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Copyright© Dos Autores
9977/1 – 298 – 2021
O conteúdo desta obra é de responsabilidade do(s)
Autor(es), proprietário(s) do Direito Autoral.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Camila Donis Hartmann - Bibliotecária - CRB-7/6472
D635
Direito, mito e sociedade : estudos antropológicos e sociológicos 
do fenômeno jurídico / organização Pietro Nardella-Dellova ; 
coorganizadores e coautores José Antonio Callegari ... [et al.]. - 
1. ed. - São Paulo : Scortecci, 2021.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5529-433-0
1. Direito e antropologia. 2. Antropologia cultural.
3. Sociologia jurídica. 4. Antropologia - Filosofia.
I. Nardella-Dellova, Pietro. II. Callegari, José Antonio.
21-70803
CDU: 34:572
Rua Deputado Lacerda Franco, 98
São Paulo - SP - CEP 05418-000
Telefone: (11) 3032-1179
www.scortecci.com.br
Livraria Asabeça
Telefone: (11) 3032-8848
www.asabeca.com.br
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10 O campo da antropologia jurídica: sua 
consolidação
Ricardo Prestes Pazello172
O presente capítulo é fruto da docência em Antropo-
logia Jurídica para estudantes de direito. Tem por pressupos-
to ser um texto didático que parte de uma compreensão da 
antropologia como estudo da totalidade das relações sociais 
humanas, a partir do método do estranhamento e do crité-
rio ético da alteridade. Trata-se de uma descrição sumária do 
campo de investigação que se convencionou chamar de “an-
tropologia jurídica” e precisa ser complementado – algo que 
não se verá nas linhas a seguir – pelos debates epistemológi-
cos sobre o que significam os campos científicos da antropo-
logia e do direito na modernidade/colonialidade.
Dentro do campo de estudos que conformam a antro-
pologia é a antropologia cultural ou social que tem por preo-
cupação, dentre tantas das suas problemáticas, a questão do 
direito. É nesse sentido que podemos apresentar, como um 
subcampo antropológico, a antropologia jurídica, a qual se 
caracteriza muito mais por possuir uma tradição expressa em 
linguagem teórica comum com reconhecimento da comuni-
dade de pesquisadores do que por um conteúdo irrevogável 
(“o direito”) ou um procedimento de estudos (por exemplo, 
o estudo comparado de realidades jurídicas).
Com isso, a pergunta sobre o que seja a antropologia 
jurídica deve ser diferenciada do questionamento – propria-
mente antropológico-jurídico – acerca do que seja o direito 
para a antropologia (geral e particular). Na verdade, como 
campo científico decorrente da divisão do trabalho social in-
telectual, a antropologia se apropriou da problemática jurí-
dica de tal modo que dela resultam, inclusive, os primórdios 
deste campo de investigações (foram os juristas que se preo-
cuparam em conhecer as realidades coloniais, com o exato 
intuito de mais eficientemente controlá-las). No entanto, esta 
172 Vide dados biográficos e produção de Ricardo Prestes Pazello no final do livro.
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apropriação especializada choca-se com a apreensão de tota-
lidade que, em última instância, a antropologia propõe. Por 
conta desta tensão, inerente à construção das ciências na mo-
dernidade, é que devemos nos questionar não apenas sobre 
o campo (ou subcampo) da antropologia jurídica, compreen-
dendo sua operacionalização interna, como também sobre a 
preocupação de totalidade da qual a antropologia é resultado. 
Nesse sentido, uma segunda questão a ser debatida é sobre 
o que a antropologia, como campo, entendeu como sendo 
o “direito”. Por ora, ficaremos com uma tentativa de descri-
ção do campo da antropologia jurídica. E nesta tentativa, já 
podemos observar algo bastante importante: por trabalhar 
complexamente com seu “objeto”, a antropologia jurídica, 
por vezes, se confunde com história do direito, por outras, 
com a sociologia jurídica, devendo-se perceber que esta con-
fusão é gerada a partir da indefinição de como se encarar o 
próprio direito.
Não é difícil intuir esta indefinição da tradição do cam-
po antropológico-jurídico quando nos deparamos com as 
conceituações que seguem. Para Robert Shirley, o campo do 
direito e da antropologia, como já se observou, engloba três componentes: 
o estudo do direito das sociedades simples e sem Estado, o estudo das 
instituições jurídicas modernas, e o estudo do direito comparado.173
Já para Thaís Colaço, a mesma antropologia jurídica 
representa o estudo do direito das sociedades “simples”, das institui-
ções do direito da sociedade contemporânea, do direito comparado e do 
pluralismo jurídico.174
Tendo em vista estas concepções, resta ressaltado não 
o que se entende pelo fenômeno jurídico mas como se o com-
preende. Sobre isto, inclusive, vale a pena resgatar outros ele-
mentos do texto de Shirley (cuja obra, no geral, servirá de ro-
teiro para o presente tópico) que, para o contexto brasileiro, 
inaugura novo momento para as elaborações da antropologia 
173 SHIRLEY, R. W. Antrop. jurídica. SP: Saraiva, 1987, p. 15.
174 COLAÇO, Thaís Luzia. “O despertar da antropologia jurídica”. Em: _____ 
(org.). Elementos de antropologia jurídica. Florianópolis: Conceito Ed., 2008, p. 29.
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jurídica, antes marcadas pelo positivismo e evolucionismo. 
Ao buscar responder a questão “o que é antropologia legal?”, 
inicia dizendo que “para examinarmos os conceitos de an-
tropologia legal, devemos discutir o problema do direito em 
si”.175 Ocorre que para fazê-lo apela para dicotomização cla-
ro-escura de sociedades sem e com estado, sendo que nas 
primeiras se apresentava o direito “primitivo”. Para a com-
preensão do direito em sociedades onde o estado já exista (e, 
lembremos, que não há de se confundir o estado, em geral, 
com o estado-moderno, em particular) recorre aos modelos 
que se iniciam com a tradição kelseniana da teoria do direito 
(além de Kelsen, também Hart é citado). Não que se reduza 
a esta tradição sua proposta, mas com ela inicia. E após insis-
tir em análises referentes a “povos primitivos” (ou seja, sem 
estado), Shirley conclui aludindo a outro aspecto importante 
da antropologia jurídica, complementar ao estudo do “direito 
em si”. Diz ele que “há certas distinções básicas no tipo de 
pesquisa que os antropólogos fazem no domínio da lei”176 e 
elas se referem aos aludidos componentes citados anterior-
mente: a antropologia legal (e o estudo do “direito primitivo” 
das sociedades simples), a antropologia jurídica propriamente 
dita (que estuda as instituições jurídicas modernas) e o direito 
comparado (que compara tradições jurídicas entre si, sejam 
suas grandes famílias, ordenamentos, leis, institutos ou dis-
positivos normativos).
O que sobressai, portanto, são muito mais “certas dis-
tinções básicas no tipo de pesquisa que os antropólogos fa-
zem” que propriamente o “direito em si”. E ainda que pos-
samos dar ênfase ao estudo do “direito primitivo” como este 
“em si”, já que o primitivo além de significar o antigo e ul-
trapassado também pode querer dizer do antigo e germinal, 
a postura de distanciamento que o método do estranhamen-
to nos exige não permite vermos no binômio sem estado/
com estado a explicação para o fenômeno jurídico em sua 
175 SHIRLEY, R. W. Antropologia jurídica, p. 9.
176 SHIRLEY, R. W. Antropologia jurídica, p. 14.
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totalidade, dentro da totalidade das relações sociais. Uma vez 
mais, ficou ressaltado o campo de pesquisa e não o objeto 
pesquisado.
É por isso que, para este campo de investigações, pro-
pomos apresentá-lo a partir de suas grandes preocupações 
que, na realidade, representam seus quatro grandes ramos 
de estudo, seguindo a senda das definições acima apresen-
tadas. Assim, o campo da antropologia jurídica se dedica ao 
estudo da chamada “antropologia legal” que aparece como 
ramo preocupado com o direito dassociedades simples (de-
nominação antropológica clássica, em sentido inclusive pe-
jorativo, para sociedades antigas ou primitivas, sem estado 
e sem escrita); da “antropologia jurídica propriamente dita” 
ou “em sentido estrito”, a qual, por sua vez, tem por escopo 
operacionalizar o estranhamento e refletir sobre as institui-
ções do direito da sociedade atual (que, na dicotomia com as 
sociedades simples, seriam sociedades complexas); do “direi-
to comparado”, que fricciona (quer dizer, compara) formas 
de juridicidade e ordenamentos jurídicos; e da “pluralidade 
jurídica” cujas problemáticas se dão em torno da diversidade 
jurídica dentro de um mesmo contexto sociopolítico.
Tradicionalmente, somente os três primeiros ramos 
ou preocupações são explicitados pelo campo. A questão da 
“pluralidade jurídica” é contribuição evidente de realidades 
coloniais que forjaram uma antropologia jurídica periférica. 
Subsidiam-na, notadamente, os desenvolvimentos teóricos 
no continente africano e no latino-americano.
10.1 O estudo do direito das assim chamadas socieda-
des simples
Em franco diálogo com a história do direito, a área que 
mais notabilizou a antropologia jurídica foi a que se preo-
cupou com o “direito arcaico”. Aqui, há todo um desenvol-
vimento teórico oriundo das principais escolas antropológi-
cas modernas. Na realidade, referidas escolas são reflexo do 
desenvolvimento do capitalismo, a partir de sua irradiação 
europeia. O processo de expansão colonial, iniciado com as 
grandes navegações, após a primeira consolidação das rotas 
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marítimas comerciais, levou a um sistema mundial de domi-
nação geopolítica conhecida por imperialismo. As grandes 
escolas antropológicas modernas, portanto, são desdobra-
mentos do imperialismo, como fase mais avançada do capita-
lismo até então, no século XIX.
Na construção epistêmica das ciências sociais, assim, 
adentra uma operação que marcaria a antropologia em defi-
nitivo: a oposição sofisticada entre o simples e o contempo-
râneo. Dualidade comparativa que se apresenta com sofisti-
cação porque as sociedades não desenvolvidas do ponto de 
vista capitalista recebem a caracterização de “simples”, em 
contraposição à complexidade da sociedade industrial e colo-
nial europeia, a qual, como que sintomaticamente assumindo 
a filosofia da história de Hegel, teria por ápice o seu tempo 
“presente”, oitocentista.
É dessa maneira que a Henry Summer Maine se torna 
possível escrever seu clássico “O direito antigo”177, a partir de 
estudos de índole colonial sobre a Índia. A escola britânica, 
convivendo mais benfazejamente ainda que nem por isso me-
nos imperialmente com as colônias do Reino Unido, geraria, 
inclusive, grandes análises etnográficas, muito importantes 
para o desenvolvimento antropológico do século XX, mais 
cioso de seu passado de dominação colonial, mas também 
não por isso afastado da sanha “simplificadora” de socieda-
des como a dos trobriandeses, com os estudos de Malinows-
ki178, ou de africanos ou mesmo australianos, sob a pena de 
Radcliffe-Brown.179
Com características opostas à britânica, a escola france-
sa não teve por marca o “convívio” com suas realidades co-
loniais, até porque sua tradição jurídica (a “legalista” da famí-
lia romano-germânica) não o permitia. E é desse legado que 
177 Ver MAINE, H. Summer. Ancient Law. NY: Cosimo, 2005.
178 Ver MALINOWSKI, B. Crime e costume na sociedade selvagem. Trad. de 
Maria Clara C. Dias. 2 ed. Brasília: UnB, 2008.
179 Ver RADCLIFFE-BROWN, A. R. Estr. e funç. na soc. primitiva. Td. de 
Nathanael C. Caixeiro. Petrópolis: Vozes, 1973.
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advêm as importantes contribuições de Émile Durkheim180 
e, posteriormente, de seu sobrinho, Marcel Mauss181, dedi-
cando-se, por exemplo, ao estudo dos polinésios. Menos co-
nhecidas entre nós, as escolas holandesa e estadunidense têm 
papel de relevo nesta história. As obras de Vollenhoven182 e 
Ter Haar183, este último dedicado à compreensão do direito 
na Indonésia, e de Roy Barton184, Hoebel e Llewelyn185, com 
etnografias sobre populações filipinas e nativas da América 
do Norte, assinalam o reconhecimento que a literatura da 
história da antropologia confere, para os desdobramentos da 
antropologia jurídica.
Em toda esta discussão, destaca-se a possibilidade de 
se encontrar o direito em qualquer sociedade antiga, sendo 
que esta constatação nos leva à reflexão sobre a universalida-
de do fenômeno jurídico como uma construção das ciências 
sociais modernas. De outra banda, podemos enfatizar o fato 
de que o direito é buscado para além de a realidade estatal. 
Assim, o direito é encontrado em regras e costumes, havendo 
uma identificação última entre direito e lei. É por isso que 
esta preocupação recebe a denominação de “antropologia le-
gal”. Enfim, se, por um lado, é possível encontrar o direito 
em sociedades sem estado, por outro lado, isto só se dá em 
sociedades que justamente não têm a marca da estatalidade, 
180 Ver DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. Tradução de Eduar-
do Brandão. 3 ed. SP: Martins Fontes, 2008.
181 Ver MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas socie-
dades primitivas”. Em: _____. Sociologia e antropologia. Tradução de Paulo Neves. 
3 reimp. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 183-210 e 265-294.
182 Ver VOLLENHOVEN, Cornelis van. Het adatrecht van Nederlandsch-
-Indië. Leiden: E. J. Brill, 1931.
183 Ver HAAR, B. ter. Adat Law in Indonesia. NY: Inst. of P. Relations, 1948.
184 Ver BARTON, Roy F. Ifugao Law. Oakland: University of California Publi-
cations, 1919.
185 Ver HOEBEL, E. Adamson; LLEWELYN, Karl N. The Cheyenne way: 
Conflict and Case Law in Primitive Jurisprudence. Norman, Oklahoma: University 
of Oklahoma Press, I941.
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gerando a inflexão de estudo sobre o direito saindo-se do 
estado e aproximando-se à ideia de “lei”.
Haveria, então, a incidência universal de uma “cultura 
legal” cujas características seriam visíveis pelo razão de existir 
uma “acumulação histórica das normas de vida social”. As 
leis aparecem como sendo sempre úteis, verdadeiras e neces-
sárias, assim como conhecidas por todos, e mesmo que se 
justifique tal visualização por “bases sociais e econômicas”186 
específicas não deixa de subsistir certo universalismo nesta 
ordem de análises.
O processo lógico que a antropologia legal encontrou 
para explicar essa “universalidade” é o retratado nas princi-
pais formas de produção e garantia desse direito arcaico. Tra-
ta-se de perceber que três instituições são sua fonte: a família, 
a partir da qual se dá a ontogênese da lei; a comunidade, por 
implicar a interdependência socioeconômica, ou seja, a rela-
ção social entre os comunitários; e, por fim, a criação da ad-
ministração, por lideranças, corporações e governos. Eis que 
família, comunidade e administração permitem, desde um 
processo lógico, conceber-se o direito como fenômeno pré-
-moderno e, por vezes, pré-estatal. Daí a preocupação com as 
assim chamadas sociedades simples.
Um exemplo possível, resgatando as bases concretas 
específicas de uma sociedade simples, poderia ser dado a par-
tir dos inuits ou esquimós, para os quais a lei da divisão da 
comida é mais do que útil, pois uma verdade/necessidade 
social. Conhecida por todos desde a primeira socialização fa-
miliar e, acentuadamente presente, no âmbito comunitário, 
leva à compreensão social de que “quem não caça ou produz 
não come”, sendo algo eticamente aceito pôr fim à vida hu-
mana quando se esvaem as condições físicas e psíquicas para 
a realização do trabalho. Desse jeito, percebemos a existência 
de sanções, mesmo que não haja estado entre os esquimós.
O que é de se notar, porém, é que a confusão que a teo-
ria “científica” do direito busca desfazer, já no século XX, não186 SHIRLEY, R. W. Antropologia jurídica, p. 12.
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sensibiliza o campo antropológico preocupado com o estu-
do do “direito” das sociedades simples: normas sociais, éticas 
ou morais, e jurídicas se entrelaçam, realçando a totalidade do 
“objeto”, visualizado de maneira indiscriminada. A afirmação 
científica contextual de um subcampo, como o da antropologia 
legal, ocorre, porém, independentemente dos avanços da teoria 
do direito. Se é verdade que a antropologia jurídica, como seg-
mento da antropologia geral, não faz prevalecer os interesses de 
estudos do subcampo antropológico-legal, é verdade que man-
tém intacto seu pressuposto, o universalismo jurídico, presente 
em toda e qualquer norma social, costume ou moralidade.
10.2 O estudo das instituições do direito da sociedade 
atual
Como vimos, a sofisticação da oposição que parte do 
simples chega ao complexo concebendo-o como contempo-
râneo. Portanto, não é um complexo qualquer, mas o legatário 
da história da civilização moderna e que desemboca sociedade 
atual e suas instituições. Aqui, a antropologia jurídica faz aber-
to diálogo com a sociologia do direito, a fim de estabelecer 
uma análise ampliada do fenômeno jurídico moderno.
Trata-se, por sua vez, de levar às últimas consequências 
o método do estranhamento ou relativização próprio da an-
tropologia. E estas últimas consequências dão um sinal da di-
ficuldade que a sociedade capitalista moderna e desenvolvida 
teve de se desvencilhar da certeza de sua superioridade histó-
rica. Um verdadeiro parto epistêmico possibilita o surgimen-
to de uma “antropologia jurídica propriamente dita”, ou seja, 
da utilização verdadeira do método, referido à sociedade que 
“verdadeiramente interessa” conhecer – o resto é exotismo.
Compreendendo, contudo, o estado como um mito 
moderno (ou uma ficção jurídica, como não deixa de ser 
igualmente para a doutrina jurídica), mas como um mito que 
tem efeitos práticos centrais, busca-se estudar as instituições 
oficiais como processos rituais.
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Dentre os vários exemplos possíveis, poderíamos citar 
o estudo dos tribunais187, em geral, a partir do papel onipo-
tente dos juízes e a inacessibilidade a sua linguagem por parte 
dos jurisdicionados; do tribunal do júri188, em especial, como 
teatralização e dramatização, ritualismos exacerbados; das de-
legacias189, que constroem socialmente a figura do infrator 
(aqui, é patente o contato com a criminologia crítica); dos 
órgãos da administração pública190, enfocando a formação de 
consensos, a existência de dissensos e a mobilização de mo-
ralidades; e do ensino jurídico191, que reproduz o comporta-
mento típico do bacharel detentor erudito do saber.
A antropologia jurídica em sentido estrito, assim, dá 
ênfase aos costumes e práticas quotidianas que escapam à 
regulação prévia da lei, numa busca incessante pela leitura 
e interpretação das entrelinhas do fenômeno jurídico, com 
especial relevo para as instituições modernas especializadas 
na aplicação do direito.
10.3 O estudo do direito comparado
O direito comparado sói apresentar-se como discipli-
na autônoma em muitas escolas de formação jurídica, nota-
damente as europeias. Assim, autonomizou-se como campo 
187 Ver, por exemplo: LATOUR, Bruno. La fabrique du droit: une etnographie du 
Conseil d’État. Paris: La Découverte, 2004; OLIVEIRA, Luís R. Cardoso de. 
“Da moral à eticidade via questões de legitimidade e eqüidade”. Em: OLIVEIRA, 
Roberto Cardoso de; _____. Ensaios antrop. sobre moral e ética. RJ: Tempo Brasi-
leiro, 1996, p. 105-142.
188 Ver SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Jogo, ritual e teatro: um estudo 
antropológico do tribunal do júri. SP: Terceiro Nome, 2012.
189 SCHUCH, Patrice. Práticas de justiça: antrop. dos modos de governo da infância 
e da juventude no contexto pós-ECA. PA: UFRGS, 2009.
190 BEVILAQUA, Ciméa B. Consumidores e seus direitos: um estudo sobre conf. 
no mercado de consumo. SP: Humanitas; NAU/USP, 2008.
191 Ver LIMA, Roberto Kant de. A antrop. da acad.: quando os índios somos nós. 
Petrópolis: Vozes; Niterói: UFF, 1985.
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científico, por medrar linguagem, preocupação e reconheci-
mento próprios, sendo de se ressaltar o fato de que tal au-
tonomização se deu em contextos onde a própria tradição 
metropolitana o exigiu.
Apesar de ser nota indelével da própria antropologia 
o método comparativo, a autonomia do direito comparado 
se dá por enfatizar a demonstração de semelhanças e dife-
renças entre institutos jurídicos específicos ou mesmo orde-
namentos completos, contrastando-se realidades sociais dis-
tintas. Poderíamos dizer que se trata de estabelecer o ciclo 
completo tanto da antropologia legal quanto da antropologia 
jurídica em sentido estrito, absorvendo estas preocupações e 
subordinando-as à totalidade comparativa. No fundo, as duas 
primeiras preocupações são antropologias jurídicas “em si”; 
o direito comparado é “entre si”.
A análise comparativa levou a, por exemplo, estabe-
lecer-se a compreensão aproximativa de institutos jurídicos 
específicos, conforme o desenvolvimento de etnografias so-
bre realidades sob a mira dos antropólogos. Assim, o estu-
do da dívida-contrato, o injô, entre os Tiv, realizado por Paul 
Bohannan192, permitiu a comparação com a cláusula-dívida, 
presente no imaginário ocidental.
Em termos de antropologia jurídica para os cursos de 
direito, todavia, mais eloquente talvez seja o fato de que te-
nhamos de colocar em seu devido lugar a tradição jurídica 
europeia. E isto é possível de se visualizar não por conta de 
análises cirúrgicas a respeito de institutos específicos passí-
veis de comparação de sociedades para sociedade, mas pela 
via do contraste entre ordenamentos jurídicos completos ou 
mesmo de sistemas geopolíticos de classificação do direito.
Neste sentido, tais sistemas jurídicos geopolitica-
mente considerados nos levam a perceber que o chamado 
direito continental europeu, caracterizado pelo primado da 
192 BOHANNAN, Paul. “A categoria injô na sociedade Tiv”. Td. Alba Zaluar 
Guimarães. Em: DAVIS, Shelton H. (org.). Antrop. do direito: estudo comp. de 
categ. de dívida e contrato. RJ: Zahar, 1973, p. 57-69.
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legalidade e das codificações, não só não é o único a contras-
tar com o direito anglo-saxão, em que prevalece o costume e 
o precedente, como também não é a melhor designação para 
o conhecimento da tradição jurídica na América Latina.
Mario Losano, em seu estudo comparativo dos gran-
des sistemas jurídicos193, notou muito bem, até por ser um 
“brasilianista”, que o direito continental europeu influencia 
decisivamente, mas não se confunde com o direito sul-ameri-
cano (poderíamos chamar, sem grandes prejuízos de intelec-
ção, direito latino-americano), uma vez que este se distingue 
pela sua marca colonial, que gera uma pluralidade jurídica su-
bordinada a um centro difusor da “legitimidade” jurídica, as 
regras oriundas do estado metropolitano.
Assim, a teoria do direito, especialmente no estudo da 
teoria do direito latino-americana, não pode se reduzir às ma-
trizes do Common Law ou do Civil Law, pois tem de abrir-se a 
sua margem externa, o direito latino-americano. Além disso, 
no ocidente um outro sistema precisa ser considerado, ainda 
que de sobrevida extemporânea – o direito soviético e sua 
história de reconfigurar a legalidade sob a égide de conteúdos 
não capitalistas (uma contradição para os próprios horizon-
tes marxistas que dão sentido a este sistema).
Para além de o ocidente, pelo menos mais quatro ou-
tros grandes sistemas “jurídicos” (no sentido genérico de 
normatividade aduzido pelos comparatistas) podem ser sub-
linhados, a título ilustrativo: o direito islâmico, imbuído da 
teologia muçulmana; o direito indiano, marcado pelateologia 
bramânica; o direito asiático oriental, crispado pela tradição 
chinesa confuciana; e o direito africano, em que a plêiade das 
diversas ordens consuetudinárias cria um mosaico quase que 
inexprimível em seu todo pelo direito comparado. Não cabe, 
nesta apresentação que fazemos, verticalizar as análises acer-
ca de cada um destes oito grandes sistemas jurídicos, mas 
193 Conferir LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos: introdução aos sis-
temas jurídicos europeus e extra-europeus. Tradução de Marcela Varejão. São Paulo: 
Martins Fontes, 2007.
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sim fazê-los presentes para que notemos a necessidade de 
localizar a nossa construção teórica ocidental e colonizada, 
de um direito que vem ou da “lei” ou do “costume”. Esta é 
uma falsa dualidade, fruto de mitologemas heleno-romano-
cêntricos, do eurocentrismo das ciências sociais e do etno-
centrismo ocidental que fundamenta os limites ideológicos 
de nosso tempo.
10.4 O estudo da pluralidade jurídica
Se entre o “simples” e o “contemporâneo” vige uma 
oposição sofisticada, não menos etnocentrada é a ampliação 
da diferença espacial à temporal. Filosoficamente, podería-
mos questionar sobre o que é o “contemporâneo”. Antro-
pologicamente, diríamos: contemporâneo (ou presente) é o 
“eu”, o “ego”. Diferentemente das preocupações anteriores 
que isolam, mesmo quando comparam, os institutos/orde-
namentos jurídicos, a pluralidade jurídica194 busca constatar 
– faticamente – a existência de vários “direitos” em mesmo 
espaço e, além disso, seus conflitos.
A despeito de se erigir como um paradigma teórico e 
um modelo de análise epistemológica, que na América Latina 
recebe fortes influências das perspectivas sociológicas empí-
ricas (estudos da relação entre estado/direito e as sociedades 
indígenas), a pluralidade jurídica tende a, antropologicamen-
te, valer mais como constatação do que como prescrição, 
mais ontologia que deontologia.
Fundando-se na dicotomia entre monismo estatal e plu-
ralidade social, faz asseverar o entendimento de que o estado 
194 O tema da pluralidade jurídica tem vasta literatura e, no Brasil, costuma ser 
referenciado pela obra de WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: funda-
mentos de uma nova cultura no direito. 4 ed. rev. e atualiz. São Paulo: Saraiva, 2015. 
Ver também SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. “Autodeterminação dos 
povos e jusdiversidade”. Em: ALMEIDA, Ileana y ARROBO RODAS, Nidia 
(orgs.). En defesa del pluralismo y la igualdad: los derechos de los pueblos indios y el 
estado. Quito: Abya-Yala, 1998, p. 179-241.
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não é fonte exclusiva de normatividade. Apesar de abrir espaço 
para uma análise insurgente da gênese do direito, não encami-
nha a discussão naturalmente para uma crítica do direito es-
tatal, pois por vezes legitima a convivência com este. Em um 
mesmo espaço geopolítico cabem várias ordens normativas, 
inclusive com fontes distintas em suas legitimidades. Diante 
disso, a tendência da análise jurídica – e nisso a antropologia 
jurídica segue a tendência – é traduzir na linguagem do direito 
moderno as demais normatividades. Daí a noção de plurali-
dade jurídica (um silogismo: se há pluralidade social e se para 
cada “social” há uma fonte jurídica, logo há uma pluralidade 
jurídica). Mesmo que sejam várias ordens em um mesmo es-
paço, o contemporâneo tem sua fronteira com o espaço alheio 
– e para o “direito estatal” este alheio são as realidades sociais 
que não se harmonizam com seus pressupostos, desde as et-
nias não brancas até as práticas anômicas ou subversivas.
Por tudo isso, são formas gerais da pluralidade jurídica 
a sua intra, extra e não-estatalidade. A pluralidade jurídica in-
traestatal reside no confronto normativo de instituições ofi-
ciais igualmente legitimadas (um fato sociológico inconteste); 
a pluralidade jurídica extraestatal, na qual o estado-nação fric-
ciona-se com nações autóctones ou transplantadas, em geral, 
pelo processo colonial ou de divisão do trabalho entre nacio-
nais e imigrantes; e, por fim, a pluralidade jurídica não-esta-
tal, que permite conhecer das experiências revolucionárias, a 
maioria delas não sendo estatal no sentido do estado que aí 
está, mas algumas propondo uma transição para a não-esta-
talidade factível.
A pluralidade jurídica, sem dúvidas, é um dos grandes 
desafios a ser enfrentado pela construção atual da antropo-
logia jurídica, uma vez que permite o aparecimento de novos 
atores jurídicos no cenário, a questionar as fórmulas hegemô-
nicas do direito. Seus grandes exemplos são os movimentos 
sociais e as comunidades tradicionais e povos indígenas, os 
quais reivindicam direitos contra a sua criminalização mas 
também em prol de sua afirmação histórica, às vezes levando 
à contestação do direito mesmo.
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A crítica, aliás, ao discurso da legitimidade jurídica e do 
acesso à justiça, que a etnografia do direito oficial pode enfren-
tar muito bem, e a visualização factual da pluralidade jurídica 
são contribuições do campo antropológico para a teoria crítica 
do direito, contribuições as quais não podem ser minoradas. 
Ainda assim, é preciso estar atento para o fato de que a especi-
ficidade do fenômeno jurídico na modernidade/colonialidade 
capitalista remanesce negligenciada pela antropologia jurídica, 
seja no ramo em que for, e este é um acerto de contas195 que tal 
campo de investigação ainda precisará realizar.
11 Senso de justiça e sentimento do justo: a 
jornada do louco
Wilson Madeira Filho196
Pensar senso de justiça e sentimento do justo implica, 
a nosso ver, forçosamente, em um viés culturalista amplo. 
Posto que ter noção ou noções de justiça, dar-lhes sentido e 
subjetividade é um constructo sociocultural. A ideia guarda-
-chuva de que o Direito é o espaço epistemológico do debate 
sobre teorias da justiça tem sido recorrente pelo menos desde 
os anos 1980, todavia, frise-se, em geral postulando concomi-
tantemente perspectivas interdisciplinares e pós-positivistas.
Esse percurso semelha o que muitos estudiosos do tarô, 
entre os quais Juliet Sharman-Burke (2012), classifica como a 
Jornada do Louco, a partir do emblemático arcano medieval, 
em tarô ilustrado por Giovanni Caselli. Nesse sentido, o tarô 
poderia ser interpretado a partir de chaves-mestras com base 
no modelo da psicologia junguiana, centrado nos arquétipos 
(arcanos maiores) e nas quatro funções da consciência humana 
195 Para uma aproximação, ainda que tangencial, a esta problemática, ver PA-
ZELLO, Ricardo Prestes. “Acumulação originária do capital e direito”. Em: In-
SURgência: revista de direitos e movimentos sociais. Brasília: IPDMS; PPGDH/
UnB; Lumen Juris, vol. 2, n. 1, janeiro-junho de 2016, p. 66-116.
196 Vide dados biográficos e produção de Wilson Madeira Filho no final do livro.

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