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14-OKAIGUSIKU--Alberto-Eikiti--O-corpo-violado-em-Tarantula

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Curitiba,	Vol.	8,	nº	15,	jul.-dez.	2020											ISSN:	2318-1028																																																								REVISTA	VERSALETE	
	
	
OKAIGUSIKU,	A.	E..	O	corpo	violado...	 266	
	
	
O	CORPO	VIOLADO	EM	TARÂNTULA:	GÊNERO	E	SEXUALIDADE	
QUESTIONADOS	
VIOLATED	BODY	IN	TARANTULA:	GENDER	AND	SEXUALITY	QUESTIONED	
	
Alberto	Eikiti	Okaigusiku1	
	
RESUMO:	 Analisando	 problemáticas	 de	 gênero	 e	 sexualidade	 em	 Tarântula	 (1984),	 este	 estudo	
propõe	discussões	 acerca	 da	 narrativa,	 questões	 de	 identidade	 e	 representação.	O	 artigo	 debate	 a	
reiteração	da	heteronormatividade,	dissidências	de	gênero,	questões	de	desejo,	corpo	e	identidades	
sociais.	Assim,	investiga-se,	através	de	estudos	feministas	e	queer	(BUTLER,	2010;	2004;	LOURO,	2000;	
1997),	as	experiências	vividas	pela	personagem,	como	a	violação	do	corpo	reflete	discussões	acerca	
do	 ser	 mulher	 e	 como	 a	 obra	 trabalha	 com	 o	 conflito	 da	 sexualidade	 na	 personagem,	 trazendo	
contribuições	para	o	debate	sobre	violências	simbólicas	e	desigualdades	sociais.	
Palavras-chave:	identidade;	sexualidade;	literatura.	
ABSTRACT:	Analyzing	 issues	 about	 gender	 and	 sexuality	 in	Tarantula	 (1984),	 this	 study	 brings	 a	
discussion	 about	 the	 narrative,	 identity	 issues	 and	 representation.	 The	 article	 discusses	
heteronormativity	reiteration,	gender	dissent,	desire,	body	and	social	identities.	Thus,	and	based	on	
queer	and	feminist	studies	(BUTLER,	2010;	2004;	LOURO,	2000;	1997),	it	investigates	the	experiences	
lived	by	the	character,	how	body	violation	reflects	debates	on	the	condition	of	being	a	woman	and	how	
the	 story	 deals	 with	 the	 character’s	 sexuality	 conflict,	 bringing	 contributions	 to	 the	 debate	 about	
symbolic	violence	and	social	inequalities.	
Keywords:	identity;	sexuality;	literature.	
	
	
1. INTRODUÇÃO	
	
Tarântula,	escrito	por	Thierry	Jonquet	(1954-2009)	em	1984,	traz	discussões	a	
respeito	das	problemáticas	de	 gênero	 e	 sexualidade,	 uma	vez	que	 elas	 constituem	a	
 
1	Mestrando,	UFMS.	
	
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narrativa	de	maneira	curiosa.	A	história	conta	as	vivências	de	Ève	entrelaçadas	com	as	
de	Vincent,	que	no	decorrer	da	obra	se	apresenta	como	a	própria	personagem	antes	de	
ser	 sequestrada	 e	 ter	 passado	 pelo	 processo	 de	 transição	 de	 gênero	 forçada.	 As	
vivências	de	Ève	também	são	entrelaçadas	com	as	de	Alex,	um	amigo	de	infância	que	ela	
reencontra	após	o	sequestro.	
Ève	é	apresentada,	logo	no	início,	como	uma	vida	de	submissão	e	expressão	de	
feminilidade	(atrelada	ao	corpo,	aos	desejos	e	interesses	da	personagem),	enquanto	a	
vida	de	Vincent	é	explorada	a	partir	da	violência.	A	narrativa	começa	por	contar,	de	
maneira	linear,	o	sequestro	de	Vincent	por	Lafarge	e	o	processo	de	transformação	a	qual	
é	 submetido.	 Ela	 aborda	 toda	 a	 experiência	 de	 sequestro,	 das	 pequenas	 cirurgias	 à	
domesticação	 daquele	 corpo	 e	 construção	 de	 uma	 identidade	 outra.	 Essa	 vivência	
também	 é	 marcada	 pelo	 desenvolvimento	 do	 afeto	 entre	 o	 sequestrado	 e	 seu	
sequestrador,	 que	 passa	 a	 ser	 chamado	 de	 “amo"	 e	 recebe	 o	 nome	 de	 Tarântula:	
“Chamava-o	de	“Tarântula”,	em	alusão	a	seus	terrores	passados.	Tarântula,	um	nome	de	
ressonância	feminina,	um	nome	de	animal	repugnante	que	não	combinava	com	o	sexo	
dele	 nem	 com	 a	 extrema	 sofisticação	 de	 que	 ele	 dava	 mostra	 na	 escolha	 de	 seus	
presentes...”	(JONQUET,	2011,	p.	65).	
Como	canais	que	desembocam	nas	mesmas	águas,	 o	 leitor	passa	a	 estabelecer	
relações	entre	Ève	e	Vincent	no	decorrer	da	narrativa	intercalada.	Da	mesma	forma	que	
Vincent,	 a	 violência	 também	 está	 presente	 na	 narrativa	 de	 Ève,	 porém,	 com	
representações	 simbólicas	 de	 violência	 feminina.	 Em	 sua	 trajetória,	 a	 personagem	 é	
descrita	 pintando,	 se	 maquiando	 e	 explorando	 seu	 corpo.	 Seu	 amo	 a	 envolve	 em	
episódios	de	prostituição,	e	há	a	construção	do	relacionamento	entre	Ève	e	Lafarge,	que	
será	amplamente	explorado	mais	adiante	na	narrativa.	No	final	da	obra,	Ève	é	salva	por	
Lafarge	em	um	episódio	de	sequestro	e	se	vê	dividida	entre	sua	liberdade	e	seu	“amo”	
(nesse	 ponto,	 o	 leitor	 já	 tem	 provas	 explícitas	 de	 que	 Ève	 e	 Vincent	 “são	 a	 mesma	
	
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pessoa”),	colocando	em	foco	os	grandes	questionamentos	da	personagem	quanto	à	sua	
identidade.	
A	obra,	que	 também	já	 foi	adaptada	para	o	cinema	através	das	mãos	de	Pedro	
Almodóvar	 em	 A	 pele	 que	 habito	 (2011),	 é	 apresentada	 de	 maneira	 diferente	 na	
produção	argentina.	Em	Tarântula,	são	exploradas	questões	atreladas	à	identidade	de	
Ève,	levantando	questionamentos	sobre	sua	existência	como	ser	humano,	seus	desejos	
e	as	construções	culturais	a	respeito	do	ser	mulher	e	do	ser	homem.	Esses	termos	são	
pensados	a	partir	de	princípios	altamente	essencialistas	e	associados	a	papeis	de	gênero	
(LOURO,	1997).	 Por	outro	 lado,	 a	 obra	de	Almodóvar	 trabalha	 a	 violência	 com	mais	
afinco	 e	 não	 deixa	 dúvidas	 quanto	 aos	 sentimentos	 da	 personagem	 principal	 e	 sua	
identidade,	finalizando	a	narrativa	com	sua	fuga.	
Sendo	assim,	faz	parte	do	construto	teórico	deste	trabalho	os	estudos	feministas	
(BUTLER,	2010;	2004;	LOURO,	2000;	1997),	pois	ajudam	a	melhor	compreender	tais	
conceitos	e	questões	da	ordem	do	gênero	como	construção	cultural,	sendo	mais	bem	
explorados	nos	subtítulos	que	seguem.	Além	do	mais,	esses	estudos	também	auxiliam	
as	 reflexões	 sobre	 os	 desejos	 e	 a	 sexualidade	das	 personagens	 e,	 principalmente,	 as	
normas	que	regulam	e	“normalizam”	as	experiências	desses	corpos,	sendo	que	falar	de	
identidade,	segundo	Judith	Butler	(2010),	envolve	falar	de	gênero,	sexo	e	sexualidade.	
Segundo	Butler	(2004),	há	regras	e	políticas	que	fazem	com	que	as	pessoas	sejam	
tomadas	como	“normais”,	sendo	o	gênero	regulado	pela	norma.	A	norma	a	que	me	refiro	
diz	 respeito	 à	 concepção	 ocidental,	 mesmo	 que	 situada	 em	 diferentes	 momentos	
cronológicos,	 onde	 experiências	 são	 generificadas	 e	 se	 constroem	 culturalmente	
concepções	 de	 gênero,	 mesmo	 que	 nem	 sempre	 visíveis	 aos	 olhos	 acríticos.	 Butler	
(2004,	p.	41)	nos	diz	que	“normas	podem	ou	não	ser	explícitas	e,	quando	operam	como	
princípio	normalizador	em	práticas	 sociais,	 elas	 comumente	permanecem	 implícitas,	
difíceis	 de	 se	 ler	 e	 mais	 clara	 e	 dramaticamente	 discerníveis	 nos	 efeitos	 que	 elas	
produzem”.	
	
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Tais	 compreensões	 auxiliam	na	 análise	 do	 objeto,	 uma	 vez	 que	 a	 contribuição	
desses	estudos	permite	entender	os	confrontos	identitários	que	o	gênero	(juntamente	
com	suas	normas)	pode	produzir	dentro	de	uma	concepção	binária	de	ver	o	mundo	e,	
por	conseguinte,	de	ver	o	gênero.	
Se	por	um	lado	a	compreensão	binária	de	gêneros	produz	mulher	como	não	sendo	
“nem	o	sujeito	nem	o	seu	Outro,	mas	uma	diferença	da	economia	da	oposição	binária,	
um	ardil,	ela	mesma,	para	a	elaboração	monológica	do	masculino”	(BUTLER,	2010,	p.	
40),	essa	mesma	construção	pautada	na	diferença	também	sugere	a	relação	que	ambos	
os	 lados	 desse	 binarismo	 constroem	 discursivamente.	 Os	 estudos	 de	 Rosana	 Santos	
(2019)	 e	 Pierre	 Bourdieu	 (2012)	 auxiliam,	 portanto,	 na	 compreensão	 da	 produção	
cultural	da	heteronormatividade	e	os	 recursos	 retóricos	que	mantém	a	binaridade	e	
produzem	a	verticalidade	do	poder	nesses	polos.	
Dessa	forma,	o	presente	artigo	visa	problematizar	as	relações	que	o	leitor	pode	
estabelecerna	obra,	 identificando	epistemologias	e	ontologias	que	datam,	não	só	do	
momento	 da	 concepção	 de	 Tarântula,	 mas	 refletem	 também	 nos	 tempos	 atuais.	 A	
abordagem	é	dividida,	 para	melhor	 compreensão,	 primeiramente	 em	uma	discussão	
sobre	as	problemáticas	em	torno	das	identidades	construídas	no	texto	e,	em	seguida,	
das	construções	de	sexualidade	que	envolvem	as	personagens.	
É	relevante,	contudo,	ressaltar	que	a	pesquisa	sobre	Tarântula	trata	da	leitura	da	
obra	 traduzida	 por	 André	 Telles.	 Tendo	 em	 vista	 que	 a	 análise	 perpassa	 também	 a	
leitura	 de	 outro,	 é	 importante	 entendermos	que	 o	 processo	de	 tradução	 traz	 para	 a	
nossa	língua	a	“visada”	da	língua	traduzida	(SELIGMANN-SILVA,	1999,	p.	89).	
Esse	 delicado	 processo	 feito	 por	 Telles,	 ao	 procurar	 transcrever	 o	 que	Márcio	
Seligmann-Silva	chama	de	sentimento	de	“saudade”	da	língua	originária,	nos	faz	pensar	
sobre	como	as	violências	específicas	a	serem	analisadas	são	representadas	na	 língua	
portuguesa	e,	inclusive,	a	relação	que	o	próprio	processo	de	tradução	tem	com	a	ciência	
da	 linguagem.	Nas	reflexões	que	o	autor	 faz	sobre	a	 linguagem	em	Walter	Benjamin,	
	
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Seligmann-Silva	faz	essa	relação	com	a	própria	filiação	ao	romantismo:	“a	definição	da	
tradução	 como	 algo	 que	 em	 certa	 medida	 ultrapassa	 o	 original	—	 assim	 como	 nos	
românticos	—	implica	para	Benjamin,	como	ele	afirmou	posteriormente	em	1928,	uma	
associação	neste	âmbito	entre	a	ciência	e	a	arte	(III	121),	o	que	nos	traz	de	volta	(outra	
vez)	aos	românticos.”	(SELIGMANN-SILVA,	1999,	p.	90).	
Tais	associações	não	são	por	acaso	de	interesse	ao	objeto	aqui	estudado,	uma	vez	
que	 a	 obra	 Tarântula,	 de	 Thierry	 Jonquet,	 nos	 apresenta	 exatamente	 o	 processo	
científico	de	construção	de	significados.	Significados	esses,	como	discutiremos	a	seguir,	
que	cruzam	as	vivências	de	Ève-Vincent	nos	limiares	dos	gêneros	e	das	sexualidades.	
	
2. IDENTIDADE	E	BINARIDADE	EM	TARÂNTULA	
	
Dentre	os	diversos	conflitos	abordados	por	Jonquet,	a	identidade	da	personagem	
Ève	é	problematizada,	tanto	pela	obra	quanto	pelo	leitor,	e	seu	lugar	como	“pessoa”	no	
mundo	 se	 torna	 um	 confronto	 dentro	 da	 narrativa.	 Segundo	 Butler	 (2010),	 a	
constituição	da	identidade	perpassa	a	problemática	em	torno	do	gênero,	do	sexo	e	da	
sexualidade.	 Sendo	 assim,	 pode	 Ève,	 que	 durante	 a	 narrativa	 coloca	 o	 leitor	 em	
questionamento	a	respeito	de	seu	lugar	nessa	problemática,	se	encontrar	destituída/o	
de	sua	condição	de	pessoa?	
	
Em	sendo	a	“identidade”	assegurada	por	conceitos	estabilizadores	de	sexo,	gênero	
e	sexualidade,	a	própria	noção	de	“pessoa”	se	veria	questionada	pela	emergência	
cultural	 daqueles	 seres	 cujo	 gênero	 é	 “incoerente”	 ou	 “descontínuo”,	 os	 quais	
parecem	 ser	 pessoas,	 mas	 não	 se	 conformam	 às	 normas	 de	 gênero	 da	
inteligibilidade	cultural	pelas	quais	as	pessoas	são	definidas.	 (BUTLER,	2010,	p.	
38).	
	
Essa	 noção	 de	 inteligibilidade	 é	 definida	 pela	 autora	 a	 partir	 da	 relação	 de	
coerência	e	continuidade	entre	sexo,	gênero,	prática	sexual	e	desejo,	que	tem	seu	papel	
na	instituição	da	norma	e,	por	conseguinte,	no	que	foge	da	mesma.	Estabelecendo	essa	
	
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relação	a	 respeito	da	 identidade	da	personagem,	a	narrativa	constrói,	portanto,	uma	
“identidade	 de	 gênero”	 outra,	 que	 está	 em	 constante	 confronto	 com	 a	 matriz	 de	
inteligibilidade,	e	que	explora	os	limites	e	os	objetivos	reguladores	desse	mesmo	campo.	
Para	Butler	(2004),	essa	matriz	cultural	de	inteligibilidade	é	ainda	produzida	gerando	
“identidades	coerentes”,	sendo	a	“heterossexualização”,	um	de	seus	atributos.	
A	“heterossexualização”	posta	compreende	a	concepção	binária	do	gênero,	onde	
se	definem	como	normas	determinadas	propriedades	de	ser	“macho”	ou	“fêmea”,	de	ser	
“homem”	e	de	ser	“mulher”,	visto	que	o	“gênero	é	o	mecanismo	pelo	qual	as	noções	de	
masculino	 e	 feminino	 são	 produzidas	 e	 naturalizadas.”	 (BUTLER,	 2004,	 p.	 42).	 Essa	
problemática	também	produz	diferenças	que	geram	o	que	Bourdieu	(2012)	chama	de	
violência	 simbólica,	 sendo	 o	 “simbólico”,	 para	Bourdieu,	 a	 sedimentação	 de	 práticas	
sociais:	
	
violência	 suave,	 invisível,	 insensível,	 invisível	 a	 suas	 próprias	 vítimas,	 que	 se	
exerce	 essencialmente	 pelas	 vias	 puramente	 simbólicas	 da	 comunicação	 e	 do	
conhecimento,	 ou,	mais	precisamente,	 do	desconhecimento,	 do	 reconhecimento	
ou,	em	última	instância,	do	sentimento.	Essa	relação	social	extraordinariamente	
ordinária	oferece	também	uma	ocasião	única	de	apreender	a	lógica	da	dominação,	
exercida	em	nome	de	um	princípio	simbólico	conhecido	e	reconhecido	tanto	pelo	
dominante	quanto	pelo	dominado	[...].	(BOURDIEU,	2012,	p.	07-08,	grifo	meu).	
	
A	 inserção	 dessa	 heteronormatividade	 implica	 diretamente	 na	 construção	 (ou	
não-construção)	da	personagem	em	questão,	uma	vez	que	esse	princípio	organiza	a	vida	
política	 dela,	 demarcando	 suas	 possibilidades	 e	 impossibilidades	 como	 ser-humano.	
Essas	demarcações,	feitas	a	partir	de	lentes	binárias,	acabam	por	“desenhar”,	então,	as	
expectativas	depositadas	nas	problemáticas	de	identidade.	
Segundo	Santos	(2019,	p.	488),	“[a]	aparência	de	unidade	(binária)	dos	gêneros,	
dada	pelo	recurso	à	sua	repetição	linguística	e/ou	imagética,	acaba	por	obscurecer	as	
múltiplas	possibilidades	de	ser	(humano)	no	mundo”.	Portanto,	se	a	questão	identitária	
de	Ève	é	demarcada	pela	concepção	binária,	é	nesses	entraves,	nessa	falta	de	múltiplas	
	
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possibilidades,	 que	 a	 não-identidade	 da	 personagem	 é	 representada	 como	 um	 dos	
conflitos	na	obra:	
	
[...]	Tarântula	vinha	visitá-la	todos	os	dias,	longas	horas.	Vocês	falavam	da	sua	vida	
nova.	Você	era	outro…	Outra...2	
Você	retomou	o	piano,	a	pintura…	Uma	vez	que	 tinha	seios	e	aquele	buraco,	ali	
entre	 as	 coxas,	 precisava	 jogar	 o	 jogo.	 Fugir?	 Voltar	 para	 casa	 depois	 de	 tanto	
tempo?	 Casa?	 Era	 realmente	 sua	 casa	 aquele	 lugar	 onde	 Vincent	 morara?	 Que	
diriam	aqueles	que	ele	conhecia?	Você	não	tinha	escolha.	A	maquiagem,	as	roupas,	
os	perfumes…	E,	um	dia,	Tarântula	levou-a	até	uma	aleia	do	Bois	de	Boulogne.	Nada	
mais	podia	afetá-la.	(JONQUET,	2011,	p.	142).	
	
Não	obstante	da	problemática	contemporânea	em	torno	das	questões	de	gênero,	
há,	construídos	retoricamente,	parâmetros	normativos	e	binários	a	respeito	do	que	é	
ser	homem	ou	ser	mulher.	Apesar	de	ser	possível	identificar	no	trecho	destacado	acima	
uma	relação	disfórica	com	o	órgão	genital	implantado	em	Ève	(“aquele	buraco”	entre	as	
coxas),	 a	 própria	 personagem	 se	 vê	 presa	 à	 construção	 cultural	 do	 “ser	 mulher”	
instituído	na	norma	ocidental	de	gêneros.	Estando	 representada	na	maquiagem,	nas	
roupas	 e	 no	 perfume,	 a	 questão	 a	 respeito	 da	 binaridade	 na	 obra	 parece,	 portanto,	
representar	o	assujeitamento	da	personagem	para	com	essas	demarcações	culturais,	
partindo	de	uma	concepção	determinista	de	gênero,	onde	“’o	corpo’	aparece	como	um	
meio	 passivo	 sobre	 o	 qual	 se	 inscrevem	 significados	 culturais,	 ou	 então	 como	 o	
instrumento	 pelo	 qual	 uma	 vontade	 de	 apropriação	 ou	 interpretação	 determina	 o	
significado	cultural	por	si	mesma.”	(BUTLER,	2010,	p.	27).	
Essas	 demarcações	 culturais	 apresentadas	 na	 obra	 (e	 no	 cotidiano	 fora	 da	
literatura)	 nos	 ajudam	 a	 melhor	 compreender	 tais	 conceitos	 complexos	 comoser	
mulher	e	ser	homem.	A	complexidade	desses	termos	se	dá	pelo	entendimento	de	como	
essas	 concepções	 se	 atrelam	 ao	 conceito	 de	 identidade.	 Pensada	 aqui	 a	 partir	 de	
formulações	mais	críticas	dos	Estudos	Feministas	e	suas	aproximações	com	os	Estudos	
 
2	Reforço	aqui	que	a	análise	 se	dá	em	cima	da	 tradução	de	André	Telles,	 em	que	essas	marcações	
linguísticas	de	gênero	podem	assumir	uma	representação	outra	da	que	foi	dada	em	seu	texto	original.	
	
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Culturais,	a	identidade	é	vista	como	múltipla,	não	fixa	e	até	contraditória	(LOURO,	1997).	
Assim,	como	observado	na	análise	de	Tarântula,	a	identidade	é	constituída	e	instituída	
pelo	 gênero,	 deixando	 claro	 que	 as	 relações	 de	 gênero	 se	 apresentam	 a	 partir	 de	
demarcações	culturais	e	produzindo	esse	ser	mulher	através	dos	papeis	de	gênero:	
	
Papéis	 seriam,	 basicamente,	 padrões	 ou	 regras	 arbitrárias	 que	 uma	 sociedade	
estabelece	para	seus	membros	e	que	definem	seus	comportamentos,	suas	roupas,	
seus	modos	de	se	relacionar	ou	de	se	portar...	Através	do	aprendizado	de	papéis,	
cada	um/a	deveria	conhecer	o	que	é	considerado	adequado	(e	inadequado)	para	
um	homem	ou	para	uma	mulher	numa	determinada	sociedade,	e	responder	a	essas	
expectativas.	(LOURO,	1997,	p.	24).	
	
De	fato,	Tarântula	brinca	com	a	concepção	de	identidade	construída,	trabalhando	
no	plano	discursivo	a	polaridade	filosófica	entre	livre-arbítrio	e	determinismo.	Contudo,	
o	quanto	tais	características	definem	o	ser	feminino	ou	a	falta	delas	definiria	o	gênero	
masculino?	 Seria	 esse	 o	 ponto	 de	 divergência	 das	 identidades	 que	 Ève	 ou	 Vincent	
constroem	 durante	 a	 narrativa	 ou	 seria	 de	 fato	 a	 transformação	 biológica	 feita	 por	
Lafarge?	
A	 transição	 forçada	 de	 Ève	 nos	 revela	 muito	 da	 concepção	 de	 gênero	 que	
constroem	os	personagens	da	narrativa,	apresentando	a	personagem	como	um	projeto	
de	representação	feminina.	Tal	projeto,	arquitetado	pelo	cirurgião	e	pautado	no	cuidado	
da	 transformação	 desse	 corpo	 sequestrado,	 na	 imitação	 do	 corpo	 feminino,	 nos	 faz	
retomar	ao	 fim	do	século	XVI,	em	que,	 segundo	Foucault	 (2000,	p.	23)	a	semelhança	
ocupa	importante	lugar	na	construção	do	saber	ocidental.	
	
Foi	ela	que,	em	grande	parte,	conduziu	a	exegese	e	a	interpretação	dos	textos:	foi	
ela	que	organizou	o	jogo	dos	símbolos,	permitiu	o	conhecimento	das	coisas	visíveis	
e	invisíveis,	guiou	a	arte	de	representá-las.	[...]	E	a	representação	—	fosse	ela	festa	
ou	saber	—	se	dava	como	repetição:	teatro	da	vida	ou	espelho	do	mundo,	tal	era	o	
título	de	toda	linguagem,	sua	maneira	de	anunciar-se	e	de	formular	seu	direito	de	
falar.	(FOUCAULT,	2000,	p.	23,	grifo	meu).	
	
	
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Essa	 repetição	 apresentada	 por	 Foucault,	 essa	 semelhança,	 não	 está	 presente	
apenas	 no	 aspecto	 biológico	 de	 Ève,	 mas	 principalmente	 no	 processo	 a	 que	 foi	
submetida/o.3	Essa	espécie	de	“treinamento”	que	a	personagem	recebe,	assemelha-se,	
inclusive,	à	epistemologia	behaviorista,	em	que	a	relação	de	causa	e	efeito	constituem	o	
paradigma	da	organização	do	comportamento	e	utiliza	do	“mecanicismo,	que	ao	fazer	
implicitamente	uma	analogia	do	comportamento	à	máquina,	propunha	que,	através	de	
combinações	 de	 relações	 causais	 simples,	 o	 funcionamento	 da	 pessoa	 poderia	 ser	
estabelecido.”	(VIEGA;	VANDENBERGHE,	2001,	não	paginado).	
	
Você	não	estava	mais	nu:	Tarântula	dera-lhe	um	xale	bordado,	uma	peça	magnífica	
luxuosamente	embalada.	[...]	
A	generosidade	dele	parecia	não	ter	mais	limites.	Um	dia,	a	porta	do	porão	se	abriu.	
Ele	empurrou	à	sua	frente,	com	dificuldade,	um	embrulho	enorme,	montado	sobre	
rodinhas.	Sorria,	olhando	o	papel	de	seda,	a	fita	cor-de-rosa,	o	buquê	de	flores…	
(JONQUET,	2011,	p.	82-83).	
	
No	trecho	destacado,	o	recebimento	do	piano	Steinway,	o	buquê	de	flores	e	o	xale	
bordado	 são	 alguns	 dos	 elementos	 do	 universo	 feminino	 no	 qual	 a	 personagem	 é	
inserida	 (aos	 poucos,	 em	meio	 à	 tortura	 a	 que	 estava	 submetida/o)	 no	 decorrer	 da	
narrativa.	 Através	 desse	 processo	 comportamental	 e	 científico,	 Lafarge	 se	 dedica	 a	
construir	uma	visão	de	identidade	feminina,	apresentando	à	Ève	elementos	construídos	
e	marcados	culturalmente.	
Esses	 elementos	 marcam	 características	 do	 que	 é	 “ser	 mulher”	 na	 sociedade	
representada	por	Jonquet	e	o	que	Guacira	Louro	(1997)	aponta	justificar	a	desigualdade	
social.	 Segundo	 a	 autora,	 “não	 são	 propriamente	 as	 características	 sexuais,	mas	 é	 a	
forma	como	essas	características	são	representadas	ou	valorizadas,	aquilo	que	se	diz	ou	
se	pensa	sobre	elas	que	vai	constituir,	efetivamente,	o	que	é	feminino	ou	masculino	em	
uma	dada	sociedade	em	um	dado	momento	histórico.”	(LOURO,	1997,	p.	21).	
 
3	Como	a	questão	de	identificação	do	gênero	da	personagem	se	apresenta	inconclusa	à	minha	leitura,	
me	reservo	o	direito	de	não	a/o	definir	a	partir	de	um	gênero	específico.	
	
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Essas	 construções	 culturalmente	 estabelecidas	 precisam	 de	 fato	 ser	 também	
reiteradas.	Tais	reiterações	se	dão	num	processo	discursivo	restritivo	sobre	gênero	e	
funcionam	como	uma	operação	reguladora	de	poder	(BUTLER,	2004,	p.	43).	Para	que,	
então,	essa	lógica	de	poder	prevaleça,	o	discurso	sobre	gênero	se	pauta	na	semelhança,	
produzindo	e	 retomando	similitudes	outras	sucessivamente,	em	uma	cadeia	 retórica	
que	constrói	e	mantém	as	desigualdades	produzidas	pela	binaridade.	Segundo	Foucault,	
“a	 semelhança	 jamais	permanece	estável	 em	si	mesma;	 só	é	 fixada	 se	 remete	a	uma	
outra	similitude	que,	por	sua	vez,	requer	outras;	de	sorte	que	cada	semelhança	só	vale	
pela	acumulação	de	todas	as	outras,	e	que	o	mundo	inteiro	deve	ser	percorrido	para	que	
a	mais	tênue	das	analogias	seja	justificada	e	apareça	enfim	como	certa.”	(FOUCAULT,	
2000,	p.	40-41).	
A	semelhança	que	Foucault	descreve	pode	ser	vista	em	Tarântula	como	processo	
no	qual	a	personagem	se	aproxima	(ou	tenta	se	aproximar)	da	norma	estabelecida.	Ao	
ver	gênero	como	norma,	enxerga-se	como	“uma	forma	de	poder	social	que	produz	o	
campo	 inteligível	 dos	 sujeitos,	 e	 um	 aparato	 pelo	 qual	 o	 binarismo	 de	 gênero	 é	
instituído.”	(BUTLER,	2004,	p.	48).	Não	a	ser	confundida	com	“regra”	(a	que	Foucault	e	
Butler	atribuem	o	caráter	jurídico),	a	norma	é,	então,	onde,	no	discurso,	os	sujeitos	são	
produzidos	e	é	ela	mesma	atualizada	na	prática	social	e	reiterada	no	cotidiano.	
	
3. O	DESEJO	E	A	SEXUALIDADE	
	
A	discussão	sobre	identidades	trabalhada	anteriormente	não	é	avulsa	ao	que	se	
pode	discutir	em	Tarântula	a	respeito	de	desejo	e	sexualidade.	Estudos	sobre	gênero	e	
sexualidade	 têm	 mostrado	 que	 ambos	 os	 conceitos	 de	 desejo	 e	 identidade	 são	
relevantes	para	os	estudos	da	linguagem.	Os	conceitos	se	pautam	tanto	nas	implicações	
da	heteronormatividade	quanto	na	questão	de	 representação,	uma	vez	que	o	desejo	
	
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perpassa	as	expectativas	de	representação	em	um	campo	onde	as	 identidades	 já	são	
amplamente	questionadas	(CANAKIS,	2018).	
	
[...]	Ela	ergueu-se	de	um	salto,	estupefata.	O	lençol	deslizara	e	Richard	observou	a	
curva	graciosa	de	seus	seios.	Com	a	ponta	do	 indicador,	acariciou-a,	subindo	da	
pele	das	vértebras	ao	topo	da	aréola.	
Ela	não	pôde	deixar	derir,	pegou	a	mão	dele	e	dirigiu-se	para	sua	barriga.	Richard	
fez	menção	de	recuar.	Levantou-se	e	saiu	do	quarto.	Na	soleira	da	porta,	voltou-se.	
Ève	repelira	completamente	o	lençol	e	lhe	estendia	os	braços.	Foi	sua	vez	de	rir.	
— Brutamontes!	—	ela	silvou	—	Está	morrendo	de	vontade!	(JONQUET,	2011,	p.	
39-40).	
	
O	 desejo	 no	 trecho	 acima	 exemplifica	 a	 relação	 estreita	 que	 a	 sexualidade	
estabelece	com	o	corpo	e	a	identidade.	O	desejo	de	ambos,	Vincent	e	Ève,	demonstra	a	
expectativa	 que	 se	 tem	 em	 cima	 de	 corpos	 generificados	 e	 os	 significados	 que	 tais	
características,	como	“a	curva	dos	seios”,	a	nudez	feminina	e	a	“graciosidade”	dos	corpos	
femininos,	têm	na	cultura.	O	corpo	é,	portanto,	uma	inscrição	cultural	e	o	corpo	de	Ève,	
principalmente,	nos	remete	à	visada	do	corpo	feminino	na	sociedade	ocidental.	
Louro	(2000)	afirma	que	identidade	é	dita	e	nomeada	no	contexto	da	cultura,	e	as	
características	físicas	como	os	órgãos	genitais,	a	cor	da	pele	e	outros	aspectos	físicos	são	
definidores	não	 apenas	de	determinadas	 identidades	 sociais	 (como	é	o	 caso	da	pele	
negra	e	o	lugar	social	que	a	identidade	implica),	mas	também	nos	leva	a	indagar	porque	
tais	características	são	tão	essenciais.	Segundo	Louro,	
	
[...]	 parece	mais	 fácil	 (mais	 seguro?)	 acreditar	 que	 as	 características	 chamadas	
“físicas”	estão	fora	da	cultura,	são	duráveis,	estáveis,	fixas	e,	portanto,	confiáveis.	
No	entanto,	não	somente	os	significados	destas	marcas	modificam-se	nas	várias	
culturas,	como	também	mudam	ao	longo	da	existência	das	culturas	e	dos	sujeitos:	
os	corpos	alteram-se	devido	à	idade,	à	doença,	às	condições	de	vida;	eles	mudam	
pelas	 imposições	sociais,	pelas	exigências	da	moda,	pelas	 intervenções	médicas,	
pelas	transformações	e	possibilidades	tecnológicas.	(LOURO,	2000,	p.	91).	
	
Dessa	forma,	a	mudança	do	corpo	desempenha	um	papel	chave	no	despertar	de	
desejos	 em	 Tarântula.	 O	 processo	 a	 que	 Ève	 é	 sujeitada	 inclui	 não	 apenas	 uma	
	
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reeducação	 de	 gostos,	 costumes	 e	 vestimenta	 (uma	 espécie	 de	 “adestração”),	 mas	
também	uma	mudança	 física.	A	personagem	passa	por	um	processo	de	redesignação	
sexual4	e	tratamento	hormonal	forçado,	sendo	o	corpo,	então,	capturado	e	violentado,	
utilizado	na	experimentação	científica	para	se	aproximar	da	concepção	ocidental	que	se	
construiu	do	corpo	feminino.	
	
Além	 das	 injeções,	 Tarântula	 fazia-o	 ingerir	 diversos	 remédios,	 cápsulas	
multicoloridas,	pastilhas	insípidas,	beberagens.	Os	rótulos	haviam	sido	arrancados	
das	 embalagens…	 Tarântula	 perguntara-lhe:	 está	 preocupado?	 Você	 deu	 de	
ombros	e	respondeu	que	tinha	confiança.	Tarântula	acariciou	sua	face.	Você	então	
pegou	a	mão	dele	para	depositar	um	beijo,	na	concha	da	palma.	Ele	enrijeceu-se,	
por	 um	 instante	 você	 julgou	 que	 ia	 esbofeteá-lo	 novamente,	 mas	 seus	 traços	
relaxaram,	ele	abandonou	a	mão.	Você	deu-lhe	as	costas	para	impedí-lo	de	ver	as	
lágrimas	de	alegria	que	brotavam	no	canto	de	suas	pálpebras…	(JONQUET,	2011,	
p.	88-89).	
	
Em	Tarântula,	 temos,	 portanto,	 duas	 considerações	 a	 respeito	 do	 desejo	 e	 da	
sexualidade:	por	um	lado,	Ève,	ainda	enquanto	Vincent,	começa	a	nutrir	um	desejo	por	
Lafarge,	 seu	 sequestrador	 a	 quem	 chama	 de	 “amo”,	 trazendo	 discussões	 acerca	 da	
performatividade5;	por	outro,	Lafarge	passa	a	se	relacionar	com	Ève	após	a	transição.6	
 
4	Nenhum	termo	é	abordado	na	narrativa,	mas	mantenho	a	nomenclatura	utilizada	nos	tempos	atuais.	
Contudo,	reforço	que,	para	a	narrativa	em	questão,	“redesignação	sexual”	pode	ser	um	tanto	quanto	
problemático,	uma	vez	que	o	sufixo	“re”,	de	“redesignação”,	remete	à	adequação	biológica	para	pessoas	
transgêneras	que	possuem	relação	disfórica	com	seu	órgão	genital,	o	que	penso	não	fazer	parte	da	
narrativa	de	Ève:	personagem	cisgênero	que	passou	pelo	processo	à	força.	
5	Pensado	a	partir	da	noção	de	 identidade	como	não	estável,	o	 conceito	de	performatividade	pelos	
estudos	 de	 Butler	 (2010)	 refere-se	 aos	 atos	 que	 são	 estilizados,	 reiterados	 e	 são	 convencionados,	
produzindo	o	gênero.	Butler	(2010,	p.	25)	faz	alusão	aos	aparatos	de	produção	mediante	os	quais	os	
sexos	são	estabelecidos	e	a	performatividade	é	produzida	por	práticas	reguladoras	da	coerência	de	
gênero	(BUTLER,	2010,	p.	48).	Ainda	sobre	o	conceito,	Loxley	(2007,	p.	118)	afirma	que	“a	identidade	
que	descrevemos	por	meio	dos	termos	de	gênero	é	constituída	através	da	performance	de	um	conjunto	
de	atos	que	servem	para	nos	forjar	como	sujeitos	generificados”.	Reforço,	ainda,	que	o	conceito	trata	
de	tais	atos	ao	se	referir	a	essas	identidades	como	produzidas	discursiva,	cultural	e	institucionalmente,	
entendendo	o	processo	pelo	qual	performamos	gênero	em	uma	determinada	matriz	de	inteligibilidade.	
6	Ele	não	se	relaciona	sexualmente	com	a	personagem,	mas	passa	a	vê-la	como	cônjuge	no	decorrer	da	
narrativa,	trazendo,	assim,	uma	discussão	a	respeito	de	sua	sexualidade. 
	
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A	 ideia	 de	performatividade	 se	 faz	 necessária	 para	 a	 análise,	 uma	 vez	 que	 ela	
expõe	os	atos,	gestos	e	desejos,	sendo	eles	produzidos	no	corpo	e	performativos.	Isso	
sugere	que	eles	são	“fabricações	manufaturadas	e	sustentadas	por	signos	corpóreos	e	
outros	meios	discursivos.”	(BUTLER,	2010,	p.	194,	grifo	da	autora).	Butler	ainda	diz	que	
“os	atos	e	gestos,	os	desejos	articulados	e	postos	em	ato	criam	a	ilusão	de	um	núcleo	
interno	e	organizador	do	gênero,	ilusão	mantida	discursivamente	com	o	propósito	de	
regular	 a	 sexualidade	 nos	 termos	 de	 estrutura	 obrigatória	 da	 heterossexualidade	
reprodutora.”	(BUTLER,	2010,	p.	195).	
A	fabricação	do	corpo	feminino	em	Vincent,	sua	transformação	em	Ève,	questiona	
a	sexualidade	de	ambos	os	lados	em	face	da	visada	heteronormativa	imposta	ao	corpo	
generificado.	 Segundo	 Santos	 (2019),	 a	 heteronormatividade	 e	 a	 naturalização	 da	
heterossexualidade	desumaniza	o	sujeito	que	se	orienta	por	outras	corporalidades	além	
do	 heterossexual	 e	 “essa	 desumanização	 é	 encenada	 por	 uma	 aparente	 unidade	
corpórea/biológica,	 isto	 é,	 toma-se	 o	 sujeito	 anatômico,	 em	 seus	 recôncavos,	
identificando-o	por	sua	existência	física/material	e	não	pelo	(re)conhecimento	que	ele	
quer	dar	e	traçar	de	si	mesmo	e	para	o	mundo.”	(SANTOS,	2019,	p.	489).	
Portanto,	a	violência	em	Tarântula	é	também	sentida	nos	moldes	da	sexualidade	
de	Ève,	que	se	vê	a	todo	momento	em	processo	de	negação	e	ressignificação	de	seus	
desejos.	Esses	por	sua	vez	são	moldados	a	partir	da	heteronormatividade,	uma	vez	que	
a	personagem	se	vê	não	mais	no	corpo	masculino,	mas	tendo	que	assumir	por	completo	
a	 identidade	 feminina.	 Dessa	 forma,	 a	 única	 sexualidade	 a	 ser	 construída	 será,	 por	
consequência,	a	heterossexual,	vendo	a	 figura	de	seu	sequestrador,	o	que	violou	seu	
corpo	e	de	oposição	 (binária)	ao	corpo	em	que	reside	agora,	 como	a	única	 figura	de	
desejo	a	suprir	a	relação	humana	e	que	prevalece	até	o	fim	do	romance,	ultrapassando	
do	desejo	ao	afetivo	de	 fato:	 “Richard	 continuava	 sentado	no	 corredor,	 os	braços	ao	
longo	do	corpo,	as	pernas	hirtas.	Um	leve	tique	agitava	seu	lábio	superior.	Ela	sentou-se	
perto	dele	e	pegou	sua	mão.	Deixou	a	cabeça	repousar	sobre	seu	ombro.”	(JONQUET,	
	
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2011,	 p.	 158).	 É,	 por	 fim,	 exatamente	 na	 associação	 entre	 esses	 corpos	 e	 suas	
sexualidades	 que	 expectativas	 heteronormativas	 são	 representadasna	 obra	 e	
problematizadas	neste	trabalho,	trazendo	diálogos	e	possibilidades	outras	de	viver	o	
corpo,	a	sexualidade	e	a	identidade.	
	
4. CONCLUSÕES	
	
Problemáticas	de	gênero	e	sexualidade	são	expostas	em	Tarântula,	trazendo	para	
o	debate,	questões	a	 respeito	da	 linguagem,	das	normas	construídas	na	 cultura	e	da	
construção	 das	 representações.	 Ao	 expor	 tais	 problemáticas,	 Jonquet	 trabalha	 as	
identidades	de	Ève	e	Vincent,	que	exploram,	em	seus	universos,	as	possibilidades	de	
(não)	ser	frente	às	contingências.	
A	representação	é,	portanto,	analisada	no	artigo,	explorando	os	trabalhos	com	a	
linguagem	 que	 possibilitam	 tais	 construções	 e	 debates	 dentro	 da	 literatura.	 Como	
afirma	Foucault,	é	nela	que	a	linguagem	rompe	o	parentesco	com	as	coisas,	“pois	que	aí	
a	 semelhança	 entra	 numa	 idade	 que	 é,	 para	 ela,	 a	 da	 desrazão	 e	 da	 imaginação”	
(FOUCAULT,	2000,	p.	65).	
A	representação	é	tomada	então	pela	discussão	sobre	as	identidades.	Essas,	que	
perpassam	as	problemáticas	de	gênero,	sexo	e	desejo,	são,	portanto,	pautadas	em	uma	
aparência	binária	do	gênero	(SANTOS,	2019;	BUTLER,	2010).	Essa	binaridade	que	rege	
não	 apenas	 a	 maneira	 dual	 de	 ver	 as	 identidades	 de	 gênero,	 também	 promove	 a	
violência	simbólica	 (BOURDIEU,	2012)	e	as	problemáticas	em	torno	da	construção	e	
reiteração	da	heteronormatividade.	
Em	 Tarântula,	 foi	 possível	 ver	 a	 problemática	 construção	 do	 ser	 mulher	 para	
Ève/Vincent.	 Essa	 transformação	 na	 narrativa	 reflete	 não	 apenas	 as	 construções	
culturais	desses	corpos	e	as	 identidades	sociais	que	os	elementos	físicos	acabam	por	
carregar	 dentro	 de	 uma	 cultura	 específica	 (LOURO,	 2000),	 mas	 também	 na	 única	
	
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orientação	que	o	desejo	é	 incumbido	de	seguir.	Essa	problemática	 também	constitui	
uma	das	violências	sentidas	ao	se	ler	Tarântula.	
Portanto,	 visto	 que	 a	 desumanização	 da	 personagem	 perpassa	 a	 unidade	
corpórea,	social	e	cultural,	a	obra	e	o	estudo	aqui	realizados	podem	nos	levar	a	reflexões	
contemporâneas.	 Tendo	 em	 debate	 as	 relações	 entre	 gênero,	 sexualidade,	 arte	 e	
literatura,	 é	 possível	 estabelecer	 pontos	 de	 problematização,	 de	 possibilidades,	 que	
essas	 reflexões	podem	proporcionar,	 construindo,	 assim,	um	espaço	de	 resistência	e	
existência	 dessas	 identidades	 que	 venham	 a	 dissidiar	 de	 normas	 culturalmente	
estabelecidas	e	não	questionadas.	
	
	
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SELIGMANN-SILVA,	Márcio.	Ler	o	livro	do	mundo:	Walter	Benjamin,	romantismo	e	crítica	poética.	São	
Paulo:	Iluminuras,	1999.	
	
VIEGA,	Marla;	VANDENBERGHE,	Luc.	“Behaviorismo:	reflexões	acerca	da	sua	epistemologia.”	Rev.	bras.	
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http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
55452001000200002&lng=pt&nrm=iso.	Acesso	em:	22	nov.	2019.	
	
	
	
Recebido	em:	18/08/2020	
Aceito	em:	04/10/2020

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