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1 FACULDADE ÚNICA DE IPATINGA 2 Enrique Carlos Natalino Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (2020). Tem doutorado-sanduíche no German Institute of Global and Area Studies (Alemanha). Possui Mestrado em Administração Pública pela Escola de Governo da Fundação João Pinheiro (2011). É graduado em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) (2006). Tem experiência docente como professor nos cursos de Direito, Administração, Economia e Relações Internacionais da Pontíficia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e da Faculdade de Direito Novos Horizontes. ÉTICA PROFISSIONAL ÉTICA E CIDADANIA 1ª edição Ipatinga – MG 2021 3 FACULDADE ÚNICA EDITORIAL Diretor Geral: Valdir Henrique Valério Diretor Executivo: William José Ferreira Ger. do Núcleo de Educação a Distância: Cristiane Lelis dos Santos Coord. Pedag. da Equipe Multidisciplinar: Gilvânia Barcelos Dias Teixeira Revisão Gramatical e Ortográfica: Naiana Leme Camoleze Revisão/Diagramação/Estruturação: Bárbara Carla Amorim O. Silva Carla Jordânia G. de Souza Rubens Henrique L. de Oliveira Design: Brayan Lazarino Santos Élen Cristina Teixeira Oliveira Maria Luiza Filgueiras © 2021, Faculdade Única. É proibida a reprodução total ou parcial deste livro em qualquer meio sem autorização escrita do editor. T314i Teodoro, Jorge Benedito de Freitas, 1986 - . Introdução à filosofia / Jorge Benedito de Freitas Teodoro. – 1. ed. Ipatinga, MG: Editora Única, 2020. 113 p. il. Inclui referências. ISBN: 978-65-990786-0-6 1. Filosofia. 2. Racionalidade. I. Teodoro, Jorge Benedito de Freitas. II. Título. CDD: 100 CDU: 101 Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Melina Lacerda Vaz CRB – 6/2920. NEaD – Núcleo de Educação as Distancia FACULDADE ÚNICA Rua Salermo, 299 Anexo 03 – Bairro Bethânia – CEP: 35164-779 – Ipatinga/MG Tel (31) 2109 -2300 – 0800 724 2300 4 www.faculdadeunica.com.br 5 Menu de Ícones Com o intuito de facilitar o seu estudo e uma melhor compreensão do conteúdo aplicado ao longo do livro didático, traremos ícones ao lado dos textos. Eles são para chamar a sua atenção para determinado trecho do conteúdo, cada um com uma função específica, mostradas a seguir: São sugestões de links para vídeos, documentos científico (artigos, monografias, dissertações e teses), sites ou links das Bibliotecas Virtuais (Minha Biblioteca e Biblioteca Pearson) relacionados com o conteúdo abordado. Trata-se dos conceitos, definições ou afirmações importantes que você deve ter um maior grau de atenção! São exercícios de fixação do conteúdo abordado em cada unidade do livro. É para o esclarecimento do significado de determinados termos/palavras mostrados ao longo do livro. Este espaço é destinado à reflexão sobre questões citadas em cada unidade, para associação com suas ações, seja no ambiente profissional ou em seu cotidiano. 6 SUMÁRIO ÉTICA E MORAL: CONCEITOS E EVOLUÇÃO HISTÓRICA ......................... 8 1.1 O QUE É ÉTICA E MORAL? ...................................................................................... 8 1.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS CONCEITOS ............................................................ 9 1.3 A RELAÇÃO ENTRE ÉTICA E MORAL ..................................................................... 11 FIXANDO O CONTEÚDO ...................................................................................... 15 ÉTICA E MORAL NAS RELAÇÕES SOCIAIS .............................................. 20 2.1 ÉTICA, MORAL E DIREITO ...................................................................................... 20 2.2 ÉTICA NA POLÍTICA .............................................................................................. 23 2.3 ÉTICA DAS CONVICÇÕES E ÉTICA DA RESPONSABILIDADE .............................. 25 FIXANDO O CONTEÚDO ...................................................................................... 29 ÉTICA, MORAL E POLÍTICA: A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA ............. 34 3.1 O CONCEITO DE CIDADANIA E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA ........................... 34 3.2 CIDADANIA E DIREITOS FUNDAMENTAIS ............................................................ 39 3.3 A CIDADANIA NO MUNDO GLOBALIZADO ........................................................ 41 FIXANDO O CONTEÚDO ...................................................................................... 48 CIDADANIA NO BRASIL .......................................................................... 53 4.1 A AFIRMAÇÃO DA IDEIA DE CIDADANIA NO BRASIL ........................................ 53 4.2 A CIDADANIA NO IMPÉRIO ................................................................................. 56 4.3 A CIDADANIA NA REPÚBLICA ............................................................................. 57 4.4 A CIDADANIA NA REDEMOCRATIZAÇÃO .......................................................... 59 FIXANDO O CONTEÚDO ...................................................................................... 62 DESAFIOS DO EXERCÍCIO DA CIDADANIA NO BRASIL ......................... 69 5.1 A CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA APÓS 1988 ........................................... 69 5.2 OS DESAFIOS PARA O EXERCÍCIO PLENO DA CIDADANIA ............................... 71 5.3 A CIDADANIA E AS DESIGUALDADES SOCIAIS .................................................. 73 FIXANDO O CONTEÚDO ...................................................................................... 77 ÉTICA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO: O CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL ......................................................................................... 81 6.1 ÉTICA, MERCADO E INSTITUIÇÕES ....................................................................... 81 6.2 A RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS ORGANIZAÇÕES ....................................... 82 6.3 ÉTICA NAS BUROCRACIAS PÚBLICAS E PRIVADAS............................................. 84 6.4 O CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL .................................................................. 86 6.4.1 Os Conselhos Profissionais de Ética ............................................................ 87 6.5 ÉTICA E CIDADANIA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO .......................................... 90 FIXANDO O CONTEÚDO ...................................................................................... 93 RESPOSTAS DO FIXANDO O CONTEÚDO ............................................... 97 REFERÊNCIAS ........................................................................................... 98 UNIDADE 01 UNIDADE 02 UNIDADE 03 UNIDADE 04 UNIDADE 05 UNIDADE 06 7 CONFIRA NO LIVRO A Unidade 1 aborda a definição dos conceitos de Moral e de Ética à luz do contexto histórico. Os conceitos de Moral e de Ética , como serão vistos, se referem a objetos distintos, mas, guardam relações estreitas entre si. A Unidade 2 trata da aplicação dos conceitos de Ética e de Moral nas relações sociais. Direito e Política, dois campos das relações sociais, dialogam diretamente com a Moral e com a Ética. Esta unidade aborda ainda a diferença entre Ética das Convicções e Ética da Responsabilidade, dois conceito essenciais para a compreensão da ética no contexto social. A Unidade 3 aborda a temática da Ética, da Moral e da Política na construção do sentimento de cidadania. Aborda ainda a relação entre cidadania e a afirmação histórica dos direitos fundamentais, base da democracia.A unidade finaliza com a análise do fenômeno da cidadania em contexto de globalização. A Unidade 4 analisa como se deu a construção do pensamento sobre cidadania no Brasil, da Colônia até a República, à luz das conquistas democráticas. Será visto de que modo a Constituição de 1988 pavimentou o caminho para o exercício da democracia em um contexto de liberdades, de separação de Poderes e de maior autonomia para as instituições. A Unidade 5 trata do desenvolvimento da cidadania no Brasil após a promulgação da Constituição de 1988. Dessa forma, analisa como os cidadãos podem exercer seus direitos e quais os limites de atuação no Estado na salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais. Por fim, aborda a problemática do patrimonialismo e como afeta o Estado de Direito. A Unidade 6 analisa as questões éticas à luz das relações de trabalho. Compreenderá uma discussão sobre a ética no mercado, nas instituições e na burocracia, a responsabilidade social das organizações e a ética nas burocracias. Por fim, analisa o fenômeno da normatização de comportamentos éticos, o Código de Ética Profissional e a importância da ética e da cidadania no mundo do trabalho. 8 ÉTICA E MORAL: CONCEITOS E EVOLUÇÃO HISTÓRICA “A razão vos é dada para discernir o bem e o mal” Dante Alighieri, poeta italiano 1.1 O QUE É ÉTICA E MORAL? Ética e moral são conceitos distintos, mas que guardam estreita relação entre si. A ética é a tradução etimológica do termo ethos (hábito, habitualidade, com- portamento reiterado). O hábito revela a personalidade. A questão da ética é essen- cialmente prática e envolve pensar sobre aquilo que o sujeito faz enquanto ser que faz escolhas e toma decisões (agente) ou que é impacto pelas escolhas ou pelas decisões de outras pessoas (reagente). Em outras palavras, a ética é a liberdade interior de cada indivíduo, isto é, aquilo que cada um considera ser bom ou ruim, vicioso ou virtuoso para si mesmo. O conceito de moral, por sua vez, diz respeito aos grandes paradigmas e valores de um determinado grupo social em um dado tempo. Trata-se de um consenso coletivo para o comportamento dos indivíduos e a condução da vida em comunidade. Há um convívio dialético entre ética (do indivíduo) e moral (do grupo). A decisão ética não é simples fruto da cultura, mas também da história pessoal do indivíduo. Sócrates, um dos maiores filósofos da Humanidade, questionava os valores da sociedade da Grécia Antiga. Acusado de corromper o juízo da sociedade atensiense, Sócrates perguntava, entre outras questões, o que era o bem e o que era o mal, algo sem resposta até os dias de hoje. O ato socrático de questionar a moral estabelecida em sua época era visto como algo subversivo e desestabilizador, pois colocava em dúvida as verdades estabelecias. A Antropologia, ao estudar o homem como produtor de cultura, tem grande contribuição a dar ao estudo da ética. A Psicologia, por seu turno, discute como o indivíduo toma suas decisões pessoais. Por que tomou essa decisão? Do mesmo modo, a História e a Sociologia são ciências que ajudam a iluminar o entendimento da moral e da ética. UNIDADE 9 A Ética, entretanto, não é uma ciência. Seu objetivo não é produzir respostas absolutas para os problemas humanos. O que a Ética busca é refletir acerca da ação humana e sobre os seus valores fundamentais. Os valores não são permanentes, imutáveis ou aplicáveis a todas as situações. Sempre temos que decidir e fazer escolhas. Os indivíduos podem decidir de acordo com a moral do grupo ou contra a essa moral. Será que tudo o que é lícito é moral? Será que tudo o que é legal é ético? Os valores são relativos e as decisões humanas são tomadas no calor das circunstâncias. A cada momento temos que decidir o que é bom ou ruim, o que fazer e o que não fazer, com base em nossa condição de indivíduo. 1.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS CONCEITOS O objeto da reflexão ética é o comportamento humano. É impossível sustentar uma comunidade imensa de pessoas vivendo sob uma única ética. Da mesma forma, é tarefa difícil estabelecer o limite entre o ético e o antiético. Isso se traduz em uma sensação de não se identificar com clareza a barreira entre o que se pode e o que não se pode fazer. A principal característica das sociedades contemporâneas é a insegurança. Isso se traduz em uma sensação permanente de desorientação social, confusão e incerteza. Existe um padrão de comportamento? E um valor universal? Qual é o valor absoluto? Não há respostas fixas para estas perguntas. Se por um lado a flexibilização dos valores universais traz uma sensação inédita de liberdade, por outro a ausência de paradigmas de comportamentos dificulta enormemente a decisão. A multiplicidade de escolhas e de oportunidades passa a ser um instrumento opressor da liberdade. As dúvidas e as inseguranças passam a ser frequentes. Como resposta a este cenário de incertezas, ocorre a chamada “tribalização” da sociedade: as pessoas não se comportam segundo valores universais aplicáveis a todos, mas dentro dos valores do seu grupo (MAFFESOLI, 1997). Essa instabilidade traz grandes impactos nos campos político, jurídico, social, cultural e religioso. Um 10 comportamento que os indivíduos buscam na tentativa de lidar com a insegurança é a busca do passado ou de padrões tradicionais assentados em valores religiosos e familiares. Os grandes paradigmas da vida moderna passam por uma revisão profunda. Isso produz uma série de transformações sociais. A crescente individualização das responsabilidades sociais leva à desagregação dos instrumentos sociais de decisão consensual, como a política. O Estado e o Direito também parecem não ser mais instrumentos eficazes para balizar os comportamentos humanos. Ademais, existe a mentalidade que supervaloriza o homem capitalista em face da dimensão do social, do coletivo ou do político. Diante da sensação de desgoverno das funções estatais, da incapacidade de atender às necessidades fundamentais e da sensação de insegurança generalizada, as categorias universais são substituídas por valores individuais. A falta de parâmetros morais leva à insegurança nas decisões. Cada um passa a valer pelo que produz e pelo que consome. É mais importante ter do que ser. O mercado determina o que é a essência. E quem está fora do mercado? E quem não tem poder de troca? Neste contexto, a dignidade da pessoa humana acaba perdendo sentido e as pessoas que estão fora da relação de consumo são desconsideradas enquanto sujeitos. Nessa linha, a pergunta fundamental da ética (como agir) encontra uma resposta retórica nas questões relativas à exclusão social. Os povos antigos não conheceram a diferença entre o mundo da ação política, o mundo do direito e o mundo do exercício do pensamento. Na Antiguidade, há uma certa integralidade dos pensamentos. Eles não tratavam as coisas de modo cartesiano, departamentalizando o saber humano. Os antigos lidavam com o mundo de modo muito integrado; não havia a separação entre direito e a moral. As sociedades medievais também não faziam essa distinção: havia um princípio geral que regia todas as áreas. O direito natural era a razão de tudo. A modernidade construiu a diferença entre direito e moral, principalmente, a partir do pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant. A filosofia de Kant diferenciou o universo da norma moral e o universo da norma jurídica. Kant influenciou o jurista austríaco Hans Kelsen na construção da sua teoria pura do direito. Kelsen separou direito e moral para distanciá-los; ele queria determinar a autonomia do Direito. Para Kelsen, direito é o conjunto de normas postas pelo Estado (KELSEN, 1998). 11 A tarefa do jurista não era avaliar a justiça do sistema,mas compreender os critérios de validade das normas de acordo com a hierarquia. Para Kelsen (1998), a questão da justiça não pertencia ao direito. Dessa forma, criou um abismo entre direito (decidir de acordo com o ordenamento) e moral (discutir os valores). 1.3 A RELAÇÃO ENTRE ÉTICA E MORAL O estudo da Ética busca entender todas as formas de mentalidade e estar a par de que um ethos dominante não existe sem que haja uma camada social dominante que o proclame. Toda vez que se definem normas de comportamento consideradas adequadas, passa a haver um aparato para proteger essas normas. Nesse sentido, ao estudarmos a ética devemos também nos preocupar em pensar a diversidade das alternativas de comportamento possíveis. Importante enfatizar, nesse sentido, a relação entre ética, arbítrio e pluralidade. A universalização de qualquer tipo de verdade ética nos leva à definição de patamares rígidos. Torna- se a moral de uma classe dominante sobre a moral das classes dominadas. O que está em questão é a construção do compartilhamento dos valores. Dessa forma, todo sistema ético busca, em primeiro lugar, proteger os valores que consagra. Muitos grupos sociais constroem sistemas de dominação com base na política, na religião ou em outros sistemas que formam a consciência de um grupo. Dessa maneira, a ética busca eliminar as diferenças e estabelecer regras de padrões de comportamento. No entanto, os valores não são tão absolutos que não possam dialogar com valores opostos. Um sistema ético, apesar de defender as suas verdades, deve praticar a tolerância, pois a moral de uns não pode se impor à moral de outros. Valores morais são passíveis de ajuste e de confronte com outros. Os grupos culturais opostos podem construir instrumentos para a abertura recíproca de valores. Como é possível construir uma ética global em um contexto de diferenças entre os povos, nacionalismo exacerbado, contingentes humanos excluídos e oposição entre culturas? O filósofo alemão Juergen Habermas defende que só existe verdade en- quanto experiência intersubjetiva. O autor se posiciona em confronto direto com a verdade fundada na reflexão individual. Para Habermas, a verdade se constrói a partir do diálogo entre sujeitos que pensam diferentes. Ou seja, a chave para a busca 12 da verdade é a aceitação da divergência como algo legítimo e natural. Somente por meio da comunicação se pode alcançar a colaboração, o entendimento e o consenso. A moral é algo que avalia o outro para julgá-lo como pertencente ou não pertencente a uma comunidade. O próprio direito vem associado a uma moral. A linguagem transpassa valores por meio de certos termos e de palavras que expressam visões de mundo. E elas se expressam por meio de cláusulas gerais: bom, ruim, justo, injusto etc. A linguagem recebe uma grande bagagem da moral. Ela também é transmissora desses valores. Todas as práticas discursivas são transmissivas de valores. O indivíduo que se vale da linguagem pratica juízos, requalificando-os o tempo todo. A ética, portanto, significa esfera da ação individual. Está contida dentro de um circuito de liberdade que lhe pertence. A moral é a grande instituição social que acaba sendo o arcabouço de sustentação de certas atitudes individuais respaldadas em conceitos preexistentes. A moral, por outro lado, procura moldar o indivíduo a modelos sociais convenientes, não necessariamente bons. Configura, dessa forma, uma instituição social que produz mecanismos de controle e determinam a execução de seus preceitos. Escolas e normas jurídicas são exemplos de instituições que contribuem para a homogeneização dos indivíduos. Instituições trazem estabilidade para o grupo e para a sociedade. A moral é um mecanismo de pasteurização dos comportamentos. Ela permite julgar o que é conforme e o que é desconforme. Ela promove a agregação ou a segregação do outro. Nas relações morais é preciso verificar a relação de poder para determinar quais são os comportamentos adequados. A moral pode ser o principal instrumento ideológico de exercício do poder. A moral disfarça, suaviza e amortece a prática de poder. Ou seja, é um instrumento de adequação das identidades individuais. A moral fornece abrigo para a estrutura de poder. Ela pratica uma espécie de controle conveniente em um certo contexto. Exemplificando, na Idade Média, era clara a associação entre poder e moral. A moral imposta era a da Igreja Católica, que detinha o poder. A relação entre moral e poder pertence à própria dinâmica das relações sociais. Nesse sentido, é preciso observar com cautela os valores morais. Um curso de ética não é um curso de moral. A filosofia ética é uma prática aberta de reflexão. É necessário dimensionar e ponderar os valores, para avaliar se o valor é realmente 13 válido. A moral do meio é a prática do exercício de dominação? Nessa direção, a ética se vale da capacidade de resistência que o indivíduo tem em face das pressões externas do meio. É a sua capacidade de ponderar entre os conflitos internos e os valores das instituições sociais. Já a moral se baseia em um conjunto das sutis e não explícitas manifestações de poder sobre os indivíduos. A moral está inserida num contexto sócio-histórico. Não devemos incorporar a moral sem questioná-la, sob pena de nos transformarmos em meros reprodutores dos conceitos morais do nosso tempo. O comportamento ético pressupõe, dessa forma, o questionamento da moral antes de absorvê-la. A moral defende o passado, o que foi consagrado e nos convida a reproduzir esses valores. A ética flerta com o novo. O comportamento ético permite requalificar os valores. Isso dá abertura ao processo de alteração dos valores. Os indivíduos podem resistir aos valores morais por meio da capacidade de reflexão. Não existem leis morais eternas. Em outras palavras, a moral nos convida ao conforto e à segurança. A ética nos convida ao exercício responsável e refletido para nos tornarmos agentes e arquitetos de nossa própria existência. 14 15 FIXANDO O CONTEÚDO 1. (Enem 2010, 2ª aplicação) “A ética exige um governo que amplie a igualdade entre os cidadãos. Essa é a base da pátria. Sem ela, muitos indivíduos não se sen- tem “em casa”, experimentam-se como estrangeiros em seu próprio lugar de nascimento. “ SILVA, R. R. Ética, defesa nacional, cooperação dos povos. OLIVEIRA, E. R (Org.) Segurança & defesa nacional: da competição à cooperação regional. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2007 (adaptado). Os pressupostos éticos são essenciais para a estruturação política e integração de indivíduos em uma sociedade. De acordo com o texto, a ética corresponde a: a) valores e costumes partilhados pela maioria da sociedade. b) preceitos normativos impostos pela coação das leis jurídicas. c) normas determinadas pelo governo, diferentes das leis estrangeiras. d) transferência dos valores praticados em casa para a esfera social. e) proibição da interferência de estrangeiros em nossa pátria. 2. (ENEM 2011, adaptado) O brasileiro tem noção clara dos comportamentos éticos e morais adequados, mas vive sob o espectro da corrupção, revela pesquisa. Se o país fosse resultado dos padrões morais que as pessoas dizem aprovar, pareceria mais com a Escandinávia do que com Bruzundanga (corrompida nação fictícia de Lima Barreto). O distanciamento entre “reconhecer” e “cumprir” efetivamente o que é moral constitui uma ambiguidade inerente ao humano, porque as normas morais são: a) decorrentes da vontade divina e, por esse motivo, utópicas. b) parâmetros idealizados, cujo cumprimento é destituído de obrigação. c) amplas e vão além da capacidade de o indivíduo conseguir cumpri-las integralmente.d) criadas pelo homem, que concede a si mesmo a lei à qual deve se submeter. e) mais vinculantes do que as normas jurídica. 3. (UNICAMP 2016, adaptada) Por que a ética voltou a ser um dos temas mais trabalhados do pensamento filosófico contemporâneo? Nos anos 1960, a política 16 ocupava esse lugar e muitos cometeram o exagero de afirmar que tudo era polí- tico. José Arthur Gianotti, “Moralidade Pública e Moralidade Privada”, em Adauto Novaes, Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 239. A partir desse fragmento sobre a ética e o pensamento filosófico, é correto afirmar que: a) o tema foi relevante no passado e apenas recentemente voltou a ocupar um espaço central na produção filosófica. b) os impasses morais e éticos das sociedades contemporâneas reposicionaram o tema da ética como um dos campos mais relevantes para a filosofia. c) o pensamento filosófico abandonou sua postura política após o desencanto com os sistemas ideológicos que eram vigentes nos anos 1960. d) na atualidade, a ética é uma pauta conservadora, pois nas sociedades atuais, não há demandas éticas rígidas. e) a ética foi incorporada pelas outras ciências, deixando de ser estudada nas últimas décadas. 4. (UNISC 2012) – Apresentados os enunciados abaixo, qual deles melhor caracteriza o tema da ética filosófica? a) A ética filosófica estuda a maneira como as pessoas agem dentro de uma determinada sociedade. b) A ética filosófica consiste em um conjunto de normas relativas à vida sexual das pessoas. c) A ética filosófica é o estudo das normas que regem o exercício de uma determinada profissão. d) A ética filosófica é um discurso racional e argumentativo cujo objetivo é fundamentar critérios para avaliar as ações humanas, seja para louvá-las ou para censurá-las. e) A ética filosófica consiste na explicação das normas de comportamento que se encontram na Bíblia. 5. (Leopoldino Rocha) O sujeito ético-moral é somente aquele que preencher os 17 seguintes requisitos: a) ser consciente de si, mas não precisa reconhecer a existência dos outros como sujeitos éticos iguais a si. b) saber o que faz, conhecer as causas e os fins de sua ação, o significado de suas intenções e de suas atitudes e a essência dos valores morais. c) não precisa controlar interiormente seus impulsos, suas inclinações e suas paixões, deixando-as fluir livremente. d) dizer o que as coisas são, como são e por que são. Enunciar, pois, juízos de fato. e) ser responsável, mas não precisa reconhecer-se como autor da sua própria ação nem avaliar os efeitos e as consequências dela sobre si e sobre os outros. 6. (Unesp 2019) – Então, todos os alemães dessa época são culpados? – Esta pergunta surgiu depois da guerra e permanece até hoje. Nenhum povo é coletivamente culpado. Os alemães contrários ao nazismo foram perseguidos, presos em campos de concentração, forçados ao exílio. A Alemanha estava, como muitos outros países da Europa, impregnada de antissemitismo, ainda que os antissemitas ativos, assassinos, fossem apenas uma minoria. Estima-se hoje que cerca de 100 000 alemães participaram de forma ativa do genocídio. Mas o que dizer dos outros, os que viram seus vizinhos judeus serem presos ou os que os levaram para os trens de deportação? (Annette Wieviorka. Auschwitz explicado à minha filha, 2000. Adaptado.) Ao tratar da atitude dos alemães frente à perseguição nazista aos judeus, o texto defende a ideia de que: a) os alemães comportaram-se de forma diversa perante o genocídio, mas muitos mostraram-se tolerantes diante do que acontecia no país. b) esse tema continua presente no debate político alemão, pois inexistem fontes documentais que comprovem a ocorrência do genocídio. c) esse tema foi bastante discutido no período do pós-guerra, mas é inadequado abordá-lo hoje, pois acentua as divergências políticas no país. d) os alemães foram coletivamente responsáveis pelo genocídio judaico, pois a maioria da população teve participação direta na ação. e) os alemães defendem hoje a participação de seus ancestrais no genocídio, pois 18 consideram que tal atitude foi uma estratégia de sobrevivência. 7. (Unesp 2018). Os homens, diz antigo ditado grego, atormentam-se com a ideia que têm das coisas e não com as coisas em si. Seria grande passo, em alívio da nossa miserável condição, se se provasse que isso é uma verdade absoluta. Pois se o mal só tem acesso em nós porque julgamos que o seja, parece que estaria em nosso poder não o levarmos a sério ou o colocarmos a nosso serviço. Por que atribuir à doença, à indigência, ao desprezo um gosto ácido e mau se o podemos modificar? Pois o destino apenas suscita o incidente; a nós é que cabe determinar a qualidade de seus efeitos. (Michel de Montaigne. Ensaios, 2000. Adaptado.) De acordo com o filósofo, a diferença entre o bem e o mal: a) representa uma oposição de natureza metafísica, que não está sujeita a relativismos existenciais. b) relaciona-se com uma esfera sagrada cujo conhecimento é autorizado somente a sacerdotes religiosos. c) resulta da queda humana de um estado original de bem-aventurança e harmonia geral do Universo. d) depende do conhecimento do mundo como realidade em si mesma, independente dos julgamentos humanos. e) depende sobretudo da qualidade valorativa estabelecida por cada indivíduo diante de sua vida. 8. (Enem PPL 2016) 19 A figura do inquilino ao qual a personagem da tirinha se refere é o(a): a) constrangimento por olhares de reprovação. b) costume importo aos filhos por coação. c) consciência da obrigação moral. d) pessoa habitante da mesma casa. e) temor de possível castigo. 20 ÉTICA E MORAL NAS RELAÇÕES SOCIAIS “A astúcia do Direito consiste em valer-se do veneno da força para evitar que ela triunfe“ Miguel Reale, jurista brasileiro 2.1 ÉTICA, MORAL E DIREITO Conforme visto no capítulo anterior, a Ética diz respeito ao conjunto dos valores que norteiam a vida em sociedade e a convivência entre os indivíduos num determinado tempo. O Direito é uma ordem social estabelecida em torno de um sistema sancionatório para garantir a aplicação da Justiça. Essa ordem busca estabelecer regras para o funcionamento da sociedade e prevê meios para exigir o seu cumprimento, as sanções. Ele se vale da força para evitar que o mundo seja governado apenas por ela. Corresponde, na visão do jurista Jeremy Bentham, ao “mínimo ético” ou a um conjunto de normas morais consideradas relevantes por cada sociedade. A Moral, por sua vez, se caracteriza por ser um tipo de preceito acerca do comportamento desprovido de mecanismos de coação (MORRIS, 2002). O Direito prevê uma convivência social ordenada, na qual inexiste a possibilidade de desordem ou anarquia. É um mecanismo de dominação que se vale de normas, instituições e decisões para controlar o comportamento das sociedades. As regras jurídicas são obrigatórias e coercitivas, pois emanam de uma fonte jurídica válida e de uma autoridade competente. Seu fim último é a realização da justiça do bem comum. Nesse sentido, diferentemente da Moral, que lida com preceitos sobre o comportamento humano despidos de mecanismos de coerção, o Direito é uma ordenação ética com capacidade de impor comportamentos pelo uso legitimado da força. A Moral se baseia em mecanismos de sanção individual (ressentimento, remorso e culpa) ou coletiva (discriminação, repulsa, exclusão e indignação), ao passo que o Direito se assenta em sanções coercitivas que se valem da imposição da força. O Direito não se vale de qualquer violência indiscriminada, mas da força organizada eaplicada segundo regras institucionalizadas. O Direito lida com o problema ancestral da busca da verdade e da justiça no UNIDADE 21 exercício do poder. Seu fundamento filosófico variou ao longo da Histórica, sendo considerada pelos gregos como uma técnica e pelos romanos como uma arte (a busca do bem e da equidade). Assim como as instituições são regras que estabelecem padrões de comportamento e geram previsibilidade, o Direito é um elemento de fidelização e conexão entre o passado e o futuro. Nesse sentido, o Direito não é neutro, mas um conjunto de práticas que visa realizar determinados valores fundamentais. O mais importante desses valores é a justiça, ou seja, dar a cada um aquilo que lhe é direito. A justiça é parte da moral e se baseia no senso de equilíbrio na distribuição de bens entre os homens. Sem validade, eficácia e justiça, não há sistema jurídico legítimo. O jurista austríaco Hans Kelsen, em “Teoria Pura do Direito”, afirma que a Justiça é um valor decorrente da Moral. No entanto, diferentemente das normas sociais (Moral e Ética), o Direito é uma norma jurídica cuja legitimidade não se baseia apenas em valores, mas em critérios de validade. Ou seja, a norma jurídica é uma proposição hipotética dada por um poder institucionalizado (Estado) para estabelecer normas de conduta (KELSEN, 1998). A Moral lida com as concepções de um indivíduo ou de um conjunto de indivíduos acerca do que é lícito e justo. As regras de conduta morais são tão plurais quanto a sociedade e balizam o convívio social. E buscam, essencialmente, o aperfeiçoamento de um indivíduo em relação à sua consciência ou a de seu grupo. Sua origem é a autoridade religiosa, a razão e a tradição. O Direito, por outro lado, é uma técnica de regulação do convívio social que se baseia em uma norma. E que prevê sanções ao descumprimento destas regras. A fonte do Direito é o Estado. Somente são válidas as normas jurídicas produzidas por quem tem competência para tal. As sanções jurídicas, por sua vez, são obrigatórias. Embora adote princípios morais como fundamento de sua aplicação, o Direito pode conter também normais normas amorais. A Moral, por seu turno, influencia diretamente o Direito. Os legisladores são guiados por valores e ideias difusos na sociedade para produzir normas jurídicas. As normas jurídicas, nesse sentido, expressam regras morais que devem ser obrigatoriamente cumpridas. As sociedades antigas, como visto, eram caracterizadas pela coincidência entre mandamentos jurídicos e morais. Já na Idade Média, as regras jurídicas constituíam um “mínimo ético”, ou seja, o núcleo duro das regras morais. 22 Com a positivação do Direito (prevalência de normas escritas em códigos e leis), nos séculos XVIII e XIX, as regras jurídicas tornaram-se autônomas em relação à moral. Dada a pluralidade de sistemas morais existentes (religião, família, trabalho etc), as autoridades competentes do Estado se limitaram a impor normas segundo critérios de validade. Os positivistas defendem que os indivíduos são livres para obedecer ou não às normas vigentes, de acordo com os seus valores morais e interesses. O custo do descumprimento dessas normas é a aplicação de sanções jurídicas. Os moralistas, por sua vez, sustentam que os operadores do Direito precisam buscar sempre a coe- rência entre normais normas jurídicas e preceitos morais, sob pena de esvaziamento valorativo do Direito. Para eles, seria impossível estabelecer uma distinção entre Direito e Moral, pois ambos caminham lado a lado. Portanto, é importante distinguir norma moral e norma jurídica. A normal moral decorre da experiência histórica da sociedade. Já a norma jurídica pode ser imposta pela autoridade mesmo que não corresponda à experiência da sociedade. A norma moral fala a linguagem da interioridade e da intencionalidade. É preciso haver correspondência entre a vontade interior e a exteriorização. Na norma jurídica, isso é irrelevante em diversas situações. Na norma jurídica, são necessários atos exteriores; a intencionalidade é um aspecto secundário. A norma moral não possui sanção (punição); já a norma jurídica possui sanção. A norma moral possui, entretanto, um grau de coercibilidade (possibilidade de punição) que muitas vezes é muito mais forte que a sanção jurídica, como a vergonha, o constrangimento e o arrependimento. Direito e moral não podem se 23 separar. Como avaliar a legitimidade de um sistema jurídico? Essa avaliação não pode ser pautada unicamente sob o aspecto da moral. Após a Segunda Guerra Mundial, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, foram definidas as diretrizes estruturantes do comportamento universal, de modo que os direitos humanos constituem o mínimo ético de um sistema jurídico. 2.2 ÉTICA NA POLÍTICA A relação entre ética, moral e política é tão ancestral quanto a Humanidade. Desde os filósofos da Antiguidade até os cientistas políticos, juristas e escritores contemporâneos, o tema já foi abordado de maneira múltipla. O assunto desperta as atenções do ser humano desde os primórdios da civilização. Tratados, ensaios, romances e peças teatrais já foram escritas sobre essa questão, sem uma solução definitiva ou uma resposta correta para a problemática da moralidade nas relações sociais. Sendo o homem um ser essencialmente político – isto é, que vive na polis (cidade) – sempre se pergunta sobre o que é agir moralmente. Da mesma forma que existe uma ética profissional, uma ética do trabalho, uma ética familiar e uma ética religiosa, a ética política trata da distinção entre o que é moralmente lícito e ilícito. A aceitação de que a moral política se distingue do senso comum é um dos fundamentos da modernidade. Maquiavel afirmou, em “O Príncipe”, que a moral dos governantes não é a mesma dos governados. Nesse sentido, para obter êxito em sua missão de dominar os povos e governar as nações, antes de serem amados, os príncipes deveriam buscar serem temidos (MAQUIAVEL, 2010). Enquanto em outras atividades humanas o que se busca, essencialmente, é adequar os comportamentos às regras de conduta moral consensuais e estabelecidas, na relação entre política e moral, o debate é mais complexo. Ao contrário da ética médica, da ética esportiva ou da ética do trabalho, não existe um consenso sobre quais seriam os preceitos éticos da política. O que existe, fundamentalmente, é a noção de que a moral política se reporta às ações de um indivíduo no que toca aos seus deveres para com os outros, e não consigo mesmo. Dessa forma, o foco do estudo da moral política não é a compreensão daquilo que é considerado lícito ou ilícito. Na perspectiva do filósofo e jurista italiano Norberto 24 Bobbio, o que se busca compreender é “[...] se tem sentido colocar-se em termos morais o problema do admissível e do inadmissível no caso das ações políticas” (BOBBIO, 2003, p. 161). Dessa forma, utilizando-se uma categoria de Maquiavel, é possível, por exemplo, distinguir os políticos do tipo “leão” e os do tipo “raposa”. Os primeiros baseariam seu poder no uso da força; os segundos, no domínio da astúcia. Thomas Hobbes, em sua obra “O Leviatã”, assegurava que nenhuma moral estava acima da política. No estado de natureza, argumentava o filósofo inglês, a política não tinha nenhum conteúdo moral, baseando-se pura e simplesmente no exercício da força (MORRIS, 2002). A moral do mais forte sempre prevalecia e a sobrevivência era a única moral existente. No estado civil impera a moral do soberano, isto é, daquele indivíduo escolhido pelos demais como aquele que distingue o justo do injusto. Portanto, a vontade do rei deveria ser a única e exclusiva fonte moral a ser obedecida. A noção de razão de Estado,que floresceu com o Estado moderno, aceita que em circunstâncias específicas e determinadas, o soberano possa infringir os códigos morais prevalecentes para salvaguardar o seu poder. Assim, a ação política imporia ao seu praticante “[...] ações moralmente reprováveis, porém necessárias por causa da natureza e da finalidade da própria atividade” (BOBBIO, 2003, p. 168). Da mesma forma que o político teria uma moral própria, certas categorias profissionais, ao longo da História, também advogam a existência de um direito particular e de uma moral específica. Se existe uma ética inerente à política, existiria, do mesmo modo, uma ética aplicável a profissões determinadas, como a dos médicos, dos padres e dos advogados. 25 2.3 ÉTICA DAS CONVICÇÕES E ÉTICA DA RESPONSABILIDADE Quando refletimos sobre a importância da moral e da ética na vida pública, é importante entender como os valores morais e éticos guiam os homens públicos em suas ações. Em seu clássico artigo “Política como Vocação”, o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) distingue três qualidades para a formação de um homem público (WEBER, 1965). Em primeiro lugar, a paixão à causa; e segundo lugar, o senso de responsabilidade; em terceiro lugar, o senso de proporção, isto é, a capacidade de manter distância dos fatos e dos homens, de modo a refletir com mais propriedade sobre os acontecimentos. Segundo Weber (1965), os homens precisam ainda superar a vaidade, pois o desejo de poder pode desvirtuar tanto a sua paixão, quanto o seu senso de proporção. Ou seja, a vaidade poder tornar-se um fim em si mesmo, uma busca exclusiva pela exaltação do próprio ego. Existe uma ética própria para o mundo político? Para Weber (1965), na política haveria dois pecados mortais. Primeiro, não defender nenhuma causa, o que conduz o político à paralisia e à busca do brilho efêmero. Segundo, não possuir nenhum senso de responsabilidade, o que o leva a abusar do poder como um fim em si mesmo, sem qualquer propósito maior. As causas que justificam o alcance do poder dependeriam das visões de mundo e convicções íntimas de cada político. Tais motivações podem ser humanistas, nacionalistas, sociais, religiosas e éticas. Nesse sentido, cabe indagar se existiria um “mínimo ético” na política que compatibilizasse as diversas causas que levam os políticos a almejar o poder. Seria a ética da política a mesma ética da religião? Segundo Weber (1965), a ética religiosa, contida nos Evangelhos, implica em comportamentos rígidos e que não admitem meio-termo: é o “tudo ou nada”. A ética dos Evangelhos persegue verdades absolutas e incontestáveis, baseadas na convicção e na consciência individual. De acordo com Weber (1965), as condutas podem ser orientadas segundo duas lógicas: a ética da ética da convicção e a ética da responsabilidade. Isto não significa que a ética da convicção esteja desconectada de qualquer responsabilidade. O ponto central da ética da responsabilidade é a noção das consequências do ato humano e o reconhecimento do papel da vontade, da ação ou da omissão na produção de resultados. Quando se observa apenas ética da convicção, atribui-se qualquer consequência dos atos humanos à vontade divina. Dessa forma, os homens isentam-se de qualquer compromisso, obrigação e 26 prudência no dia a dia, pois seu destino estaria traçado. A questão mais sensível da ética da responsabilidade é o fato de que, para alcançar fins considerados nobres, os homens às vezes precisam recorrer a expedi- entes considerados desagradáveis, desonestos ou perigosos. Assim, o ato de mentir, segundo a ética das convicções, é moralmente condenável. Já segundo a ética da responsabilidade, a mentira, muitas vezes, pode ser uma forma de se evitar um mal maior. Segundo Weber (1965), no entanto, nenhuma ética conseguiu até hoje definir o que seria uma finalidade considerada “eticamente boa” que justificasse o uso de métodos considerados moralmente perigosos, como o uso da força. Em que circunstâncias se justifica o uso da força para o alcance de fins considerados justos? No caso de uma guerra ou de uma revolução, por exemplo, seria legítimo o recurso à violência para alcançar fins considerados justos? Os partidários da ética da convicção são unânimes ao afirmar que matar um outro ser humano é considerado um pecado mortal, sem qualquer exceção. Já sob o ponto de vista da ética da responsabilidade, em casos excepcionais, como o de uma ameaça à sobrevivência do Estado ou da nação, seria moralmente justo o emprego da força e da violência armada para repelir uma invasão ao território nacional. Essa tensão entre meios e fins caracteriza a ética da responsabilidade. Nesse sentido, a violência poderia ser admitida como um meio do alcance de fins políticos considerados nobres ou justos, como a sobrevivência nacional. Da mesma forma, o debate entre a continuidade de uma revolução ou de uma guerra e a realização da paz depende, sobretudo, das condições em que os termos da paz são assinados. Se forem injustos, os partidários da ética da responsabilidade admitem a legitimidade As duas lógicas weberianas que conduzem a vida política: a Ética das Convicções e Ética da Responsabilidade: Ética da responsabilidade é a noção das consequências do ato humano e o reconhecimento do papel da vontade, da ação ou da omissão na produção de resultados. Ética da convicção é a atribuição de qualquer consequência dos atos humanos à vontade divina. Dessa forma, os homens isentam-se de qualquer compromisso, obrigação e prudência no dia a dia, pois seu destino estaria traçado. 27 da continuidade da revolução ou da guerra. Para Weber (1965), é impossível conciliar a ética da convicção e a ética da responsabilidade, pois a primeira não admite concessões à segunda. A ética da convicção defende que os meios são mais importantes que os fins. Isto é, o mal só pode trazer o mal. A ética da responsabilidade, por sua vez, admite que os fins justifiquem os meios. Ou seja, o mal, quando praticado com fins nobres, também pode produzir o bem. Todas as crenças religiosas enfrentam o problema da ética na política. A questão mais sensível são as circunstâncias em que se admite e se legitima o uso da violência. Os políticos ao praticarem a violência com a busca de um fim nobre devem não apenas justificar o recurso à força, mas buscar seguidores que compartilhem de seus objetivos. Em síntese, Max Weber afirma que a política não pode abrir mão das questões éticas. Os homens que se dedicam à política, na visão do autor, devem estar cientes das consequências e impactos de seus atos. A salvação das almas, de um indivíduo e de seu grupo não deve ser buscada por meio da política, mas da religião. O caminho da política, por sua vez, pressupõe o uso de algum tipo de violência para alcançar os objetivos pretendidos. Nesse sentido, é preciso esclarecer aos partidários da ética da convicção que quaisquer atos humanos geram consequências. A Os partidários da ética da convicção acreditam que quaisquer atos humanos geram consequências, inclusive na política. Já para os adeptos da ética da responsabilidade, a política, diferentemente da religião, exige que os homens tenham senso de proporção. Sendo assim, convidamos você a refletir sobre a seguinte situação: Um determinado país sofre um ataque externo e precisa tomar atitudes de defesa e ataque. No entanto, sua população não tem total conhecimento sobre os desdobramentos dessa situação. Revelar tudo o que está acontecendo pode gerar pânico geral e piorar ainda mais o quadro, até mesmo dificultando as ações de defesa. Para a ética da convicção, a verdade deve estar acima de tudo. Contudo, preservar em sigilo determinadas informações ou até mesmo mentir sobre elas podepromover a segurança nacional. Para os adeptos da ética da responsabilidade é preciso lançar mão do senso de proporção. Em que medida um chefe de Estado deve pender para uma das duas lógicas? 28 política, diferentemente da religião, exige que os homens tenham senso de proporção. Sendo assim, a política seria a arte do possível. 29 FIXANDO O CONTEÚDO 1. (Enem 2010, 2ª aplicação) No século XX, o transporte rodoviário e a aviação civil aceleraram o intercâmbio de pessoas e mercadorias, fazendo com que as dis- tâncias e a percepção subjetiva das mesmas se reduzissem constantemente. É possível apontar uma tendência de universalização em vários campos, por exemplo, na globalização da economia, no armamentismo nuclear, na manipulação genética, entre outros. HABERMAS, J. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. São Paulo: Littera Mundi, 2001 (adaptado). Os impactos e efeitos dessa universalização, conforme descrito no texto, podem ser analisados do ponto de vista moral, o que leva à defesa da criação de normas universais que estejam de acordo com: a) os valores culturais praticados pelos diferentes povos em suas tradições e costumes locais. b) os pactos assinados pelos grandes líderes políticos, os quais dispõem de condições para tomar decisões. c) os sentimentos de respeito e fé no cumprimento de valores religiosos relativos à justiça divina. d) os sistemas políticos e seus processos consensuais e democráticos de formação de normas gerais. e) os imperativos técnico-científicos, que determinam com exatidão o grau de justiça das normas. 2. (Enem 2010) A ética precisa ser compreendida como um empreendimento coletivo a ser constantemente retomado e rediscutido, porque é produto da relação social se organize sentindo-se responsável por todos e que crie condições para o exercício de um pensar e agir autônomos. A relação entre ética e política é também uma questão de educação e luta pela soberania dos povos. É necessária uma ética renovada, que se construa a partir da natureza dos valores sociais para organizar também uma nova prática política. CORDI et al. Para filosofar. São Paulo: Scipione, 2007 (adaptado). 30 O Século XX teve de repensar a ética para enfrentar novos problemas oriundos de diferentes crises sociais, conflitos ideológicos e contradições da realidade. Sob esse enfoque e a partir do texto, a ética pode ser: a) compreendida como instrumento de garantia da cidadania, porque através dela os cidadãos passam a pensar e agir de acordo com valores coletivos. b) mecanismo de criação de direitos humanos, porque é da natureza do homem ser ético e virtuoso. c) meio para resolver os conflitos sociais no cenário da globalização, pois a partir do entendimento do que é efetivamente a ética, a política internacional se realiza. d) parâmetro para assegurar o exercício político primando pelos interesses e ação privada dos cidadãos. e) aceitação de valores universais implícitos numa sociedade que busca dimensionar sua vinculação à outras sociedades. 3. (Enem 2010) Na ética contemporânea, o sujeito não é mais um sujeito substancial, soberano e absolutamente livre, nem um sujeito empírico puramente natural. Ele é simultaneamente os dois, na medida em que é um sujeito histórico-social. Assim, a ética adquire um dimensionamento político, uma vez que a ação do sujeito não pode mais ser vista e avaliada fora da relação social coletiva. Desse modo, a ética se entrelaça, necessariamente, com a política, entendida esta como a área de avaliação dos valores que atravessam as relações sociais e que interliga os indivíduos entre si. SEVERINO. A. J. Filosofia O texto, ao evocar a dimensão histórica do processo deformação da ética na sociedade contemporânea, ressalta: a) os conteúdos éticos decorrentes das ideologias político-partidárias. b) o valor da ação humana derivada de preceitos metafísicos. c) a sistematização de valores desassociados da cultura. d) o sentido coletivo e político das ações humanas individuais. e) o julgamento da ação ética pelos políticos eleitos democraticamente 31 4. (Enem 2009) Na década de 30 do século XIX, Tocqueville escreveu as seguintes linhas a respeito da moralidade nos EUA: “A opinião pública norte-americana é particularmente dura com a falta de moral, pois esta desvia a atenção frente à busca do bem-estar e prejudica a harmonia doméstica, que é tão essencial ao sucesso dos negócios. Nesse sentido, pode-se dizer que ser casto é uma questão de honra”. TOCQUEVILLE, A. Democracy in America. Chicago: Encyclopædia Britannica, Inc., Great Books 44, 1990 (adaptado). Do trecho, infere-se que, para Tocqueville, os norte-americanos do seu tempo: a) buscavam o êxito, descurando as virtudes cívicas. b) tinham na vida moral uma garantia de enriquecimento rápido. c) valorizavam um conceito de honra dissociado do comportamento ético. d) relacionavam a conduta moral dos indivíduos com o progresso econômico. e) e) acreditavam que o comportamento casto perturbava a harmonia doméstica. 5. (Enem 2017) “Uma pessoa vê-se forçada pela necessidade a pedir dinheiro emprestado. Sabe muito bem que não poderá pagar, mas vê também que não lhe emprestarão nada se não prometer firmemente pagar em prazo determinado. Sente a tentação de fazer a promessa; mas tem ainda consciência bastante para perguntar a si mesma: não é proibido e contrário ao dever livrar-se de apuros desta maneira? Admitindo que se decida a fazê-lo, a sua máxima de ação seria: quando julgo estar em apuros de dinheiro, vou pedi-lo emprestado e prometo pagá-lo, embora saiba que tal nunca sucederá”. KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril Cultural, 1980. De acordo com a moral kantiana, a “falsa promessa de pagamento” representada no texto: a) assegura que a ação seja aceita por todos a partir da livre discussão participativa. b) garante que os efeitos das ações não destruam a possibilidade da vida futura na terra. 32 c) opõe-se ao princípio de que toda ação do homem possa valer como norma uni- versal. d) materializa-se no entendimento de que os fins da ação humana podem justificar os meios. e) permite que a ação individual produza a mais ampla felicidade para as pessoas envolvidas. 6. (Enem 2017) A moralidade, Bentham exortava, não é uma questão de agradar a Deus, muito menos de fidelidade a regras abstratas. A moralidade é a tentativa de criar a maior quantidade de felicidade possível neste mundo. Ao decidir o que fazer, deveríamos, portanto, perguntar qual curso de conduta promoveria a maior quantidade de felicidade para todos aqueles que serão afetados. RACHELS, J. Os elementos da filosofia moral. Barueri-SP: Manole, 2006. Os parâmetros da ação indicados no texto estão em conformidade com uma: a) fundamentação científica de viés positivista. b) convenção social de orientação normativa. c) transgressão comportamental religiosa. d) racionalidade de caráter pragmático. e) nclinação de natureza passional. 7. (Enem 2017) “Se, pois, para as coisas que fazemos existe um fim que desejamos por ele mesmo e tudo o mais é desejado no interesse desse fim; evidentemente tal fim será o bem, ou antes, o sumo bem. Mas não terá o conhecimento, porventura, grande influência sobre essa vida? Se assim é, esforcemo-nos por determinar, ainda que em linhas gerais apenas, o que seja ele e de qual das ciências ou faculdades constitui o objeto. Ninguém duvidará de que o seu estudo pertença à arte mais prestigiosa e que mais verdadeiramente se pode chamar a arte mestra. Ora, a política mostra ser dessa natureza, pois é ela que determina quais as ciências que devem serestudadas num Estado, quais são as que cada cidadão deve aprender, e até que ponto; e vemos que até as faculdades tidas em maior apreço, como a estratégia, a economia e a retórica, estão sujeitas a ela. Ora, como a política utiliza as demais ciências e, por outro lado, legisla sobre o que 33 devemos e o que não devemos fazer, a finalidade dessa ciência deve abranger as das outras, de modo que essa finalidade será o bem humano. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In: Pensadores. São Pauto: Nova Cultural, 1991 (adaptado). Para Aristóteles, a relação entre o sumo bem e a organização da pólis pressupõe que: a) o bem dos indivíduos consiste em cada um perseguir seus interesses. b) o sumo bem é dado pela fé de que os deuses são os portadores da verdade. c) a política é a ciência que precede todas as demais na organização da cidade. d) a educação visa formar a consciência de cada pessoa para agir corretamente. e) a democracia protege as atividades políticas necessárias para o bem comum. 8. (Enem/2013) “Nasce daqui uma questão: se vale mais ser amado que temido ou temido que amado. Responde-se que ambas as coisas seriam de desejar; mas porque é difícil juntá-las, é muito mais seguro ser temido que amado, quando haja de faltar uma das duas. Porque dos homens que se pode dizer, duma maneira geral, que são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ávidos de lucro, e enquanto lhes fazes bem são inteiramente teus, oferecem-te o sangue, os bens, a vida e os filhos, quando, como acima disse, o perigo está longe; mas quando ele chega, revoltam-se.” MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Rio de Janeiro: Bertrand, 1991. A partir da análise histórica do comportamento humano em suas relações sociais e políticas, Maquiavel define o homem como um ser: a) munido de virtude, com disposição nata a praticar o bem a si e aos outros. b) possuidor de fortuna, valendo-se de riquezas para alcançar êxito na política. c) guiado por interesses, de modo que suas ações são imprevisíveis e inconstantes. d) naturalmente racional, vivendo em um estado pré-social e portando seus direitos naturais. e) sociável por natureza, mantendo relações pacíficas com seus pares. 34 ÉTICA, MORAL E POLÍTICA: A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA “Que estranho desejo é ambicionar o poder e perder a liberdade” Francis Bacon, filósofo inglês 3.1 O CONCEITO DE CIDADANIA E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA Cidadania é um laço que une um indivíduo a um determinado Estado-Nação. Esse vínculo de subordinação a uma ordem jurídica nacional torna o indivíduo sujeito a direitos e obrigações, tornando-o parte integrante de um povo. O povo é o elemento humano que habita o território do Estado e que se mantém unido graças aos valores e aos objetivos comuns que compartilham. A cidadania é o vínculo estabelecido entre o Estado e o povo. O vínculo de cidadania se prolonga por toda a vida e é definidor da identidade pessoal de um indivíduo. No entender de Bonavides (2006), a cidadania implica em deveres básicos em relação a uma coletividade, como a fidelidade à Nação e a observância das normas do Estado. Jorge Miranda afirma que os cidadãos são os membros do Estado, sujeitos de Direito e súditos da ordem política juridicamente organizada. Cidadania, portanto, define a qualidade do sujeito que se subordina a uma coletividade política. O autor distingue a cidadania da nacionalidade. A primeira é o vínculo direto de um indivíduo a um Estado, enquanto a segunda é a relação entre um indivíduo e uma Nação. A aquisição e a perda de cidadania é definida pelas regras internas do Estado que as concede. Há dois meios fundamentais de aquisição da cidadania: pela filiação (jus sanguinis) ou pelo local de nascimento (jus soli). A cidadania implica na participação da vida política de um Estado, como o direito de votar e de ser votado (MIRANDA, 2002). O conceito de cidadania em sua versão moderna nutriu-se das ideias surgidas na Itália, Inglaterra, França e Estados Unidos a partir da Idade Moderna. De Nicolau Maquiavel a Thomas Hobbes e de Jean Jacques Rousseau aos Federalistas norte- americanos, a base do pensamento político moderno compreendido como um conjunto de teorias e de ideias relacionadas à busca da institucionalização dos UNIDADE 35 conflitos forjou-se numa pluralidade de correntes e de tradições envoltas na formação da linguagem e da prática política europeia nos séculos XVI a XVIII. Da matriz italiana, o republicanismo absorveu as lições de Maquiavel acerca da formação do humanismo cívico num contexto de reposicionamento do homem no centro do pensamento. Responsável por uma ruptura no pensamento ocidental e fundador da Ciência Política, o autor resgata o pensamento greco-latino para embasar as suas reflexões acerca das temáticas políticas de seu tempo. O pensamento de Maquiavel se tornou clássico por duas razões centrais: a ampla difusão no Ocidente e abrangência de largas temporalidades. Maquiavel aborda as constantes disputas de poder entre as cidades-Estado da península itálica, mostrando como a instabilidade e a imprevisibilidade eram inerentes à realidade contemporânea. Para Maquiavel, política e história também deveriam ser analisadas em conjunto, já que o poder organizava historicamente as relações econômicas e sociais entre os indivíduos, via exercício da dominação e a busca do consenso. O autor desenvolve, nas duas obras, a ideia de que o corpo político se divide ante o desejo de dominação e de ser dominado, o que se nota, por exemplo, no relato dos conflitos entre as potências europeias da época e as cidades do norte italiano. Finalmente, demonstra que a política se desenrola na dicotomia essência versus aparência, mostrando como a política possui uma importante dimensão simbólica na construção de narrativas. A noção de cidadania desenvolvida por Maquiavel seria transformada na França, dois séculos depois. Jean Jacques Rousseau foi o mais notável dos filósofos do período Iluminista e o principal representante do republicanismo de matriz francesa. Em “O Espírito das Leis”, Rousseau ataca a Igreja e a instituição monárquica pelas desigualdades e pela miséria. Para conter a proliferação de uma sociedade profundamente desigual, prega um ideal democrático, rejeitando o estado histórico, construído desde tempos imemoriais, ao qual atribui a culpa pela desigualdade dos homens. Disseminador de ideais de coletividade e de cooperação, Rousseau propõe a composição de um novo Estado, não-tirano, opressor e fonte de desigualdades, mas de um organismo protetor, socialmente justo, sem privilégios e que tenha no povo a fonte de todo e qualquer poder. No fundo, a função deste novo Estado, pautado pela justiça e pelos direitos de todos os homens, era alcançar algo próximo da 36 perfeição e da igualdade. Rousseau conecta, portanto, a formação da liberdade do cidadão à soberania popular. Há, portanto, uma possível aproximação entre o pensamento de Rousseau e o de Maquiavel, na medida em que ambos procuram afirmar a necessidade de legitimação do poder. Na visão de Rousseau, o homem não é um ser naturalmente sociável, mas socializável pelas circunstâncias e pela luta para sobreviver. Em “Discurso da origem da desigualdade entre os homens”, o autor argumenta que os direitos se formam a partir de um contrato de submissão dos homens a um poder. Nessa linha, ataca a noção de direitos naturais precedente, afirmando a necessidade de pactuação do corpo político para a afirmação das liberdades. Nesse sentido, sua obra trata da problemática do “contrato social”, associada à ideia de república e de igualdade entre os homens. Para Rousseau, a cidadania pressupõe a existência de simetria e de uma “vontade geral” entre os cidadãos, valorizando,dessa forma, o controle democrático e a prestação de contas. A noção contemporânea de cidadania, em um contexto democrático, se valeu do debate de ideias durante a formação histórica das instituições republicanas dos Estados Unidos da América. Texto clássico da Ciência Política, ‘O Federalista” (1788) consagrou-se como um conjunto de artigos escritos por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, três dos Pais Fundadores da recém independente nação norte-americana. Além de consagrados partícipes do processo de emancipação política do país, Hamilton, Madison e Jay tiveram atuação destacada no processo de elaboração do texto constitucional dos Estados Unidos, no bojo da conclusão da Guerra da Independência e dos arranjos para a estabilização política interna. O objetivo da publicação desses artigos foi explicitar e debater os temas centrais discutidos no processo constituinte, em especial a centralização, a coordenação e o controle do poder. James Madison, em “O Federalista”, aborda a temática do controle do poder político e da contenção das ambições humanas. Advoga, nessa direção, a necessidade de instituir mecanismos capazes de afastar as tiranias e assegurar a existência das liberdades dentro do Estado, tornando-se um dos principais teóricos da existência de “checks and balances” (freios e contrapesos) entre as diversas 37 instâncias e poderes. A teoria liberal da cidadania nutriu-se das lições de Montes- quieu e da seiva madisoniana para consolidar o entendimento que consagrou a moderna tripartição de poderes do Estado. Em breves palavras, somente o poder poderia ser contido por outro poder, numa sucessão de mecanismos capazes de refrear o ímpeto autoritário dos governantes. Madison dialoga com a teoria do “governo misto”, existente na Inglaterra liberal do século XVIII, em que as funções governativas eram compartilhadas pelos três principais grupos sociais, favorecendo a harmonia, a convivência civil e a liberdade. Fruto de uma rebelião de cidadãos armados contra uma monarquia, nos Estados Unidos estavam ausentes as condições para a existência desse modelo de organização social e política. Madison argumentava que o elemento inspirador da nova nação também não deveria ser a “virtude” das experiências republicanas da Antiguidade Clássica. Contrariamente ao “governo misto” e à “virtude” dos clássicos da Grécia, ancorava-se na teoria da “tripartição de poderes” de Montesquieu, que defendia uma divisão das atribuições do poder de maneira horizontal entre três braços independentes e autônomos de governo: o Legislativo, responsável pela edição de normas; o Executivo, responsável pela sua aplicação; e o Judiciário, responsável por dirimir conflitos. A separação de poderes garantiria a autonomia, o equilíbrio e a liberdade, dissolvendo o poder absoluto em várias mãos. Madison preconizava a necessidade de se conter o mal das facções através do seu controle, não da sua eliminação. Compreendendo a sua natureza e risco, o autor buscava alguma forma de lidar com as diferentes forças sociais e políticas nascidas da diversidade de ideias, crenças, opiniões e interesses, mas que poderiam ameaçar a estabilidade política dos governos e a existência dos regimes. Madison entendia que a eliminação das facções era algo incompatível com um sistema de liberdades, cuja missão principal do governo era salvaguardar. Um ponto central da visão madisoniana, nesse sentido, era a necessidade de equacionar a vontade da maioria com os direitos das facções minoritárias, evitando que a primeira esmagasse as segundas. A existência de mecanismos de proteção das minorias do abuso de poder era essencial para evitar a tirania. James Madison rompe com a tradição dos governos populares da Antiguidade ao defender o modelo de democracia representativa, em que as 38 facções estariam representadas por um corpo político de cidadãos preparados para governar. A ampliação da base territorial de governo também seria importante. Por outro lado, a existência de governos representativos não eliminaria o mal das facções, tendo em vista a existência do risco de degeneração do poder em armadilhas faccionárias capazes de levar à captura do governo por interesses contrários à vontade geral. Desta forma, o remédio proposto não é a eliminação das facções, mas a sua multiplicação, de modo a pulverizar o poder num grande número de forças facciosas de alcance local e limitado, cada uma delas incapaz de ameaçar a existência da liberdade. O objetivo é a neutralização das facções entre si, numa fórmula semelhante à teoria dos “checks and balances”. O interesse geral, resume Madison, se alcançaria através da coordenação dos interesses em conflito pelos poderes que interagem entre si, filtrando os excessos e compatibilizando a vontade da maioria com os direitos das minorias. A atualidade dos textos dos autores norte-americanos repousa em sua capacidade de pensar temas fundamentais da sociedade política moderna. 39 3.2 CIDADANIA E DIREITOS FUNDAMENTAIS O conceito de cidadania não teve difusão uniforme no Ocidente. No ideário iluminista, ser cidadão significava ter a posse de direitos políticos uniformes e iguais. A ideia era a de que todos eram iguais perante a lei. Na concepção do universalismo moderno, existe a ideia de igualdade como um ponto de partida. O papel do Estado é reduzido; ele confere a cidadania e define os direitos em abstrato. A Revolução Francesa trouxe como conquista a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. Nessa concepção, o Estado não atrapalha as relações entre os particulares. O Estado reconhece os direitos individuais, mas adota um papel de definir o que é o espaço da liberdade. O Estado reconhece o direito e se abstém de interferir nisso. Atribui direitos ao indivíduo e isso tem impactos sobre a concepção de cidadania. No discurso liberal há uma igualdade formal. Por exemplo, o voto de cada cidadão tem o mesmo valor, independentemente de sua condição social ou financeira. Na concepção liberal de cidadania está presente a ideia da representatividade. O indivíduo pertence a uma ordem soberana e é esta ordem que o reconhece como cidadão. Essa concepção é orientada por critérios político- jurídicos constitucionalizados. No Direito contemporâneo encontraremos concepções que afirmam essa ideia, que é moderna. Nesse sentido, cidadão é aquele que é capaz de votar ou que está habilitado para receber votos. Votar e ser votado é o que define a condição de cidadão. No entanto, será que essa concepção é suficiente para a realização do ideário democrático? Será que é suficiente para atender às demandas sociais? A concepção moderna de cidadania se baseia em valores do ideário iluminista. Em primeiro lugar, não considera as diferenças concretas entre as pessoas. Assim, seria suficiente o afastamento do Estado para que sejam realizados os valores sociais. Em segundo lugar, não considera as oposições existentes dentro da própria sociedade. Bastaria a igualdade de fato, sem considerações sobre as desigualdades de fato que existem nas ruas. Na concepção tradicional de cidadania, o Estado concentra em si o poder da violência legitimada. Os indivíduos, por sua vez, têm uma participação política periférica. Onde está presente o Estado, não haveria espaço para o indivíduo. A participação política, nessa concepção liberal, seria restrita a ocasiões determinadas 40 nas quais o cidadão é chamado a votar. A realização da cidadania, portanto, dependeria de formalismos e burocracias e há um espaço muito pequeno para participação. Do mesmo modo, é o Estado quem definiria os direitos do cidadão, numa relação hierárquica entre quem dita as regras e quem obedece. Essa visão vem sendo solapadapor uma série de ineficácias e déficits de atuação do Estado de Direito. Em seu lugar, tem-se construído uma nova concepção de cidadania, com atuação proativa na construção dos espaços sociais. A cidadania, nessa concepção, pertenceria à sociedade civil e seria exercida como atividade realizadora de mecanismos que permitissem o acesso a direitos fundamentais. Há a ideia de efetividade de poucos bens ao invés da universalidade de muitos direitos. O que se valoriza é a experiência pragmática de justiça, provida não apenas pelo Estado, mas por organizações do Terceiro Setor. Diante da incapacidade do Estado de atendar às necessidades sociais, os atores sociais exerceriam papel auxiliar no provimento de bens públicos. A nova ideia social rompe o verticalismo do poder. Há um horizontalismo no qual a sociedade assume o papel do Estado nas políticas sociais. A noção de cidadania não se baseia mais em parâmetros formais da teoria tradicional. Cidadania, hoje, tem um sentido ético-filosófico de acesso à dignidade da pessoa humana. O Estado não é suficiente como agente produtor de justiça e como promotor do bem-estar social. Em um contexto de esvaziamento do papel agregador do estado, são necessários outros agentes na afirmação da cidadania e na garantia de acesso a condições dignas de vida. Apesar dos padrões cada vez mais individualistas de comportamento moral, responsável por certa apatia global diante das injustiças, da miséria e da guerra, há reações importantes em curso no sentido de ampliar o engajamento e a participação da sociedade na vida pública. A democracia é o espaço privilegiado de exercício da cidadania. Administra os interesses gerais da coletividade e aperfeiçoa a racionalidade pública. Essa problemática constitui fonte de preocupação para filósofos, antropólogos, cientistas políticos, sociólogos e estudantes de todas as áreas. O atual estágio de evolução humana consegue avançar, pela emergente engenharia genética, até mesmo na manipulação dos caracteres hereditários da constituição da espécie. Há enorme risco de que se introduzam na natureza humana, modificações que suprimam ou significativamente reduzam as suas características 41 transcendentes, criando condições para que se perpetue esse intransitivo consumismo tecnológico de um novo tipo humano, cuja descartabilidade passe a fazer parte de sua natureza. 3.3 A CIDADANIA NO MUNDO GLOBALIZADO A ideia de cooperação norteia a nova sociedade global. A busca da resolução de problemas comuns da humanidade induz às nações a ampliar o compartilhamento de informações e a procurar caminhos para a superação de flagelos comuns como a fome, as guerras, a pobreza e a miséria. Essa interdependência entre Estados nacionais também trouxe novos desafios para a sociedade civil em âmbito internacional. Com a diluição da soberania e a interconexão entre as economias, os Estados perderam o monopólio do seu poder de balizar a vida política e econômica. Nesse sentido, amplia-se, cada vez mais, o espaço de ação dos cidadãos na esfera pública para expressar suas ideias e seus interesses, intercambiando informações e buscando alcançar objetivos comuns. O crescimento das Organizações Não Governamentais, em escala mundial, é uma expressão dessa abertura do espaço público para novos atores não estatais. Cada vez mais, eles desempenham papéis relevantes nas sociedades, interferindo na política e na economia de diversas formas. A globalização econômica e a revolução tecnológica fortaleceram o papel dessas instituições nas mais variadas searas da vida das nações. O contato cada vez mais estreito entre cidadãos de várias nacionalidades e a coincidência de interesses entre povos que vivem em espaços políticos distintos, pavimenta o caminho para o surgimento de uma verdadeira sociedade global e de uma autêntica cidadania mundial. Portanto, hoje já se pode falar no surgimento de um sentimento cidadão em escala planetária, alavancado pelas novas tecnologias, pelas ferramentas de comunicação, pelas redes sociais e pelo poder cada vez maior das organizações não governamentais. O surgimento de uma governança global também impacta na formação do sentimento de cidadania. Organizações não governamentais, mais do que os Estados e as empresas, conseguem mobilizar os cidadãos em defesa dos interesses de certas pautas políticas, econômicas e sociais: o meio ambiente, os direitos humanos, o desarmamento, o comércio justo, o respeito aos animais, a defesa de 42 minorias etc. Essas organizações influenciam não apenas as pautas políticas nacionais, mas também na agenda das organizações internacionais. Um exemplo dessa participação da sociedade civil tem sido observado nas conferências internacionais sobre ambiente e sustentabilidade, como a Rio-92, a Rio +20 e a Conferência de Paris, nas quais o envolvimento de grupos de ambientalistas, empresários, trabalhadores, acadêmicos e cientistas tem sido cada vez maior. Pautas como meio ambiente e direitos humanos atravessam as fronteiras e aproximam os cidadãos. São temas que possuem uma dimensão local, mas também global, gerando a mobilização da cidadania. Como lidar com os desafios da cidadania global sem instituições adequadas para balizá-los? A cidadania nasceu como um conceito inerente à ordem interna dos Estados, mas se torna cada vez mais atrelado a uma perspectiva global. A formação de uma opinião pública mundial interconectada com os desafios do presente traz grandes dilemas para a democracia e para a governabilidade contemporâneas. A fraqueza dos mecanismos decisórios e a ausência de espaços para a atuação da sociedade civil organizada é um problema. Inexiste, por exemplo, um parlamento mundial que vocalize as vozes dos cidadãos do mundo. Da mesma forma, não há um poder mundial capaz de implementar decisões coletivas de forma coesa e organizada no espaço terrestre. A diluição da soberania dos Estados e o enfraquecimento do poder das instituições nacionais, ao mesmo tempo em que abre espaço para a atuação da sociedade civil, não traz soluções para os novos paradigmas da sociedade internacional. Nesse sentido, surge a necessidade de institucionalização da cidadania e de buscar soluções políticas para lidar com os desafios da globalização econômica e da revolução tecnológica. O sistema de governança global se torna cada vez mais complexo: Estados nacionais, organizações governamentais, empresas transnacionais, organizações não governamentais, imprensa, indivíduos etc. Há uma pluralidade de instituições que interagem em escala planetária e que interferem na formação de uma cidadania mundial. Buscando superar os paradigmas tradicionais de funcionamento dos Estados nacionais, as organizações supranacionais desenvolveram mecanismos institucionais de governança regional, como parlamentos e tribunais, de modo a abrigar a 43 vontade dos cidadãos numa escala territorial maior. O problema central da governabilidade em escala mundial é o da legitimidade das instituições. A ideia de legitimidade se relaciona com a noção de representação do poder, de defesa dos direitos fundamentais e de segurança jurídica. Em outras palavras, a justificação do poder se baseava na capacidade do Estado de assegurar segurança, justiça, ordem, paz e liberdade para que os cidadãos buscassem viver suas vidas. Em um mundo cada vez mais marcado pela produção de riqueza em escala gigantesca e de intensos fluxos financeiros, os Estados nacionais perderam a capacidade de assegurar desenvolvimento econômico, reduzir as desigualdades sociais e promover o bem-estar coletivo. A intensificação da globalização deu ênfase aos processos de integração econômica e política, mas não avançou adequadamente no que diz respeito à ampliação dos espaços
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