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Filhos do sonho, filhos da esperança


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SUMÁRIO
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Prefácio
Introdução
PRIMEIRA PARTE
O último dia da minha primeira vida
Objetivos decepcionantes
A procura
Atividades sensoriais
A invenção do dr. Temple Fay
Saudades do lar
Centro de Reabilitação Nossa Senhora da Glória
“Raymundo, como você sabe...”
A promesssa dá frutos
“Meu pobre tolo”
Caio na armadilha
Suave revolução
Vamos! O tempo é curto!
Um documento da máxima importância
O elo perdido
Muito obrigado aos nossos inimigos
SEGUNDA PARTE
Leia atentamente as instruções antes de...
Os últimos dias da minha segunda vida
Que fazer com Norma Nunes?
Três finais felizes
Como curar as crianças com síndrome de Down
Agora, mãos à obra!
Posfácio
Créditos
Para minha esposa, Lourdes,
com meu amor, eu estava ansioso por oferecer este livro a você.
Para meu filho, ZeCarlos, e minha filha, Lourdinha,
vocês enchem meu coração de orgulho e alegria.
Para Glenn Doman,
que salvou a vida de meu filho e continua a salvar a vida de outras crianças deficientes.
E para os pais e filhos,
sua coragem e sabedoria há muito granjearam meu respeito e admiração.
PREFÁCIO
Julgo-me às vezes o mais feliz dos mortais, porque tive a sorte de travar
conhecimento com muitos de meus heróis pessoais e tenho caminhado entre
gigantes.
O dr. Raymundo Véras mede muitos centímetros menos do que eu – mas
trata-se de centímetros meramente físicos. Não é só com a fita métrica que
se medem os gigantes. Tanto em coragem quanto em dedicação, suplanta
ele sobejamente a maioria dos homens.
Quando iniciamos esta obra, imaginava eu que fôssemos escrever uma
autobiografia épica, porque a existência do dr. Véras tem sido vivida em
proporções heroicas.
Na primeira manhã, liguei um gravador de fita e pus-me a interrogá-lo
sobre sua infância num povoado fazendeiro do Nordeste do Brasil. Fiquei
sabendo que ele era um dentre dezoito irmãos e que, ainda moço, tornou-se
renomeado cirurgião-oftalmologista. Por mais de duas horas ele respondeu
às minhas perguntas. De repente, parou.
– Por que me pergunta estas coisas sobre a minha infância? – quis saber.
– Para pôr no livro – respondi.
– “Neste” livro?
– Sim – confirmei, procurando explicar que este colorido fundo de cena
encantaria o leitor.
– Dave – disse ele, em tom tão peremptório que eu jamais esquecerei –
se escrevêssemos um livro sobre a minha meninice, ele agradaria muito ao
meu tio, meus irmãos e irmãs. Mas eu não tenho tempo para isso. Este livro
não se destina à minha família. Destina-se aos pais de crianças com
deficiência física e intelectual causadas por lesões no cérebro. Não vamos
cansá-los contando-lhes a história de minha primeira vida. Vamos contar-
lhes como aprendi a ajudar no desenvolvimento dessas crianças. Entendido?
Respondi prontamente:
– Sim.
O dr. Véras raramente contrai a sua mandíbula de brasileiro, mas quando
o faz, poucos homens ousariam tentar discutir com ele. E pouquíssimos
levariam a melhor. E neste caso está claro que ele tinha razão.
Contudo, embora o dr. Véras preferisse passar por cima de muitos
aspectos de sua vida no corpo do livro, acho que alguns deles devem ser
consignados aqui.
O dr. Véras diplomou-se pela Faculdade de Medicina da Universidade
da Bahia, em 1937, e serviu na Secretaria de Saúde Pública do Rio de
Janeiro, de 1938 a 1941, quando foi nomeado médico-oftalmologista do
posto de saúde da cidade de Itaperuna. Na Segunda Guerra Mundial, serviu
como capitão do Exército Brasileiro, na Itália, e foi distinguido com a
Medalha de Campanha em 1945. Após a guerra, tornou-se cirurgião-
oftalmologista de grande sucesso.
Em 1957, estudou no The Institutes for the Achievement of Human
Potential (Institutos para o Desenvolvimento do Potencial Humano), na
Filadélfia, e regressou ao Brasil para fundar, no Rio de Janeiro, o Centro de
Reabilitação Nossa Senhora da Glória, a filial brasileira desse Instituto. Foi
diretor-médico de unidades localizadas em São Lourenço, MG. Foi diretor-
científico e supervisor do Cientro de Reabilitación Doctor Silva, do Peru, e
da Fundación Aaron Malmann, de Buenos Aires, Argentina; supervisor-
médico do Instituto de Organización Neurológica de Caracas, Venezuela, e
supervisor-científico do Instituto Maria José, de Petrópolis, RJ. Foi também
membro do Conselho-Diretor da Universidade de Plano, Texas, e presidente
do International Forum for Neurological Organization (Foro Internacional
de Organização Neurológica).
Em 1962, o dr. Véras recebeu a Estátua com Pedestal do International
Forum; em 1967, o Sino Dourado da Liberdade (Golden Liberty Bell); e, no
mesmo ano, foi-lhe conferido o título de Cidadão Honorário de Dallas,
Texas. Em 1974, foi eleito presidente internacional da The World
Organization for Human Potential (Organização Mundial do Potencial
Humano).
Não é por medalhas e prêmios, porém, que se mede a grandeza deste
homem. A verdadeira medida de seus méritos reside no seu gênio
profissional e no seu interesse pessoal pelas crianças deficientes e seus pais.
Pudessem todos os médicos seguir-lhe o exemplo! Pudessem todas as
pessoas tomar-se desse mesmo interesse!
Enquanto me ditava esta obra, o dr. Véras estava gravemente enfermo.
Anos de árdua labuta e escasso repouso cobraram-lhe o seu tributo.
Contudo, à proporção que o nosso trabalho progredia, ele aparentava ganhar
novas energias, e o júbilo que transbordava do meu estúdio parecia espraiar-
se por todos os cantos de nossa casa. Carinhosamente chamava ele à minha
mulher, Nancy, e a nossos filhos, Todd e Teresa, sua família da cidade de
Kansas, e a nossa casa sua casa de Kansas.
Quando estávamos para completar o manuscrito deste livro, disse-me o
dr. Véras: “Quero que o meu livro tenha dois prefácios. Quero que Glenn
Doman escreva o primeiro e que você escreva o segundo”. (Como verá o
leitor, Glenn escreveu um posfácio.)
Considerei seu pedido uma honra e imediatamente mil imagens e
pensamentos me desfilaram pela mente. Havia tanta coisa que eu gostaria
de dizer acerca deste homem e do seu empenho em curar as crianças com
lesão cerebral! Acho que o dr. Véras entendeu que silenciei
inesperadamente porque me faltou a palavra.
“Não precisa ser longo, bem curto”, disse ele. “Você pode dizer apenas
que nós somos bons amigos, que ambos somos pais e conhecemos os filhos
um do outro.”
Sempre me impressionou a sua capacidade de reduzir coisas
complicadas a frases simples.
Raymundo Véras e eu somos bons amigos. Ambos somos pais. E
conhecemos os filhos um do outro.
O livro dele não é um livro de história. Não é um livro de memórias. É
um livro de excitantes ideias novas e inovações, que se projeta no futuro
para ocupar o lugar a que faz jus.
DAVID MELTON
INTRODUÇÃO
Eis um livro despretensioso.
Despretensioso não por acaso, mas de propósito.
Despretensioso porque as verdades que encerra são despretensiosas.
Despretensioso porque escrevo-o em inglês e não em minha língua
pátria.
Despretensioso porque não se destina a doutores em medicina. Livros
escritos por médicos para outros médicos são amiúde recheados de termos
técnicos de dezesseis letras. Não sou avesso a tais livros, nem me oponho a
que doutores em medicina escrevam livros tais, mas não tenho nenhum
desejo de escrevê-los.
A razão principal por que não escrevo para doutores em medicina é que
eles demoram demais para responder a ideias novas. Leem muito pouco e,
quando o fazem, as mais das vezes dizem pouco mais que isto:
“Interessante, não é mesmo?”. Depois passam adiante e vão dormir.
Decorridos vinte ou trinta anos, paulatinamente aceitam uma ideia nova e
dizem calmamente: “Não é nenhuma novidade, mas um fato comprovado
há muito tempo.”
Pais de crianças com deficiência não podem aguardar vinte anos, porque
a cada dia que passa – em verdade a cada minuto que passa – veem seu
filho envelhecer. Se leem ou ouvem falar de nova descoberta médica, não
podem passar adiante e ir dormir: levantam-se e ansiosamente põem-se a
andar de um lado para o outro com os passos, esperando com fervor terem
encontrado a respostaque haverá de curar seu filho. É lamentável que o
profissional comece a mudar de ideia somente depois que a opinião pública
se tornou tão forte que ele seja compelido a levar em consideração as novas
ideias.
Assim escrevo para os pais, porque verifiquei que suas mentes não estão
entulhadas de falsos conceitos e opiniões ultrapassadas. Seus objetivos são
claros e bem definidos. Se têm um filho deficiente, o seu primeiro objetivo
é curá-lo. Eis um bom objetivo. Um objetivo compreensível. Um objetivo
admirável.
Os pais são emotivos em relação ao bem-estar de seus filhos e por isso
mesmo são frequentemente qualificados de irrealistas. Não creio que uma
coisa conduza necessariamente à outra. Em verdade, me afiguraria
irrealismo pretender que os pais não se emocionassem em relação aos
próprios filhos ou não sentissem a urgência de curá-los. Se, em sua
emocional urgência, os pais não querem esperar trinta anos por novas
soluções médicas, isto não deveria surpreender os médicos. Nem deveriam
tais atitudes ser rotuladas de irrealistas.
Na verdade, acho que irrealistas são muitas vezes as atitudes dos
profissionais, porque não raro tendem eles a se habituar à doença. Talvez
seja este um dos maiores problemas médicos: os profissionais enredam-se
no afã de rotular e classificar graus de enfermidade, em vez de raciocinar
em termos de saúde. Se pensam que sua missão consiste em amenizar o mal
do paciente ou fazê-lo sentir-se contente em se mal, então perderam de vista
o objetivo mais importante, que é, por certo, curar o paciente.
Como médico, simpatizo com o médico. Mas como ser humano tenho de
compartilhar os objetivos dos pais, porque posso compreender melhor seus
anseios. Posso sentir melhor suas emoções.
Divide-se este livro em duas partes. A primeira parte narra como aprendi
o que sei sobre as pessoas com deficiência intelectual. A segunda parte diz
como é possível curá-las.
Se você é pai de uma criança com déficit cognitivo, pode sentir-se
tentado a saltar por cima da primeira parte e ir direito à segunda. Não faça
isto, porque se você ler apenas a segunda parte, poderá não compreender
cabalmente o que vou dizer-lhe. Contudo, se você ler só a segunda parte
deste livro e curar seu filho, eu o perdoarei. Mas se você ler a segunda parte
e, por não compreendê-la bem, “não” curar seu filho, só poderei sentir
muito por você e por ele.
Portanto, seja paciente e leia as duas partes. Asseguro-lhe que você vai
conhecer muita gente interessante e muitas ideias novas e excitantes.
Caso você não seja pai de uma criança deficiente, por favor, faça de
conta que é, ao ler estas páginas, para poder sentir toda a urgência destas
palavras.
PRIMEIRA PARTE
1 O ÚLTIMO DIA DA MINHA PRIMEIRA VIDA
Creio no destino.
Não quer isso dizer que eu seja homem supersticioso, que beije os pés de
ídolos. Quer dizer apenas que vivi o bastante para saber que existem forças
que nos acometem de improviso e acontecimentos que têm o poder de
mudar nossa vida para todo o sempre.
Sei que isso é verdade porque passei por um momento desses, um
evento que cronologicamente durou apenas segundos, mas sua veemência
exerceu tamanho impacto sobre minha família que, daí em diante, nossa
existência nunca mais foi a mesma.
Em 1957 minha vida parecia consolidada e havia certo ritmo em meus
dias. Era eu um cirurgião-oftalmologista que conquistara algum respeito e
notoriedade no Rio de Janeiro. Financeiramente minha situação era pouco
mais que sólida. Estava contente com minha família e tinha muitos amigos.
A vida corria mansamente. Eu trabalhava com afinco durante a semana,
mas podia dizer que os fins de semana eram meus. Passava-os repousando
com minha esposa e meus filhos – até aquele momento fatal.
Aquele momento na ilha de Paquetá é o momento que procuro esquecer
mas não posso, o instante que terei de recordar mais uma vez se quiser
escrever esta história. Meu coração não quer evocar aquele dia, porém a
razão me diz que tenho de evocá-lo.
Estamos num domingo de dezembro, na antevéspera do Natal. No
Brasil, é verão. Estou com minha família em Paquetá. Embora não saiba
ainda, este é o último dia da minha primeira vida.
A cidade do Rio de Janeiro cinge uma das baías mais encantadoras do
mundo, na qual está ancorada a ilha de Paquetá, por muitos chamada a ilha
dos amores, e com razão. Do Rio leva-se aproximadamente uma hora de
lancha a motor até essa pequena mas formosa ilha. É um paraíso de
gramados de veludo, plantas tropicais e árvores em flor, que os brasileiros
olham com indiferença. Pode-se ver árvores colossais com toda a copa
coberta de flores resplandecentes. Cada árvore é de uma cor diferente. Às
vezes um turista queda-se pasmado ante aquela estática beldade, vira-se
para um brasileiro e pergunta:
– Que é isso?
– Isso, quê? – indaga o brasileiro.
– Essa majestosa árvore toda coberta de flores vermelhas. Que espécie
de árvore é essa?
– Oh, é uma árvore coberta de flores vermelhas – responde o brasileiro.
Belezas como essa são comuns em Paquetá.
Vigora em Paquetá uma lei que dizem ser tão antiga que nem precisa ser
escrita: portanto foi baixada pelos deuses. Reza a lei que é proibido
trabalhar. Aqui a gente deve deitar-se na rede e bebericar suco de fruta. Não
há dispêndio de energia. Dizem que em Paquetá até os passarinhos andam a
pé. Num raio de três metros em torno de nossa casa, à beira da praia,
existem pelo menos dez espécies de fruteiras carregadas de frutos e
enfeitadas de orquídeas silvestres.
Neste fim de semana temos hóspedes, há muito riso e muita alegria. Os
sons rítmicos dos violões incitam os pés a dançar e as vozes a cantar. Que
tempo feliz e despreocupado! Lourdes, minha mulher, está conversando
com amigos. Riem-se de uma história engraçada. Olho quem contou a
história – um bom amigo. Sorrio porque há poucos minutos ele me contou a
mesma história.
Vejo minha filha de 9 anos, Lourdinha, a tomar mais ponche de frutas
com os amiguinhos. Penso quão linda ela é – raramente olho para ela sem
pensar isso. Ela volta os olhos para mim e sorri.
Contemplo o sol que descamba. São mais de cinco horas, digo de mim
para mim; dirijo-me para o mar, chamo meu filho, José Carlos, e digo-lhe
que já é hora de sair da água.
– Oh, papai, me deixe dar mais um mergulho – pede ele. – Os outros
ainda estão nadando.
Ainda está quente, por isso não faço objeção. Digo:
– Está bem. Só mais um.
Observo-o enquanto corre pela praia, a água salpicando-lhe as pernas
robustas e morenas. Está com quase 15 anos de idade. Em breve estará um
homem. Escala o penedo quase sem esforço. Chegando ao topo, faz uma
pausa e acena a mão para mim. Depois estira os braços ao alto e, qual airoso
pássaro, mergulha na água.
Giro sobre os calcanhares e me encaminho ao encontro dos outros. Mas
de súbito fico apreensivo. Volto os olhos para trás e perscruto a água. Por
um momento, espero ver ZeCarlos emergir. Não o vejo. Todos ainda estão
rindo e divertindo-se. “Onde está ZeCarlos?”, pergunto a mim próprio. Em
seguida, arrepio caminho para a praia e, sem atentar no que faço, eis-me a
correr para o mar e a nadar em direção às águas que tragaram meu filho.
Grito para os outros mergulhadores encarapitados nas pedras:
– Olhem para baixo! Estão vendo meu filho?
– Eu estou – responde um deles e aponta em certa direção.
Nado para lá. Respirando fundo, mergulho cegamente em direção a meu
filho e seguro-o nos braços.
Puxo-o para fora da água e eis-nos na praia. Vejo que sua cabeça está
anormalmente virada para um lado.
– ZeCarlos, você está bem? – interrogo-o, já temeroso de ouvir a
resposta.
– Não consigo mover os braços e as pernas – me diz ele.
– Tente levantar os braços.
– Não posso – diz ele. – Não posso.
Acomete-me repentina vertigem e sinto náuseas. Quero fazer girar para
trás os ponteiros do relógio – três minutos me bastariam para gritar-lhe:
“Não discuta comigo, meu filho. Meu ZeCarlos, não discuta com...”
– Experimente mover as pernas, só um pouquinho. Experimente!
– Não posso, papai. Não posso.
Sinto vontade de gritar.
A esta altura minhaesposa veio ter conosco e está chorando. Um amigo
inclina-se para mim e indaga:
– Raymundo, o que foi que houve?
– Está com o pescoço quebrado – respondo.
Esgotou-se o último minuto da minha primeira vida; começa a minha
segunda vida.
Não me afasto de meu filho. Permaneço com ele no hospital: como sou
médico, não me é difícil consegui-lo. Dentro de horas os maiores
especialistas do Brasil o examinam. Me dizem que ele está paralítico do
pescoço para baixo e que deverá morrer dentro de duas ou três semanas.
Escuto-os, mas me recuso a crê-lo. Imploro: “Meu Deus, não permita que
seja assim. Ajude-me a dar um jeito de salvar meu filho.” E faço um pacto
com o Senhor. Digo-lhe que se Ele me ajudar a salvar ZeCarlos, devotarei
minha vida a curar os filhos dos outros. Do hospital, telefono para minha
secretária e digo-lhe que feche meu consultório.
– Por quanto tempo? – me pergunta ela.
– Para sempre. Não voltarei.
Ligo para meu irmão e digo-lhe que preciso de ajuda. Ele acode ao
Hospital Miguel Couto e nos apressamos em transferir ZeCarlos para a
minha clínica.
– O senhor não pode fazer isso – objeta o neurocirurgião.
– Por que não? – retruco eu.
– Se o movimentar, ele morrerá.
– Diz o senhor que, se ele ficar aqui, morrerá em duas ou três semanas.
Saia da minha frente – replico.
– Espero que o senhor compreenda que toda a responsabilidade será sua
– diz ele.
– Há muito tempo que sou responsável por meu filho – completo.
– Do Hospital Miguel Couto à minha clínica vai-se em meia hora de
carro, mas nesta noite a viagem leva três horas. Meu irmão Júlio dirige
lentamente, para que ZeCarlos não sofra nenhum choque ao solavanco.
Assim que chegamos à nossa clínica, assumo o comando. Mando deitar
meu filho bem estirado, de modo que seu pescoço fique reto e ele não possa
mover-se. Ordeno que me tragam outra cama para o quarto dele, minha
mulher traz roupas para a clínica e eu fico morando no mesmo aposento em
que meu filho.
Provo que o neurocirurgião do Hospital Miguel Couto estava errado.
Decorridos três meses, meu filho ainda está vivo. Consolidou-se a fratura,
porém ele continua inerte.
“Que fazer agora?”, indago a mim mesmo. De que serve mantê-lo com
vida, se ele não pode ser uma pessoa? Preciso encontrar ajuda para ele. Sei
que é inútil buscar essa ajuda no Brasil, porque os melhores médicos já o
examinaram e disseram nada poder fazer por ele. Durante a Segunda Guerra
Mundial, quando eu servia no Exército Brasileiro, na Itália, convenci-me de
que os médicos dos Estados Unidos estavam mais adiantados do que nós
em métodos de tratamento. Por isso decido levar meu filho para os Estados
Unidos. Estou convicto de que, se for possível conseguir ajuda para meu
filho, há de ser lá.
Da cidade do Rio de Janeiro à cidade de Nova York são 8.850 km. Hoje
um jato faz a viagem em nove horas, mas em 1957 o avião de hélice levava
vinte e quatro horas. Tudo tem de ser planejado nos mínimos pormenores.
ZeCarlos é transportado da clínica ao aeroporto em ambulância. Utilizando
duas poltronas no avião, improvisamos um leito para ele. Outra ambulância
virá ao nosso encontro no aeroporto de Nova York, e dali o levaremos
diretamente para o The Institute of Physical Medicine and Rehabilitation
(Instituto de Medicina Física e Reabilitação), mundialmente famoso por sua
avançada terapia para tetraplégicos.
– Coragem, meu filho – digo a ZeCarlos. – Sua mãe e eu estamos com
você.
2 OBJETIVOS DECEPCIONANTES
No avião, imagens penosas salteiam-me o espírito. Vejo e revejo meu filho
mergulhar na água. Imagine, se for capaz, o terror que se apodera do
nadador quando quebra o pescoço. Está debaixo d’água; a fim de emergir
para respirar, precisa mover braços e pernas, mas, como tem o pescoço
quebrado, não pode comandar os membros – está completamente
desamparado. Não pode gritar por socorro; só pode esperar que alguém o
veja e acuda antes que se afogue. Que coisa terrível deve ser! Vejo-o em
meus pesadelos.
Nutro grandes esperanças no The Institute of Physical Medicine and
Rehabilitation, mas em poucos dias fico profundamente decepcionado. Vejo
muitos paraplégicos e tetraplégicos sentados em aposentos confortáveis, a
ver televisão. Boa parte da terapia consiste apenas em ensiná-los a usar
equipamento especial.
Quase instintivamente, compreendo que este objetivo – ensinar alguém a
contentar-se com suas inaptidões – é tão mau quanto não ter absolutamente
nenhum objetivo.
Necessitará alguém aprender a ser paralítico? Necessitará alguém de
hospitalização incrivelmente dispendiosa para tornar-se o que já é? Primeiro
como pai, depois como médico, vejo que há algo trágico na ideia de uma
pessoa com deficiência feliz, bem-ajustada. Estou convicto de que
certamente deve haver melhor meta para seres humanos.
Bem sei que, historicamente, nada se fazia pelos paralíticos. Eles
costumavam morrer prematuramente, de infecções renais devidas à
inatividade de quem vive deitado na cama. Decerto houve progressos nos
últimos cinquenta anos. Na década de 1950, alguns terapeutas propuseram
que era melhor ser um deficiente útil do que um deficiente inútil. Teve essa
ideia grande alento a partir da Segunda Guerra Mundial, graças
especialmente ao trabalho do dr. Rusk, Henry Viscardi e muitos outros. Mas
eu não pretendo fazer de meu filho um deficiente útil. Quero que meu filho
seja o menos deficiente possível, e é o que disse reiteradas vezes ao dr.
Rusk.
Pondero-lhe:
– Dr. Rusk, com esses métodos, o seu pessoal está ensinando meu filho a
tornar-se um tetraplégico bem-sucedido. Não quero que ele se torne um
tetraplégico bem-sucedido. Quero que se torne uma pessoa capaz de viver
sem limitações. Quero que faça uso dos braços e das pernas. Quero que se
movimente à vontade. Não quero que passe o dia inteiro sentado, vendo
televisão.
O dr. Rusk é homem afabilíssimo. Escuta-me com muita benevolência e
depois diz:
– O senhor quer o impossível. Precisa conformar-se com a realidade.
Seu filho é tetraplégico e sempre o será.
– Se o tratarmos como tetraplégico, concordo que ele não passará disso.
Mas não é isso o que eu quero que ele seja. Quero que ele fique bom.
– Isso é impossível – me repete muitas vezes o dr. Rusk.
Tenho certeza de que ele pensa que estou maluco. Decerto recomenda ao
seu pessoal: “Sejam gentis com esse tal Véras. É um tanto biruta, mas não
oferece perigo. Em todo caso, olho nele.”
Para mim e minha esposa, é uma fase desalentadora.
Você precisa compreender que ser tetraplégico - não governar os
próprios braços e pernas, não é duas vezes pior do que ser paraplégico e não
poder usar dois membros. É mil vezes pior. Se o indivíduo pode usar os
braços ou as pernas, tem muitos meios de salvar sua própria vida em caso
de emergência. Se pode usar os braços, pode mover-se; se necessário, pode
utilizar sozinho uma cadeira de rodas; pode lançar mão de alguma coisa
para defender-se. Ao passo que o tetraplégico não pode mover-se e está
completamente indefeso. Acha-se à mercê de outras pessoas e das
circunstâncias. Não tem nenhum comando sobre sua condição presente e
nenhuma opção quanto ao futuro. É uma cabeça num corpo inútil. É um
cérebro capaz somente de falar e ouvir. Limita-se o seu mundo às pessoas e
coisas que possam ser trazidas ao seu quarto. Alimentação e asseio corporal
têm de ser-lhe ministrados por outrem. Para ele não existe intimidade. Está
exposto a mil mortes.
Digo para minha mulher que precisamos pôr fim à nossa peregrinação,
que é inútil permanecermos naquele país. Pondero-lhe que o melhor seria
regressarmos ao Brasil, porque acho que lá, onde os métodos são mais
primitivos e o pessoal não é tão preparado, talvez consigam restituir a
ZeCarlos alguma sensibilidade física. Falo assim para consolá-la, porém eu
mesmo não creio nisso. Quando estou sozinho, choro.
Minha esposa também finge acreditar. Escuta-me e responde estar certa
de que eu tenho razão, mas no íntimo sabe que minhas palavras não passam
de anseios vãos. Preparamo-nos para deixar os Estados Unidos.
A poucos quarteirões do nosso hotel fica a catedralde São Patrício. De
manhã, minha mulher vai até lá e reza para que voltemos sãos e salvos ao
Brasil. A hora é de quietude. A maioria dos habitantes de Nova York ou
estão trabalhando ou locomovendo-se apressadamente de um lugar para
outro. Com exceção de um homem, a catedral está deserta. Minha esposa
encaminha-se para o altar e acende uma vela. Em seguida, ajoelha-se para
rezar. Mal começa a orar, suas palavras convertem-se em lágrimas. Tenta
conter as emoções, mas não consegue. Chora alto. Por fim, logra estancar
os soluços, enxuga as lágrimas que lhe brotam dos olhos e levanta-se para
sair. Ao chegar à porta da frente, o homem adianta-se e diz:
– Perdão. Não quero ser indiscreto, mas não pude deixar de assistir ao
seu pranto. A senhora deve estar padecendo cruelmente. Posso lhe ser útil
em alguma coisa?
Minha mulher não sabe que os habitantes de Nova York são tidos por
desatenciosos e pouco amigáveis. Põe-se a falar e só se detém depois de
contar a esse estranho tudo sobre o estado de nosso filho.
Quando ela termina, diz o senhor:
– Ouvi falar de um centro de reabilitação na Filadélfia. Não sei como se
chama, porém ouço dizer que eles realizam verdadeiros milagres com gente
como seu filho.
Minha mulher está toda alvoroçada ao chegar de volta ao hotel.
– Há na Filadélfia um centro onde podem curar ZeCarlos. Precisamos ir
lá.
– Como é que você sabe disso? – pergunto.
– O homem que estava na catedral me disse.
– Como se chama esse centro?
– Ele não sabe ao certo – responde.
– Ele não sabe ao certo o nome do centro, e você ainda me diz que
devemos ir à Filadélfia? – replico. – Que significa isso?
– Você ousaria discutir com um anjo? – torna ela.
– Que anjo? – indago eu.
Minha mulher encara-me e sentencia:
– O homem da catedral é um anjo. Tenho certeza.
Às vezes não compreendo a mim próprio. Sou um homem razoável, um
espírito lógico. No entanto, nessa mesma tarde tomo um trem para a
Filadélfia, movido por mero ouvi dizer. E nem por um instante sequer
acredito que o homem da catedral fosse um anjo. Se era um anjo, como é
que não sabia nem o nome nem o endereço do que falou à minha esposa?
3 A PROCURA
Assim que me hospedo num hotel na Filadélfia, inicio minhas indagações
para localizar o centro a que se referiu o anjo de minha mulher. Pergunto ao
pessoal do hotel se ouviram falar nessa instituição. Mostram-se muito
gentis, mas dizem que nunca ouviram falar nada. Um jovem prestativo
consulta para mim o guia telefônico, mas não consegue encontrar o tal
centro.
Dirijo-me à Cruz Vermelha. Dizem que vão tentar me ajudar. Falo com o
pessoal do consulado brasileiro. Também dizem que vão investigar. Todos
me dizem que tenha paciência – é tão fácil dizer isso! ZeCarlos não é filho
deles. Enquanto espero, telefono para uma agência de investigações e logo
tenho um investigador à minha disposição. Finalmente (não me lembro
como me ocorreu isso) telefono para o Instituto Brasileiro do Café. Em
poucas horas, me respondem por telefone: “A instituição que o senhor está
procurando é The Rehabilitation Center at Philadelphia” (Centro de
Reabilitação da Filadélfia). Dão-me o telefone do centro e eu ligo pra lá.
A mulher que me atende tem dificuldade em compreender o meu inglês.
Pergunta-me que língua eu falo usualmente. Digo-lhe que falo português.
Ela pede-me que espere e, decorrido um minuto, volta a falar-me e indaga
se por acaso eu falo espanhol. Respondo-lhe que sim.
Atende-me o coronel Antonio Flores. Conto-lhe a minha história em
espanhol. Diz-me ele não ter certeza de que possam tratar de ZeCarlos,
porém me convida a ir ver o tipo de trabalho que estão realizando.
Respondo-lhe que vou tomar um táxi imediatamente. Acho que ele me deu
a entender que fosse no dia seguinte, mas compreende a minha urgência e é
demasiado cortês para me dizer que espere.
Chego a The Rehabilitation Center e sou recebido pelo Coronel Flores.
Fico sabendo que ele é diretor-assistente. Simpatizo prontamente com ele.
Tony Flores é um homem forte tanto física quanto emocionalmente.
Nasceu nos Estados Unidos, é descendente de espanhóis e fala
extraordinariamente bem o castelhano. Tem antecedentes incomuns. É autor
de muitos dos manuais de defesa civil do Exército e a ele se devem mais de
uma centena de ilustrações desses livros. É um educador físico de primeira
categoria.
Vou referir um episódio singular acerca desse homem. Antigamente era
um sujeito muito cabeludo, do tipo que tem uma sombra das cinco horas
antes do meio-dia. Um dia, num acampamento da Reserva do Exército,
enquanto tomava um aguaceiro, foi atingido por uma centelha e em poucos
dias perdeu toda a pilosidade. Agora não tem sobrancelhas, nem cílios, não
tem pelos em nenhuma parte do corpo – nem sequer no nariz. Costuma
colocar no nariz filtros de cigarro. Tem certa semelhança com Winston
Churchill – pelado que nem um bebê, porém muito robusto.
Enquanto acompanho o coronel Flores pelo centro, as coisas que vejo
me acendem as esperanças. Aqui não há paraplégicos sentados a ver
televisão; em vez disso, são submetidos a tratamento físico para estimular-
lhes as funções. Vejo também que não deixam os tetraplégicos vegetarem.
Terapeutas trabalham com eles para tentar restituir-lhes a sensibilidade dos
membros. Em poucos minutos concluo ser exatamente este o lugar que
estou procurando.
Pergunto ao coronel Flores se posso trazer ZeCarlos para o centro como
paciente. Lembro-me ter ele dito que ia indagar. Chegamos a um vestíbulo,
ele me pede que aguarde um minuto e em seguida desaparece numa sala.
Volta com um moço que me apresenta como Glenn Doman, o diretor.
Aperto-lhe a mão. Acode-me agora que o achei então muito moço para
ser o diretor. Reconheço que é um homem vigoroso, dotado de muita
energia. Mostra-se cordial, mas também é óbvio que está atarefado.
Falamo-nos por poucos minutos apenas, em seguida ele e o coronel Flores
retornam à sala. Quando o coronel vem ter novamente comigo, me diz:
– O senhor pode trazer seu filho. Está combinado.
Então, reconheço em meu íntimo que minha mulher tinha razão – o
homem que ela encontrou na catedral era realmente um anjo.
4 ATIVIDADES SENSORIAIS
Minha mulher e eu compreendemos que o tratamento de ZeCarlos requererá
paciência a toda prova e planos de longo prazo. Decidimos que eu ficarei
com nosso filho na Filadélfia para acompanhar seu progresso. Lourdes
retornará para o Brasil antes de nós com Lourdinha, para que ela volte ao
colégio.
Agora nossa família está separada por oito mil quilômetros de distância.
É um período de muitas esperanças e preces e muita solidão.
Velo diariamente pelo tratamento de ZeCarlos no centro. Eu nunca tinha
visto o emprego de tais métodos. Em pouco se torna óbvio para mim que
estou presenciando grandes avanços da medicina.
Os terapeutas são muito observadores e se valem de suas observações
para alterar o tratamento. Vejo-o muitas vezes – alguém comete um engano
e daí resulta algo de bom. É a história da medicina.
Por exemplo: a vida de um tetraplégico está constantemente em perigo.
Ele pode sentar-se ao lado de um aquecedor e assar as próprias pernas sem
sequer dar por isso, até sentir cheiro de carne queimada. Ou então pode
sentar-se por meia hora, em roupas de baixo, numa cadeira dobrável e
adquirir nas nádegas uma escara tão grande que nela caberia uma tigela de
sopa.
Entretanto, o pessoal do centro começava a suspeitar o que ainda hoje
muito pouca gente compreende: que raras pessoas com lesão na medula
espinhal têm a medula “completamente” secionada. Suspeitam os terapeutas
do centro que muito poucas pessoas com a medula lesada são totalmente
desprovidas de sensação. É uma suspeita inteligentíssima. E positivamente
pioneira.
A maioria das pessoas não compreende que os cegos quase nunca são
inteiramente cegos e que os surdos quase nunca são de todo surdos.
É de suma importância esclarecer isso. Muitas vezes os cegos são cegos
por serem tratados como se fossem completamente cegos. As pessoas que
têm problemas de audição tornam-se de todo surdas porque as tratam como
sejá fossem surdas. E amiúde aqueles que têm paralisia parcial passam a ter
paralisia total porque são tratados como se já estivessem com paralisia total.
Fartas vezes o paciente se torna aquilo que o tratamento que lhe dispensam
faz que ele venha a ser. Se utilizamos esse fato em sentido negativo, é uma
lástima. Mas se o utilizamos em sentido positivo, então é, com frequência,
uma grande felicidade para o paciente, porque ele melhora muito – às vezes
fica completamente bom.
A maioria dos paraplégicos são diagnosticados e rotulados sem que
ninguém lhes examine efetivamente a medula espinhal. No mais das vezes
nem fizeram uma laminectomia. Quando o médico efetuou uma
laminectomia, frequentemente encontramos na ficha uma nota cirúrgica que
diz mais ou menos isto: “Abrimos o paciente e preparamos o campo
operatório, mas estava com forte hemorragia, de modo que paramos”. Se os
cirurgiões prosseguem, deparamo-nos com uma nota deste teor:
“Verificamos que a medula espinhal estava praticamente intacta”. Mas, diga
o que disser a nota cirúrgica, quase todos esses pacientes são tratados como
se a sua medula espinhal tivesse sido secionada.
Hoje, o dr. Temple Fay é considerado o decano dos neurocirurgiões e
respeitado como um gênio. A ele se devem muitas e assinaladas conquistas
no campo da medicina. Mas em vida foi muito controvertido, porque estava
anos à frente do seu tempo. Foi o primeiro homem a refrigerar o corpo
humano durante uma operação cirúrgica (método hoje largamente
empregado em cirurgia de coração), porém foi denunciado por tentar
semelhante coisa. Foi por vários anos chefe de neurocirurgia no centro e
exerceu poderosa influência no pensamento de seus colegas. O dr. Fay fez-
lhes ver que só muito raramente pessoas com lesão medular têm a medula
completamente secionada e só raríssimas vezes os paralíticos são totalmente
destituídos de sensação.
Há no centro muitos pacientes com a medula espinhal lesionada. De
longa data o pessoal vinha suspeitando que, já que tais pacientes não eram
inteiramente destituídos de sensação, podia haver algum meio de aumentar-
lhes a sensibilidade. Um dia sobrevém auspicioso acidente. Uma terapeuta
está aplicando calor no pé de um paciente e acidentalmente produz-lhe uma
bolha no dedo do pé. Como a circulação é muitas vezes deficiente nos
membros paralisados, sempre há grave risco de infecção, de sorte que a
queimadura foi cuidadosamente tratada.
Dias após, ao passar junto ao leito do paciente, uma enfermeira esbarra-
lhe no dedo. Com espanto, ouve o paciente exclamar “ai!”. É como se
alguém tocasse um cadáver e o visse levantar-se de repente. O paciente
estava paralítico da cintura para baixo, mas agora sente alguma coisa.
A enfermeira comunica o fato a toda a equipe e, em pouco, todo o pessoal
está reunido em volta daquela cama. Como crianças diante de um brinquedo
novo, revezam-se nas tentativas de fazer o paciente exclamar “ai!”.
Depois querem saber se seriam capazes de provocar o mesmo em outros
pacientes. Obviamente, não podem queimar os dedos dos pés de todos eles,
mas o que fazem é engenhosamente criativo. Incumbem uma enfermeira
chamada Florence Sharpe (todos lhe chamam Sharpie) de provocar
queimaduras por lixação. Ela pega um pedaço de lixa bem fina e, usando
muito álcool para evitar infecção, lixa cuidadosamente o dedo do paciente.
Rasura a área até ela exsudar, removendo apenas as camadas superficiais da
pele, sem aprofundar a lixação até o ponto de causar sangramento. Depois
utiliza essa delicada área para desenvolver a sensibilidade.
Ninguém consegue dar nome à ocupação de Sharpie. Hoje em dia todos
falam em termos de insumo sensorial e produto motor – sensação e
tatilidade. Mas naquele tempo inexistiam tais termos. Alguns de nós
dizemos que ela é uma sensacionalista. E amiúde é apresentada como a
profissional encarregada da atividade sensorial. Isso provoca muito alçar de
sobrancelhas, o que a deleita sobremodo.
Começam a aplicar esse tratamento em ZeCarlos e, naturalmente, ele
também responde. Mal posso crer nisso.
Dois médicos franceses, Jean e Elisabeth Zucman, ficam fascinados por
este método de desenvolver a sensibilidade, tão fascinados que telefonam
para o seu médico-chefe, instando-o a vir da França à Filadélfia para vê-lo.
Trata-se de preeminente médico francês, que também é conde, muito
elegante e imponente. Trazem-no ao quarto de meu filho para uma
demonstração. Vendam ZeCarlos e em seguida tocam-lhe o dedo do pé. Ele
reage, após beliscar-lhe o dedo, arranhá-lo e pedir-lhe que identifique o que
estão fazendo – ao que ele responde com êxito. Depois os Zucmans vão
para o saguão a fim de discutir o fato com o médico francês. É óbvio que
eles devotam imenso respeito ao homem. Perguntam-lhe:
– Senhor, que acha disso?
Com a máxima seriedade ele responde:
– Muito simples. Trata-se de magia negra.
Ato contínuo, deixa o centro e volta para a França.
Custa crer que exista no mundo tamanha estupidez. Constrange-me ver
que homens da minha profissão tenham tão escassa curiosidade.
Antigamente eu não supunha que houvesse muitos como esse doutor
francês, mas tenho verificado, com muito pesar, não serem poucos os
médicos fundidos na mesma forma.
Embora eu me sinta muito satisfeito com o trabalho que os terapeutas
executam com ZeCarlos, fico inquieto. Sempre fui homem ativo. Todos os
dias venho do hotel e observo o trabalho que realizam com meu filho.
Tenho tão pouco que fazer, sinto-me inútil: minhas mãos se enervam e eu
fico ansioso por aprender mais e mais.
Acode-me uma ideia. Dirijo-me ao coronel Flores e indago:
– Poderia eu ser um aprendiz neste centro?
Responde-me que vai ver se é possível.
5 A INVENÇÃO DO DR. TEMPLE FAY
O coronel Flores precisa perguntar a Glenn Doman se eu posso ser um
aprendiz. Faz um mês que venho observando Glenn Doman e sinto-me cada
vez mais impressionado com ele. Nunca vi homem dotado de mais energia.
Ele nunca sabe quando é hora de ir para casa – talvez porque o seu trabalho
é a sua casa. Sua esposa, Hazel Katie Doman, é uma mulher brilhante ao
extremo. Parece compreender esse fervor. Trabalha ao lado dele como
enfermeira.
De começo, não compreendo plenamente o papel de Glenn Doman nessa
instituição extraordinária. Sei que é diretor, e para mim é óbvio ser eficiente
e brilhante em extremo. Com o tempo virei a saber que é mais do que
brilhante – verei patentear-se sua genialidade. Mas por ora vejo nele um
fisioterapeuta e o diretor do centro. É o homem que tem o poder de dizer
“sim” ou “não” à minha pretensão de vir a ser um aprendiz.
Glenn Doman diz “sim”. Ganho uma bolsa-de-estudo por um ano. Logo
fico sabendo que “aprendiz” provavelmente não seja o termo apropriado
para designar a minha nova condição. “Escravo” seria designação mais
adequada. Mas considero-me o escravo mais feliz do mundo.
Agora meus dias são integralmente consagrados ao trabalho. No
primeiro mês, sou assistente de uma enfermeira. No segundo mês, sou
assistente de um fisioterapeuta. Depois, durante um mês, sou assistente de
um terapeuta ocupacional, e assim por diante. Em doze meses, tenho doze
ocupações. Rastejo com os pacientes. Dou banho nos pacientes. Envido o
melhor de meus esforços para fazer tudo que me pedem e, como aprecio o
trabalho que executam com meu filho, procuro fazer ainda mais do que me
é solicitado. E a cada dia aprendo algo novo. Essa gente conhece mais
acerca do cérebro e de lesão cerebral do que quaisquer outras pessoas de
que eu tenha ouvido falar. Para mim, estar ali é estar no lugar mais excitante
do mundo.
Não se perde tempo. Até a hora do almoço é aproveitada. Todos os dias
o pessoal se reúne para almoçar, de modo que Glenn Doman pode fazer
perguntas e nós podemos discutir as condições e as melhoras dos pacientes.
É nessas reuniões que eu começo a compreender não ser por acaso que
tantos terapeutas de classe estão trabalhando sob o mesmo teto. Também
começo a compreender que Glenn Doman possui um talento todo especial
para descobrir gente superiormente dotada para colaborar com ele, e
experimentaprofunda alegria em desenvolver a aptidão de seus
colaboradores. Dá-lhes mais do que recebe deles. Se uma enfermeira chega
ali como ótima profissional, ele se apressa em dizer para todos que ela é a
melhor enfermeira do mundo. Pouco importa que ninguém mais acredite ser
ela a maior enfermeira depois de Florence Nightingale: o importante é que a
própria enfermeira comece a acreditar. Se ela acredita, então se torna isto
mesmo: a melhor enfermeira do mundo. Ou o melhor terapeuta, ou seja lá o
que for. Glenn Doman tinha, e ainda tem, o talento de fazer cada um dar o
melhor de si mesmo. Se pudéssemos enfrascar essa habilidade, trinta
gramas dela custaria mais caro que o Chanel no 5.
O pessoal que Glenn reuniu é um punhado de especialistas e
personalidades sem par. Só têm uma coisa em comum: o empenho em
melhorar o paciente. Cumpre-me esclarecer que, no centro, os pacientes não
recebem trinta minutos de tratamento por dia – são submetidos a um
programa regular de dezoito horas, com intensiva estimulação e atividade
física. Os integrantes do pessoal que não compartilham o objetivo comum e
não se sentem dispostos a passar longas horas fatigando os próprios
músculos não permanecem por muito tempo no quadro do pessoal – não
porque sejam dispensados, mas porque encontram em outra parte empregos
com jornada de oito horas.
Aqueles que permanecem são inteligentes, enérgicos, idealistas e
dotados de personalidade. Nesse tempo havia Robert Doman, médico
fisiatra (e irmão de Glenn); Carl Delacato, educador e psicólogo; Hazel
Doman, enfermeira (e esposa de Glenn); Eleonor Borden, fisioterapeuta;
Rosemary Boyle, enfermeira-chefe (que era ao mesmo tempo engenhosa e
meio maluca; suas opiniões iam dos mais rematados disparates às
observações mais lúcidas). E, naturalmente, havia Tony Flores e Sharpie.
Eram todos pessoas notáveis.
Naquele ano de 1957, os terapeutas do centro já estavam cunhando um
nome para si próprios. O dr. Edward B. Le Winn, do Albert Einstein
Medical Center, encaminhava pacientes para esse grupo de entusiastas, e o
dr. Eugene B. Spitz, eminente neurocirurgião-pediatra, insistia em dizer que
devia dar-se prioridade às crianças, já que sua capacidade de recuperação
supera a dos adultos e é maior a sua expectativa de vida.
Ao mesmo tempo que eles despertavam interesse, também provocavam,
à distância, crescente ciumada profissional e reações de incredulidade.
Assim como havia a sensação de que algo novo, quiçá revolucionário,
estava acontecendo ali, também havia uma aura de controvérsia em torno
desse trabalho extraordinário. Acho lícito dizer que essa controvérsia se
devia, em parte, à ligação do dr. Temple Fay com o centro. Muita gente
ainda não compreendia as teorias dele sobre o desenvolvimento do cérebro
e sua relação com as funções humanas. O mundo não dá boas-vindas às
ideias novas.
Pode-se dizer que Glenn Doman é invenção de Temple Fay. Também se
pode dizer que, naquele tempo, era Temple Fay o melhor e o pior
neurologista funcional.
Devo dizer também que Glenn Doman rendeu a Temple Fay a maior
homenagem que um discípulo pode render ao seu mestre: juntou tudo que
tinha aprendido em sua longa convivência com ele e estruturou com seu
próprio gênio os ensinamentos do mestre. Havia diferença fundamental
entre Doman e Fay, e tal diferença se fez sentir no labor de cada um deles.
Fay era um pesquisador. Doman é um aplicador. Fay via no laboratório o
melhor meio de alcançar suas metas. A meta de Doman era e é o
aprimoramento da vida humana. Era uma diferença insuperável.
Em 1957, Glenn Doman era moço e vigoroso. Era também um idealista,
convicto de que o bem suplanta o mal e a verdade sempre triunfa. A coisa
mais importante para ele era que o seu grupo estava conseguindo resultados
notáveis com pacientes acometidos de acidente vascular cerebral e lesão
cerebral.
Dou graças a Deus porque meu filho está no centro.
Estou radiante porque participo deste trabalho.
E certo estou de que o melhor ainda está por vir.
Naqueles dias eu era um otimista.
6 SAUDADES DO LAR
Embora eu tenha tido este ano o privilégio de aprender tanto e esteja
exultante por ver ZeCarlos progredir, estou cada vez mais saudoso de minha
mulher e minha filha. Sinto saudades do Brasil também. Compreendo não
mais precisarmos permanecer nos Estados Unidos para tratar de ZeCarlos.
Agora que tenho os métodos terapêuticos na cabeça, posso levá-los comigo
para o Brasil.
Digo ao coronel Flores que decidi levar ZeCarlos de volta para o Rio de
Janeiro. É importante para mim que ele seja brasileiro. A cada dia que se
passa ele fala mais inglês e está adquirindo modos norte-americanos, mas
não quero que meu filho venha a ser um forasteiro em sua própria terra.
Indago ao coronel Flores se ele me consegue uma oportunidade para falar
com o sr. Doman. Diz ele que sim.
Durante este ano, minha admiração pelo sr. Doman só fez crescer, mas
não estou certo de que ele esteja a par de meus sentimentos, porque temos
conversado tão pouco. Eu mal arranho o inglês, e ele não fala o português.
Nas reuniões do pessoal, entendo tudo que se diz, mas pouco falo. Acho
mais fácil entender o inglês do que falá-lo. Assim, não estou certo do que
pensa o sr. Doman a meu respeito. Talvez imagine que meus pensamentos
sejam tão raros quanto minhas palavras. Acho que a consideração que ele
me dispensa deve-se ao coronel Flores, porque nós dois nos tornamos
amigos íntimos.
Quando chega a hora da entrevista, estou no auge da ansiedade.
– Sr. Doman – digo, – quando meu filho ZeCarlos sofreu o acidente,
pensei: “Oh, meu Deus, como poderei viver?”. Os médicos primeiro me
disseram que ele não sobreviveria. Disseram isso como se me fizessem um
favor. Mas meu filho não morreu. Roguei a Deus que me ensinasse como
salvar meu filho. Prometi-lhe que, se Ele me concedesse essa graça, eu
devotaria o resto de minha existência a curar outras crianças como
ZeCarlos.
Ele escuta sem me interromper.
“Com sua licença”, prossigo, “vou levar ZeCarlos de volta para o Brasil
e lá o submeterei ao seu tratamento. Levarei comigo também os seus
métodos e, se o senhor não se opuser, fundarei no Rio de Janeiro um centro
de reabilitação.”
– É muita bondade sua, dr. Véras – diz-me ele. – Se deseja fundar um
centro no Rio de Janeiro, claro que lhe assiste esse direito. Mas espero que
o faça tão somente por ser essa a sua vontade, não por gratidão para
conosco.
– Não, a razão não é esta – digo-lhe. – Tenho um pacto com o Senhor.
Ele sorri.
– Aprendi há muito tempo a não interferir nos assuntos da alçada do
Senhor. Ficarei ansioso por ter notícias do seu trabalho. E os nossos
melhores votos o acompanharão.
Então tomo maior liberdade ainda com aquele homem.
– Quando eu inaugurar a minha clínica – digo-lhe, – o senhor deverá ir
ao Brasil e vê-la com seus próprios olhos.
– Eu não desejaria nada melhor que isso – responde.
– Então, trato feito – acrescento, estendendo-lhe a mão.
– Trato feito – conclui ele, com um aperto de mão.
Mal acaba de dizer isso, a sua secretária entra na sala e lembra-lhe outro
compromisso. Ele aperta-me a mão e pede-me licença, enquanto eu
continuo tentando hipotecar-lhe a minha imperecível gratidão. Coitado,
precisa livrar-se de mim, e deixa a sala quase às carreiras. Anos depois,
virei a saber que esse homem fica muito nervoso quando a gente lhe
agradece, e ele faz tudo para evitar despedidas prolongadas.
Levo meu filho para casa.
7 CENTRO DE REABILITAÇÃO NOSSA SENHORA DA GLÓRIA
Ao deixarmos o centro, não creio que Glenn Doman ficará surpreso se
nunca mais ouvir falar de mim. Já lhe fizeram muitas promessas vãs e
muitas mais lhe farão. Mas eu sei que a minha promessa não é desígnio vão.
Hei de fazer dela uma realidade.
Acho que a maioria dos norte-americanos tem uma imagem estapafúrdia
dos sul-americanos. Imaginam que passamos quase o dia todos a preguiçar
com sombreiros sobre os olhos e sarapes atravessados nos ombros,
dormindo à sombra e resmoneando “mañana” para quem quer que nos
acorde. Garanto-lhes que essa imagem é tão falsa quanto aquela quemuitos
latino-americanos têm do povo dos Estados Unidos, gente que roda por toda
parte em Cadillacs, consome enormes quantidades de chocolate e Coca-
Cola e usa seus políticos desafetos para a prática de tiro ao alvo.
O Brasil é completamente diferente dos demais países da América do
Sul. Os outros são de origem espanhola, importaram a língua e a cultura
espanholas. Os espanhóis têm uma cultura algo melancólica e arrogante. Há
toques marcantes de tragédia na contextura hispânica. Ao passo que os
brasileiros são de origem portuguesa. São alegres, independentes, amantes
da liberdade. Longe de serem melancólicos e arrogantes, são muito joviais e
prazenteiros. Têm acentuado senso de amor e caridade. E, à diferença das
outras nações da América do Sul, o Brasil é governado pela classe média.
Tudo no Rio de Janeiro é portentosamente belo, desde os passeios de
mosaico preto e branco até as soberbas praias de Copacabana, Ipanema,
Botafogo, e o centro da cidade. E a apenas três quarteirões de distância,
montanhas de mil metros de altitude sobranceiam as praias.
Quem se acha no centro do Rio de Janeiro está a quadra e meia do
oceano e a quadra e meia das montanhas. O Senhor decerto endoidou
quando fez o Rio de Janeiro, o que deu origem a uma piada tipicamente
brasileira. Dizem os brasileiros que, quando Deus fez o mundo, presenteou
cada país com algo de grande beleza e com uma calamidade natural. Ao
fazer o Brasil, Ele esbanjou belezas por toda parte, porém não lhe destinou
nenhuma calamidade natural. O Brasil não tem terremotos, nem maremotos,
nem tufões, nem ciclones. Mas quando Deus conclui a obra, seus auxiliares
se viraram para Ele e disseram:
– Senhor, fizestes este formoso país, porém não lhe destinastes nenhuma
calamidade natural. Por quê?
Deus voltou-se para eles e respondeu:
– Esperem até ver com que espécie de gente eu vou povoá-lo.
Em primeiro lugar, o mais importante, penso eu. A minha primeira
responsabilidade não é para com todas as pessoas que necessitam de ajuda.
É para com meu filho. Submeto-o a tratamento diário e imediatamente o
matriculo numa escola comum. Nunca, nunca, nunca o encaminharia a uma
escola para pessoas deficientes. É muito importante fazer o leitor
compreender que eu quero fazer de meu filho uma pessoa sem deficiência.
Não quero que ele viva num mundo de deficientes, com atitudes de
deficiente. Consigo que ele frequente a escola por três horas nos dias úteis e
seis horas nos sábados. Levo-o todos os dias à escola. E vejo-o tornar-se
mais adaptado.
Isso é tão importante, e, no entanto, poucas pessoas o compreendem
realmente. Se, por serem deficientes ou incomuns, nós segregarmos os
indivíduos do convívio com as outras pessoas, eles se tornarão cada vez
mais estranhos. Se quisermos que nossos filhos se assemelhem às outras
crianças, teremos de proporcionar-lhes ambiência normal. As crianças
aprendem a ser normais. Assim penso eu. Sei que é assim.
Dentro de um mês, tenho mais um paciente. Depois mais outro. Removo
a mobília de alguns cômodos de minha casa e ei-los convertidos em salas de
tratamento. Em breve, preciso de auxiliares. Necessito de alguém que seja
fisicamente robusto. Um pugilista se torna o meu primeiro terapeuta. Em
poucas semanas, contrato uma enfermeira russa. Agora tenho pacientes e o
meu pessoal. Acho que é chegada a hora da inauguração. Envio a Glenn
Doman uma passagem aérea com uma carta dizendo-lhe haver cumprido a
minha promessa e esperar vê-lo conforme tínhamos combinado. Penso que
ele fica deveras surpreso – tanto que assente em vir ao meu país para a
inauguração.
Naquela que havia sido a minha sala de estar, reunimo-nos: Dom Hélder
Câmara, então arcebispo do Rio de Janeiro, Glenn Doman e sua esposa,
uma dúzia de pacientes com seus familiares, e a minha própria família.
Glenn Doman e Dom Hélder cortam uma fita. A fita é vermelha, branca e
azul, pelos Estados Unidos, e verde-amarela pelo Brasil.
E assim têm início nossa associação e nossas recíprocas visitas. De 1958
para cá, tenho ido aos Estados Unidos tantas vezes que até já perdi a conta,
e outras tantas vezes tem vindo Glenn ao Brasil.
8 “RAYMUNDO, COMO VOCÊ SABE...”
Durante a visita de Glenn Doman acontecem muitas coisas agradáveis.
Compreendemo-nos prontamente um ao outro. Não importa que eu fale em
português e ele em inglês – a gente sabe imediatamente não só o que o
outro diz, mas também o que pensa. Tornamo-nos como irmãos.
Acho que esta viagem também é muito benéfica para Glenn, porque é a
primeira oportunidade que ele tem, há muito tempo, de parar por alguns
minutos e examinar seus pensamentos.
Uma tarde estamos deitados em redes e Glenn diz:
– Raymundo, como você sabe...
Anos mais tarde, ficarei sabendo que quando Glenn diz: “Raymundo,
como você sabe...” não é o início de uma oração: é o início de uma
discussão que amiúde se prolonga noite adentro.
– Raymundo, como você sabe – diz ele, – o tratamento clássico nunca
surtiu efeito em criança com lesão cerebral. Em verdade, falhou tão
infalivelmente que ninguém espera nada dele. Na maioria dos círculos
médicos, tem-se não somente por impossível, mas até por imoral, pretender
recuperar uma criança com lesão cerebral. A razão por que o tratamento
clássico nunca surtiu efeito em crianças com lesão cerebral reside no seu
caráter não científico, não médico, irracional, e, se não bastarem todos esses
argumentos contra ele, então acrescente-lhes a nossa observação inicial: o
fato de não surtir efeito.
Aceno afirmativamente com a cabeça e digo:
– Sim.
– Existem duas maneiras de se encarar uma criança com grave lesão
cerebral – prossegue ele.
“Primeira. Ela tem alguma alteração nos olhos, porque não enxerga bem.
Tem alguma alteração nos ouvidos, pois não ouve bem. Tem alguma
alteração na boca, pois não fala bem. Tem alguma alteração na garganta,
pois não engole bem. Tem alguma alteração no tórax, pois não respira bem.
E se não se move, deve ter alguma alteração no ombro esquerdo, no
cotovelo direito, no pulso esquerdo, na mão direita, no joelho esquerdo, no
tornozelo direito. E se está de fraldas, há de ter alguma alteração nos
intestinos e na bexiga”.
“Se encararmos desta maneira a criança com lesão cerebral, então será
preciso levá-la a um médico de olhos, a um médico de ouvidos, a um
médico de tórax, a um médico de ombro esquerdo, a um médico de
tornozelo direito e a um médico de intestinos e bexiga.”
Rio-me.
“Se isso lhe parece ridículo, só posso lhe dizer que, se você me mostrar
uma criança com grave lesão cerebral, eu lhe mostrarei uma criança que foi
levada a um médico de olhos, a um médico de boca, a um médico de tórax,
a um médico de intestinos e bexiga etc.”
“Segunda. Você pode encarar a criança de cérebro gravemente lesado
como uma criança que, por causa do dano cerebral, tem dificuldade de ver,
ouvir, sentir, falar, andar, correr.”
– É verdade – aprovo.
– Ultimamente tenho-me preocupado muito com o nosso trabalho no
centro – acrescenta ele.
– Como assim? – indago.
– Tenho-me preocupado por boas razões, felizmente, não por más.
Temos progredido muito em nossos métodos de tratamento. Sabe você que
nós estamos mil anos-luz à frente de todos os demais, porém acho que ainda
temos muito que aprender. Não posso deixar de reconhecer que, no ano
passado, as crianças que submetemos aos nossos programas progrediram
muito mais depressa que os adultos.
– Isso é bom – comento eu.
– Bem, é e não é – argumenta ele. – É se eu me empenho para que as
crianças fiquem boas mais depressa. Mas se isso significa que as crianças
ficam automaticamente melhores mais depressa que os adultos porque são
crianças, então tenho de parar e perguntar aos meus botões por que estamos
desperdiçando tanto tempo com adultos.
– Que é que você quer dizer?
– Quero dizer que, atualmente, temos no centro vinte crianças e vinte
adultos. Ora, se as crianças respondem à terapia melhor que os adultos,
como posso justificar o fato de ter os adultos? Por que não ter quarenta
pacientes infantis?
– Aí está uma boa pergunta – observo.
– É mesmo– diz ele. – E é uma pergunta a que tenho de responder. É
uma questão moral – e questões morais são mais difíceis do que as questões
médicas.
Vejo-o sentar-se e refletir por alguns minutos.
“Há outra coisa que me diz respeito”, prossegue. “Temos, hoje, uma
turma de mais ou menos vinte pessoas para cuidar de quarenta pacientes.
Isso sai muito caro para a família de cada paciente, tanto mais que o pessoal
precisa dedicar tempo integral ao enfermos.”
Soergue-se, olha para mim e indaga:
“Dr. Véras, já lhe falei da minha clínica de sábado?”
Abano negativamente a cabeça.
“Eugene B. Spitz, o neurocirurgião, continua a mandar-nos pacientes,
crianças com lesão cerebral. Não temos acomodações para elas como
pacientes. Por isso, criei há algum tempo uma clínica de sábado.
Examinamos as crianças e dizemos aos pais como efetuar o tratamento; os
pais levam as crianças para casa e executam um programa de tratamento em
domicílio.”
– Podem os pais fazer isso? – pergunto.
– E muito bem. Alguns deles estão obtendo resultados espetaculares. E o
mais importante é que podem dedicar mais horas à execução do programa
do que poderiam fazê-lo os melhores profissionais.
– Os pais compreendem o que fazem?
– Naturalmente – responde. – Explico-lhes minuciosamente o que
devem fazer. Vou-lhe contar: para os seus guris, são os pais os melhores
terapeutas que já vi. Eles não precisam conhecer a fundo todas as crianças
com lesão cerebral, só o seu filho. São todos eles inteligentes e aprendem a
coisa com rapidez.
– Compreendo – digo, sacudindo a cabeça, – você lida somente com pais
instruídos.
– Oh, meu Deus, não é isso! – exclama ele. – Uma família é de humildes
lavradores do oeste da Pensilvânia.
– E são terapeutas? – pergunto.
– Sim, senhor.
– É interessante – admito.
– E tem mais – acrescenta. – Há sábados em que examino cinco ou seis
crianças.
– Isso é bom.
– É mais do que bom, porque são seis crianças que não teriam nenhum
outro tratamento. Em um mês, examino às vezes até vinte crianças novas e
traço programas de trabalho para seus pais. Os pais levam os filhos para
casa, executam os programas por um par de meses, e então eu torno a
examiná-las. Você não compreende o que isso significa? – pergunta, e, sem
esperar pela resposta, continua: – Significa que, num dia por semana, um
profissional prescreve tratamento para mais pacientes do que vinte
profissionais poderiam tratar trabalhando sete dias por semana. Utilizar os
pais à guisa de terapeutas é como ter um exército de paramédicos sob nosso
comando.
– Ideia genial – comento.
– Sim, é mesmo – concorda ele naturalmente. – Mas isso implica outro
problema para mim. Como justificar que eu tenha vinte profissionais
trabalhando em regime de tempo integral para cuidar só de quarenta
pacientes? Se esses vinte profissionais, em vez disso, só fizessem avaliar
crianças e ensinar os pais a trabalhar, poderíamos atender centenas de
crianças, em vez de apenas quarenta.
– Acha que isso é possível? – inquiro eu.
– Acho que talvez seja – responde ele.
Pelo que me lembro, tornamos a estirar-nos em nossas redes e
adormecemos. Mas o sonho daquele homem não se esfuma em nossos
sonhos – fica esperando que Glenn Doman o converta em realidade.
Não há de esperar muito.
9 A PROMESSSA DÁ FRUTOS
Não demoro muito a perceber que estou perdendo minha casa. O
equipamento terapêutico vai tomando mais espaço do que os cômodos que
lhe foram destinados. Preciso arranjar uma sede antes que perca minha
cozinha e meu quarto de dormir – e talvez até minha mulher.
Alugo um sobrado em Botafogo. No primeiro andar, arranjo espaço para
os pacientes adultos. O segundo andar é para crianças.
Não tardo em compreender cada vez melhor o problema de Glenn. Não
é fácil conseguir terapeutas em número suficiente para atender tantos
pacientes. Aprendo também que a lesão cerebral não quer saber se uma
família pode ou não custear o tratamento. Quando considero o pacto que fiz
com o Senhor, verifico não existir nenhuma cláusula que estipule dever eu
tratar só de pacientes ricos; por conseguinte não posso mandar embora os
que não podem pagar pelo nosso serviço. Meus amigos me interrogam:
“Que foi que lhe aconteceu? Você perdeu a cabeça?”. Respondo: “Talvez”.
À proporção que vai aumentando o número de pacientes e de
profissionais, vejo minguar minha conta bancária. Terei de me conformar
com isso. O pacto que fiz com o Senhor é pra valer.
Estou certo de que aqueles tempos devem ter sido árduos, mas recordo
aqueles dois primeiros anos como se não passassem de um sonho.
Entretanto, Glenn Doman e eu trocamos muitas cartas. Ele me fala das
coisas novas que estão fazendo no centro. E eu lhe falo de nosso progresso.
Em 1962 me escreve: “Você precisa vir à Filadélfia, porque temos feito
mais inovações do que eu poderia descrever em carta. Você tem de ver estas
novidades com seus próprios olhos para dar-lhe créditos.”
Quando chego à Filadélfia, em julho de 1962, logo vejo que Glenn tinha
razão. Tantas são as inovações que realmente é preciso ver para crer. As
mudanças começam na entrada. A tabuleta já não diz: “The Rehabilitation
Center at Philadelphia”. Nova tabuleta reza: “The Institutes for the
Achievement of Human Potential” (Institutos para o Desenvolvimento do
Potencial Humano).
Em pouco, fico sabendo que já não há pacientes internos. Glenn
converteu em realidade exatamente o que me dissera naquele dia de verão,
no Rio de Janeiro. Agora ele e o seu pessoal avaliam as crianças e ensinam
os pais a efetuar o tratamento. Uma ideia revolucionária torna-se
revolucionária realidade.
No primeiro dia, vejo a clínica em ação e fico impressionado com sua
eficiência. Fico sabendo que Glenn Doman se tomou de nova paixão. Não
por outra mulher – enamorou-se dos pais. É realmente de espantar. O
mundo médico tem uma tradição: a de que o doutor e os pais são inimigos,
ou pelo menos assumem posturas adversas. Ouço os profissionais dizerem
que os pais são estúpidos: não se pode acreditar numa só palavra do que
dizem.
Mas agora ouço Glenn dizer: “Os pais são maravilhosos! Veja como são
inteligentes. Fazem tudo que os mandamos fazer pelos seus filhos e mais
ainda. São os melhores terapeutas do mundo para os próprios filhos”.
É bem possível que seja essa a ideia mais revolucionária que Glenn já
teve. Mas, revolucionária ou não, futuramente verei que ele tem razão.
Como ele acredita que os pais são inteligentes, explica-lhes o trabalho do
instituto. Responde às perguntas deles. Informa-os não somente sobre a
condição de seus filhos como também sobre a lesão cerebral em geral.
Nutre a convicção de que, quanto mais bem informados forem os pais, tanto
melhores terapeutas se tornarão eles.
Desta feita, vejo Glenn explicar muito bem aos pais estas novas teorias.
Vejo também que, por ter-se enamorado deles, encontrou neles o seu
auditório favorito. No futuro presenciarei muitas vezes ele instruir os pais.
Jamais me cansarei de ouvir suas palavras. Ele torna tudo tão claro.
Uma observação especial para os pais de crianças com deficiência
intelectual. É de suma importância que vocês leiam atentamente esta
primeira parte do livro. Se entenderem tudo que aqui se diz, ser-lhes-á mais
fácil entender o que vou dizer-lhes mais tarde acerca da deficiência
intelectual.
Apraz-me descrever para o leitor a seguinte cena. Estamos no auditório.
Conserva-se baixa a temperatura ambiente para que todos se mantenham
atentos e bem despertos. Constituem a audiência entre vinte e cinco e trinta
casais de pais. Glenn entra no auditório e fala:
“Os Institutos não concordam com ninguém neste mundo em matéria de
crianças com lesão cerebral. Nossa discordância principia na diagnose –
principia antes mesmo da diagnose: na definição”, explica Glenn, “depois
se estende à diagnose, à classificação, ao método, à técnica, e termina nos
objetivos.
“Classificamos em três categorias as crianças que examinamos: cérebro
deficiente, cérebro psicótico e cérebro lesado.”
“Cérebro deficiente: toda criança que, no momento da concepção, Deus
não quis conceder umcérebro normal. Não por ocasião do nascimento, nem
pouco antes de nascer, nem duas semanas após, nem um dia depois, mas no
momento exato da concepção.
“Pelo que sabemos”, diz ele, “nada se pode fazer por essas crianças.
Felizmente, acreditamos serem elas extremamente raras.
“Cérebro psicótico: toda criança cujo cérebro parece fisicamente normal,
mas cujo comportamento destoa gritantemente do modo de proceder das
outras crianças de sua idade. São crianças encantadoras”, diz-nos ele,
“porém nada podemos fazer por elas. Afortunadamente, também são
extremamente raras.
“Cérebro lesado: toda criança que, no momento da concepção, Deus
decidiu dotar de cérebro perfeito. Posteriormente, o cérebro é lesado de
algum modo – incompatibilidade entre os fatores Rh dos genitores, o fato
de a mãe contrair rubéola nos três primeiros meses de gestação, falta de
oxigênio durante o anteparto etc.
“O pessoal dos Institutos conhece umas cem maneiras como pode uma
criança sofrer lesão cerebral, e provavelmente existem mil; a causa mais
comum, entre as crianças com lesão cerebral que examinamos, é o parto
prematuro.”
Menciona ele muitos outros fatores capazes de lesionar o cérebro:
anteparto prolongado, parto demorado (dezoito horas ou mais), nascimento
retardado (quiçá devido à chegada tardia da mãe ao hospital), parto
provocado, dificuldades obstétricas, pancadas na cabeça, afogamento e
recuperação, febre alta devido ao sarampo ou qualquer outro mal, parada
cardíaca ou respiratória durante uma operação cirúrgica.
“Existem aproximadamente cem bilhões de células na cabeça de cada
criança”, diz Glenn. “Pelo menos dez bilhões delas são neurônios, ou
células nervosas capazes de atuar como unidades funcionais do cérebro.
Dez bilhões é um número difícil de relacionar com a realidade, mesmo para
um pagador de impostos norte-americano. Para tentar conferir alguma
realidade a esse número, convém saber que se o filho de vocês tivesse
nascido antes de Cristo e perdesse uma célula cerebral novinha em folha a
cada dez segundos, nos sessenta segundos de cada minuto, nos sessenta
minutos de cada hora, nas vinte e quatro horas de cada dia, nos trezentos e
sessenta e cinco dias de cada ano, e se essa criança ainda estivesse viva
hoje, ainda lhe restariam mais de três bilhões de neurônios.
“Lesão cerebral é a condição que sobrevém à morte de uma ou mais
células do cérebro.
“Se lhes ocorrer que seria difícil imaginar um ser humano com dez
bilhões de neurônios no cérebro, sem um só deles morto, e tal é de fato o
caso, então na realidade toda gente tem, em algum grau, lesão cerebral.
Seria difícil refutar semelhante argumento. Muitas pesquisas confirmam
que todos nós temos milhões de células cerebrais mortas, e pesquisa recente
indica enfaticamente que algumas células cerebrais são destruídas toda vez
que alguém toma um simples gole de cerveja, vinho ou uísque. Isso se
tornará ainda mais digno de crédito se considerarmos que os próprios
pesquisadores pararam de beber durante essa pesquisa.
“Portanto já não consiste a questão em saber quem tem e quem não tem
lesão cerebral, mas “em que grau” cada um de nós tem o cérebro lesado.
“Obviamente a lesão cerebral varia desde um grau tão insignificante que
o indivíduo parece perfeitamente são, até o grau máximo – o de um defunto.
“Quanto maior for o número de áreas cerebrais com células mortas,
tanto maior será o número de funções comprometidas (tais como o andar, a
fala, a leitura, a escrita, a audição, o entendimento, o tato etc.). Quanto
maior for o número de células cerebrais mortas em determinada área
cerebral, tanto mais grave será a dificuldade de andar, falar, ler etc.
“Pode a lesão cerebral ocorrer a qualquer tempo, do instante da
concepção em diante, e as crianças examinadas nos Institutos para o
Desenvolvimento do Potencial Humano, da Filadélfia, sofreram suas lesões
dez minutos, dez horas, dez dias, dez semanas, dez meses ou dez anos após
o instante da concepção.
“Não somente pode a lesão cerebral ocorrer antes do nascimento, como
de fato a grande maioria das crianças com lesão cerebral examinadas nos
Institutos sofreram suas lesões cerebrais antes ou durante o nascimento.
Revelou uma amostragem que menos de 10% foram lesionadas após o
nascimento. Menos de 2% das crianças examinadas nos Institutos sofreram
traumas físicos pós-natais, como acidentes de automóvel.
“Muitas das crianças que examinamos foram anteriormente rotuladas de
crianças com paralisia cerebral, com deficiência intelectual, autistas,
“crianças que custam a aprender” e não sei quantos nomes mais. Dizer que
tais crianças foram “diagnosticadas” com paralisia cerebral ou deficiência
intelectual seria ao mesmo tempo impróprio e não científico, porque
nenhuma dessas expressões traduz diagnose médica adequada. Descrevem
elas sintomas de uma disfunção neurológica, não a causa. Dizer que uma
criança tem deficiência intelectual é como dizer que ela tem febre. Ninguém
acredita que febre seja doença, mas como se tem viciosamente usado e
abusado das expressões “deficiência intelectual” e “paralisia cerebral”, por
engano, muita gente supõe que se trata de doenças. Até no meio médico, em
que as pessoas deviam ser mais esclarecidas, faz-se uso, mau uso e abuso de
tais termos. Isso confunde e embaraça.
“Algumas crianças chegam aqui completamente paralisadas,
funcionalmente cegas, funcionalmente surdas, ou totalmente insensíveis”,
prossegue Glenn. “Por outro lado, examinamos numerosas crianças vindas
de escolas especiais, e algumas de escolas regulares, todas elas com
problemas de aprendizado. Examinamos crianças da Pensilvânia, de Iowa,
da Itália, da Argentina. Uma coisa é evidente: a lesão cerebral não
reconhece fronteiras estaduais nem nacionais; não faz nenhuma distinção de
classe social e não respeita absolutamente idade.
“O cérebro, o mais importante dos órgãos, distingue o homem dos outros
animais. A função do cérebro”, frisa Glenn, “é relacionar o indivíduo com o
meio.
“Principiando como um organismo unicelular microscópico, a criança
cresce a partir daí numa velocidade fantástica. No momento da concepção
ocorre uma explosão de crescimento. Em doze dias o feto tem cérebro e
medula espinhal; em vinte e quatro dias tem coração que bate; em nove
meses pesa mais de três quilogramas. De dia para dia, porém, diminui a
taxa de crescimento. Entre os 7 e 8 anos de idade, o cérebro da criança
cresce quase tanto quanto crescerá entre os 8 e os 80.
“Nos seis primeiros anos de vida a criança aprende mais, fato por fato,
do que aprenderá no resto da vida.
“O cérebro, continua Glenn, “é soberbo computador. E leva ampla
vantagem sobre suas cópias eletrônicas: quanto mais material lhe
fornecermos, tanto mais ele computará; quanto mais uso fizermos dele,
tanto melhor ele trabalhará. Como computador, necessita o cérebro ser
programado e alimentado com informação. Tudo fica permanentemente
armazenado no cérebro de uma criança de 3 anos: ele está sendo
programado.
“Graças ao funcionamento do seu cérebro, o ser humano ocupa lugar à
parte entre os outros animais. Só o ser humano se mantém a prumo e anda
em padrão cruzado. Só o ser humano fala em linguagem simbólica abstrata
(Deus deu ao ser humano um cérebro estupendo para a linguagem prática; o
ser humano inventou línguas tais como o francês, o alemão, o inglês etc.).
Só o ser humano ouve de tal maneira que pode entender a palavra falada. Só
o ser humano é capaz de opor o polegar ao indicador e portanto escrever. Só
o ser humano consegue identificar um objeto pelo tato, sem cheirá-lo, vê-lo
ou prová-lo.
“Por outras palavras, existem seis funções que caracterizam os seres
humanos: andar, falar, escrever, ler, ouvir, sentir.
“É a falta de uma ou de todas essas seis funções o que traz uma criança
aos Institutos para o Desenvolvimento do Potencial Humano, e é a presença
dessas seis funções o que vale a sua formatura.
“A função do cérebro é relacionar o indivíduo com o meio”, repete
Glenn. “O grau de eficiência com que o cérebro relaciona um indivíduo
com o ambiente representao grau de organização neurológica desse
indivíduo.”
“A humanidade tem considerado o desenvolvimento ou crescimento do
cérebro como se fosse algo estático e irrevogável. Mas isso simplesmente
não corresponde à verdade. O desenvolvimento cerebral é processo
dinâmico e sujeito a constante variação – pode ser sustado, pode ser
retardado e, o que é mais importante, pode ser acelerado. Aceleramo-lo
todos os dias.
“O desenvolvimento normal das crianças abrange quatro estágios de
motilidade. Ao nascer, a criança move braços e pernas. Dos dois aos três
meses já pode mover os braços de tal maneira que consegue mover todo o
corpo – rasteja. Dos sete aos oito meses eleva o torso acima do chão e se
locomove sobre as mãos e joelhos – engatinha. Entre os nove meses e um
ano, levanta-se e anda.
“Verificamos que as crianças com lesão cerebral, seja qual for a sua
idade, são incapazes de realizar uma ou todas essas quatro coisas. Ou não
podem mover braços e pernas, ou não podem rastejar convenientemente, ou
não podem engatinhar adequadamente, ou não conseguem andar
satisfatoriamente. Contamos com tudo isso no desenvolvimento de uma
criança de um ano, porém a criança com lesão cerebral não consegue
executar pelo menos uma dessas funções, às vezes duas delas, outras vezes
três, e algumas dessas crianças não conseguem executar nenhuma delas.
Quando as crianças com lesão cerebral se tornam capazes de realizar essas
quatro funções, então melhoram.
“Todas essas quatro funções são comandadas pelo cérebro,” diz Glenn,
“e todas elas são necessárias ao desenvolvimento neurológico. O cérebro se
desenvolve em quatro estágios: bulbo raquidiano e medula espinhal, ponte,
mesencéfalo e córtex.
“O bulbo raquidiano e a medula espinhal já estão desenvolvidos por
ocasião do nascimento. Comandam eles o choro do recém-nascido, o
reflexo pupilar fotomotor, o reflexo de estremecimento, o reflexo de
preensão (o bebê pode segurar um objeto, mas não pode soltá-lo
voluntariamente), o reflexo de Babinski e o movimento de braços e pernas
semelhante ao da natação. Ao mesmo tempo que o bulbo raquidiano e a
medula espinhal governam braços e pernas em movimento natatório, por
sua vez esse movimento particular ativa outras células cerebrais.
“O tronco encefálico se desenvolve na criança mediana à idade
aproximada de dois meses e meio. Comanda a percepção do contorno, o
choro vital em resposta a ameaças à vida, a relaxação vital (agora a criança
pode não somente segurar um objeto, como soltá-lo voluntariamente),
resposta vital a sons ameaçadores e percepção de sensações vitais, como
extremos de calor e de frio. A ponte comanda também o rastejar. A esta
altura a criança torna-se móvel; agora ela passa a rastejar sobre a barriga, no
berço, como o combatente se arrasta no chão. A princípio rasteja
homolateralmente (a perna esquerda move-se para frente junto com o braço
esquerdo, a perna direita move-se para frente junto como braço direito). Em
breve desenvolve um padrão cruzado (avanço simultâneo da perna direita
com o braço esquerdo e vice-versa). O padrão cruzado é um progresso
essencial, porque mais tarde ela terá de engatinhar apoiando-se
alternadamente, ora na mão direita e no joelho esquerdo, ora na perna
direita, enquanto o braço direito mantém coordenação com a perna
esquerda). Ao rastejar em padrão cruzado, a criança ativa as células na área
da ponte.
“Quando a criança tem por volta dos sete meses de idade, desenvol ve-se
o mesencéfalo. Comanda ele a criação de sons significativos, a preensão
voluntária (as crianças, nesta idade, pegam os objetos como se tivessem as
mãos enfiadas em luvas sem dedos), a apreciação de pormenores dentro de
uma configuração (a princípio o bebê enxerga somente a silhueta do rosto
materno; agora começa a enxergar-lhe os olhos, o nariz, a boca) e
apreciação de sensações gnósticas (aptidão para distinguir mais sutis
diferenças de temperatura). O mesencéfalo comanda também o engatinhar
sobre as mãos e os joelhos – a mão esquerda e a perna direita avançam
coordenadamente, depois avançam coordenadamente a mão direita e a
perna esquerda, em bom padrão cruzado. Quando uma criança engatinha
em padrão cruzado, ativa as células do mesencéfalo.
“Desenvolve-se o córtex quando a criança está com cerca de doze
meses. Então principia ela a usar palavras espontânea e significativamente.
Começa a entender palavras faladas. Seus olhos passam a convergir,
resultando em rudimentar percepção de profundidade. Começa a apreender
a terceira dimensão em objetos que se diriam planos (como uma moeda). O
córtex governa a oposição cortical (o uso do polegar e do indicador para
pegar objetos) e o andar em padrão cruzado (o pé esquerdo avança em
coordenação com a mão esquerda). Quando uma criança anda em padrão
cruzado, ativa outras células do córtex.”
Se o leitor teve a oportunidade de ver crianças de cérebro lesado
progredirem do estágio do rastejar para o estágio do engatinhar, não porá
em dúvida a veracidade do que disse Glenn Doman. Para a criança lesada
no cérebro, o plano natural do desenvolvimento se torna um círculo vicioso.
Se a lesão se localiza no bulbo raquidiano, a criança mal consegue mexer
braços e pernas. E se não move braços e pernas, outras células cerebrais
permanecem inativas.
“A lesão cerebral reside no cérebro”, acentua Glenn. “Sabemos que
células mortas estão mortas e não podem ser revitalizadas. Mas, na maioria
das crianças de cérebro lesionado, subsiste suficiente quantidade de células
indenes, que podem ser ativadas. O cérebro, como um computador, precisa
ser programado. Se a criança é incapaz de programar movimentos de braços
e pernas, então devemos programá-los para ela. O que entra no cérebro tem
de sair”, diz Glenn. “Uma vez gravado no cérebro o padrão de rastejar, a
criança rastejará. Quando rastejar, ativará as células da área cerebral do
tronco encefálico e passará a fazer as coisas, comandadas por essa estrutura,
que as outras crianças podem fazer.
“Conhecemos hoje sete meios não cirúrgicos e seis meios cirúrgicos de
tratar a lesão no cérebro”, diz ele. “Provavelmente haverá mais centenas
deles. Ainda estamos investigando.
“Vamos dar um exemplo de tratamento cirúrgico. Mais de trinta e cinco
mil crianças estão vivas hoje em dia graças a um único método cirúrgico, o
do desvio V-J, descoberto pelo dr. Eugene B. Spitz para aliviar crianças
com hidrocefalia (com “água na cabeça”). Em consequência de lesões, o
líquido cerebrospinal, constantemente produzido pelo cérebro, não é
normalmente reabsorvido nessas crianças e se acumula no interior do
crânio, provocando dilatação da cabeça e extrema pressão, que compromete
o cérebro. Uma vez colocado por via cirúrgica o desvio V-J, o líquido
cerebrospinal em excesso é drenado para a veia jugular, através de um tubo
provido de válvula especial. Essas crianças agora podem viver
normalmente.
“Mas a maioria das crianças que vêm aos Institutos são tratadas por
meios não cirúrgicos, mediante técnicas específicas de programação do
cérebro com estímulos físicos. Verificou-se que tal programação deve ser
feita com frequência, intensidade e duração, a fim de incrementar o fluxo
de informação para o cérebro.
“Tem a criança com lesão cerebral barreiras que obstam a recepção
visual e auditiva. É necessário romper tais barreiras. Cumpre adaptar o
ambiente às necessidades da criança. É mister intensificar o fornecimento
de impulsos sensoriais à criança com lesão cerebral.
“Para a criança com lesão cerebral”, adverte Glenn, “o tempo não é
amigo: é inimigo. O tempo é inimigo implacável de toda criança com lesão
cerebral. A cada dia que ela não melhora, piora, porque está um dia mais
velha e a outra criança está um dia melhor.
“Haverá mãe de criança com lesão cerebral”, pergunta ele, “que não
tenha pensado na corrida inexorável do tempo? Todo dia que seu filho não
melhora, piora, porque está um dia mais velho e todas as crianças sadias
estão um dia melhores.
“Quando prescrevemos programas de intensivo rastejar e engatinhar
para nossos pacientes, muitos deles melhoram

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