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Copyright 1999 by Amartya Sen. Traducao publicada mediante acordo corn Alfred A. Knopf, uma divisffo da Random House, Inc. Grafia atualizada squad° o Acordo Ortogra'fico da Lingua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Titulo original Development as freedom Capa Jeff Fisher Preparacio Diane de Abreu Maturano Santoro Revisit° Renato Potenza Rodrigues Adriana Moreno &dice onoma'stico Juliane Kaori indice remissivo Pedro Carvalho Ii,ii Ernma Dados Internacionais de Catalogagio na PubBenito (cm) (Camara Bmsileira do Livro, se, Brasil) Seas, Amartya Desenvolvimento coma liberdade I Amartya Sea; rmduclo Laura Teixeira Mona; feria° denim Ricardo Donin Mendes. — Sao Paulo : Companhia des Lamas, 2010. Tftulo original: Development as freedom. ISBN 978-85-359-1646-1 1. Desenvolvimento economic° 2. Liberdade 3. Livre illiCiatin 4. Raises em desenvolvimento — CondicOes econ6micas r. Mendes, Ricardo DonincUi. u. nal°. a. Mendes, Ricardo Doninelli. ci. Titulo. 10-02358 COD - 338.9 indica pars catalog° sistermitico: 1. Desenvolv.imento economic° : Economia 338.9 2019 Todos os direitos desta edicao reservados a EDITORA SCHWARC7 Si.. Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 —Sao Paulo — Sp Telefone: (11) 3707-3500 w-vvwcompanhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br sobretudo das mulheres, na reducao das taxas de fecundidade. Taxas de fecundidade elevadas podem ser consideradas, corn grande justica, prejudiciais a qualidade de vida, especialmente das mulheres jovens, pois gerar e criar filhos recorrentemente pode ser muito danoso para o bem-estar e a liberdade da jovem mae. Em verdade, é essa relacao que faz corn que o ganho de poder das mulheres (por meio de mais empregos fora de casa, mais educacao escolar etc.) seja tao eficaz para a reducao das taxas de fecundidade, pois as mulheres jovens tern uma forte razio para moderar as taxas de natalidade, e seu potencial para influenciar as decisoes familiares aumenta quando elas ganham mais poder. Retomarei essa ,questio nos capitulos 8 e 9. Os que se consideram adeptos do comedimento financeiro as vezes se mostram ceticos quanto ao desenvolvimento huma- no. Entretanto, ha pouca base racional para essa inferencia. Os beneficios do desenvolvimento humano sio patentes, e podem ser mais completamente aquilatados corn uma visa° adequada e abrangente de sua influencia global. A consciencia dos custos pode ajudar a dirigir o desenvolvimento humano por canais que sejam mais produtivos — direta e indiretamente — para a quali7 dade de vida, mas nao ameaca sua importancia imperativa.m 0 que realmente deveria ser ameacado pelo comedimento financeiro e, corn efeito, o uso de recursos publicos para fina, lidades nas quais os beneficios sociais nao sao nada claros, ca mo, por exemplo, os v-ultosos gastos corn o poderio belie° em muitos paises pobres nos dias de hoje (gastos que corn &equal- cia sit) muitas vezes maiores do que o dispendio calico ern educacao basica ou sairde).62 0 comedimento financeiro deve- ria ser o pesadelo do militarista, e nao do professor primari° on da enfermeira do hospital. E um indicio do mundo desorde nado em que vivemos o fato de o professor primario e a enfer meira se sentirem mais ameacados pelo comedimento financei ro do que urn general do exercito. A retificacao dessa anomall requer nao a critica ao comedimento financeiro, e sim um ex me mais pragmatic° e receptivo de reivindicacoes concorren dos fundos sociais. 6. A IMPORTANCIA DA DEMOCRACIA NA ORLA DO GOLFO DE BENGALA, no extremo sul de Ban- gladesh e Bengala ocidental, na India, situa-se o Sunderban — que significa "bela floresta". E ali o habitat natural do celebre tigre real de Bengala, urn animal magnifico dotado de graca , velocidade, forca e uma certa ferocidade. Restam relativamente poucos deles atualmente, mas os tigres sobreviventes esti° pro- tegidos por uma lei que proibe caga-los. A floresta de Sunderban tambem é famosa pelo mel au i produzido em grandes aglome- rados naturais de colmeias. Os habitantes dessa regilo, deses- peradamente pobres, penetram na floresta para coletar o mel, que nos mercados urbanos alcanca orimos precos — chegando talvez ao equivalente em riipias a cinquenta Mares por frasco. Porem, os coletores de mel rambem precisam escapar dos tigres. Em anos bons, uns cinquenta e tantos coletores de mel sio mor- tos por tigres, mas o mimero pode ser muito major quando a situacao nao é tao boa. Enquanto os tigres sio protegidos, nada protege os miseraveis seres humanos que tentam ganhar a vida trabalhando naquela floresta densa, linda — e muito perigosa. Essa é apenas uma ilustracao da forca das necessidades eco- mimicas em muitos paises do Terceiro Mundo. Nao é dificil perceber que essa forca fatalmente pesa mais do que outras pre- ensiles, como a liberdade politica e os direitos civis. Se a pobre- impele os seres humanos a correr riscos tao terriveis — e a I vez a mortes tao terriveis — por urn on dois &Mares de mel, poderia ser estranho enfocar apenas sua liberdade formal e liber- dadcs politicas. 0 habeas-corpus pode nao parecer um conceit° omunicavel nesse contexto. Sem thivida deve-se dar prioridade, gumenta-se, a satisfacao de necessidades economicas, mesmo ititiO implicar urn comprometimento das liberdades politicas. 192 193 Nao é dificil pensar que concentrar-se na democracia e 14 111,4 4 dade polftica é urn luxo que urn pals pobre "nao se pode dal NECESSIDADES ECONOMICAS E LIBERDADES POLITICAS ConcepcOes como essas sao apresentadas corn muita I, quencia em debates internacionais. Por que se preocupar coil, sutileza das liberdades politicas diante da esmagadora brut.' I dade das necessidades economicas intensas? Essa questa°, bci como outras afins que refletem chividas quanto a urgencia ,1 liberdade politica e direitos civis, tomou vulto na conferen4 de Viena sobre direitos humanos, realizada em meados de 19') 1 e delegados de varios paises argumentaram contra a aprovac:414 geral de direitos politicos e civis basicos em todo o planeta, pal ticularmente no Terceiro Mundo. Em vez disso, afirmou-se, o enfoque teria de ser sobre "direitos economicos" relacionados a importantes necessidades materiais. Essa é uma linha de analise bem estabelecida, e foi vee- mentemente defendida em Viena pelas delegacOes oficiais de diversos paises em desenvolvimento, encabecados por China, Cingapura e outros paises do Leste Asiatic°, mas nab objetada pela India ou outros paises da Asia meridional e ocidental, nem pelos governos africanos. Existe nessa linha de analise a retorica frequentemente repetida: o que deve vir primeiro — eliminar a pobreza e a miseria ou garantir liberdade politica e direitos civis, os quais, afinal de contas, tern pouca serventia para os pobres? iftes? Afirmo que nao, que esse é urn modo totalmente de ver a forca das necessidades economicas ou de corn- 4 oiler a relevancia das liberdades polfticas. As verdadeiras 4t4 ies que tern de ser abordadas residem em outra parte, e 41 ,44em observar amplas inter-relacoes entre as liberdades pi 114 44;as e a compreensao e satisfacao de necessidades econo- ,, As relacoes nao sao apenas instrumentais (as liberdades 1 4, dit cas podem ter o papel fundamental de fornecer incentivos ollormacoes na solucao de necessidades economicas acentua- , I 1:4), mas tambem construtivas. Nossa conceituaeao de necessi- , I ides economicas depende crucialmente de discussoes e deba- priblicos abertos, cuja garantia requer que se faca questa° da liberdade politica e de direitos civis basicos. Tentaremos demonstrar que a intensidade das necessidades cconomicas aumenta e nao diminui — a urgencia das liber- (lades politicas. Tres diferentes consideracoes conduzem-nos tl a direcao de uma preeminencia geral dos direitos politicos e civi basicos: 1) sua importancia direta para a vida humana associada a capacidades basicas(como a capacidade de participacao politica e social); 2) seu papel instrumental de aumentar o grau em que as pessoas sac, ouvidas quando expressam e defendem suas rei- vindicacOes de atencao politica (como as reivindicacoes de necessidades economicas); 3) seu papel construtivo na conceituacao de "necessidades" (como a compreensao das "necessidades economicas" em urn contexto social). A PREEMTNENCIA DAS LIBERDADES POLITICAS E DA DEMOCRAC1A Sera esse urn modo sensato de abordar os problemas das necessidades economicas e liberdades polfticas em funcao de uma dicotomia basica que parece solapar a relevancia das liber- dades polfticas porque as necessidades economicas sao demasiado Essas diferentes consideracoes serao discutidas em breve, mas primeiro precisamos examinar os argumentos apresenta- dos por aqueles que veem urn conflito real entre, de urn lado, a liberdade politica e os direitos democraticos e, de outro, a satis- facao de necessidades economicas basicas. 195 194 ARGUMENTOS CONTRA AS LIBERDADES POLITICAS E OS MEMOS CIVIS A oposicao as democracias e liberdades civis e polft bisicas em 'raises desenvolvidos parte de tres direcoes dist tas. Primeiro, afirma-se que essas liberdades e direitos toIiw o crescimento e o desenvolvimento economic°. Essa creii denominada tese de Lee (o nome do ex-primeiro-ministro Cingapura, Lee Kuan Yew, que a formulou sucintamente), descrita brevemente no capitulo 1. Segundo, procurou-se demonstrar que, se aos pobres f° dado escolher entre ter liberdades politicas e satisfazer neces. sidades econOmicas, eles invariavelmente escolherao a segunL. alternativa. Assim, por esse raciocinio, existe uma contradicao entre a pratica da democracia e sua justificacao: a opiniao da maioria tenderia a rejeitar a democracia — dada essa escolha. Em uma variante diferente desse argumento, mas estreitamen- te relacionada, afirma-se que a questa°, de fato, nao é tanto o que as pessoas realmente escolhem, mas o que elas tern razdo para escolher. Como as pessoas tern razao para querer eliminar, antes de mais nada, a privacao economica e a miseria, tern razao suficiente para nao fazer questa° das liberdades politicas, que estorvariam suas prioridades reais. A presumida existencia de um profundo conflito entre liberdades politicas e a satisfacao das necessidades economicas constitui uma premissa impor- tante desse silogismo e, nesse sentido, essa variante do segtmdo argumento é dependente do primeiro (ou seja, da veracidade da tese de Lee). Terceiro, tern-se afirmado muitas vezes que a enfase sobre liberdade politica, liberdades formais e democracia é uma prio- ridade especificamente "ocidentar que contraria particular- mente os "valores asiaticos", os quais supostamente so mais voltados para a ordem e a disciplina do que para liberdades formais e liberdades substantivas. Argumenta-se, por exemplo, que a censura a imprensa pode ser mais aceitivel em uma socie- dade asiatica (devido a sua enfase sobre disciplina e ordem) do bcidente. Na conferencia de Viena de 1993, o ministro lacOes E,xteriores de Cingapura alertou que "o reco- ento universal do ideal dos direitos humanos pode ser dicial se o universalism° for usado para negar on masca- realidade da diversidade". 0 porta-voz do Ministerio das oes Exteriores da China chegou a registrar formalmente a nte Koposicio, aparentemente aplicavel a China e a outras s da Asia: "Os individuos tern de p8r os direitos do Estado s dos seus prOprios direitos".2 Este iltimo argumento requer urn exercicio de interpreta- cultural, que reservarei para uma discussao posterior, no tub 10.' Tratarei a seguir dos outros dois argumentos. DEMOCRACIA E CRESCIMENTO ECONo.M1CO 0 autoritarismo realmente funciona tao bem? Decerto 6 verdade que alguns Estados relativamente autoritarios (como Coreia do Sul, a Cingapura do ex-primeiro ministro Lee e a China pos-reforma) apresentaram ritmos de crescimento eco- nomico,mais rapidos do que muitos Estados menos autoritarios (como India, Costa Rica e Jamaica). Mos, na verdade, a tese de Lee baseia-se em informacoes muito seletivas e limitadas, e nao em uma analise estatistica dos dados abrangentes que estao disponiveis. Nao podemos realmente considerar o elevado crescimento economic° da China ou da Coreia do Sul na Asia uma prova defmitiva de que o autoritarismo e mais vantajoso para promover o crescimento economic° — tanto quanto nao podemos tirar a conclusio oposta corn base no foto de que o pals corn o crescimento mais rapid° da Africa (e urn dos mais rapidos do mundo), Botsuana, tern sido urn oasis de democracia naquele continente conturbado. Muito depende das circunstan- cias precisas. Na verdade, ha poucas evidencias gerais de que governo autoritario e supressio de direitos politicos e civis sejam real- mente beneficos para incentivar o desenvolvimento economic°. 196 197 0 quadro estatistico é bem mais complexo. Estudos empir sistematicos no dao sustentagio efetiva a afirmacao de existe um conflito entre liberdades politicas e desempo economico.4 0 encadeamento direcional parece dependcr muitas outras circunstancias e, embora algumas investigaco estatisticas apontem uma fraca relacio negativa, outras most tram uma relacao fortemente positiva. Tudo sopesado, a hipu. tese de que nit) existe relacio entre os dois fatores em nenhuiiit das directies é dificil de rejeitar. Como a liberdade politica e liberdade substantiva tern importancia propria, o argument() em favor das mesmas permanece nao afetado. Nesse contexto, é ainda importante mencionar uma questao mais basica de metodologia de pesquisa. Nao devernos apenas investigar relacoes estatisticas, mas tambem analisar e exami- nar atentamente os processos causais que estao envolvidos no crescimento e desenvolvimento econ8mico. As politicas e cir- cunstancias economicas que conduziram ao exit° economic° paises do Leste Asiatic° sao hoje em dia razoavelmente bem compreendidas. Embora diferentes estudos empiricos tenham enfases diversas, existe agora urn razoivel consenso quanto a uma lista geral de "politicas ateis", incluindo abertura a con- correncia, uso de mercados internacionais, alto nivel de alfa- betizagio e educacio escolar, reformas agrarias bem-sucedidas e provisio pablica de incentivos ao investimento, exportacao e industrializacao. Nao existe absolutamente nada que indi- que que qualquer uma dessas politicas seja inconsistente corn a democracia e precise realmente ser sustentada pelos elementos de autoritarismo que estavam presentes na Coreia do Sul, em Cingapura ou na China.' Ademais, ao julgar-se o desenvolvimento economic° nao d adequado considerar apenas o crescimento do PNB ou de alguns outros indicadores de expansio economica global. Precisamos tambem considerar o impacto da democracia e das liberdades politicas sobre a vida e as capacidades dos cidadios. E particu- larmente importante, nesse context°, examinar a relagao entre, de urn lado, direitos politicos e civis e, de outro, a prevencio de desastres (como as fomes coletivas). Os direitos politi- is dao as pessoas a oportunidade de chamar a atencio ente para necessidades gerais e exigir a acao pablica riada. A resposta do govern° ao sofrimento intenso do frequentemente depende da pressio exercida sobre esse no, e é nisso que o exercicio dos direitos politicos (votar, car, protestar etc.) potle realmente fazer diferenca. Essa é parte do papel "instrumental" da democracia e das liberda- polidcas. Precisarei retomar essa questa° importante mais ante neste capitulo. OS POBRES IMPORTAM-SE COM DEMOCRACIA E DIREITOS POLITICOS? Tratarei agora da segunda questa°. Os cidadlos dos pai- ses do Terceiro Mundo sao indiferentes aos direitos politicos e democraticos? Essa afirmacao, feita corn grande frequencia, mats uma vez baseia-se em pouquissimas comprovagoes empi- . 'leas (como ocorre corn a tese de Lee). 0 anico modo de com-. prova-la seria submeter o assuntoa urn taste democratic° em eleicOes livres corn liberdade de °posh* e expressio — preci- samente as coisas que os defensores do autoritarismo nao per- rnitem que acontecam. Nao esti nada claro de que modo se poderia verificar a pertinencia dessa proposicao nos casos em que os cidadaos comuns tern pouca oportunidade politica para expressar snas opinioes sobre a questa° e muito menos para con- testar as afirmacoes feitas pelos detentores do poder. A depre- ciacao desses direitos e liberdades é sem chivida parte do sistema de valores dos lideres governamentais de muitos paises do Tercei- ro Mundo, mas considera-la a opiniao do povo e afirmar algo que nao esti provado. Portanto, é interessante notar que, quando o governo india- no, sob a lideranca de Indira Gandhi, tentou usar um argumen- to semelhante na India para justificar a "emergencia" que ela erroneamente declarara em meados da decada de 1970, convo- 199 )°- cou-se urna deka° que dividiu os eleitores precisamen questa°. Nessa eleicao decisiva, disputada em boa medi base na aceitabilidade da "emergencia", a supressao de di politicos e civis basicos foi firmemente rejeitada, e o do indiano — um dos mais pobres do mundo — mom tao ardoroso para protestar contra a negacao de liberdado direitos basicos quanto para queixar-se de pobreza economli No moment° em que de certa forma houve um teste da prop'. ski° de que os pobres em geral nao se importam corn direitw, civis e politicos, as evidencias foram inteiramente contra rills 0 essa afirmagao. Consideracoes semelhantes podem ser sentadas observando-se a luta por liberdades democraticas 11.1 Coreia do Sul, Tailandia, Bangladesh, Paquistao, Myanm r (ou Birmania) e outras partes da Asia. De forma analoga, embora a liberdade politica seja amplamente negada na Africa, tern havido movimentos e protestos contra esse fato sempre que as circunstancias permitem, apesar de os ditadores milita- res terem dado poucas oportunidades para isso. E quanto a outra variante desse argumento, a de que os pobres tern razio para abrir mao dos direitos politicos e demo- craticos em favor de necessidades economicas? Esse argumento, como ja observado, depende da tese de Lee. Como esta tern pouca sustentacao empirica, o silogismo nao pode fundamentar o argumento. IMPORTANCIA INSTRUMENTAL DA LIBERDADE POLITICA Passarei agora das criticas negativas dos direitos politicos ao valor positivo desses direitos. A importancia da liberdade politica como parte das capacidades basicas já foi exposta nos capitulos anteriores. Coin razao valorizamos a liberdade formal e a liberdade substantiva de expressao e agao em nossa vida, nao sendo irracional que seres humanos — criaturas sociais que somos — valorizem a participagao irrestrita em atividades 'Socials. Akin disso, a firmaciro bem informada e nao emente imposta de nossos valores requer comunica- ogo abertos, e as liberdades politico e direitos civis er centrais para esse processo. Ademais, para expres- camente o que valorizamos e exigir que se de a devida o a isso, precisamos de liberdade de expressao e escolha ratica. passarmos da importancia direta da liberdade politica • seu papel instrumental, temos de considerar os incenti- politicos que atuam sobre os governos e sobre as pessoas e rupos que detem o poder. Os dirigentes tern incentivo para 4ouvir o que o povo deseja se tiverem de enfrentar a critica des- povo e buscar seu apoio nas eleigoes. Como já mencionado, lienhuma fome coletiva substancial jamais ocorreu em nenhum is independente corn uma forma democratica de govern° e iirna imprensa relativamente livre.6 Houve fomes coletivas em reinos antigos e sociedades autoritarias contemporfineas, em co- -„munidades tribais primitivas e em modernas ditaduras tecno- 1 :.Craticas, em economias coloniais governadas por imperialistas do norte e em paises recem-independentes do sul, governados por lideres nacionais desp6ticos ou por intolerantes partidos 6nicos. Mas nunca uma fome coletiva se materializou em urn f: pais que fosse independente, que tivesse eleicoes regularmen- te partidos de oposicao para expressar criticas e que permitis- se aos jornais noticiar livremente e questionar a sabedoria das politicas governamentais sem ampla censura.7 0 contraste das experiencias sera discutido no proximo capitulo, que trata espe- cificamente das fomes coletivas e outras crises. 0 PAPEL CONSTRUTIVO DA LIBERDADE POLITICA Os papeis instrumentais das liberdades politicas e dos direitos civis podem ser muito substanciais, mas a relacio entre necessida- des econOmicas e liberdades politico pode ter tambem um aspec- to constnitivo. 0 exercicio de direitos politicos basicos torna mais 200 201 provivel nao so que haja uma resposta politica a necessidades nomicas, como tambern que a propria conceituagao — inch! i n a compreensao — de "necessidades economicas" possa requcrer ' exercicio desses direitos. De fato, pode-se afirmar que uma co preensao adequada de quais sac, as necessidades econOmicas Net conterido e sua forgo — requer discussao e dialog°. Os direitoa politicos e civis, especialmente os relacionados a garantia de dis. cussab, debate, critica e dissensao abertos, sao centrais para as processos de geracio de escolhas bem fundamentadas e refletklas, Esses processos sao cruciais para a formacao de valores e priorida. des, e nao podemos, em geral, tomar as preferencias como dadas independentemente de discussao publica, on seja, sem levar em conta se sao on nao permitidos debates e dialogos. 0 alcance e a eficacia do dialog° aberto frequentemente sao subestimados quando se avaliam problemas sociais e politicos. For exemplo, as discussoes publicas tern um papel importante a desempenhar na reducao das altas taxas de fecundidade que caracterizam muitos paises em desenvolvimento. Ha, corn efei- to, muitas provas de que o drastic° declinio das taxas de fecun- didade verificado nos Estados indianos corn maiores proporcoes de pessoas alfabetizadas foi muito influenciado pela discussio publica dos efeitos danosos das taxas de fecundidade altas, espe- cialmente sobre a vida de mulheres jovens e tambem sobre toda a comunidade. Se, digamos, em Kerala ou Tamil Nadu, emer- giu a concepcio de que uma familia feliz nos tempos atuais é uma famIlia pequena, é porque houve muita discussio e debate para que essas perspectivas se formassem. Kerala tern hoje uma taxa de fecundidade de 1,7 (semelhante as da Gra-Bretanha e Franca, e muito inferior a da China, que é de 1,9), e isso foi obti- do sem coercio, mas principalmente por meio da emergencia de novos valores — urn processo no qual os dialogos politicos e sociais tiveram papel fundamental. 0 alto nivel de alfabetizacao da populacao de Kerala, sobretudo das mulheres, mais elevado do que o de qualquer provincia da China, muito contribuiu para possibilitar esses dialogos sociais e politicos (no capitulo seguinte discorrerei mais sobre esse tema). 202 arras e privagoes podem ser de varios tipos — alguns Osiveis de solugao social do que outros. A totalidade das odes humanas seria uma base bruta para identificar nos- . cesstdades". Por exemplo, ha muitas coisas que poderia- , r boas razoes para valorizar se elas fossem exequiveis — amos desejar ate mesmo a imortalidade, como Maitreyee. nao as vemos como "necessidades". Nossa concepcap de osidades relaciona-se as ideias que temos sobre a natureza :e1 de algumas privacoes e a compreensio do que pode ser sobre isso. Na formagio dessas compreensoes e crengas, as Ssoes piiblicas tern um papel crucial. Os direitos politicos, uindo a liberdade de expressio e discussao, sao nao apenas trais na inducao de respostas sociais a necessidades econo- icas, mas tambena centrais para a conceituacao das proprias •cessrdades econOmicas. A ATUKAO DA DEMOCRACIA A relevancia intrinseca, o papel protetor e a importancia construtiva da democracia podem ser realmente muito abran- ,- gentes. Porem,ao apresentar esses argumentos sobre as vanta- gens da democracia, corre-se o risco de enakecer excessiva- mente sua eficacia. Como já mencionado, as liberdades politicas e as liberdades formais sao vantagens permissivas, cuja eficacia depende do modo como sao exercidas. A democracia tern sido especialmente bem-sucedida na prevencio de calamidades que sao faceis de entender e nas quais a solidariedade pode atuar de uma forma particularmente imediata. Muitos outros proble- mas nao sao tio acessiveis assim. Por exempt:), o exito da India na erradicacao da fome coletiva nao teve um correspondente na eliminacio da subnutricao regular, na solucao do persistente analfabetismo on das desigualdades nas relagoes entre os sexos (como discutido no capitulo 4). Enquanto é facil dar urn miter politico ao flagelo das vitimas da fome coletiva, essas outras pri- vacoes requerem uma analise mais profunda e um aproveita- 203 •:•;•.; memo mais eficaz da comunicacao e da participtvo —em suma, uma pratica mais integral da democracia, A inadequacao da pratica aplica-se tambem a a falhas em democracias mais maduras. Por exemplo, ,1•• • • dinarias privacoes nas areas de servicos de sande, (-di?, e meio social dos afro-americanos nos Estados Uri ido., tribuem para os indices excepcionalmente elevados tic talidade dessa populacao (como vimos nos capitulos I 6 isso evidentemente nao é evitado pela atuacao da demo, • •, • americana. E preciso ver a democracia como criadora dc 11,,, conjunto de oportunidades, e o uso dessas oportunidad• requer uma analise diferente, que aborde a prdtica da demo cracia e direitos politicos. Nesse aspecto, a baixa porcentai t w • de yotantes nas eleicoes americanas, sobretudo de afro-a•1 ricanos, bem como outros sinais de apatia e alienacao 11:1( podem ser ignorados. A democracia .nao serve como urn reinc dio automatico para doencas do mesmo modo que o quinino atua na cura da malaria. A oportunidade que ela oferece tem de ser aproveitada positivamente para que se obtenha o efeito desejado. Essa é, evidentemente, uma caracteristica basica das liberdades em geral — muito depende do modo como elas sdo realmente exercidas. A PRATICA DA DEMOCRACIA E 0 PAPEL DA 0POSIcA0 As realizacaes da democracia depend= ndo so das regras e procedimentos que sdo adotados e salvaguardados, como tam- bem do modo como as oportunidades sao usadas pelos cidadaos. Fidel Valdez Ramos, o ex-presidente das Filipinas, explicou essa questa() corn grande dareza em um discurso que proferiu em novembro de 1988 na Australian National University: Sob um regime ditatorial, as pessoas nao precisam pen- sar — nao precisam escolher — nao precisam tomar deci- soes ou dar seu consentimento. Tudo o que precisam fazer 204 •1 er. Essa foi uma licao arnarga aprendida corn a • • it , • •• •• via politica filipina ndo muito tempo atras. Em • ••id roo, a democracia nao pode sobreviver sem virtude ,t hi 0 desafio politico para os povos de todo o mundo • • t t ton te nao,e apenas substituir regimes autoritarios por t• • • •• t••1••iticos. E, alem disso, fazer a democracia funcionar • • t • • ,1,, pessoas comuns.8 dwnocracia realmente cria essa oportunidade, que esta ,, 1•• •• titada tanto a sua "importancia instrumental" como a seu p •• ••,1 construtivo". Mas a forca corn que as oportunidades sao •••• t‘ citadas depende de varios fatores, como o vigor da politi- • • • imitiparticlaria e o dinamismo dos argumentos morais e da lação de valores.9 Na India, por exemplo, prevenir as fomes • • •I• tivas e a fome cronica já era prioridade total na epoca da •••• vendencia (como fora tambem na Irlanda, corn sua pro- w itt fome coletiva sob o dominio britanico). 0 ativismo dos rticipantes politicos foi muito eficaz na prevencdo das fomes coletivas e na condenacao drastica dos governos por permitir title ocorressem flagrantes fomes crOnicas, e a rapidez e a forca dose processo fizeram da prevencao dessas calamidades uma prioridade inescapavel de cada governo. Ainda assim, sucessi- vos partidos de oposicao tern se mostrado muito doceis, ndo condenando o analfabetismo difuso ou a prevalencia de uma subnutricao nao extrema, mas grave (especialmente entre as crianeas), ou ainda a nao implementacao de programas de refor- ma agraria anteriormente aprovados por lei. Essa docilidade da oposicao tern perrnitido a sucessivos governos negligenciar inescrupulosamente essas questOes vitais de politica pnblica e ficar impunes. Na verdade, o ativismo dos partidos de oposiedo é uma forca importante tanto nas sociedades ndo democraticas quanto nas democraticas. Por exemplo, pode-se mostrar que, a despeito da ausencia de garantias democraticas, o vigor e a persistencia da oposicao na Coreia do Sul pre-democratica e ate mesmo no Chile de Pinochet (coin imensas dificuldades) foram indi- 205 as is -6 as ,,; „•*iyr retamente eficazes na condugdo desses paises mesino .I/If restauragdo da democracia. Muitos dos programas sn. I!, os beneficiaram se destinaram pelo menos em parte ,1 a atratividade da oposigdo, que, desse modo, logrou s( mesmo antes de chegar ao poder.1" Outra area que tambem requer uma participagao v sa, envolvendo criticas e indicagOes sobre as reformas, 1 persistencia da desigualdade entre os sexos. Quando essc.; blernas negligenciados se tornam objeto de debate e con) tos priblicos, as autoridades tern de dar alguma respost -a. uma democracia, o povo tende a conseguir o que exige c, urn modo mais crucial, normalrnente nao consegue o que I ii exige. Duas das areas negligenciadas de oportunidade social :1 India — a igualdade entre os sexos e a educagdo elemental- agora estdo recebendo mais atengdo dos partidos de oposig:Io e, consequentemente, das autoridades legislativas e executiva:„ Embora os resultados finais venham a emergir apenas no futri- ro, no podemos deixar de notar as varias iniciativas que ja estao ocorrendo (como a proposta de lei requerendo que pelo rnenos um tergo dos membros do parlamento indiano seja compost° por mulheres e urn programa de educagao escolar para estender o direito a educagdo elernentar a um grupo substancialmente major de criangas). ,De fato, pode-se mostrar que a contribuigdo da democracia na India nao se limitou, de modo algum, a prevengdo de desas- tres economicos como as fomes coletivas. Apesar dos limites de sua pratica, a democracia den a India uma certa estabilidade e seguranga sobre as quais numerosas pessoas se mostravam muito pessirnistas quando o pals se tornou independente em 1947. A India possuia entao urn governo nao experimentado, passara por uma divisao ainda no assimilada e apresentava alinhamentos politicos confusos, combinados corn a violencia grupal e a desordem social bem disseminadas. Era dificil ter fe no futuro de uma India unida e democratica. Entretanto, meio seculo depois encontramos uma democracia que, considerando todos os altos e baixos, tern funcionado razoavelmente bem. As 206 politicas em grande medida tern sido disputadas den- procedimentos constitucionais. Governos ascenderam ii ,,egundo regras eleitorais e parlamentares. A India, ulibinagdo desajeitada, inauspiciosa e deselegante de 40,us. sobrevive e funciona notavelmente bem como uma t, I m polftica corn urn sistema democratic° — efetivamente it tdo coeso por sua democracia operante. (1 India tambem sobreviveu ao tremendo desafio de pos- ,o (I iversas linguas importantes e urn espectro de religioes mii a heterogeneidade extraordinaria de crencas e culturas. 11,v iarnente, diferengas religiosas e grupais sao vulneraveis a ploracao por politicos sectarios, e foram realmente usadas inaneira em varias ocasioes (inclusive em anos recentes), Ilisando grande consternagao no pals. Mas o fato de essa vio- ri cia sectaria ter sido recebida corn tal consternagao e de todos setores substanciais da nagao terem condenado tais atos for- nece, em iltirna analise, a principalgarantia democratica contra ;I exploragao estritamente faccionaria do sectarismo. Isso é essencial para a sobrevivencia e a prosperidade de urn pals tao marcantemente variado como a India, que pode ter uma maioria hi nciu, mas tambem é o terceiro major pals mugulmano do mundo, no qual vivem milhOes de cristaos juntamente corn a maioria dos siques, parses e jainistas do globo. OBSERVAc-A0 FINAL Desenvolver e fortalecer urn sistema democratic° é um corn- ponente essencial do processo de desenvolvimento. A importan- cia da democracia reside, como procuramos mostrar, ern tres virtudes distintas: (1) sua importancia intrinseca,(2) suas contribui- Oes instrumentais e (3) seu papel construtivo na criagao de valores e normas. Nenhuma avaliacao da forma de governo democratica pode ser completa sem considerar cada uma dessas virtudes. Apesar de suas limitac'Oes, as liberdades politicas e os direi- tos civis sao usados eficazmente corn bastante frequencia. 207 .kraM1' • 209 — Mesrno nas Areas em que ate agora nao foram 11»,),), existe a oportunidade de fazer corn que venha in ;1 ))) permissor dos direitos politicos e civis (permitin( I, ) encorajando — discussoes e debates abertos, polii 1, .) , tiva e oposicao sem perseguicao) aplica-se a urn (I( ),111»») arnplo, embora tenha sido mais eficaz em algumas cc1 ern outras. Sua comprovada utilidade na prevencao econOmicos 6, em si, importantissima. Quando a cc )c'. rem bem, a ausencia desse papel da democracia podc ccc fortemente sentida. Mas ele fala muito alto quando a piora, por uma razao ou por outra (por exemplo, a ree(nt, financeira no Leste e Sudeste Asiatic° que conturbou economias e deixou destituidas muitas pessoas). Os incunt 1, ), politicos fornecidos pelo governo democratic° adquireni 1,,i ), de valor pratico nesses momentos. Entretanto, embora devamos reconhecer a importancia instituicoes democraticas, elas nao podem ser vistas como dis positivos mecanicos para o desenvolvimento. Seu uso é condi cionado por nossos valores e prioridades e pelo uso que fazen uc das oportunidades de articulacao e participacdo disponiveis. 0 papel de grupos oposicionistas organizados é particularmenty importante nesse contexto. Discussoes e debates ptiblicos, permitidos pelas liberda- des politicas e os direitos civis, tambem podem desempenhar urn papel fundamental na formacao de valores. Na verdade, ate mesmo a identificacao de necessidades é inescapavelmente inflnenciada pela natureza da participacao e do dialog° ptibli- cos. Nao so a forca da discussao publica é urn dos correlatos da democracia, corn urn grande alcance, como tambem seu cultivo pode fazer corn que a propria democracia funcione melhor. Por exemplo, a discussao ptiblica mais bem fundamentada e menos marginalizada sobre questOes ambientais pode ser nao apenas benefica ao meio ambiente, como tambem importante para a sande e o funcionamento do proprio sistema democratico." Assim como é importante salientar a necessidade da demo- cracia, tambem é crucial salvaguardar as condicOes e circuns- 1, .1111(.1t, a amplitude e o alcance do processo ), ilia is valiosa que a democracia seja como uma (le oportunidade social (reconhecimento que cicii defesa vigorosa), existe ainda a necessidade cs caniinhos e os meios para faze-la funcionar lizar seus potenciais. A realizacao da justica social ))))() so de formas institucionais (incluindo regras e »,» ))1,1(,;(ies democraticas), mas tambern da pratica )) efeti- pcc ccIicI razoes para considerar-se a questa° da pratica )111c lica Interne importante nas contribuicoes que podemos )1, is direitos civis e das liberdades politicas. Esse 6 urn ) 1),c lifrentado tanto por democracias bem estabelecidas 1‘, 1),;stados Unidos (especialmente corn a participacao -1,t) ,•11) iiida de diversos grupos raciais) como por democracias )), cc) xentes. Existem problemas comuns e tambem problemas 1 1)»es. 208 Page 1 Page 2 Page 3 Page 4 Page 5 Page 6 Page 7 Page 8 Page 9 Page 10
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