescentes do quilombo. A comunidade sabe o valor de Jongo. Essa manifestação de dança e percussão sempre representou uma herança forte dos ancestrais e que deve ser preservada pelo grupo. A valorização do Jongo como herança herdada e reconstruída pelos descendentes de escravos, garante a identidade étnica e cultural dos quilombolas, fomentando nova visibilidade e as perspectivas de sobrevivência coletiva. Coivara: Agricultura quilombola contribuiu para paisagem florestal. As práticas de agricultura utilizadas numa comunidade quilombola do Vale do Ribeira, em São Paulo, foram objeto de uma pesquisa realizada no Instituto de Biociências (IB) da USP. Segundo a bióloga Lucia Chamlian Munari, o principal objetivo do estudo foi compreender como o sistema de agricultura de corte e queima, também conhecido como coivara, contribuiu SAIBA MAIS UNIUBE 117 para a formação da paisagem florestal na comunidade de remanescente do quilombo de São Pedro, localizada na cidade de Eldorado, no Vale do Ribeira. Lucia explica que o sistema de cortee queima tem como principal característica a ocupação temporária de uma determinada área para plantio de pequenas culturas. “Nesta prática, é aberta uma clareira na mata onde são feitas plantações de culturas de subsistência, durante 1 ou 2 anos. Após esse período, o local é abandonado e a floresta acaba se regenerando. É quando surge a chamada mata de capoeira”, esclarece Lúcia. Na comunidade de São Pedro, a agricultura de coivara vinha sendo praticada desde a origem do bairro, por volta de 1830. Num levantamento histórico, a bióloga investigou a memória social dos moradores do local para descrever o cenário agrícola das décadas de 1920 e 1930 até os dias de hoje. “Entrevistei moradores mais antigos para saber de suas práticas agrícolas. Acredito que o sistema utilizado, por criar uma paisagem heterogênea, não chegou a ser prejudicial à floresta com um todo, mas talvez promotor de diversidade local”, opina Lúcia. Restrições da lei A comunidade quilombola do bairro de São Pedro possui o título de propriedade de uma área aproximada de 4,5 mil hectares. “O local está distante do rio Ribeira de Iguape cerca de dez quilômetros”, descreve Lucia, acrescentando que o bairro abriga cerca de 35 famílias que trabalham em sistema de mutirão. O estudo possibilitou à bióloga constatar que, atualmente, as plantações não acontecem mais no sistema de coivara. “A agricultura local está ficando cada vez mais parecida com sistemas comerciais. No lugar das culturas de subsistência, agora planta-se banana, pupunha e maracujá, visando principalmente o comércio”, conta. 118 UNIUBE Essa mudança na cultura agrícola do local, segundo a pesquisadora, se iniciou com abertura de estradas na região na década de 1960, quando também tiveram início as invasões por grileiros, para a criação de bovinos, até então inexistente. As invasões chegaram a causar conflitos. Contudo, Lucia lembra que a vigilância ambiental limita fortemente a coivara porque há muitas restrições determinadas pela legislação. “Hoje os habitantes do bairro de São Pedro já não estão tão isolados. Além do mais, percebemos que a faixa de ocupação de coivara na floresta era dispersa. Atualmente, as áreas de cultivo estão concentradas junto às casas.” Outra constatação da pesquisa é que a qualidade da alimentação dos habitantes também sofreu uma queda. As culturas que antes eram somente para a subsistência, agora, pelas características comerciais, são menos diversificadas e necessitam de insumos agrícolas, além de haver maior dependência do mercado para a obtenção de comida. “A paisagem atual está assim dívida: uma área destinada constantemente ao cultivo; uma grande área de floresta ainda virgem (nunca cultivada); e áreas de capoeira em regeneração que não serão mais utilizadas por causa da lei ambiental”, descreve Lucia. Ela lembra que o bairro ainda possui áreas que estão em negociação com grileiros. “Cerca de 4% do território são pastagens e metade disso é área de cultivo.” O estudo Memória social e ecológica histórica: a agricultura de coivara das populações quilombolas do Vale do Ribeira e sua relação com a formação da Mata Atlântica local, teve a orientação do professor Rui Sérgio Sereni Murrieta, do IB. (Reportagem de Antônio Carlos Quinto, da Agência USP de Notícias, publicada pelo EcoDebate, 29/06/2010) UNIUBE 119 Expressões artísticas da cultura afrobrasileira4.2 A africanidade inerente à cultura brasileira resulta de misturas, rupturas e tensões. O deslocamento forçado, rumo ao Brasil, de africanos escravizados entre os séculos XVI e XIX, de certa forma, está na base de uma estrutura social muito complexa. Feridas históricas ainda sangram e impactam, diretamente, sobre o panorama social de nossos dias. Apesar da trajédia exposta, a participação do negro na construção da sociedade brasileira forjou elos culturais com o universo africano perceptíveis em quase todas as áreas da vida comunitária brasileira. Não raro, esses ecos da África no Brasil, quando artística compostos, revelam uma intensa articulação com os discrusos revindicaórios e as demandas de ordem política. Certos temas, sobretudo, ganharam relevância para as organizações de militância afro-brasileira. Em consonância com as chamadas políticas públicas positivas para afrodescendentes, muitas ONGs se mobilizam e encontraram na arte um veículo de manifestação de seus anseios. A arte afro-brasileira, engajada na luta para melhorar as condições sociais dos afro-descendentes, é uma realidade e um canal poderoso. Graças às obras artísticas que lidam com os problemas históricos mais complexos, a comunidade negra se municia com informações que potencializam o discurso reinvindicatório. Ora implícita, ora evidente, a mensagem política pretendida por muitos artistas negros da atualidade se associa ao canto, à dança, à lenda, para exigir direitos sociais previstos pela Constituição Federal. 4.2.1 O Tambor de Crioula e a identidade nacional O Tambor de Crioula é uma expressão artística encontrada no estado do Maranhão, especialmente na capital São Luís, que evidencia de forma paradigmática o tons da criatividade e das estratégias culturais de 120 UNIUBE resistência que os afrodescendentes desenvolveram em muitas regiões do Brasil. Uma representação musical e de dança coreografada e feita em honra de São Benedito (santo padroeiro de muitos afrodescendentes). Sendo, a um só tempo, entretenimento, prática religiosa e forma de afirmação sóciopolítica, acontece em torno uma roda de participantes. As dançarinas rodopiam com suas saias floridas e se comprimentam com a punga (umbigada) enquanto se apresentam, virtuosamente, sob um arranjo coreográfico marcado pelos percussionistas (os três tambores) e os coreiros (os que entoam as toadas). Essa força simbólica contida na coreografia é destacada por Muniz Sodré quando o mesmo afirma que: Na cultura negra, entretanto, a interdependência da música com a dança afeta as estruturas formais de uma e de outra, de tal maneira que a forma musical pode ser elaborada em função de determinados movimentos de dança, assim como a dança pode ser concebida como uma dimensão visual da forma musical (SODRÉ, 1998, p.22). A prática dessa dança-ritual, consagrada a São Benedito, remete à constituição das antigas irmandades de escravos negros, e/ ou alforriados, devotos desse santo. Como resultado, os poemas cantados (toadas) para São Benedito ocupam um lugar central no rito. Curiosamente, esse corpus ritual acaba resultando em um repertório poético “estável”, que reune canções pouco afetadas pela reinvenção das palavras, reestruturação da melodia ou, simplesmente, acentuação das sílabas. A transmissão dos cantos é feita por imitação e a reprodução do repertório e da coreografia é realizado graças a uma grande reverência pela tradição. O Tambor de Crioula, aliás, revela a justaposição de duas identidades culturais distintas [uma brasileira, a outra africana]: a de negros “crioulos”, nascidos no território brasileiro, inscrito em um processo de aculturação e miscigenação cultural; e o preto “Mina”, um termo usado para designar UNIUBE 121 os recém-chegados do continente africano. Por isso temos o Tambor de Crioula, que é brasileiro, e o Tambor de Mina, ambos conectados por uma origem comum. O termo Mina refere-se aos escravos dos navios negreiros que deixavam o forte de São Jorge da Mina (Elmina, Gana) e desembarcavam no Brasil na condição de escravos. A ligação entre o Tambor de Mina e o Tambor de Crioula é evidente e com um elo não apenas histórico, mas também ritualístico e expresso na própria prática: há uma partilha da cosmogonia religiosa nos rituais dessas duas expressões. Trata-se de uma manifestação vinculada aos fenômenos de fusão, sincretismo, empréstimos, transformações e apropriações culturais. É que os traços culturais retidos na construção de identidades não são, simplesmente, a soma das diferenças “objetivas”, mas algo maiselaborado que denota, também, criação e inventividade. Eis o grande legado do Maranhão para a cultura afrobrasileira (Figura 1): Figura 1: Roda de Tambor de Crioula. Fonte: Getty Images (2018). 122 UNIUBE A qualidade polissêmica do Tambor de Crioula, de certa forma, justifica a sobrevivência da tradição e o crescente interesse dos jovens por essa prática: como um símbolo da resistência e organização das populações afrodescendentes nordestinas. A música e a dança, no caso, são expressões multifacetadas, vetores de diferentes formas de representação: estética, emocional, simbólica, histórica, sociocultural, cosmogônico ou performativa. Por isso, o que propomos, ao mencionar o Tambor de Crioula, foi, tão somente, descrever como se consolidaram as identidades afrodescendentes no pós-escravidão através destas práticas, expressões musicais e coreográficas impregnadas de um sentido de resistência. 4.2.2 A relevância comunitária do Jongo Jongo é uma variação da dança e da musicalidade afrodescendente, muito comum no sudeste brasileiro. A percussão, a dança coletiva e a mística religiosa são apresentadas como uma maneira de celebrar os ancestrais, consolidando tradições e afirmando identidades. Tem suas origens nas tradições africanas, nos rituais e mitos dos povos de língua bantu. Mas também resulta da interação entre diferentes culturas: os africanos que viveram há muito tempo da África, os escravos nascidos no Brasil e a os próprios senhores de escravos. Durante a segunda metade do século XIX, o Jongo era utilizado pelos escravos para se comunicarem de forma codificada; comentavam qualquer coisa relativa aos seus senhores, organizavam fugas, celebravam o nascimento de crianças, os dias santos, além de se divertirem. Quando a escravidão foi abolida em 13 de maio de 1888, os afrodescendentes livres continuaram a dançar e a cantar ao som de tambores e outros instrumentos usados na roda do Jongo. UNIUBE 123 Durante o século XX, o Jongo desapareceu de várias comunidades que tinham descendentes de escravos por conta das constantes migrações (êxodo para os grandes centros urbanos) e desmantelamento das comunidades originais. São fatores enfraquecedores da tradição jongueira: o processo de urbanização; a substituição do Jongo por outros eventos mais valorizados pelo mercado e, finalmente, o preconceito e a discriminação racial relacionados com as práticas culturais afrobrasileiras. Passaram a se concentrar em periferias de algumas pequenas cidades, muito em função da própria abolição e, mais tarde, do declínio da atividade cafeeira. Hoje, a população afrodescendente dessas localidades recorre ao Jongo para construir um senso de identidade e preservar a memória comunitária, amparadas pelas políticas de afirmação cultural. Os grupos de Jongo, reunidos em terreiros institucionalmente organizados, renascem e se renovam sob o impulso do trabalho de jovens que perceberam no Jongo uma ferramenta para fortalecer o sentimento de negritude e resistir à hostilidade de natureza étnico-racial. A atividade de um terreiro de Jongo, perpetuando uma tradição tão cara à muitas comunidades afrodescendentes, ecoa em uníssono com o mesmo canto de liberdade entoado por outras manifestações culturais de mesma origem africana, conforme sustenta o professor Muniz Sodré: [...] os terreiros - nome dado às comunidades litúrgico- culturais que agrupam os descendentes de africanos no Brasil. Os terreiros de candomblé (Bahia), xangô (Pernambuco), macumba (Rio de Janeiro), tambor de mina (Maranhão), etc. sempre constituíram em polos dinamizadores, não apenas das danças dramáticas brasileiras (maracatus, chegança, reisado, congada, bumba-meu-boi, etc.), mas também de outras danças e cantos profanos. Esta vinculação, fora do terreiro, entre a dança e a religião ainda é perfeitamente evidente no Jongo (que já teve seu reduto no bairro carioca de Oswaldo Cruz do qual é derivado o samba de partido alto... (SODRÉ, 1998, p.28). 124 UNIUBE Recentemente, participantes de movimentos pelos direitos dos negros pressionaram o governo brasileiro a estabelecer políticas de apoio aos grupos jongueiros. O esforço desses grupos se justifica pelo fato de que o processo de reconstrução de identidade está na base das demandas e lutas contra o racismo, contra o preconceito e a exclusão social. O fato positivo é que, engajados na luta pela preservação das tradições jongueiras, as comunidades acabaram afirmando a sua africanidade [frequentemente associada aos anciãos e ao passado escravagista]. O Jongo está na base da reconstrução de uma identidade que conecta o passado - o da escravidão - ao presente “afirmativo” no qual os afro-descendentes se orgulham da cor da sua pele e de sua cultura comum. A preservação do Jongo, sua transmissão e o reconhecimento de sua importância junto ao governo brasileiro, possibilita aos habitantes das comunidades afrodescendentes uma nova maneira de se perceber. Aparece uma nova performatividade que molda uma certa auto-estima em pessoas que, até pouco tempo, se sentiam cidadãos sem direitos. A formação de uma rede de apoio ao Jongo, o desenvolvimento de projetos para a participação de líderes jongueiros em atividades nas escolas, a proposta de se ter a história do Jongo na educação básica, tudo isso resulta de um crescente entusiasmo dos jovens negros pelas suas raízes africanas. Veja-se a foto de uma apresentação da dança Jongo pelo Grupo de Caxambu Michel Tannus em Porciúncula-RJ. UNIUBE 125 Figura 2: Performace do Jongo d um grupo de dança. Fonte: Wikimedia (2009). Para se reconhecerem como brasileiros, os afro-brasileiros precisavam moldar uma identidade ligada à África e a riqueza da cultura original que lá fulgurava. Foi cobrado que a sociedade brasileira e o Estado reconhecessem os heróis negros como heróis nacionais. Seu sentimento de pertencer à uma nação que, em grande parte, é culturalmente negra. Por isso se diz que o apoio à tradição do Jongo faz parte de um conjunto de estratégias de visibilidade, afirmação e transformação da realidade afrodescendete. 4.2.3 A Capoeira como simbolo de resistência Para resistir e vencer, os escravos africanos desenvolveram, gradualmente e secretamente, uma forma disfarçada de luta que aparentava ser dança: a Capoeira. Nascida, supostamente, no estado da Bahia, essa arte marcial é uma expressão cultural brasileira, mas que, sem sombra de dúvida, foi inspirada nas técnicas de luta usadas pelos 126 UNIUBE exércitos da região do Congo, de Angola e Gabão (de onde vieram um grande contingente de negros escravizados). Reprimida, essa dança-luta foi considerada subversiva e continuou sendo praticada e desenvolvida na clandestinidade pelos escravos. Foi mais amplamente desenvolvida em quilombos por escravos fugitivos. Após a abolição da escravatura no Brasil, em 1888, a Capoeira continuou sendo percebida como perigosa pelas autoridades; pensava-se que ela sugestionava rebeldia nas camadas populares da sociedade. Em 1890, a fim de dificultar a popularização dessa tradição, sua prática foi criminalizada pelo Estado brasileiro. Só no início do século XX é que a capoeira foi lentamente reconhecida como uma disciplina esportiva em si mesma. Mestre Bimba (1900-1914) fundou a primeira academia de capoeira, em 1932, em Salvador, a fim de revitalizar a sua prática . Ele criou um novo método de ensino – hierarquizando seus alunos - e consolidou um novo estilo: a "Capoeira Regional". Mestre Bimba conseguiu transformar algo que era usado em briga de rua numa arte marcial estruturada, com regras muito específicas. Em 1941, foi a vez de Mestre Pastinha (1889-1991) abrir sua escola de capoeira angola, insistindo, desta vez, no caráter tradicional da capoeira. Mestre Pastinha temia que a essência afrobrasileira da capoeira se diluísse em meio a regras desportivas. Era preciso, pensava ele, resgatar as raízes africanas da capoeira. O gingado, os pontos cantados,o toque do berimbau... Tudo deveria ser feito para que esses elementos não fossem negligenciados. Com estes dois "mestres" icônicos, reverenciados por todos os capoeiristas de hoje, ajudou-se a manter (cada qual a seu modo) uma tradição de quase 400 anos. Em 1940, a lei que proibia a Capoeira foi revogada. Após a liberação para aprática pública, a Capoeira se UNIUBE 127 popularizou rapidamente, através de academias que se espalham por todo o país. Hoje, essa arte marcial é praticada em escolas e universidades. E, é claro, a Bahia se tornou o polo irradiador da Capoeira(Figura 3). Figura 3: Roda de capoeira em Salvador, Bahia. Fonte: Getty Images (2018). Pouco a pouco, a visão que se tinha da mesma, como prática tribal condenável e estigmatizada da pior forma, foi superada. Os rótulos depreciativos impostos por uma percepção distorcida da prática foram abolidos. É que a Capoeira, por muito tempo, sofreu com o olhar equívoco, sendo descrita, pejorativamente, pela literatura e pelo ensino formal. Foi com desdém, portanto, que a infância e a juventude brasileira, por décadas, a considerou; porque era assim que a cultura africana era apresentada nas escolas, conforme sustenta Rute Valentin: É ainda comum que, nos livros didáticos, o povo africano apareça em condições isoladas, de desvantagem, de inferioridade ou de submissão, construindo estereótipos no imaginário dos alunos. Com isso, são eliminadas do conhecimento da cultura considerada civilizada as informações sobre o povo 128 UNIUBE africano, reduzindo-o, simplesmente, a um estereótipo de primitivo e incapaz; desrespeitando-se assim as origens da população negra e mestiça (VALENTIN e BACKES, 2008, p.8). Acrobática e atlética, a Capoeira contém uma grande variedade de técnicas que vão desde chutes a esquivas e rasteiras ... A ginga é, no entanto, o movimento básico. É o molejo, a flexibilidade dos gestos e sua expressividade que permite identificar um grande capoeirista. E tudo acompanhado por música: canto e percussão. Em 2014, a Capoeira de rua, que acontece nos espaços públicos (praças e calçadas), e da qual todos podem participar, foi registrado no Patrimônio Imaterial da Humanidade. Ela resiste como manifestação de caráter forte, marcante, que desperta grande paixão naqueles que iniciam sua prática. Expressões da religiosidade4.3 Uma religião é um sistema crenças, valores morais e práticas experimentadas coletivamente. Existe, ainda, uma distinção dicotômica entre "sagrado e profano", que explica a tendência humana de situar a crença dentro de uma ordem mais elevada vivências sociais (no mesmo patamar da Família e do Estado). Esse entendimento se estende ao campo espaço-temporal [segundo o qual as práticas religiosas sempre se situam em um dado contexto de lugar e de momento], ou seja, a ideia de sagrado e profano permite evidenciar as experiências individuais que se distinguem por meio de padrões estaelecidos: espaços e tempos sagrados e espaços e tempos seculares. Dessa forma, mesmo para o homem dito profano - para quem o espaço é homogêneo e neutro - existe uma série de valores que denotam um tratamento do espaço que está muito longe da homogeneização absoluta. Sempre existirão os lugares santos do seu universo privado. Por isso, é óbvio que o tratamento sagrado no espaço e no tempo está relacionado UNIUBE 129 com a necessidade de estabelecer uma ordem na existência para o homem, o que permite criar uma realidade ordenada que governa o caos. Há, a despeito daquilo que se acredita, uma validade em todas as teorias místico-religiosas; justamente, por se basearem no fato de que são uma proposta de ordenamento cósmico, uma convenção criada para ordenar a experiência social. O caso do Candomblé - e, por extensão, todas as religiões afro-americanas - apresenta uma característica que deve ser levada em conta: o apartamento compulsório em relação à terra africana. A fratura que resulta da passagem de uma vida tradicional para o sistema de escravidão pressupõe crises pessoais e sociais de diferentes âmbitos e condições que também afetam a noção de religiosidade que deve encontrar novos referenciais e fazer conquistas. O africano escravizado precisou estabelecer novos espaços para o sagrado e repensar a prática religiosa segundo uma nova perspectiva temporal. Então, o culto negro, caracterizado por sua plasticidade, procurou se reinventar conforme à medida que as circunstâncias propunham maior hostilidade externa. Necessário se fazia a recriação de novos meios de sobrevivência do pensamento religioso africano no Brasil. Claudi R. Cròs (CRÒS, 1997), em sua obra A Civilização Afro-Brasileira, identifica três características essenciais da religião afro-brasileira: 1) incorporação de entides espirituais por meio de transe; 2) a relação pessoal com a entidade que sempre protege aquele que lhe dedica algum tipo de adoração; 3) plasticidade e representação icônica na personificação das divindades; 130 UNIUBE 4.3.1 A força cultural do Candomblé Ao sustentar esses três componentes fundamentais, a religião afrobrasileira, reinventada no Brasil após a diáspora negra, garantiu o vínculo formal com as práticas originais da Áfrca. A própria palavra "candomblé" vem da fusão de palavras de diferentes origens: Candombe (de origem bantu) e Ilé (de origem iorubá). Eles se fundem durante o período escravagista no Brasil, principalmente nas regiões norte e nordeste. Isto se deveu ao fato de que nesta área desembarcou sim um grupo grande de "Nagôs" (Yorubanos) que maior influência exerceram sobre os cultos religiosos que ali já eram praticados; mas o primeiro grupo a chegar nesta área – e isso explica o processo de fusão e incorporação - foram os "Bantus" (angola-congo) com sua percussão e rítmos. Quando o mestre branco perguntou ao seu escravo o que ele estava fazendo, enquanto cantava e batia o tambor em homenagem aos orixás, eles responderam: "Estamos fazendo o candombe-ilé"; isto é, eles batem os tambores á maneira dos bantus (candombe) dentro de um Ilé (casa/terreiro) de Orixás nagôs (yorubanos). Todas as operações de acesso ao conhecimento do homem africano estavam acompanhadas por um senso de conquista do espaço. Nesse sentido, em certos rituais de iniciação africanos, os jovens são ensinados a tratar e conceber seu próprio corpo como um microcosmo, um mundo de pequena escala, ou uma casa (Ilé). A mesma ideia regia a representação cosmológica que concebia os espaços de culto. Tudo isso está na composição do rito afrobrasileiro e explica a sacralidade do terreiro de candomblé. O terreiro é a porção de África eu remete o afrodescendente à sua ancestralidade. Vale lembrar, ainda, que as crenças e práticas religiosas que chegam ao Brasil com escravos africanos tomam direções diferentes dependendo UNIUBE 131 de sua origem. Cada uma dessas nações pelo modo de tocar o tambor, pela música, pela linguagem usada nos pontos cantados, vestimentas litúrgicas ou certas características do ritual. A solidariedade nascida entre os cativos negros na época da escravidão facilitou o nascimento de novos cultos capazes de ir além das antigas divisões étnicas. Isso foi possível graças à plasticidade da cultura africana. A nova experiência religiosa, sincrética por definição, portanto, provou ser uma fonte de memórias da terra de onde foram removidos ancestrais; uma fonte de criação de novos pontos de referência simbólica, todas governadas pela necessidade de resistência à força externa e opressora. Sobre essas canções entoadas durante a brincadeira (e muitas delas fizeram parte da infância de muitos brasileiros) a professora Ana Mae Barbosa afrima: É importante também apontar o valor da canção como instrumento de representação da nossa cultura. As canções são um meio de transmitir e conservar elementos culturais de um povo, um país ou uma região e isso pode ser feito através das canções folclóricas, regionais e até mesmodas cantigas de roda. As canções folclóricas retratam hábitos de um povo e se referem a lendas, mitos, comidas, festas, utensílios, brincadeiras e enfeites que foram conservados e transmitidos de geração em geração. Nesse sentido, essas canções representam uma forma de expressão cultural que retrata a riqueza de um povo. No entanto, as canções folclóricas vêm, paulatinamente, caindo no esquecimento. Basta observarmos que, em um grupo de crianças brincando, dificilmente as canções folclóricas vão ser cantadas durante a brincadeira. Isto se deve em parte pelo contato que estas têm com a música veiculada na mídia. As crianças dos grandes centros urbanos são influenciadas diretamente pela televisão e pelo rádio. É razoável supor que elas reproduzirão o que estão habituadas a ouvir, o que justifica o desconhecimento de muitas canções que fazem parte do folclore e da cultura brasileira (BARBOSA, 2008, p.5). 132 UNIUBE Devemos considerar também o fato de que as religiões afrobrasileiras deixam espaço para conceber novas formas de sociabilidade ao representarem os orixás de forma tão humanizada. Eles são próximos o bastante ao ponto de se solidarizarem com as lutas dos filhos de santo. Porque os orixás não são apenas entidades religiosas, mas, principalmente, suportes simbólicos que garantem a continuidade do grupo, o senso de pertencimento e cooperação. Ou seja, orixás, de certa forma, preservaram e fortaleceram estratégias de sobrevivência e regras sociais atinentes ao contexto da escravidão; e que, ainda, são úteis em um ambiente que exala racismo e preconceito religioso (Figura 4). Figura 4: Oferendas para Imenjá (um dos orixás mais populares no Brasil) em praia do Rio Vermelho - Salvador (BA). Fonte: Wikimedia (2009). A manifestação dos orixás em terreiros como guerreiros, caçadores e dançarinos talentosos e bem-sucedidos; como protetores poderosos dos mares, dos rios, das matas, das montanhas, confere valor à ancestralidade e fortalece a autoestima da descendência. O culto ao orixá no terreiro estimulou, sobretudo, a criação de um espaço de pertencimento mútuo, cuja função predominante era e é a de conservar o UNIUBE 133 patrimônio simbólico comum, enaltecer as origens, livrar a ancestralidade do estigma da submissão e consolidar um espírito de cooperação na comunidade afrobrasiliera. Literatura afro-brasileira4.4 A cultura brasileira, fruto da Diáspora Negra, estabeleceu-se sob o jugo da violência repressiva e conseguiu se desenvolver apesar de todas as tentativas de silenciá-la, durante os séculos de escravidão e período subsequente. Um de seus desdobramentos foi um modelo literário que é hoje amplamente debatido em ambiente academico; visto como cânone afro-brasileiro, resultante de circunstâncias de extrema tensão social. Demorou muito para que essa tradição literária fosse concebida em sua forma escrita, praticamente inexistente no período colonial. Domingos Caldas Barbosa [1738-1800], possivelmente, foi o seu precursor. Somente no decorrer do século XIX os escritos afro-brasileiros foram publicados, timidamente, oculto sob o manto da clandestinidade e, muitas vezes, relegando seus criadores aos porões do anonimato. O poeta Cruz e Sousa, por exemplo, aludia às questões raciais de forma muito velada. E exite uma coleção de textos (crônicas em sua maioria) composta por Machado de Assis, que ainda é desconhecida dos leitores contemporâneos, e que aborda as questões relativas ao negro no Brasil. Muitas dessas crônicas são assinadas com pseudônimos e se encontram sob a guarda da Biblioteca Nacional. Ele recorreu ao uso de pseudônimos para proteger o seu cargo de funcionário publico, já que, no século XIX, vários funcionários públicos acabavam demitidos caso se posicionassem como favoráveis à abolição da escravatura. Já Lima Barreto e Luiz Gama estabeleceram um discurso explícito de protesto face ao drama vivido pelo afrodescendente brasileiro. Eram, declaradamente, escritores abolicionistas. 134 UNIUBE Os fatores constitutivos desse cânone literário afro-brasileiro relacionavam: a totalidade de suas manifestações escritas [abrangendo diferentes épocas], as diferenças de gênero, de crenças ideológicas e de opções estéticas. Abrange, ainda, o trabalho de um considerável número de autores que, motivados por um sentimento de pertencimento em relação à ascendência africana, fizeram a opção de escrever sobre a experiência afrobrasileira na elaboração do seu objeto cultural. Muito embroa, tal discurso literário, exiba a perspectiva de uma comunidade negra vitimada pela ordem escravocrata patriarcal; e, depois, pelo colapso frustrante dessa ordem, já que a abolição da escravidão no País não trouxe igualdade, mas sim uma cidadania de segunda classe para sua imensa população negra. Por mais amplas que fossem as possibilidades em seu âmbito temático, a literatura afro-brasileira não podia fugir das questões monumentais que permeavam sua criação. A experiência africana, em suas raízes e desenvolvimentos, moldava, inevitavelmente, a formação discursiva, politicamente orientada, ressaltando as relações raciais e incorporando o passado da escravidão em uma complexa, apaixonada e, muitas vezes, lamuriosa narrativa. Tratava-se de um contra-discurso em relação ao cânone literário dominante, surgindo como uma descrição do colonialismo e da escravidão, indo além, contudo, das restrições impostas pelos paradigmas vigentes: colonizador/colonizado, senhor/escravo. A literatura negra no Brasil surgiu como estratégia de sobrevivência psicológica e como forma de resistência. Aqui, como em todos os lugares do continente americano, sistematicamente, negava-se às populações africanas da diáspora acesso a bens culturais, pois um escravo educado era uma ameaça potencial à ordem estabelecida [com a literatura não foi diferente]. UNIUBE 135 A sociedade escravagista também soube reprimir a literatura de origem africana, descartada como pura ignorância ou superstição. A sociedade colonial [e, porque não dizer, colonial tardia] reforçou estrategicamente sua proteção contra as manifestações "estranhas" e consideradas, potencialmente, subversivas; contendo os germes de uma rebelião. Discursos de várias fontes sociais viam os negros como um empecilho ideológico à higiene e à modernização, descrevendo-os junto à miasmas e insalubridade. Mas surgiu uma literatura que, se não retirava o negro desse ambiente de insalubridade e pobreza, propunha a narrativa segundo padrões que denunciava e se opunha à discriminação social. Conclusão4.5 Em 1538, o Brasil começou a importar escravos da África. As plantações de cana de açúcar, em sistema de Plantation, justificaram o comércio de escravos africanos, em sua maioria, de origem Sudanesa, Nagô (Iorubas), Geges e Bantos (de Angola e Moçambique). Viviam livres em seu continente, mas chegaram em terras americanas na condição de cativos. Não seria exagero afirmar que a cultura dos afro-brasileiros de hoje, descendente desses primeiros escravos que aportaram no Brasil, foi moldada, justamente, pelos processos de resistência à escravidão. Os afro-brasileiros conseguiram, com muita dificuldade, preservar os traços mais característicos das suas raízes africanas. Aliás, possível dizer, sem medo de errar, que foi a oralidade o fator aglutinador e preservador da atual cultura afro-brasileira; já que a diminuta tradição escrita encontrada foi suprimida pelos senhores de escravos durante período escravagista. Sobre essa força da reprodução oral do patrimônio imaterial coletivo, Pedro Abib comenta: A grande maioria das tradições populares ainda tem, na oralidade, o seu meio mais importante de 136 UNIUBE transmissão, já que a escrita - juntamente com os meios formais de aprendizado, como a escola, por exemplo - não tem um papel central nos processos de ensino-aprendizagem desenvolvidos pelos sujeitos protagonistas dessas tradições. Nesse universo, a oralidadeainda prevalece resistindo aos avanços da modernidade (ABIB, 2005, p. 25). Vale lembrar, aliás, que a maior parte de tudo que foi escrito sobre a história, a cultura e a religião dos afro-brasileiros, veio da produção escrita por governantes brancos e pela elite intelectual branca (o que compromete o valor histórico dessas produções). Por isso, as associações e ONGs de afrodescendentes e os escritores afro-brasileiros se esforçam para apresentar uma visão própria de sua cultura, religiosidade e concepções artísticas; inclusive, procurando associá-la às demandas sociais e políticas mais prementes. Também importa destacar que as relações entre a África e o Brasil estão atraindo crescente interesse e isso em campos muito diversos como: a geopolítica, a diplomacia, a economia, as ciências sociais e humanas. A literatura, o cinema, a música, a dança, por sua vez, traduzem a circulação de mulheres e homens, ideias e bens entre os dois lados do oceano Atlântico. Importante lembrar que, um dia, cerca de quatro milhões de escravos foram transportados para o Brasil, um país onde a abolição ocorreu apenas muito tarde, em 1888. O início do tráfico de escravos é também o começo de um tráfico de mão dupla, promovendo a circulação, ainda ignorada, que reflete uma zona de interação fundamental para o futuro dos dois continentes. Natural que as relações entre África e Brasil ocorream, em nossos dias, em regime de cooperação e profunda afinidade. Os escravos também adotaram, voluntariamente, o que lhes parecia útil em sua nova situação. Eles se fundiram e se apropriaram de aspectos que pareciam semelhantes às suas próprias culturas. Essa interação UNIUBE 137 complexa com a cultura do colonizador ocorreu em todos os aspectos da vida dos escravos, da moradia à comida, das práticas religiosas às celebrações profanas. Embora os estudiosos ainda debatam sobre as semelhanças existentes entre as diferentes sociedades africanas pré-coloniais, não há dúvida de que os proprietários tentaram, e muitas vezes conseguiram, a estimular as diferenças étnicas entre seus escravos como estratégia de dominação. Os negociantes de escravos classificavam os cativos segundo critérios contraditórios: o porto de embarque na África, a macrorregião de onde vieram, o estado no qual haviam sido sujeitados antes da travessia transatlântica, a língua que falavam, ou o grupo étnico ao qual pertenciam. A classificação estava longe de ser consistente, no entanto, aconteciam segundo a ignorância do comerciante e relativas às origens específicas dos escravos; isso sugere a complexidade das identidades étnicas e estruturas culturais afro-brasileiras. Vale lembrar, ainda, que as indicações de origens dos escravos em documentos históricos são frequentemente vagas e muitas vezes não confiáveis. Fato é que os negros, muitas vezes, adotaram essas designações e os termos derivados da África, como Mina ou Angola, mas em um clima de interação multiétnica, confraternizando e permutando elementos culturais. Essa exuberância africana, que aqui foi miscigenada, somada à contribuição indígena e europeia, evoluiu para as novas identidades afrodescendentes típicas das Américas. Resumo O objetivo deste capítulo foi examinar a constituição de uma cultura popular afrodescendente no Brasil. As religiões afro-brasileiras (como o Candomblé), as diversões coletivas (como o Jongo) e jogos de combate 138 UNIUBE (como a Capoeira) se desenvolveram por meio da intensa circulação de pessoas provenientes de variados grupos étnicos e regiões distintas. Esse processo desempenhou um papel central na constituição das identidades neo-africanas. O que hoje chamamos de tradições afro-brasileiras são, no fundo, valores que, ironicamente, foram reforçados por instituições coloniais brancas (a filiação às irmandades católicas é um bom exemplo). As autoridades e os proprietários de escravos no Brasil não apenas impuseram suas instituições e organização trabalhista, mas também tentaram fazer com que os cativos adotassem suas visões de mundo e práticas cotidianas. Os escravos não tinham outra escolha senão submeter-se, pelo menos aparentemente, às exigências de seus senhores, mas, sempre que possível, rejeitavam o modelo proposto e lutavam contra aquilo que ameaçava destruir suas vidas e identidade. Foi por essa razão que os fenômenos de aculturação e apropriação cultural forjaram novas expressões identitárias. Ser uma ex-colônia portuguesa coloca o Brasil em uma condição de proximidade cultural evidente com as antigas colônias portuguesas da África (Angola, especialmente, mas também Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe). Três séculos do comércio de escravos fundiram a história do Brasil com outros territórios africanos (Nigéria, Congo, Benin, Gana), impregnando o Brasil com fortes traços culturais e sociológicos africanos e que se manifestam, em nosso território e em nossos dias, sob uma insignia consistente e consolidada: a cultura afro-brasileira. Da Capoeira ao Candomblé; do Carnaval ao Samba de Roda, através das comunidades quilombolas, da literatura e do cinema, essa tradição resistiu e ajudou a fundar a identidade nacional de milhões de brasileiros. UNIUBE 139 Referências ABIB, Pedro R. J. Capoeira angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda. Campinas, SP. Unicamp/CMU; Salvador: EDUFBA, 2005. ABREU, M.; MATTOS, H. Jongo, registros de uma história. In: LARA, S. H. Memórias do Jongo: as gravações históricas de Stanley J. Stein. Rio de Janeiro/Campinas: Folha Seca/Cecult, 2007. AL-BAKRI, Abu ‘Ubayd. História da África. Lisboa: MECA, s/d. BARBOSA, Ana Mae (Org.). 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Aluízio Ferreira Elias Introdução Políticas públicas para as relações étnico-raciaisCapítulo5 Por muito tempo, as relações raciais têm sido o tema privilegiado da refl exão e investigação científi ca no Brasil. No entanto, apenas recentemente, o dilema colocado pela noção de "raça" e etnia como categoria de interpretação local e categoria analítica ganhou espaço entre os pesquisadores. Especifi camente, no contexto de discussões sobre políticas de discriminação positiva, sociólogos, antropólogos, historiadores ou geneticistas estão preocupados em encontrar as chaves interpretativas apropriadas para explicar esse fenômeno social. Mais de dez anos após a introdução das primeiras políticas de cotas raciais no Brasil, o capítulo que apresentamos propõe retomar o debate sobre as políticas de discriminação positiva, categorias raciais e o papel dos cientistas sociais em suas defi nições. Em nenhum outro momento da história do País, sem dúvida, os especialistas da questão buscaram tanto justifi car o uso ou o não uso da palavra "raça", todos preocupados com o uso do termo deliberadamente. Tudo isso em um contexto social e político agitado por demandas e políticas de integração que destacaram a existência e a severidade da desigualdade racial no Brasil. 144 UNIUBE Esquema 5.1 Uma legislação antirracista 5.1.1 As desigualdades sociais e étnico-raciais 5.1.2 Os números da desigualdade O problema, até então, era mascarado por discursos oficiais, persistindo em definir o Brasil como um país de democracia racial e explicando as diferenças sociais entre negros, índios e brancos apenas pela condição histórica da exclusão social dos primeiros. Hoje tudo passa a ser problematizado no campo do senso comum, em ambientes de livre expressão, mas, igualmente, no espaço restrito do cotidiano acadêmico. E tudo para que se legitime as políticas públicas relativas à, evidente, desigualdade étnico-racial. Objetivos • Problematizar as chamadas políticas públicas de discriminação positiva (sobretudo, a polêmica a respeito das cotas em processos seletivos para o ingresso em universidades e nomeação de candidatos a cargos públicos). • Observar os critérios de reintegração social dos grupos étnicos em condição de vulnerabilidade, propostos pela legislação brasileira. • Analisar a polêmica pública em torno das inúmeras perspectivas sociais relativas à noção de “raça” e a categorização da sociedade. • Identificar os pontos de discordância, e os pontos de concordância, nos discursos elaborados por pesquisadores no ambiente acadêmico das Ciências Sociais. • Mapear as conquistas de direitos sociais mais significativas e a participação das organizações não-governamentais que representam as comunidades afrodescendentes e indígenas. UNIUBE 145 5.1.3 O Brasil miscigenado 5.2 A polêmica sobre “raças” 5.2.1 O debate acadêmico sobre cotas raciais 5.2.2 As ciências sociais e as políticas públicas 5.3 Como se define uma comunidade negra no Brasil? 5.3.1 A legitimidade das políticas de discriminação positiva 5.4 Os direitos dos povos indígenas 5.4.1 A Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas 5.4.2 O relatório das Nações Unidas (2016) 5.5 Conclusão “Não pense que é favor Compreender a dor Da minha pele negra”. Negra (música): compositores: Luís Barcelos e Iara Ferreira. Uma legislação antirracista5.1 As políticas desenvolvidas a partir da década de 1990 para a população negra foram baseadas, principalmente, em uma legislação antirracista. Normativas fundamentadas na Constituição de 1988, estabelecida após o fim da ditadura militar. Também, essas políticas responderam à demanda por uma maior valorização da cultura negra e ao reconhecimento da posse de territórios ocupados por descendentes de escravos que continuaram no espaço, mantendo as tradições da terra de seus ancestrais africanos. O objetivo das medidas de discriminação positiva, decorrentes dos avanços legais, é promover a igualdade racial, combatendo os efeitos adversos da discriminação racial e promovendo o acesso a direitos fundamentais; como educação e a oportunidade de emprego para 146 UNIUBE afrodescendentes. Essas normativas representaram uma mudança significativa no modo de abordar o racismo no Brasil. Estando a arena política institucional aberta à discriminação positiva, os representantes do movimento negro brasileiro puderam expressar suas demandas mais prementes. A esse respeito, vale destacar o documento entregue a Fernando Henrique Cardoso, então Presidente da República, em 1995, por ocasião da "Marcha Zumbi de Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida", organizada por ativistas de organizações não-governamentais negras que pediram ao Estado medidas efetivas. No mesmo dia, o Presidente criou o Grupo de Trabalho Interdepartamental para o Amparo à População Negra, ligado ao Ministério da Justiça. Ele também abriu o debate amplo, organizando o simpósio "Multiculturalismo e Racismo: O Papel da Discriminação Positiva nos Estados Democráticos Contemporâneos", no qual pesquisadores brasileiros e norte-americanos foram convidados a refletir sobre a aplicação da discriminação positiva no Brasil. Vale destacar, nesse cenário, a influência de agências multilaterais internacionais, como o Banco Mundial e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), bem como instituições como a Fundação Ford, que desde o final da década de 1980 instou os estados latino-americanos a adotarem políticas multiculturais. Embora focados no reconhecimento cultural e na diferenciação étnica, particularmente dos povos indígenas, essas políticas estenderam seu alcance aos negros em todo o continente. O movimento negro latino- americano em si não excluiu, pelo contrário, procurou unir-se ao movimento indígena e posicionar-se contra o Estado como novo agente político, com suas especificidades culturais. UNIUBE 147 Entre um discurso culturalista adaptado à demanda de reconhecimento cultural e étnico e a denúncia de uma discriminação racial que relega os negros às classes sociais mais desfavorecidas, há um consenso quanto à necessidade de se aplicar a discriminação positiva no Brasil. O debate tornou-se ainda mais importante após a preparação da Conferência do Terceiro Mundo das Nações Unidas contra o Racismo, a DiscriminaçãoRacial e a Xenofobia em Durban, África do Sul, em 2001. Nesse contexto, uma organização de pesquisa governamental, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), destacou-se em particular pela divulgação de dados estatísticos socioeconômicos que confirmaram a desigualdade racial existente no país (HENRIQUES, 2001). A ampla disseminação desses dados atestando a situação social desfavorável da população negra brasileira - que, nesse caso, incluiu toda a população classificada como "negra" e "pardo" no censo nacional - justificou a exigência por medidas de ação afirmativa. 5.1.1 As desigualdades sociais e étnico-raciais De fato, não foi a primeira vez que flagramos as diferenças sociais entre negros e brancos no Brasil. É até, segundo alguns autores, um problema histórico, resultado da integração desigual da população negra na economia republicana e capitalista após a abolição da escravatura. Os estudos realizados por intelectuais paulistas financiados pela UNESCO na década de 1950 mostram essa diferença na integração social e na sobrevivência de preconceitos contra afrodescendentes, de fato raciais e não sociais (FERNANDES, 1965). Esses estudos indicam a existência do racismo mascarado no Brasil, apoiado por uma ideologia de pseudo-harmonia racial que mantém o status quo impedindo a mobilização política em torno dos problemas raciais. A este respeito, devemos mencionar também os estudos realizados na década de 1970 e 1980 por Carlos Hasenbalg (1979) e 148 UNIUBE Nelson do Valle Silva (1981) que proporam a associação imediata entre o preconceito e a escravidão, como uma relíquia histórica. O trabalho mostra que o a discriminação racial está sendo atualizada em novas formas, contribuindo para perpetuar uma situação de desigualdade social sofrida por negros. A discriminação positiva para os negros surgiu no Brasil em sua versão mais controversa, a das cotas raciais, principalmente para a entrada em universidades públicas. Foi considerada uma política compensatória destinada a reparar uma injustiça do passado, o legado histórico da escravidão. As cotas receberam apoio de diversos atores do movimento negro, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, pertencentes à comissão que participou da conferência de Durban. Em geral, eram representantes de ONGs que realizavam intenso trabalho de assistência à população negra, principalmente financiando cursos preparatórios para vestibular (IGREJA, 2005; FERES JÚNIOR, 2006; GRIN, 2001). Mas essa mobilização dos grupos de ativistas negros não se deu por um acaso. Havia um panorama que propunha a necessidade dessas iniciativas legais para a promoção da discriminação positiva. Os número que veremos no próximo item atestam isso. 5.1.2 Os números da desigualdade Os afrobrasileiros, homens e mulheres, encontram maior dificuldade para iniciar seus estudos em nível universitário. Para muitos jovens de baixa renda (majoritariamente, afrodescendentes) matricular-se em um curso superior pressupõe a permanência sob a guarda financeira dos pais. Justamente naquele momento (após o término do Ensino Médio) em que se faz necessária uma participação efetiva junto à composição de renda da casa. UNIUBE 149 Em outras palavras, como dentre as ofertas de cursos em universidade públicas predominam aqueles cursos multiperiódicos, o jovem, filho de assalariados, acaba não iniciando seus estudos porque precisa começar a trabalhar para auxiliar a família. Ele adia o ingresso na universidade, esperando que “dias melhores” surjam em momento posterior. Vejamos a Tabela 1 que indica essa dificuldade: A desigualdade entre negros e brancos cresce quando observamos os dados relativos às regiões nordeste e sudeste. A vantagem que os brancos levam sobre negros, quanto à frequência em uma universidade, parece ser maior na região mais ao sul do País; o que problematiza, ainda mais, a perspectiva segregacionista sobre o panorama socioeconômico dos grandes centros metropolitanos (São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte). Nesse grande eixo econômico urbano-industrial, irônicamente, o negro encontra maiores barreiras para frequentar um curso superior e, sobretudo, concluí-lo. Conforme aponta os dois gráficos seguintes, homens e mulheres negras da região sudeste, esbarram em obstáculos maiores para entrar e permanecer em alguma universidade. 150 UNIUBE UNIUBE 151 Por quanto a polêmica sobre as cotas tenha se arrastado nos últimos anos, a matemática estatística prova que os afrodescendentes brasileiros ainda são privados de um diploma universitário. As limitações da escola pública, a elitização dos processos seletivos e a exigência, na maioria dos cursos, de que a graduação seja cursada com aula nos três turnos, justificam a ausência de negros nas salas de aula das grandes universidades brasileiras. 5.1.3 O Brasil miscigenado Com base em critérios raciais, a política de cotas se opõe, em primeiro lugar, à imagem do Brasil como país misto. A miscigenação racial, como explica Telles (2003), está intrinsecamente e historicamente ligada à identidade nacional e sua alta frequência demonstraria a tangibilidade das fronteiras raciais. Além disso, de acordo com alguns críticos, as cotas raciais contrariam a ideia de democracia racial, considerada não como uma realidade, mas como uma meta a ser alcançada através da luta contra a discriminação e não pelo seu estabelecimento. É uma visão da democracia racial como um mito, um conjunto de ideias e valores que moldam a vida cotidiana; uma concepção que defende uma melhor compreensão desse mito, sua eficácia e permanência (FRY, 2000; SCHWARCZ, 2002). Finalmente, as cotas levaram à comparação entre o Brasil e os Estados Unidos. Para alguns autores, a política de cotas é mais adequada a um sistema "segregacionista" e "racista", o que seria típico dos Estados Unidos e, desse ponto de vista, adquire um caráter de "inautenticidade", como uma espécie de "Visão importada" e ajustada ao contexto brasileiro. O artigo de Bourdieu e Wacquant publicado em Theory, Culture and 152 UNIUBE Society, em 1999, é uma das expressões mais emblemáticas desse tipo de interpretação. Os autores argumentam que a formulação do racismo em termos multiculturais norte-americanos é um caso exemplar de imperialismo cultural e violência simbólica no contexto brasileiro (BOURDIEU e WACQUANT, 1999). No início dos anos 2000, as primeiras políticas de cotas para a entrada na universidade foram postas em prática. Na academia, em particular, opiniões divergentes sobre essa questão pareciam estar relacionadas a diferentes abordagens da questão racial no Brasil. No início, pareciam até contraditórias. Por um lado, dados estatísticos, usados por muitos sociólogos, destacaram as grandes disparidades sociais e econômicas entre brancos e negros no país, o que justificou a urgência de se desenvolver uma política de discriminação positiva. Por outro lado, as relações raciais brasileiras seriam consideradas por muitos pesquisadores, começando pelos antropólogos, como mais “fluidas” e mais “ambíguas” do que dentro do modelo norte-americano. Esta interpretação foi baseada no fato de que o alto nível de miscigenação do país, casamentos, sincretismo cultural e falta de segregação entre negros urbanos e brancos atestavam fronteiras raciais mais flexíveis. Em geral, houve uma polarização entre estudos com finalidade mais estatística, que revelaram a desigualdade socioeconômica entre negros e brancos, e aqueles com um objetivo mais qualitativo, essencialmente etnográfico, que buscava explicar as relações sociais cotidianas. , demonstrando a complexidade das classificações raciais que não poderiam ser reduzidas a uma oposição binária. Esses estudos chamaram a atenção para a importância do fator social e da história, como fator determinante na atual situação desfavorável dos negros e os riscos de racialização da sociedade brasileira. Além disso, UNIUBE 153eles reiteraram a idéia de que raça é um conceito cujo significado é constantemente renegociado, experimentado com o contexto social e histórico (SCHWARCZ, 2001). Foi então que vozes consensuais de sociólogos e antropólogos foram ouvidas. Eles procuraram demonstrar a necessidade de abordar essa visível desigualdade socioeconômica como um plano vertical de relações ou mesmo como um domínio "pesado" das relações raciais (TELLES, 2003; SANSONE, 2004), levando em conta relações "horizontais". A urgência de encontrar soluções para a flagrante desigualdade racial do Brasil levou intelectuais e acadêmicos a adotar uma postura ativa sobre o assunto. Isso provocou um debate sobre o papel das ciências sociais e do "conhecimento especializado" nos processos de constituição das políticas públicas. A polêmica sobre “raças”5.2 De fato, o estabelecimento e a classificação da população segundo as categorias propostas pelo Estado brasileiro não é nova. Os censos no Brasil sempre coletaram informações sobre "raça", definido-as por "cor da pele" e não em termos étnicos, culturais e linguísticos. O primeiro censo oficial de 1872 já havia estabelecido três categorias: preto, mestiço e branco. Atualmente, existem três principais sistemas de classificação da população brasileira, em termos de raça, propondo uma sequência de cores entre branco e preto. O primeiro sistema corresponde à própria classificação do censo oficial: branco, pardo e preto, ao qual são adicionadas as categorias "índio" para o povo indígena do país e "amarelo" para as pessoas de origem asiática. Vale lembrar que essas categorias são autodeclaradas pela população. 154 UNIUBE Um segundo sistema de discurso popular usa vários termos familiares, como referir-se a raça/cor por um continuum de cores com diferentes gradações. A categoria pardo, por exemplo, tenta abranger todos os termos usados para definir os, popularmente conhecidos, mestiços. Aplica-se a qualquer pessoa que não consiga se identificar nas categorias "branco" ou "preto". Finalmente, um último sistema de classificação, adotado especialmente dentro dos movimentos negros, que concebe somente duas categorias: "negro" (a soma de negros e mestiços) e brancos (TELLES, 2003, p. 105). A classificação racial nos censos brasileiros sempre levantou polêmica, o que comprova a complexidade de se estabelecer categorias raciais rígidas para um país heterogêneo como o nosso. Os elementos que levam à atribuição de uma categoria racial e que levam à auto-identificação são numerosos: miscigenação, condição social, região de origem e, até mesmo, idade e gênero. Essa dificuldade de categorizar a raça no Brasil evidencia certa ambiguidade e falta de nitidez na abordagem oficial empreendida pelo Estado (SANSONE, 1993). No entanto, a introdução de políticas de ação afirmativa no início dos anos 2000 e, em particular, algumas experiências esporádicas com o uso de cotas raciais para acesso a universidades - como a de Brasília em 2003 - deram origem a discussões acaloradas sobre o tema. Implicações normativas da institucionalização das identidades raciais e do papel da ciência, particularmente as ciências sociais, na formulação de políticas públicas articuladas em torno das tais categorias. A demanda requerendo a publicação de pesquisas sobre a questão racial no Brasil, nos cursos de pós-graduação em Ciências Sociais, foi urgente UNIUBE 155 e muito estimulante. Ao mesmo tempo, foi um desafio considerável para os pesquisadores se declararem, inclusive politicamente, a favor ou contra as cotas. Esse contexto, marcado por posições extremamente polarizadas, talvez, tenha atravancado um debate mais amplo e a promoção de um diálogo que poderia ter levado à propostas alternativas e melhor definidas. 5.2.1 O debate acadêmico sobre cotas raciais A política de cotas da Universidade de Brasília (UnB) foi um dos principais pontos deste debate. Como a primeira universidade pública federal a estabelecer cotas para negros, a UnB era notável por sua abordagem centrada na raça e por sua designação de quais seriam os beneficiários de cotas. De acordo com "objetivos do plano para o desenvolvimento social, étnico e racial" da UnB, 20% dos assentos foram reservados para os candidatos "preto" e "pardo", não bastando apenas a auto-delcaração (os candidatos eram fotografados no momento da inscrição). Suas fotos foram então apresentadas a uma comissão de "especialistas" para verificar o fenótipo do candidato, a fim de ratificar seu registro sob o sistema de cotas. Recorria-se à opinião de um antropólogo a fim de atestar a validade do processo de classificação racial então adotada. A Universidade desencadeou, com a decisão, uma intensa discussão sobre o papel das ciências sociais na definição e avaliação de identidades raciais. Em um artigo, Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos debateram as consequências éticas que poderiam advir do uso da antropologia, como o conhecimento especializado, para a emissão de "julgamentos raciais". 156 UNIUBE O texto de Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos ampliou o debate em torno de um documento elaborado pela Comissão de Relações Étnicas e Raciais (CRER) da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), publicado em 2004 na página da Internet da Associação e reproduzido no Jornal da Ciência. Este documento expressou uma preocupação sobre como o sistema de cotas estava sendo implementado nas universidades. A preocupação se baseou no fato de que os mecanismos adotados para identificar os candidatos constituíam "uma restrição do direito individual, incluindo o da livre autoidentificação". Além disso, esse sistema desprezava o "arcabouço conceitual das ciências sociais e, em particular, da antropologia social e da antropologia biológica". A Comissão considerou que a adoção de cotas raciais nas universidades era uma medida política que não deveria sujeitar "aqueles que buscavam ajudar a critérios autoritários, senão abriria um caminho para novas modalidades de excepção à livre expressão de pessoas " (CRER/ABA, 2004). Para Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos (2005), a ambiguidade característica das percepções raciais no Brasil impossibilitou a reprodução da "visão da sociedade" (expressão usada por um dos membros da comissão instituída para cotas na UnB). Além disso, para eles, "ao colocar um antropólogo na comissão e designá-lo como especialista na questão" estabeleceram-se pontes entre a antropologia e as atividades de classificação racial com base em atributos corporais muito semelhantes ao que constituía a identidade da antropologia física praticada no final do século XIX e no início do século XX. A antropologia está associada como uma ciência capaz de descobrir e/ou atribuir "identidades" aos indivíduos e, igualmente importante, restringir o ímpeto de "fraudadores" ou "criminosos", transgressores em matéria de filiação racial. “A dupla dose de prescrição não teria prestígio no pensamento antropológico moderno” (MAIO; SANTOS, 2005a, pp. 206-207). UNIUBE 157 Muitos autores que contribuíram para a edição especial da Horizontes Antropológicos também expressaram sua preocupação com os métodos adotados pela UnB. Alguns associaram os métodos "extremos" do NBU com o movimento de políticas de ação afirmativa baseada em raça (FRY, 2005), outros apontaram que os erros da universidade, face ao problema de identificar os beneficiários das cotas raciais no Brasil, não deve ser um obstáculo para iniciativas urgentes destinadas a favorecer um grupo discriminado (GUIMARÃES 2005, SANSONE 2005). 5.2.2 As ciências sociais e as políticas públicas O mais polêmico das questões levantadas por Maio e Santos, com base no caso de Brasília, é, certamente, o da relação entre ciências sociais e políticas públicas. Muitos argumentam que uma perspectiva puramente acadêmica sobre o problema do racismo serviria apenas para aumentar a desigualdade racial no Brasil, especialmenteno espaço universitário (CARVALHO 2005, SEGATO 2005). Esse argumento estava de certa forma alinhado com aqueles apresentados por intelectuais que, embora não fossem adeptos do método adotado pela UnB, consideravam que a dicotomia entre ciência e política, nesse contexto, era prioridade. Esses intelectuais exigiram que, diante da necessidade imediata de resolver o problema do racismo, as ciências sociais abandonassem o "domínio confortável da ciência" e agissem como uma força política (CORRÊA, 2005). A discussão sobre a natureza isolada ou elitista das ciências sociais e seu engajamento político envolveu, além disso, a consciência, especialmente por parte dos antropólogos, de que os processos de identificação racial exigidos pela política de cotas eram um problema ético, mas também científico. Esse debate enfatizou a complexidade e a própria natureza - tanto estrutural quanto intersubjetiva - da raça como um fenômeno social, assim como as ciências sociais. 158 UNIUBE De fato, a UnB tornou-se uma arena privilegiada para a compreensão dos termos em que a questão racial era colocada no Brasil e analisar as dinâmicas políticas e sociais de construção, discussão e renegociação de significantes raciais. As discussões que se seguiram foram, portanto, um momento privilegiado de análise sociológica e antropológica. Permitiram que os cientistas sociais medissem precisamente a dimensão estrutural que condicionava a necessidade de políticas públicas de discriminação positiva e os aspectos contingentes e situacionais do processo de categorização racial. Estudos cujos resultados necessariamente afetariam o modo como as categorias raciais eram categorizadas poderiam ser imediatamente percebidos como tentativas de deslegitimar a política pública de ação afirmativa, especialmente as cotas, e assim serem acusados de reproduzir a ideologia da democracia racial. Segundo algumas opiniões, a ambiguidade das categorias raciais foi um fator importante para a inadequação dessas políticas no contexto brasileiro. Chegam a afirmar que foram mesmo a prova de que, no Brasil, a questão racial não era significativa, ou mesmo importante (KAMEL, 2006). O debate e as cisões entre cientistas sociais, especialmente entre antropólogos, intensificaram-se à medida que as cotas raciais foram estabelecidas em diferentes universidades. Sua introdução na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e o programa de mestrado e doutorado em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro fornecem mais um exemplo dessas experiências conflitantes. Quanto à Universidade de Brasília, a exigência de fotografias foi cancelada e restou apenas o relatório da comissão encarregada de julgar os candidatos em manutenção. UNIUBE 159 É certo que, com poucas exceções, a discussão entre os cientistas sociais não revelou divergências sobre o caráter essencialmente social do conceito de raça. Também não revelou diferenças em relação ao reconhecimento da existência de discriminação racial no Brasil. Essa discordância centrou-se no uso e legitimação científica da raça como critério de classificação social com o objetivo de promover e implementar políticas públicas. Um conflito que se concentrou em dados de investigação social aparentemente dissonantes: por um lado, aqueles que favoreciam um sistema de classificação difuso e ambíguo que não reconhecia fronteiras apertadas entre negros e brancos; por outro, aqueles que favoreciam um sistema rígido de estratificação social, no qual o critério racial desempenhava um papel claro e determinante. Como se define uma comunidade negra no Brasil?5.3 No que diz respeito à antropologia, a discussão também levou a um debate mais amplo dentro da disciplina, onde conceitos fundamentais como raça, etnia, comunidade e cultura foram e são revisitados. Deve-se lembrar que políticas positivas de discriminação surgiram no Brasil no contexto de uma discussão sobre multiculturalismo na América Latina. Tais políticas pressupõem o reconhecimento na esfera pública por meio da adoção de leis especiais e arranjos institucionais específicos para diferentes grupos socioculturais. Embora a ação afirmativa seja definida como uma política de medidas direcionadas contra a discriminação, ela também responde à demanda por reconhecimento de afrodescendentes como uma comunidade culturalmente distinta (IGREJA, 2005). 160 UNIUBE Tais petições levantam a questão do que seria uma comunidade negra no Brasil. Na retórica política, o uso de quilombos, África e cultos afro-brasileiros, serviram para difundir a ideia de uma origem comum e uma cultura essencialmente negra. Não sem razão, a discussão do multiculturalismo dá cada vez mais importância aos pedidos de reconhecimento dos territórios quilombolas. E são essas comunidades que despertam mais interesse entre os antropólogos. Os quilombos no Brasil são então tratados academicamente, e até institucionalmente, nos termos da problemática indígena brasileira. 5.3.1 A legitimidade das políticas de discriminação positiva Esse tipo de abordagem tende a negligenciar o fato de que a grande maioria da população negra brasileira é urbana e a dar pouca importância ao estudo da etnia e da cultura na cidade, um ambiente caracterizado por fenômenos típicos da globalização (SANSONE, 2008). Além disso, deve-se considerar que o patrimônio cultural afrobrasileiro não foi suficiente para afirmar uma forte identidade racial no país, uma vez que, historicamente, era considerado como um contingente da identidade nacional brasileira. Assim, os espaços culturais têm sido usados pelos negros para transacionar com o mundo branco e para se mover com maior liberdade e poder (SANSONE, 2002). Como indicam os antropólogos, o risco seria considerar essas tradições culturais como específicas do negro, essencializando as diferenças e fixando uma cultura que sempre foi muito dinâmica e se desenvolveu no contexto da cultura nacional. Não obstante as dificuldades levantadas pelas interpretações antropológicas, é necessário reconhecer a legitimidade da demanda UNIUBE 161 por cotas raciais apresentada pelo movimento negro. Este último encontra uma maneira possível de combater a persistente discriminação racial no país. Os historiadores, sociólogos, antropólogos e geógrafos brasileiros são, portanto, convidados a engajar-se na luta política ao lado dos movimentos afro-brasileiros e, além disso, contribuir para o aprimoramento das políticas propostas. Nesta perspectiva, as ciências sociais brasileiras devem agir, sistemicamente, usando métodos etnográficos rigorosos em harmonia com uma interpretação sensata dos dados encontrados. Os direitos dos povos indígenas5.4 O correspondente à polêmica das cotas raciais para negros, no âmbito das reivindicações indígenas, é a demarcação de reservas. Muita luta jurídica e confrontos diretos já se travaram para que um direito garantido pela nossa Constituição Federal (1988) seja, definitivamente, aplicado. Estando o bem-estar dos índios, é importante que se diga, sob o abrigo de estatutos internacionais e os olhos atentos da mídia estrangeira. O desenvolvimento do Direito internacional para inclusão dos direitos indígenas ganhou impulso a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Na América Latina, os primeiros debates para criação de uma legislação indigenista surgiram em 1940, por ocasião do 1º Congresso Indigenista Interamericano de Pátzcuaro, ocorrido no México. Posteriormente, em 1957, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) – agência vinculada à ONU –, mediante a Convenção 107 sobre Populações indígenas e Tribais, criou uma série de proposições visando orientar as ações dos governos voltados à questão indígena, principalmente para SAIBA MAIS 162 UNIUBE aqueles grupos que ainda não estavam integradas à coletividade nacional. Em 1989, o Convênio 107 foi substituído pelo Convenção 169 sobre Povos Indígenase Tribais em Países Independentes, sendo, atualmente, um dos mais eficazes no que diz respeito aos direitos indígenas. Entre seus aspectos mais importantes, destacam-se a consciência da identidade como critério para a definição do sujeito do direito, a identificação dos grupos indígenas como povos, e a participação nas decisões que possam afetá-los, tendo, assim, a possibilidade de participar juridicamente das questões sociais e de decidir os rumos de sua vida econômica, social e cultural. Vale lembrar que o Brasil é signatário dessa Convenção, cujos termos foram incorporados ao Art. 49, inciso I, da Constituição Federal e ratificado pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Por conseguinte, o País se compromete formalmente a cumprir as obrigações decorrentes desse instrumento jurídico internacional. Para conhecer o documento da Convenção 169 da OIT, acesse: http://portal. iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Convencao_169_OIT.pdf 5.4.1 A Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas Em 13 de setembro de 2007, a Assembleia Geral da ONU adotou a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas (DDPI), um documento de alto valor simbólico e moral destinado a corrigir as situações de marginalização e discriminação nas quais as sociedades indígenas foram mergulhadas devido à colonização e modelos não sustentáveis de exploração do meio ambiente. Essa Declaração de direito internacional tem alcance universal, amplia o campo dos direitos humanos e reconhece os direitos coletivos ao lado dos direitos individuais. Mas não se aplica regularmente em nenhum dos Estados do planeta; podendo mesmo revelar situações muito variadas, UNIUBE 163 marcadas pela história e pelas notícias de reconhecimento, negação, violação de direitos fundamentais e/ou ambientais. Para conhecer a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas na íntegra, acesse: https://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/DECLARACAO_ DAS_NACOES_UNIDAS_SOBRE_OS_DIREITOS_DOS_POVOS_ INDIGENAS.pdf PESQUISANDO NA WEB Com base em um estudo realizado pelas Nações Unidas nos quatro continentes, alguns trabalhos recentes, encomendados pela ONU e publicados a despeito das reações contrárias, examinam as interpretações da Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas dentro dos sistemas regionais de direitos humanos. Situa o contexto político e jurídico de muitos povos indígenas e abre a reflexão sobre as condições para a implementação de normas protetoras. Para se ter uma ideia da gravidade da situação, somente em 2015, 50 ativistas ambientais, incluindo ativistas indígenas, foram assassinados no Brasil por combaterem a agricultura ilegal, a mineração e a silvicultura predatória. Em sua luta para o reconhecimento oficial e proteção de suas terras ancestrais, os povos indígenas do Brasil, além desta violência, também sofrem as dores da administração e da burocracia local, sua lentidão notória, concessão, às grandes corporações econômicas, de licença para danificar ainda mais a área destinada à formação de uma reserva. Muitas comunidades indígenas, como os Guarani-Kaiowas, lutam pela proteção de suas terras há centenas de anos, mas ainda não receberam 164 UNIUBE reconhecimento ou apoio do governo brasileiro. Apesar dessa situação preocupante para muitas comunidades indígenas no Brasil, essa negação de seus direitos está recebendo crescente atenção da mídia internacional. A DDPI reflete um conjunto de reivindicações que buscam melhorar as relações dos povos indígenas com seus respectivos Estados nacionais, estabelecendo parâmetros mínimos para o avanço das legislações nacionais sobre os direitos indígenas. Entre os principais pontos da Declaração destacamos: • Autodeterminação: os povos indígenas têm o direito de determinar livremente seu status político e perseguir livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural, incluindo sistemas próprios de educação, saúde, financiamento e resolução de conflitos, entre outros. Este foi um dos principais pontos de discórdia entre os países; os contrários a ele alegavam que isso poderia levar à fundação de “nações” indígenas dentro de um território nacional. • Direito ao consentimento livre, prévio e informado: garante o direito de povos indígenas serem adequadamente consultados antes da adoção de medidas legislativas ou administrativas de qualquer natureza, incluindo obras de infraestrutura, mineração ou uso de recursos hídricos. • Direito à reparação pelo furto de suas propriedades: a declaração exige dos Estados nacionais que reparem os povos indígenas com relação a qualquer propriedade cultural, intelectual, religiosa ou espiritual subtraída sem consentimento prévio informado ou em violação a suas normas tradicionais. Isso pode incluir a restituição ou repatriação de objetos cerimoniais sagrados. • Direito a manter suas culturas: inclui entre outros o direito de manter seus nomes tradicionais para lugares e pessoas e de entender e fazer- se entender em procedimentos políticos, administrativos ou judiciais inclusive através de tradução. SINTETIZANDO... UNIUBE 165 • Direito à comunicação: os povos indígenas têm direito de manter seus próprios meios de comunicação em suas línguas, bem como ter acesso a todos os meios de comunicação não-indígenas, garantindo que a programação da mídia pública incorpore e reflita a diversidade cultural dos povos indígenas. Fonte: ISA (s/d) 5.4.2 O relatório das Nações Unidas (2016) Em 2016, em resposta ao pedido dos povos indígenas do Brasil, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) juntou-se ao debate e tomou posição sobre o assunto. O ACNUDH divulgou um novo relatório detalhando as muitas violações dos direitos dos povos indígenas no Brasil, tais como o prolongamento da lentidão dos processos de reconhecimento oficial para os territórios indígenas, ou planos para construir uma enorme infraestrutura no coração de suas reservas (como as megabarragens de Belo Monte (EN) e São Luiz do Tapajós), sem consulta prévia. O relatório também enfatiza a importância do reconhecimento precoce de suas terras ancestrais para acabar com a violência e a deterioração do patrimônio natural do território destinado aos índios. A demarcação dos territórios indígenas é ainda mais urgente face a monocultura intensiva e a mineração agressiva na região. Desmatamentos, destruição de rios e esgotamento de solos, tornam a reserva inadequada para o modo de vida dos povos indígenas. O Governo brasileiro rejeitou estas críticas, propondo argumentos que, no entanto, não correspondem à realidade dos fatos: nenhum membro do povo Munduruku tinha sido consultado sobre a construção da megabarragem de São Luiz do Tapajós, por exemplo, que inundou 166 UNIUBE parte do seu território e desestabilizou o seu modo de vida. Essa reação do governo brasileiro evidencia uma completa indiferença pelas recomendações da ACNUDH e a negligência quanto ao que determinou a memorável Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT, publicada em 1989 e que só foi ratificada pelo Brasil dez anos após sua publicação. Vejamos o texto: Art. 2º, 2 – Essa ação deverá incluir medidas: a) que assegurem aos membros desses povos o gozo, sem condições de igualdade, dos direitos e das oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população; Art. 3º, 1 – Os povos indígenas e tribais deverão gozar plenamente dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, sem obstáculos nem discriminação. As disposições desta Convenção serão aplicadas sem discriminação aos homens e às mulheres desses povos. (OIT, 2011). Parece haver uma má vontade política no que tange à aplicação de uma política pública que já existe e que exige aparato fiscalizador e ações punitivas mais rigorosas para aqueles que violam a legislação. Todo esse esforço deve ser somado às dinâmicas educacionais e formadoras de uma mentalidadecoletiva que saiba respeitar e valorizar o índio. Em suma, se existe já uma legislação específica para o acolhimento e a proteção integral do índio (internacional e com sua correspondente nacional) é sinal que a demanda social resolveu se impor sobre os interesses econômicos particularistas. O que falta, portanto, não são leis e políticas públicas afirmativas, mas um real comprometimento com as mesmas. UNIUBE 167 Ao nos referirmos aos índios brasileiros da atualidade, devemos saber: • Que há índios no Brasil totalmente sem contato com outros povos indígenas ou com o restante da sociedade brasileira. • A FUNAI estima cerca de 50 povos vivendo dessa maneira. • Há outros povos com pouquíssimo contato, vivendo principalmente na região amazônica. • Há povos indígenas que habitam terras indígenas que já conhecem e que mantém forte contato com outros povos. O tempo de contato, no entanto, pode variar de cerca de poucas décadas há até mesmo 500 anos atrás. • Muitos povos mantêm sua língua ou, quando não, mantêm parte de sua cultura e vivem coletivamente. São povos indígenas, mesmo com parte de sua gente misturada com outros povos ou etnias. Como já se disse antes, se a comunidade os aceita como índios, como sua gente, indígenas são. • Finalmente, há índios vivendo coletivamente, ou de forma individual, ou ainda em pequenos grupos familiares nos grandes centros urbanos. A população indígena urbana pode alcançar o patamar de no mínimo 300 mil pessoas, as quais se identificam como índios, e cuja maioria pode, de fato, ser reconhecida por um povo indígena. Na verdade, não importa onde vivem, pois continuam sendo índios. Não é, como querem muitos, que por não mais residirem nas aldeias tenham deixado de ser índios. Esta é uma ideia equivocada e preconceituosa, reflexo ainda de uma ideologia integracionista e assimilacionista. Seria o mesmo que um mineiro fosse morar em São Paulo e por isso deixasse de ser mineiro, tornando-se paulistano; ou que um brasileiro fosse morar no exterior e automaticamente deixasse de ser brasileiro, tornando-se americano ou europeu. Ou, no extremo, que se tornasse um apátrida, simplesmente pelo fato de não estar mais residindo em terras brasileiras. (GUARANY, 2006, p. 157) SAIBA MAIS 168 UNIUBE Conclusão5.5 Espero ter deixado claro, ao longo desta história de quotas, que há pouca diferença sociológica entre pró e anticota. Dos dois lados havia pessoas "certas" e "esquerdas", e as mudanças nos “acampamentos” eram incessantes. Olhar para a lista de signatários de letras e manifestos é, portanto, suficiente para perceber que os argumentos de um lado e do outro não eram determinados por uma lógica sociológica estrita. Não houve oposição simples entre os pobres e os ricos, brancos e não-brancos, ou mesmo a elite intelectual e a massa insana. Para dar apenas um exemplo, Wanderley Guilherme dos Santos, o grande intelectual orgânico do PT, assinou documentos contra as cotas ao lado da ex-primeira dama Ruth Cardoso, antropóloga e grande figura do PSDB. Além disso, os antropólogos estavam em posição de liderança em ambos os grupos. Alguns assumiram um forte compromisso de implementar medidas do NEB para negros, enquanto outros se mostraram em reuniões públicas. Finalmente, foram os colegas que tomaram a iniciativa em petições, politizando o debate. O atual contexto social e político brasileiro apresenta, portanto, profundos desafios às ciências sociais que buscam compreender e explicar o fenômeno da raça e do racismo. No centro desses desafios, está a dificuldade de conciliar, do ponto de vista teórico e metodológico, duas dimensões do problema: de um lado, o fato objetivo e irrefutável dos dados estatísticos, que revelam a dimensão estrutural da desigualdade entre negros e brancos (saúde, educação, emprego, etc.). Por outro lado, a dimensão fenomenológica da classificação simbólica, que revela um campo complexo de identificação inadequado às categorias rígidas de políticas públicas. Parece-nos que a pesquisa que se restringe a uma dessas dimensões corre o risco de levar Bourdieu a chamar a perspectiva "substancialista", UNIUBE 169 que tende a assimilar a realidade social aos dados empíricos que precedem os processos (inclusive os científicos) de classificação e relações de poder relacionadas. Destacar a necessidade de usar a raça como categoria analítica tem sido a chave para estudos que se baseiam quase exclusivamente em evidências estatísticas de desigualdade de qualidade de vida entre negros e brancos que compartilham condições semelhantes. Tais dados são essenciais para entender a dimensão estrutural do racismo e suas consequências em termos de distribuição desigual de recursos e bens simbólicos e materiais: eles não dispensam uma análise rigorosa dos processos pelos quais os grupos sociais são classificados racialmente. Em última análise, apenas uma abordagem capaz de desvendar esses processos pode tornar possível estabelecer a diferença entre uma categoria popular "nativa" e um conceito analítico. Mas, como Brubaker (2002) coloca, tomando categorias do senso comum como conceitos analíticos - em particular uma categoria já qualificada como "raça" - e negligenciando os processos dos quais eles se tornam significados socialmente importantes acompanhados por consequências reais na vida social, nos arriscamos a naturalizar as relações sociais e o poder que as constituem. Resumo A ausência de um sistema de classificação binária não deve ser considerada sinônimo de uma sociedade efetivamente livre de racismo. Esse tipo de abordagem, bastante comum no Brasil, negligencia o fato de que as inúmeras categorias que descrevem as características fenotípicas dos brasileiros - moreno, pardo, mulato, mestiço - são na realidade raciais, herdadas de uma classificação social racista que, historicamente, acompanhou a escravidão dos negros e persiste com a interiorização dos afrodescendentes, nativos, imigrantes e nordestinos. 170 UNIUBE Como pensar em raça sem reproduzir racismo? Essa questão surge porque nos remete ao problema crucial do papel dos cientistas sociais ou do conhecimento social no desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a correção de injustiças. Se a ciência não revela apenas algo que é empiricamente dado a ela, mas ajuda - a partir de suas referências teóricas e instrumentos analíticos - para construir a realidade que procura analisar, então parece claro para nós que é impossível dissociar a ciência do poder e, portanto, da política. Esse fato, por si só, tão crucial para o desenvolvimento de um conhecimento crítico e reflexivo da realidade social, não deve, no entanto, ser traduzido em mera instrumentalização das ciências sociais com o objetivo de legitimar políticas públicas. Ao contrário, uma pesquisa social que se diz crítica deve adotar uma postura reflexiva que lhe permita estar atento à natureza contextual e política de qualquer interpretação do real, sem implicar adesão imediata às explicações habituais dos fenômenos sociais. No que diz respeito ao fenômeno social da raça e do racismo em particular, tal postura envolve sobretudo um compromisso com a procura de processos sociais, políticos e históricos específicos, a partir dos quais a raça pode ou não se tornar uma categoria socialmente significativa. Referências ANJOS, José Carlos dos. O tribunal dos tribunais: onde se julgam aqueles que julgam as raças. Horizontes Antropológicos, vol. 11, no 23, 2005, p. 232-236. ARAÚJO, Ana Valéria [et all]. 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Para além de preparar os jovens para o mercado de trabalho, o papel da escola deve ser o de “promover a autonomia intelectual e o pensamento crítico, no sentido de criar condições para a democratização do ensino e de prepará-los para a participação ativa e transformadora nas várias instâncias da vida social”. (LIBÂNEO, 1992, p. 16) Podemos considerar, portanto, que a prática educativa é responsável tanto pelos processos de mudanças educacionais quanto pela inclusão social. A Constituição de 1988, a LDB (1996) e os PCN (1999) abriram caminho para uma profunda mudança curricular que trouxe à tona o debate de questões importantes sobre a educação para as relações étnico-raciais. Como vimos ao longo do estudo dos capítulos anteriores, indígenas e negros tiveram signifi cativa atuaçãona história brasileira, embora tenham UNIUBE 177 sido pouco reconhecidos e referenciados ao longo da nossa educação escolar. Como proposta deste último capítulo, vamos buscar compreender como as recentes mudanças curriculares com a implementação das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, e também das diretrizes curriculares subsequentes, contribuíram para se repensar o papel da educação em valorizar as contribuições dos povos indígenas e africanos para a formação do Brasil e promover o ensino da história e cultura indígena e afro-brasileira. Também nos propomos a refletir sobre o papel de gestores e professores, em especial os de História, em rever suas práticas pedagógicas, superando metodologias arcaicas, excludentes e discriminatórias. Portanto, de nada valem as alterações e obrigatoriedade legais se os educadores não mudarem sua postura, ações e atitudes, que representem na prática o respeito e o reconhecimento da diversidade cultural, histórica e social do nosso País. Objetivos A partir do estudo deste capítulo, esperamos que você seja capaz de: • Compreender as mudanças promovidas pelas Leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008 para a efetivação do ensino de História e culturas africana, afro-brasileira e indígena nas escolas de Educação Básica. • Reconhecer a importância das diretrizes curriculares nacionais na implementação de uma Educação para as relações étnico-raciais, para a diversidade e para a inclusão. • Refletir sobre o papel da Educação em promover a conscientização e valorização das diferenças multiculturais da formação da sociedade brasileira. 178 UNIUBE • Conhecer e compartilhar práticas pedagógicas que visem superar metodologias repetitivas, desconstruir e construir conceitos e estimular a formação de um cidadão crítico. Esquema 6.1 Contextualizando as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 6.2 Educação para as relações étnico-raciais, diversidade e inclusão 6.3 Práticas de Ensino: subsídios para se trabalhar em sala de aula 6.3.1 Metodologias de investigação e o uso de diferentes fontes 6.3.2 Cinema, televisão e literatura 6.4 Conclusão A educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como aos adultos a possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade e inferioridade entre grupos humanos que foram introjetados neles pela cultura racista na qual foram socializados. Kabengele Munanga (2005, p.15-16) Contextualizando as Leis 10.639/2003 e 11.645/20086.1 Em seu artigo 26, a LDB, Lei 9.394/96, que regulamenta a educação escolar em nosso país, propõe que “o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia”. (BRASIL, 1996) O caráter multicultural da nossa sociedade deveria ser a base da nossa historiografia, como forma de superar a visão eurocêntrica que predominava nos manuais de UNIUBE 179 ensino. Notadamente, esse reconhecimento foi fruto da luta dos movimentos sociais negros e indígenas que reivindicaram por anos maior representatividade nas diferentes esferas sociais. Com o mesmo intuito, as orientações propostas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997) destacavam a importância de se trabalhar transdisciplinarmente e com temáticas transversais que contribuem para a formação para a cidadania. Entre os temas definidos, destacamos a pluralidade cultural, [q]ue diz respeito ao conhecimento e à valorização de características étnicas e culturais dos diferentes grupos sociais que convivem no território nacional, às desigualdades socioeconômicas e à crítica às relações sociais discriminatórias e excludentes que permeiam a sociedade brasileira. (BRASIL, 1997, p. 121). Na tentativa de superar os discursos que reforçavam as ideias da democracia racial e da mestiçagem, a temática da pluralidade cultural deveria integrar os currículos como forma de se buscar uma valorização das diferenças multiculturais da formação da sociedade brasileira. Apesar dos parâmetros serem bastante claros sobre esse propósito, novas legislações tiveram que ser elaboradas posteriormente para que o reconhecimento das contribuições de negros e indígenas ganhassem espaço nos bancos Transdisciplinar refere-se ao conhecimento próprio da disciplina, mas está para além dela. O conhecimento situa- se na disciplina, nas diferentes disciplinas e além delas, tanto no espaço quanto no tempo. Busca a unidade do conhecimento na relação entre a parte e o todo, entre o todo e a parte. (BRASIL, 2013, p. 34) Transversal é entendido como uma forma de organizar o trabalho didático-pedagógico em que temas, eixos temáticos são integrados às disciplinas, às áreas ditas convencionais de forma a estarem presentes em todas elas. A prática interdisciplinar é, portanto, uma abordagem que facilita o exercício da transversalidade, constituindo-se em caminhos facilitadores da integração do processo formativo dos estudantes, pois ainda permite a sua participação na escolha dos temas prioritários. (BRASIL, 2013, p. 34-35) 180 UNIUBE escolares. Foi necessário, por força da lei, tornar obrigatório algo que deveria ter sido naturalmente ensinado há muitos séculos. No ano de 2003, na esteira das conquistas do movimento negro, foi promulgada a Lei nº 10.639/03, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da história da África e da história e cultura afro-brasileiras. À época, a lei representou um desafio ao trabalho docente e ao processo educacional, visto que a temática não tinha visibilidade nos conteúdos pedagógicos. Regulamentada pelo parecer 03/2004 do Conselho Nacional de Educação (CNE), as instituições das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais (DCNERER) e para o Ensino de História e Culturas Afro-brasileiras e Africanas, reforçou a importância da inclusão dessa temática para uma nova abordagem da educação escolar, voltada à diversidade: A obrigatoriedade de inclusão de História e Cultura Afro-bra sileira e Africana nos currículos da Educação Básica trata-se de decisão política, com fortes repercussões pedagógicas, inclusive na formação de professores. Com esta medida, reconhece-se que, além de garantir vagas para negros nos bancos escolares, é preciso valorizar devidamente a história e cultura de seu povo, buscando reparar danos, que se repetem há cinco séculos, à sua identidade e a seus direitos. A relevância do estudo de temas decorrentes da história e cultura afro-brasileiras e africana não se restringe à população negra; ao contrário, diz respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-se enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma nação democrática. É importante destacar que não se trata de mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz europeia por um africano, mas de ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira. Nesta perspectiva, cabe às escolas incluir no contexto dos estudos e atividades, que proporciona diariamente, também as contribuições histórico-culturais dos povos indígenas e dos descendentes de asiáticos, além das de raiz africana e europeia. (BRASIL, 2004, p. 17). UNIUBE 181 Em resposta à nova legislação, os currículos escolares tiveram que ser repensados, bem como as práticas e a formação docente, já que a temática africana também foi incluída nos cursos de graduação e licenciatura para formação docente. A produção de novos materiais didáticos e paradidáticos, fóruns de discussão e debate, cursos de pós-graduação, também ganharam espaço no mercado acadêmico e escolar, uma vez que a lei fez surgir uma necessidade urgente de conhecimento sobre a história e cultura africana e afro-brasileira para que então esse saber chegasse às salas de aula. A compreensão da questão étnico-racial se tornouum diálogo recorrente e muitas dificuldades surgiram para se implementar o estudo da temática africana nas escolas. Ainda hoje, passados mais de 15 anos da implementação da lei, esse desafio permanece. Em 2008, uma nova lei foi sancionada pelo Governo Federal – Lei nº 11.645/08 – que tornou obrigatório também o ensino da história e cultura dos povos indígenas na Educação Básica. A lei foi resultado da luta dos movimentos indígenas, que também reivindicaram um melhor conhecimento sobre esses grupos de modo que a educação brasileira promovesse uma formação etno-histórica mais heterogênea que convergisse com a pluralidade cultural da nossa sociedade, incluindo a própria diversidade das crianças e jovens presente nas escolas. Ao modificar a Lei 10.639/2003, muitos entenderam que a nova lei substituiu a anterior, mas o fato é que a lei 11.645/2008 acrescentou a perspectiva indígena aos estudos das relações étnico-raciais no Brasil, uma vez que ela também compõe nossa matriz cultural. Vejamos a seguir a íntegra dessas leis. 182 UNIUBE LEI Nº 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º: A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B: “Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. § 3º (VETADO)” “Art. 79-A. (VETADO)” “Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’.” Art. 2º: Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 9 de janeiro de 2003. (BRASIL, 2003) REGISTRANDO UNIUBE 183 LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º: O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. § 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras”. (NR) Art. 2º: Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 10 de março de 2008. (BRASIL, 2008) 184 UNIUBE É importante considerar que ambas as legislações não impõem a criação de disciplinas específicas nas escolas, ao contrário, trata-se de mudanças que foram implementadas gradativamente nas matrizes curriculares para que as disciplinas – em especial História, Geografia, Artes, Português e Literatura – incluíssem tais abordagens. Tanto o ensino da história e cultura afro-brasileiras quanto indígenas podem e devem permear todas as disciplinas, de forma transversal, de modo que os alunos tenham contato com as contribuições desses povos em diferentes aspectos. Mas as disciplinas que destacamos tem um papel mais relevante em cumprir a obrigatoriedade das leis. O importante é ir além do conteúdo superficial, de abordagens isoladas em datas comemorativas e incluir as temáticas ao longo do processo educativo, “ministrados no âmbito de todo o currículo escolar”, como define a legislação. Desde a promulgação dessas leis, ampliou-se o debate sobre como deveriam ser inseridas as temáticas nas escolas, considerando, principalmente, as dificuldades que se apresentaram em termos didático-metodológicos. A exigência na aplicação de novas diretrizes implica em criar ou modificar as perspectivas das análises históricas, além de desconstruir concepções apreendidas nas formações anteriores. Tantos os materiais didáticos quanto as abordagens em sala de aula deveriam propor novas reflexões, modificar práticas enraizadas e análises carregadas de estereótipos sobre as contribuições de indígenas e negros na história do Brasil, como enfatizamos nos capítulos anteriores. A postura do professor nesse processo também foi bastante enfocada, principalmente pelo fato de que muitos cursos de formação não abordavam adequadamente esses temas. Paralelamente, investiu-se – e continua se investindo – nos cursos de formação continuada, para que os docentes pudessem ampliar seu conhecimento para atender a esse processo inclusivo. UNIUBE 185 Em virtude disso, houve uma produção crescente de obras acadêmicas e literárias sobre a história da África e a presença dos negros na formação do Brasil. Igualmente, com os grupos indígenas novas pesquisas veem surgindo, principalmente pelo fato de que esses povos foram tão ou mais negligenciados historicamente do que os africanos, embora se reconheça que ambos foram tratados como coadjuvantes ao longo da história brasileira. A partir de tais pesquisas a transposição didática se faz necessária, para que essas abordagens tenham uma linguagem apropriada para o ensino básico. Portanto, não se trata somente de inclusão, mas de valorização, respeito e tolerância para se repensar o papel da escola em promover aprendizagens significativas para a formação de crianças e jovens. É nesse sentido que devemos refletir sobre a importância da educação para as relações étnico-raciais. 6.2 Educação para as relações étnico-raciais, diversidade e inclusão A busca pela diversidade não é algo restrito à Educação, compreende um todo social, fruto da ação de sujeitos para se buscar um melhor convívio. Contudo, essa ação pressupõe uma tomada de consciência que passa, indubitavelmente, pela educação escolar. É nesse ambiente que vamos construir nossas primeiras noções de pertencimento a uma sociedade, estabelecer relações com o outro e conviver com as diferenças. As propostas político-pedagógicas, as experiências de aprendizagem irão determinar essa dinâmica. Portanto, é interessante pensarmos na importância do que propõem as diretrizes curriculares no âmbito das relações étnico-raciais para se buscar esse tratamento mais democrático e igualitário. Os principais documentos a serem analisados são as diretrizes elaboradas nos anos de 2004 e 2013, correlatas às leis de 2003 e 2008, que analisamos no item anterior. A DCNERER (BRASIL, 2004) apresentaum 186 UNIUBE tom mais político em relação à implementação de medidas e ações para se promover a inclusão social e corrigir injustiças quanto ao tratamento destinado às questões étnico-raciais no Brasil. O fortalecimento dessas políticas é colocado no documento como uma garantia dos direitos educacionais e como um desafio imposto à Educação Básica, no que se refere à atualização dos programas curriculares, à diversificação das experiências pedagógicas e da renovação das práticas educacionais. Outro ponto a se destacar diz respeito à uma “política de reparação” quanto à dívida histórica que o país tem em relação aos negros e a outros setores excluídos das políticas públicas e sociais. Conforme destacam as diretrizes: Políticas de reparações voltadas para a educação dos negros devem oferecer garantias a essa população de ingresso, permanência e sucesso na educação escolar, de valorização do patrimônio histórico-cultural afro-brasileiro, de aquisição das competências e dos conhecimentos tidos como indispensáveis para continuidade nos estudos, de condições para alcançar todos os requisitos tendo em vista a conclusão de cada um dos níveis de ensino, bem como para atuar como cidadãos responsáveis e participantes, além de desempenharem com qualificação uma profissão. A demanda da comunidade afro-brasileira por reconhecimento, valorização e afirmação de direitos, no que diz respeito à educação, passou a ser particularmente apoiada com a promulgação da Lei 10.639/2003, que alterou a Lei 9.394/1996, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas. (BRASIL, 2004, p. 11) No mesmo ano de sanção da lei 10.639/03, foram instituídas a Seppir (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) e a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, o que reforçou a preocupação sobre a adoção de políticas públicas afirmativas e de inclusão das abordagens étnico-raciais de forma democrática, descentralizada e transversal. O objetivo dessas iniciativas era o de “promover alteração positiva na realidade vivenciada pela população UNIUBE 187 negra e trilhar rumo a uma sociedade democrática, justa e igualitária, revertendo os perversos efeitos de séculos de preconceito, discriminação e racismo”. (BRASIL, 2004, p. 8). Nas palavras da pesquisadora Nilma Lino Gomes, era preciso “descolonizar os currículos”, um desafio aberto à educação brasileira sobre “a necessidade de diálogo entre escola, currículo e realidade social, a necessidade de formar professores e professoras reflexivos e sobre as culturas negadas e silenciadas nos currículos”. (GOMES, 2012, p. 102) Nesse sentido, pensar uma educação das relações étnico-raciais significa reconhecer a diversidade dos grupos que compõem a sociedade brasileira e que devem ter igual direito de exercício de sua cidadania. Isso quer dizer que cabe à educação oportunizar tanto os conhecimentos e saberes necessários à compreensão da história e cultura desses grupos, quanto de eliminar ideologias, desigualdades e estereótipos racistas e etnocêntricos. Esse compromisso deve ser assumido tanto pela educação informal, que tem por base a educação familiar, quanto pela educação formal, aprendida no espaço escolar. Pedagogias de combate ao racismo e a discriminações elaboradas com o objetivo de educação das relações étnico/raciais positivas têm como objetivo fortalecer entre os negros e despertar entre os brancos a consciência negra. Entre os negros, poderão oferecer conhecimentos e segurança para orgulharem- se da sua origem africana; para os brancos, poderão permitir que identifiquem as influências, a contribuição, a participação e a importância da história e da cultura dos negros no seu jeito de ser, viver, de se relacionar com as outras pessoas, notadamente as negras. Também farão parte de um processo de reconhecimento, por parte do Estado, da sociedade e da escola, da dívida social que têm em relação ao segmento negro da população, possibilitando uma tomada de posição explícita contra o racismo e a discriminação racial e a construção de ações afirmativas nos diferentes níveis de ensino da educação brasileira. (BRASIL, 2004, p. 16-17) 188 UNIUBE O documento também reforça a importância da formação de professores capacitados, de modo a se tornarem um dos principais agentes dessa transformação educacional: Tais pedagogias precisam estar atentas para que todos, negros e não negros, além de ter acesso a conhecimentos básicos tidos como fundamentais para a vida integrada à sociedade, exercício profissional competente, recebam formação que os capacite para forjar novas relações étnico-raciais. Para tanto, há necessidade, como já vimos, de professores qualificados para o ensino das diferentes áreas de conhecimentos e, além disso, sensíveis e capazes de direcionar positivamente as relações entre pessoas de diferentes pertencimentos étnico-raciais, no sentido do respeito e da correção de posturas, atitudes, palavras preconceituosas. (BRASIL, 2004, p. 17) O compromisso com uma prática sociocultural na escola e com uma formação de cidadãos mais atuantes e democráticos levou, anos depois, a uma revisão das diretrizes curriculares para o desenvolvimento das temáticas envolvendo diversidade e inclusão. O documento das DCN de 2013 colocava como principal desafio as garantias educacionais relacionadas quanto ao direito humano universal e social inalienável. Nesse âmbito, a amplitude do termo inclusão foi colocado, para se referir à diversidade humana, social, cultural, econômica dos grupos historicamente excluídos. Para atingir esse propósito, o documento defende que a educação escolar deve fundamentar-se na ética e nos valores da liberdade, na justiça social, na pluralidade, na solidariedade e na sustentabilidade, cuja finalidade é o pleno desenvolvimento de seus sujeitos, nas dimensões individual e social de cidadãos conscientes de seus direitos e deveres, compromissados com a transformação social. (BRASIL, 2013, p. 7) Os princípios de diversidade e inclusão deveriam fazer parte dos projetos pedagógicos, dos recursos didáticos-metodológicos, das teorias de aprendizagem, das práticas de ensino, desde a alfabetização, passando UNIUBE 189 pela Educação Básica e a Educação de Jovens e Adultos, propondo um diálogo aberto às questões de educação em direitos humanos, educação especial, educação ambiental, educação do campo e educação para as relações étnico-raciais, incluindo nesse contexto a educação escolar indígena e quilombola. O desenvolvimento curricular proposto pelas diretrizes também passa pela capacitação doente, considerado por vezes como sendo a etapa mais complexa, uma vez a formação dos profissionais inclui diferentes aprendizagens e exige um conjunto de competências para o melhor desempenho das capacidades de trabalho em desenvolver nos estudantes as habilidades cognitivas necessárias para a formação escolar democrática, inclusiva e participativa. Historicamente, o docente responsabiliza-se pela escolha de determinada lógica didático-pedagógica, ameaçado pela incerteza quanto àquilo que, no exercício de seu papel de professor, deve ou não deve saber, pensar e enfrentar, ou evitar as dificuldades mais frequentes que ocorrem nas suas relações com os seus pares, com os estudantes e com os gestores. [...] Para atender às orientações contidas neste Parecer, o professor da Educação Básica deverá estar apto para gerir as atividades didático-pedagógicas de sua competência se os cursos de formação inicial e continuada de docentes levarem em conta que, no exercício da docência, a ação do professor é permeada por dimensões não apenas técnicas, mas também políticas, éticas e estéticas, pois terão de desenvolver habilidades propedêuticas, com fundamento na ética da inovação, e de manejar conteúdos e metodologias que ampliem a visão política para a politicidade das técnicas e tecnologias,no âmbito de sua atuação cotidiana. (BRASIL, 2013, p. 69) É inegável as contribuições que a conquista dos dispositivos constitucionais traz para uma reforma educacional mais eficiente e eficaz. Contudo, a complexidade em transpor os direitos legais na prática escolar continua sendo o maior desafio colocado aos profissionais da Educação. A implantação das relações étnico-raciais e de uma Educação Inclusiva requer profundas transformações nas práticas e concepções didático- pedagógicas. 190 UNIUBE No que se refere especificamente às temáticas indígenas e africanas, nosso foco de abordagem neste livro, a superação de práticas discriminatórias é o primeiro passo. Nesse contexto, existe uma série de representações no imaginário social – que abordamos nos capítulos anteriores – que imprimem a marca do eurocentrismo e que devem ser gradativamente superadas para buscarmos uma educação mais crítica e mais concernente com as novas bases curriculares propostas para a formação e reconhecimento da diversidade cultural da nossa sociedade. Sabemos que esta não é uma tarefa fácil. E é com o intuito de apontar caminhos possíveis que apresentamos a seguir subsídios ao trabalho docente para se trabalhar com a história e cultura africana, afro-brasileira e indígena. 6.3 Práticas de Ensino: subsídios para se trabalhar em sala de aula As sugestões que apresentamos neste item são fruto de pesquisas de diferentes autores, com orientações temáticas e metodológicas para se utilizar em sala de aula na abordagem das relações étnico-raciais. Embora boa parte dos temas sejam mais direcionados à disciplina de História, alguns também contemplam outras áreas, para se buscar um trabalho interdisciplinar. Notadamente, as possibilidades de trabalho docente e didático-metodológicas são amplas e não pretendemos esgotá-las em poucas linhas. Cabe a você, futuro professor, buscar novas propostas e estender a pesquisa de outros materiais para aprimorar sua formação. Vale destacar, conforme aponta Melo (2010, p. 115), que as práticas de ensino para as relações étnico-raciais, devem ter por objetivos: • Apresentar novas possibilidades de entender, reconhecer e valorizar a participação da população afro-brasileira e indígena na formação do país; UNIUBE 191 • Trabalhar com temas e grupos deixados na invisibilidade por séculos de história, enfatizando-os para que possamos enxergar a nós mesmos – e ao Brasil – muito melhor; • Priorizar, no processo de aprendizagem, a identificação e compreensão de conceitos, a reflexão e atuação cidadã, dando vez e voz ao educando; • Desconstruir e construir conceitos e opiniões; • Estimular a formação de um cidadão crítico. 6.3.1 Metodologias de investigação e o uso de diferentes fontes A proposta de trabalho que apresentamos a seguir tem por referencial os estudos propostos por Elizabete Melo, no livro “História da África e afro-brasileira: em busca de nossas origens” (Selo Negro, 2010), no qual a autora elabora uma metodologia de investigação com base na construção coletiva do conhecimento. Os fundamentos teóricos provêm de diferentes fontes – livros, filmes, revistas, jornais, literatura, música, imagens, história local, etc. –, que o professor pode utilizar de variadas maneiras, em diferentes atividades e a partir de qualquer temática. O importante é seguir as etapas propostas (p. 116-117), que descrevemos a seguir: 1. Apresenta-se o tema. 2. Verifica-se o conhecimento prévio dos alunos sobre o tema. Nesse momento, não há certo nem errados. É importante que o aluno diga o que sabe sobre o assunto. 3. Problematiza-se a temática, partindo de uma questão ou situação desafiadora, que estimule a descoberta. 4. Realiza-se uma atividade integrada pertinente ao tema abordado. A classe toda trabalha em conjunto ou divide-se em grupos. 5. Exibem-se vídeos, fotografias ou outras fontes visuais para ressaltar determinados aspectos do tema apresentado. 192 UNIUBE 6. Estimula-se a leitura de textos jornalísticos, científicos e literários que abordem a temática de maneira crítica. 7. Propõem-se atividades complementares, como pesquisas, entrevistas, visitas, etc. 8. Socializa-se a aprendizagem: os alunos compartilham com colegas, com a classe ou com a escola o que aprenderam. 9. Faz-se a avaliação, momento em que se elabora a síntese do que foi aprendido. 10. Realiza-se a autoavaliação. Esse é um momento de reflexão pessoal, em que o aluno avalia como aprendeu, como participou das atividades e o que isso acrescentou aos seus conhecimentos. 11. Abre-se espaço para críticas e sugestões. A autora também propõe que nas etapas da avaliação e autoavaliação, os seguintes aspectos devem ser priorizados (MELO, 2010, p. 117): • Relevância da temática. • Importância das atividades vivenciadas. • Atuação do educador. • Desempenho do educando. • Expressões – cênicas, escritas, orais, plásticas, musicais – que surgem do conhecimento. Alguns dos temas sugeridos pela autora (MELO, 2010, p. 117-122), que podem ser trabalhados nos ensinos fundamental e médio são: • Tema I: Cidadania no contexto da cultura africana e afro-brasileira Atividade: trabalho com filmes, com análise e debate em grupos. • Tema II: A violência contra grupos étnico-raciais Atividade: pesquisa sobre o tema em diferentes contextos históricos, desde a escravidão até os dias atuais. Criação de um júri simulado a respeito dos atos violentos praticados em cada contexto. • Tema III: Ações afirmativas destinadas aos afrodescendentes UNIUBE 193 Atividade: pesquisa sobre as ações afirmativas implementadas pelo governo brasileiro, leitura de textos complementares sobre o tema e debate com mesa-redonda mediada pelo professor. • Tema IV: Racismo Atividade: pesquisa de opinião (por meio de questionário), com cerca de 50 alunos, de diferentes períodos, sobre a existência de racismo na escola. Após organização dos dados obtidos, o resultado seria apresentado à escola para se promover uma palestra ou debate coletivo sobre o tema. • Tema V: Quilombos atuais Atividade: pesquisa sobre o tema e reflexão sobre a relação entre quilombo e periferia hoje. Trabalho desenvolvido com música a partir de uma análise crítica do contexto social. 6.3.2 Cinema, televisão e literatura Neste subitem, sugerimos o trabalho com três fontes de fácil acesso: cinema, televisão e literatura. As indicações didáticas estão baseadas nos estudos dos professores Giovani José da Silva e Ana Maria F. M. da costa, no livro “Histórias e culturas indígenas na Educação Básica” (Autêntica, 2018). Embora os autores enfoquem a temática indígena, essas fontes também podem ser utilizadas para se abordar temáticas afro-brasileiras. No século XX muito se produziu em relação aos indígenas no cinema e na televisão brasileiras. A literatura, desde o século XIX, também trouxe interpretações sobre o índio. Apesar da maioria das obras conter visões estereotipadas, o intuito é partir dessas linguagens para desconstruir tais visões por meio de uma análise crítica. Com base em pesquisas e estudos sobre a atualidade dos povos indígenas, o professor pode construir junto aos alunos novas análises e interpretações das representações presentes nos filmes, nas novelas, minisséries e 194 UNIUBE também nos textos literários. Este trabalho é importante inclusive como complemento ao livro didático, visto que este sempre limita o estudo dos povos indígenas ao cenário do descobrimento. Uma abordagem mais contemporânea pode contribuir para desfazer essa referência de “povos do passado”. Vale ressaltar, conforme destacam Silva e Costa (2018, p. 118-119) que o uso de fontes e recursos audiovisuais para se trabalhar as relações étnico-raciais, devem buscar os seguintes objetivos: • Compreender os recursos audiovisuais como portadores de representações e ideias, instigadoras de debates e não somente como veículos de entretenimento. • Complementar e enriquecer os conteúdoscurriculares. • Estimular o aluno na compreensão e na interpretação de conhecimentos que apresentem olhares múltiplos diante do mundo que o rodeia, desvinculados de “fabricações” de verdades únicas e absolutas sobre determinada temática • Superar preconceitos e atitudes discriminatórias presentes nas escolas dos dias atuais. • Promover uma educação cidadã, com conteúdos, atitudes e procedimentos que contribuam para a construção de uma sociedade justa e igualitária. • Garantir o respeito e a preservação das culturas dos diferentes grupos sociais responsáveis pela formação histórica do Brasil, possibilitando aos alunos reconhecerem-se e reconhecerem que vivem em uma sociedade pluriétnica e multicultural. Os autores propõem alguns procedimentos pedagógicos que podem contribuir para problematizar os conteúdos veiculados tanto no cinema quanto na televisão sobre os povos indígenas (SILVA; COSTA, 2018, p. 121): • O professor deve assistir (mais de uma vez) a filmes, capítulos de novelas e/ou séries que sejam significativos para as discussões que desejam realizar em sala de aula. UNIUBE 195 • Pode-se criar um roteiro para que os alunos acompanhem a projeção e pedir que observem determinados aspectos representados na obra. • Analisar os estereótipos contidos nas imagens, sons e falas, para que sejam discutidos e compreendidos como formas de se representar os indígenas, produzidas em determinado momento. • A mediação do professor é fundamental para que os alunos construam não apenas produções escritas, tais como relatórios e resenhas, mas que se utilizem de variados recursos (desenho, teatro, etc.), além de produções audiovisuais próprias para expressarem o entendimento dos conteúdos apresentados. Sobre o uso da literatura como recurso pedagógico, os autores fazem os seguintes apontamentos (SILVA; COSTA, 2018, p. 121-122): • Utilizar obras que não sirvam apenas à introdução, ilustração ou leitura de determinado assunto, pois isso empobreceria as maneiras como a linguagem pode ser aproveitada em sala de aula. • Levar os alunos a problematizar as intenções de escritores e ilustradores, estabelecendo conexões com o que é estudado em aulas de História, Artes, Literatura, etc. • Utilizar autores indígenas e não indígenas para analisar obras sobre mitologias, costumes e tradições, além de apresentar as culturas visuais de diversos grupos. • Pensar o “lugar do índio” na literatura nacional, desde, por exemplo, as obras do Romantismo, no século XIX, até os dias atuais em que autores indígenas se apresentam como transmissores de narrativas “autênticas”. • Utilizar narrativas folclóricas sempre acompanhadas de informações sobre os povos indígenas que as produziram, afastando-se, portanto, da ideia de um “índio genérico” que inventa histórias fantasiosas por desconhecer a lógica científica não indígena. • Utilizar as obras literárias para estimular o gosto e o prazer pela leitura, além de promover a reflexão 196 UNIUBE sobre o que foi lido, estimulando a criatividade e a criticidade para construir novos conhecimentos. Listamos a seguir algumas obras cinematográficas sugeridas pelos autores (SILVA; COSTA, 2018, p. 124-128), com a ressalva de que esta relação não pretende esgotar uma gama de possibilidades que podem ser exploradas e trabalhadas em sala de aula no ensino de história e culturas indígenas. Lembrando sempre o cuidado em se observar a faixa etária indicativa do filme, entre outros aspectos, que devem ser tomados pelo professor antes de exibi-lo aos alunos: Sobre os indígenas norte-americanos • A educação de Pequena Árvore (EUA, 1997) O que abordar? Aspectos sobre a vida dos índios, especialmente sobre preconceitos e discriminações alimentadas pelas sociedades não- indígenas. • A missão (Reino Unido, 1991) O que abordar? Debater cenas em que se discute se, de fato, os índios possuíam ou não alma, polêmica que se estendeu por séculos. Abordar contextos históricos e a decisão da Igreja de pôr fim às missões jesuíticas nas Américas em troca da sobrevivência da ordem religiosa na Europa. • O pequeno grande homem (EUA, 1970) O que abordar? Auxiliar nas discussões sobre a moralidade cristã e suas investidas contra crenças e sexualidades indígenas, além de ensejar reflexões sobre os processos de colonização nas Américas, que exterminaram vastas populações nativas. • O último dos moicanos (EUA, 1992) O que abordar? Promover discussões a respeito do extermínio de populações indígenas ao longo da história dos países americanos. UNIUBE 197 Sobre os indígenas brasileiros: • Avaeté: semente da vingança (Brasil/Alemanha, 1985) O que abordar? Discutir, por meio da história da chacina de um grupo indígena, o extermínio de populações indígenas no Brasil, em pleno século XX, em nome do “progresso”, do “desenvolvimento” e dos interesses de grupos políticos e econômicos na Amazônia brasileira. Brava gente brasileira (2000) O que abordar? Conhecer um pouco da história dos índios no Brasil, por meio de representações dos antigos “índios cavaleiros” e de seus costumes e tradições. • Terra vermelha (2008) O que abordar? Promover o debate acerca do “ser índio” contemporâneo e de suas representações, a partir da análise crítica de cenas em que os indígenas guaranis se vestem de forma estereotipada para agradar a turistas que passeiam pela Reserva de Dourados, Mato Grosso do Sul. • Xingu (2011) O que abordar? Tratar sobre a criação do Parque do Xingu e os dilemas enfrentados pelos sertanistas bem como as reações dos índios à intromissão de não-indígenas em suas vidas e terras. • Yndio do Brasil (1995, documentário) O que abordar? O documentário faz críticas ao racismo e à atuação da Igreja Católica junto aos povos indígenas. A partir de trechos é possível fazer propostas de trabalho junto aos alunos, verificando- se, por exemplo, com quais imagens mais se identificam e o porquê dessa identificação. 198 UNIUBE O curta-metragem “Pajerama” (9 min.), criado por Leonardo Cadaval, é uma animação brasileira em 3D que traz uma reflexão sobre a invasão do progresso nos lugares sagrados indígenas e levanta alguns questionamentos sobre a realidade dos povos indígenas no Brasil. Pajerama é uma palavra do Tupi-Guarani (idioma nativo do Brasil) que significa Futuro Pajé. Trata-se de um ótimo recurso para se trabalhar em sala de aula. Busque pelo vídeo no YouTube, no canal do Instituto Socioambiental, no link: https://www.youtube.com/watch?v=BFzv0UhHcS0 O guia - NEABI Indica -, do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (IFSP), também traz algumas sugestões de filmes e atividades para abordar a História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena na sala de aula. A partir do caminho aberto pelas Leis 10.639/03 e 11.645/08, o Núcleo surgiu para que as questões étnico-raciais, como o racismo e a xenofobia, não fiquem à margem e sejam encaradas com a devida seriedade nas ações de ensino, pesquisa e extensão desenvolvidas no âmbito do Instituto Federal de São Paulo, ou que estejam a ele vinculadas. O objetivo do Guia é apresentar sugestões de conteúdos didáticos para utilização prática em sala de aula, abordando as relações étnico-raciais, a cultura e a história de negros e índios como um todo. Disponível no link: https://www.ifsp.edu.br/images/pdf/NEABI-Indica- N2---2017.pdf DICAS Com base nos recursos e metodologias recomendados, esperamos que você, futuro professor, possa inspirar um novo trabalho em sala de aula, que possibilite aos alunos conhecer, compreender, valorizar e refletir sobre a temática étnico-racial, no presente e no passado. Nossa intenção UNIUBE 199 é que, a partir deste livro, você aprofunde seus estudos sobre a história e culturas africana, afro-brasileira e indígena, se instrumentalize de novos saberes e diferentes linguagens, procedimentos e ações para lidar com a diversidade étnica e cultural, promovendo, assim, uma educação mais inclusiva.Portanto, não se trata de um ponto de chegada, mas de partida. Oferecer e discutir alguns subsídios é somente um auxílio para que possamos desenvolver também um processo de transformação. As trocas de experiências, o diálogo, as ações conjuntas podem contribuir individualmente na desconstrução do racismo institucional que coexiste em nosso país. Não existem fórmulas pedagógicas prontas. É preciso encarar os desafios, superar as limitações dos materiais didáticos e se dispor a criar novas estratégias, considerando as particularidades de cada região e de cada escola. Certamente, esse processo de transformação fará de nós educadores melhores, capazes de contribuir para a construção de uma sociedade democrática. Como abordar a temática indígena? Os temas sugeridos a seguir, propostos em diferentes disciplinas, demonstram que é possível incluir a temática indígena a longo de todo o currículo escolar. História • População indígena e grupos étnicos existentes no Brasil. • Os mitos indígenas e suas histórias. • Fontes pré-históricas (instrumentos, pinturas, cerâmicas, objetos, sítios arqueológicos, etc.) • A conquista do Brasil: a visão indígena. AMPLIANDO O CONHECIMENTO 200 UNIUBE • Natureza e povos indígenas na visão dos índios e dos europeus. • O trabalho e resistência indígena no período colonial. • As missões indígenas e jesuítas. • A política do império e os índios. • Os índios e a lei de terras de 1850. • A participação dos índios na Guerra do Paraguai. • Os índios e a FUNAI. • O 19 de abril e o índio no período Vargas. • O governo militar e o Estatuto do índio. • Movimentos indígenas no Brasil. • Os índios e a Constituição de 1988. • O Estado e os índios hoje. • A diversidade cultural, a organização política, religiosa, cultural e social na atualidade. Geografia • A geografia dos brancos e dos índios. • A toponímia indígena (nomes dos lugares). • As diversas formas de localizar-se dos povos indígenas. • Os direitos indígenas na Constituição de 1988: terra e território. • Territórios indígenas e conflitos sociais. • Os índios e o meio ambiente. Sociologia • Organização familiar e social indígena. • Os hábitos e os costumes. • Conceitos e teorias (índio, aculturação, cultura, identidade, tradição, etc.) • Formação étnica da população brasileira. • Relações familiares e sociais. UNIUBE 201 • O papel da mulher na sociedade indígena. • Contribuição da cultura indígena na construção da sociedade local e global. Português • A influência indígena na língua portuguesa (tupi-guarani). • O índio e a construção da nacionalidade. • O índio no Romantismo de Gonçalves Dias e José de Alencar. • Literatura indígena. Artes e Educação Física • Cultura tradicional indígena. • Músicas indígenas. • Arte indígena. • Pintura corporal indígena e técnicas de pintura. • Os rituais indígenas (kuarup, toré, etc.). • Danças indígenas (txondaro-guerreiro, etc.) • Jogos indígenas. • As regras indígenas para os esportes e rituais. Ciências • A influência indígena na nossa alimentação. • A herança indígena no tratamento das doenças e uso de plantas medicinais. • Os índios e os cuidados com o corpo e a saúde. • Os índios e a as formas de relação com o meio ambiente. • As plantas e os animais no universo indígena. Matemática • Calendários dos povos indígenas e formas de contar o tempo. • As diversas concepções matemáticas dos povos indígenas. 202 UNIUBE • As formas de contar e o uso de medidas dos povos indígenas. • Formas geométricas nas pinturas, cerâmicas, objetos e moradias indígenas. • Problemas matemáticos contextualizados com temáticas indígenas. Outras sugestões estão disponíveis no link: http://temaindigena.blogspot. com.br/2011/03/conteudos-indigenas-para-trabalhar-na.html Conclusão6.4 Concluímos este capítulo – e o trabalho com este livro –, propondo mais reflexões do que certezas. De concreto, apenas a constatação que ainda temos um longo caminho a percorrer no que se refere à educação para as relações étnico-raciais no Brasil. Tomemos aqui alguns questionamentos levantados pela professora Nilma Lino Gomes, ao analisar estratégias para superação do racismo na escola: Como será que nós, professores e professoras, temos trabalhado com a questão racial na escola? Que atitudes tomamos frente às situações de discriminação racial no interior da escola e da sala de aula? Até quando esperaremos uma situação drástica de conflito racial ou enfrentamento para respondermos a essas perguntas? Por que será que a questão racial ainda encontra tanta dificuldade para entrar na escola e na formação do professorado brasileiro? (GOMES, 2005, p. 146) As respostas passam, inevitavelmente, pela formação histórica e cultural da sociedade brasileira, que negou, ao longo do tempo, o papel exercido por negros e indígenas. A dificuldade de se inserir a temática de forma efetiva nas escolas também reflete a incompreensão sobre a função da Educação nesse processo. Instituir novas formas de convivência e respeito necessita de uma formação sólida, que leve em consideração UNIUBE 203 diferentes dimensões humanas e sociais, entre elas, a ética, a cultura, a diversidade, a sexualidade, as relações étnicas. Não basta apenas lermos um material didático, um artigo científico, teorias conceituais sobre pluralidade cultural, legislações federais, ou mesmo este capítulo de estudos, se não internalizarmos esses saberes em nossa prática docente, se não buscarmos novos valores, se não revermos as representações cristalizadas no senso comum sobre indígenas e negros. É preciso tocar na ferida do racismo e se abrir para o debate de forma consciente! A implementação de uma educação para as relações étnico-raciais que seja eficiente e eficaz vai muito além da teoria ou da obrigatoriedade da lei. É necessário nos posicionarmos com criticidade diante dessas questões, promover iniciativas concretas para uma mudança socioeducacional. Aos professores do Ensino Fundamental [e Médio] há inúmeras possibilidades, verdadeiras trilhas abertas pela lei. A diversidade pode ensinar aos alunos mais do que a tolerância em relação ao Outro, seja indígena, negro ou migrante de diferentes partes do país e/ ou do mundo. Toda essa diversidade é uma marca distintiva da população brasileira, fruto de uma história de contatos, encontros, desencontros e confrontos. Ajudar os alunos a compreender tal diversidade como um verdadeiro patrimônio do país – como riqueza a ser preservada, respeitada e valorizada, da qual se deve ter orgulho e não vergonha – é uma tarefa que cabe aos professores e a todos os envolvidos com a Educação. (SILVA; COSTA, 2018, p. 97) As leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008 não apresentam uma solução isolada para acabar com a invisibilidade das sociedades africanas e das populações indígenas, mas representam um avanço, um passo significativo no sentido de se reconhecer que somos uma sociedade historicamente formada pela diversidade e como tal, todas devem ser conhecidas e respeitadas dentro e fora do ambiente escolar para a convivência de uma sociedade mais tolerante e democrática. Torná-las 204 UNIUBE uma realidade na prática cotidiana é nosso papel enquanto educadores e cidadãos brasileiros! Resumo Neste capítulo apresentamos as leis 10.639/03 e 11.645/08 que modificaram a LBD para inclusão obrigatória do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira e de história e cultura indígena nas escolas de Educação Básica, respectivamente. A compreensão sobre a importância dessas leis para a promoção de uma educação para as relações étnico-raciais, que supere a existência do racismo nas escolas e na sociedade brasileira, congrega os debates apresentados nos capítulos anteriores. Oportunamente, apresentamos algumas sugestões para a prática docente com o intuito de difundir diferentes metodologias e recursos pedagógicos que podem ser utilizados para a abordagem das temáticas indígena e afro-brasileiraem sala de aula. Referências AFONSO, Germano Bruno (Org.). Ensino de história e cultura indígenas. Curitiba: InterSaberes, 2016. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao.htm>. Acesso em: 20 dez. 2018. BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ LEIS/L9394.htm. 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Anotações _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ __________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ __________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ __________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ __________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________________________________ Anotações _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ __________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ __________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ __________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ __________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________