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Curitiba, Vol. 8, nº 15, jul.-dez. 2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE OKAIGUSIKU, A. E.. O corpo violado... 266 O CORPO VIOLADO EM TARÂNTULA: GÊNERO E SEXUALIDADE QUESTIONADOS VIOLATED BODY IN TARANTULA: GENDER AND SEXUALITY QUESTIONED Alberto Eikiti Okaigusiku1 RESUMO: Analisando problemáticas de gênero e sexualidade em Tarântula (1984), este estudo propõe discussões acerca da narrativa, questões de identidade e representação. O artigo debate a reiteração da heteronormatividade, dissidências de gênero, questões de desejo, corpo e identidades sociais. Assim, investiga-se, através de estudos feministas e queer (BUTLER, 2010; 2004; LOURO, 2000; 1997), as experiências vividas pela personagem, como a violação do corpo reflete discussões acerca do ser mulher e como a obra trabalha com o conflito da sexualidade na personagem, trazendo contribuições para o debate sobre violências simbólicas e desigualdades sociais. Palavras-chave: identidade; sexualidade; literatura. ABSTRACT: Analyzing issues about gender and sexuality in Tarantula (1984), this study brings a discussion about the narrative, identity issues and representation. The article discusses heteronormativity reiteration, gender dissent, desire, body and social identities. Thus, and based on queer and feminist studies (BUTLER, 2010; 2004; LOURO, 2000; 1997), it investigates the experiences lived by the character, how body violation reflects debates on the condition of being a woman and how the story deals with the character’s sexuality conflict, bringing contributions to the debate about symbolic violence and social inequalities. Keywords: identity; sexuality; literature. 1. INTRODUÇÃO Tarântula, escrito por Thierry Jonquet (1954-2009) em 1984, traz discussões a respeito das problemáticas de gênero e sexualidade, uma vez que elas constituem a 1 Mestrando, UFMS. Curitiba, Vol. 8, nº 15, jul.-dez. 2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE OKAIGUSIKU, A. E.. O corpo violado... 267 narrativa de maneira curiosa. A história conta as vivências de Ève entrelaçadas com as de Vincent, que no decorrer da obra se apresenta como a própria personagem antes de ser sequestrada e ter passado pelo processo de transição de gênero forçada. As vivências de Ève também são entrelaçadas com as de Alex, um amigo de infância que ela reencontra após o sequestro. Ève é apresentada, logo no início, como uma vida de submissão e expressão de feminilidade (atrelada ao corpo, aos desejos e interesses da personagem), enquanto a vida de Vincent é explorada a partir da violência. A narrativa começa por contar, de maneira linear, o sequestro de Vincent por Lafarge e o processo de transformação a qual é submetido. Ela aborda toda a experiência de sequestro, das pequenas cirurgias à domesticação daquele corpo e construção de uma identidade outra. Essa vivência também é marcada pelo desenvolvimento do afeto entre o sequestrado e seu sequestrador, que passa a ser chamado de “amo" e recebe o nome de Tarântula: “Chamava-o de “Tarântula”, em alusão a seus terrores passados. Tarântula, um nome de ressonância feminina, um nome de animal repugnante que não combinava com o sexo dele nem com a extrema sofisticação de que ele dava mostra na escolha de seus presentes...” (JONQUET, 2011, p. 65). Como canais que desembocam nas mesmas águas, o leitor passa a estabelecer relações entre Ève e Vincent no decorrer da narrativa intercalada. Da mesma forma que Vincent, a violência também está presente na narrativa de Ève, porém, com representações simbólicas de violência feminina. Em sua trajetória, a personagem é descrita pintando, se maquiando e explorando seu corpo. Seu amo a envolve em episódios de prostituição, e há a construção do relacionamento entre Ève e Lafarge, que será amplamente explorado mais adiante na narrativa. No final da obra, Ève é salva por Lafarge em um episódio de sequestro e se vê dividida entre sua liberdade e seu “amo” (nesse ponto, o leitor já tem provas explícitas de que Ève e Vincent “são a mesma Curitiba, Vol. 8, nº 15, jul.-dez. 2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE OKAIGUSIKU, A. E.. O corpo violado... 268 pessoa”), colocando em foco os grandes questionamentos da personagem quanto à sua identidade. A obra, que também já foi adaptada para o cinema através das mãos de Pedro Almodóvar em A pele que habito (2011), é apresentada de maneira diferente na produção argentina. Em Tarântula, são exploradas questões atreladas à identidade de Ève, levantando questionamentos sobre sua existência como ser humano, seus desejos e as construções culturais a respeito do ser mulher e do ser homem. Esses termos são pensados a partir de princípios altamente essencialistas e associados a papeis de gênero (LOURO, 1997). Por outro lado, a obra de Almodóvar trabalha a violência com mais afinco e não deixa dúvidas quanto aos sentimentos da personagem principal e sua identidade, finalizando a narrativa com sua fuga. Sendo assim, faz parte do construto teórico deste trabalho os estudos feministas (BUTLER, 2010; 2004; LOURO, 2000; 1997), pois ajudam a melhor compreender tais conceitos e questões da ordem do gênero como construção cultural, sendo mais bem explorados nos subtítulos que seguem. Além do mais, esses estudos também auxiliam as reflexões sobre os desejos e a sexualidade das personagens e, principalmente, as normas que regulam e “normalizam” as experiências desses corpos, sendo que falar de identidade, segundo Judith Butler (2010), envolve falar de gênero, sexo e sexualidade. Segundo Butler (2004), há regras e políticas que fazem com que as pessoas sejam tomadas como “normais”, sendo o gênero regulado pela norma. A norma a que me refiro diz respeito à concepção ocidental, mesmo que situada em diferentes momentos cronológicos, onde experiências são generificadas e se constroem culturalmente concepções de gênero, mesmo que nem sempre visíveis aos olhos acríticos. Butler (2004, p. 41) nos diz que “normas podem ou não ser explícitas e, quando operam como princípio normalizador em práticas sociais, elas comumente permanecem implícitas, difíceis de se ler e mais clara e dramaticamente discerníveis nos efeitos que elas produzem”. Curitiba, Vol. 8, nº 15, jul.-dez. 2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE OKAIGUSIKU, A. E.. O corpo violado... 269 Tais compreensões auxiliam na análise do objeto, uma vez que a contribuição desses estudos permite entender os confrontos identitários que o gênero (juntamente com suas normas) pode produzir dentro de uma concepção binária de ver o mundo e, por conseguinte, de ver o gênero. Se por um lado a compreensão binária de gêneros produz mulher como não sendo “nem o sujeito nem o seu Outro, mas uma diferença da economia da oposição binária, um ardil, ela mesma, para a elaboração monológica do masculino” (BUTLER, 2010, p. 40), essa mesma construção pautada na diferença também sugere a relação que ambos os lados desse binarismo constroem discursivamente. Os estudos de Rosana Santos (2019) e Pierre Bourdieu (2012) auxiliam, portanto, na compreensão da produção cultural da heteronormatividade e os recursos retóricos que mantém a binaridade e produzem a verticalidade do poder nesses polos. Dessa forma, o presente artigo visa problematizar as relações que o leitor pode estabelecerna obra, identificando epistemologias e ontologias que datam, não só do momento da concepção de Tarântula, mas refletem também nos tempos atuais. A abordagem é dividida, para melhor compreensão, primeiramente em uma discussão sobre as problemáticas em torno das identidades construídas no texto e, em seguida, das construções de sexualidade que envolvem as personagens. É relevante, contudo, ressaltar que a pesquisa sobre Tarântula trata da leitura da obra traduzida por André Telles. Tendo em vista que a análise perpassa também a leitura de outro, é importante entendermos que o processo de tradução traz para a nossa língua a “visada” da língua traduzida (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 89). Esse delicado processo feito por Telles, ao procurar transcrever o que Márcio Seligmann-Silva chama de sentimento de “saudade” da língua originária, nos faz pensar sobre como as violências específicas a serem analisadas são representadas na língua portuguesa e, inclusive, a relação que o próprio processo de tradução tem com a ciência da linguagem. Nas reflexões que o autor faz sobre a linguagem em Walter Benjamin, Curitiba, Vol. 8, nº 15, jul.-dez. 2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE OKAIGUSIKU, A. E.. O corpo violado... 270 Seligmann-Silva faz essa relação com a própria filiação ao romantismo: “a definição da tradução como algo que em certa medida ultrapassa o original — assim como nos românticos — implica para Benjamin, como ele afirmou posteriormente em 1928, uma associação neste âmbito entre a ciência e a arte (III 121), o que nos traz de volta (outra vez) aos românticos.” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 90). Tais associações não são por acaso de interesse ao objeto aqui estudado, uma vez que a obra Tarântula, de Thierry Jonquet, nos apresenta exatamente o processo científico de construção de significados. Significados esses, como discutiremos a seguir, que cruzam as vivências de Ève-Vincent nos limiares dos gêneros e das sexualidades. 2. IDENTIDADE E BINARIDADE EM TARÂNTULA Dentre os diversos conflitos abordados por Jonquet, a identidade da personagem Ève é problematizada, tanto pela obra quanto pelo leitor, e seu lugar como “pessoa” no mundo se torna um confronto dentro da narrativa. Segundo Butler (2010), a constituição da identidade perpassa a problemática em torno do gênero, do sexo e da sexualidade. Sendo assim, pode Ève, que durante a narrativa coloca o leitor em questionamento a respeito de seu lugar nessa problemática, se encontrar destituída/o de sua condição de pessoa? Em sendo a “identidade” assegurada por conceitos estabilizadores de sexo, gênero e sexualidade, a própria noção de “pessoa” se veria questionada pela emergência cultural daqueles seres cujo gênero é “incoerente” ou “descontínuo”, os quais parecem ser pessoas, mas não se conformam às normas de gênero da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas. (BUTLER, 2010, p. 38). Essa noção de inteligibilidade é definida pela autora a partir da relação de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo, que tem seu papel na instituição da norma e, por conseguinte, no que foge da mesma. Estabelecendo essa Curitiba, Vol. 8, nº 15, jul.-dez. 2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE OKAIGUSIKU, A. E.. O corpo violado... 271 relação a respeito da identidade da personagem, a narrativa constrói, portanto, uma “identidade de gênero” outra, que está em constante confronto com a matriz de inteligibilidade, e que explora os limites e os objetivos reguladores desse mesmo campo. Para Butler (2004), essa matriz cultural de inteligibilidade é ainda produzida gerando “identidades coerentes”, sendo a “heterossexualização”, um de seus atributos. A “heterossexualização” posta compreende a concepção binária do gênero, onde se definem como normas determinadas propriedades de ser “macho” ou “fêmea”, de ser “homem” e de ser “mulher”, visto que o “gênero é o mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas.” (BUTLER, 2004, p. 42). Essa problemática também produz diferenças que geram o que Bourdieu (2012) chama de violência simbólica, sendo o “simbólico”, para Bourdieu, a sedimentação de práticas sociais: violência suave, invisível, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento. Essa relação social extraordinariamente ordinária oferece também uma ocasião única de apreender a lógica da dominação, exercida em nome de um princípio simbólico conhecido e reconhecido tanto pelo dominante quanto pelo dominado [...]. (BOURDIEU, 2012, p. 07-08, grifo meu). A inserção dessa heteronormatividade implica diretamente na construção (ou não-construção) da personagem em questão, uma vez que esse princípio organiza a vida política dela, demarcando suas possibilidades e impossibilidades como ser-humano. Essas demarcações, feitas a partir de lentes binárias, acabam por “desenhar”, então, as expectativas depositadas nas problemáticas de identidade. Segundo Santos (2019, p. 488), “[a] aparência de unidade (binária) dos gêneros, dada pelo recurso à sua repetição linguística e/ou imagética, acaba por obscurecer as múltiplas possibilidades de ser (humano) no mundo”. Portanto, se a questão identitária de Ève é demarcada pela concepção binária, é nesses entraves, nessa falta de múltiplas Curitiba, Vol. 8, nº 15, jul.-dez. 2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE OKAIGUSIKU, A. E.. O corpo violado... 272 possibilidades, que a não-identidade da personagem é representada como um dos conflitos na obra: [...] Tarântula vinha visitá-la todos os dias, longas horas. Vocês falavam da sua vida nova. Você era outro… Outra...2 Você retomou o piano, a pintura… Uma vez que tinha seios e aquele buraco, ali entre as coxas, precisava jogar o jogo. Fugir? Voltar para casa depois de tanto tempo? Casa? Era realmente sua casa aquele lugar onde Vincent morara? Que diriam aqueles que ele conhecia? Você não tinha escolha. A maquiagem, as roupas, os perfumes… E, um dia, Tarântula levou-a até uma aleia do Bois de Boulogne. Nada mais podia afetá-la. (JONQUET, 2011, p. 142). Não obstante da problemática contemporânea em torno das questões de gênero, há, construídos retoricamente, parâmetros normativos e binários a respeito do que é ser homem ou ser mulher. Apesar de ser possível identificar no trecho destacado acima uma relação disfórica com o órgão genital implantado em Ève (“aquele buraco” entre as coxas), a própria personagem se vê presa à construção cultural do “ser mulher” instituído na norma ocidental de gêneros. Estando representada na maquiagem, nas roupas e no perfume, a questão a respeito da binaridade na obra parece, portanto, representar o assujeitamento da personagem para com essas demarcações culturais, partindo de uma concepção determinista de gênero, onde “’o corpo’ aparece como um meio passivo sobre o qual se inscrevem significados culturais, ou então como o instrumento pelo qual uma vontade de apropriação ou interpretação determina o significado cultural por si mesma.” (BUTLER, 2010, p. 27). Essas demarcações culturais apresentadas na obra (e no cotidiano fora da literatura) nos ajudam a melhor compreender tais conceitos complexos comoser mulher e ser homem. A complexidade desses termos se dá pelo entendimento de como essas concepções se atrelam ao conceito de identidade. Pensada aqui a partir de formulações mais críticas dos Estudos Feministas e suas aproximações com os Estudos 2 Reforço aqui que a análise se dá em cima da tradução de André Telles, em que essas marcações linguísticas de gênero podem assumir uma representação outra da que foi dada em seu texto original. Curitiba, Vol. 8, nº 15, jul.-dez. 2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE OKAIGUSIKU, A. E.. O corpo violado... 273 Culturais, a identidade é vista como múltipla, não fixa e até contraditória (LOURO, 1997). Assim, como observado na análise de Tarântula, a identidade é constituída e instituída pelo gênero, deixando claro que as relações de gênero se apresentam a partir de demarcações culturais e produzindo esse ser mulher através dos papeis de gênero: Papéis seriam, basicamente, padrões ou regras arbitrárias que uma sociedade estabelece para seus membros e que definem seus comportamentos, suas roupas, seus modos de se relacionar ou de se portar... Através do aprendizado de papéis, cada um/a deveria conhecer o que é considerado adequado (e inadequado) para um homem ou para uma mulher numa determinada sociedade, e responder a essas expectativas. (LOURO, 1997, p. 24). De fato, Tarântula brinca com a concepção de identidade construída, trabalhando no plano discursivo a polaridade filosófica entre livre-arbítrio e determinismo. Contudo, o quanto tais características definem o ser feminino ou a falta delas definiria o gênero masculino? Seria esse o ponto de divergência das identidades que Ève ou Vincent constroem durante a narrativa ou seria de fato a transformação biológica feita por Lafarge? A transição forçada de Ève nos revela muito da concepção de gênero que constroem os personagens da narrativa, apresentando a personagem como um projeto de representação feminina. Tal projeto, arquitetado pelo cirurgião e pautado no cuidado da transformação desse corpo sequestrado, na imitação do corpo feminino, nos faz retomar ao fim do século XVI, em que, segundo Foucault (2000, p. 23) a semelhança ocupa importante lugar na construção do saber ocidental. Foi ela que, em grande parte, conduziu a exegese e a interpretação dos textos: foi ela que organizou o jogo dos símbolos, permitiu o conhecimento das coisas visíveis e invisíveis, guiou a arte de representá-las. [...] E a representação — fosse ela festa ou saber — se dava como repetição: teatro da vida ou espelho do mundo, tal era o título de toda linguagem, sua maneira de anunciar-se e de formular seu direito de falar. (FOUCAULT, 2000, p. 23, grifo meu). Curitiba, Vol. 8, nº 15, jul.-dez. 2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE OKAIGUSIKU, A. E.. O corpo violado... 274 Essa repetição apresentada por Foucault, essa semelhança, não está presente apenas no aspecto biológico de Ève, mas principalmente no processo a que foi submetida/o.3 Essa espécie de “treinamento” que a personagem recebe, assemelha-se, inclusive, à epistemologia behaviorista, em que a relação de causa e efeito constituem o paradigma da organização do comportamento e utiliza do “mecanicismo, que ao fazer implicitamente uma analogia do comportamento à máquina, propunha que, através de combinações de relações causais simples, o funcionamento da pessoa poderia ser estabelecido.” (VIEGA; VANDENBERGHE, 2001, não paginado). Você não estava mais nu: Tarântula dera-lhe um xale bordado, uma peça magnífica luxuosamente embalada. [...] A generosidade dele parecia não ter mais limites. Um dia, a porta do porão se abriu. Ele empurrou à sua frente, com dificuldade, um embrulho enorme, montado sobre rodinhas. Sorria, olhando o papel de seda, a fita cor-de-rosa, o buquê de flores… (JONQUET, 2011, p. 82-83). No trecho destacado, o recebimento do piano Steinway, o buquê de flores e o xale bordado são alguns dos elementos do universo feminino no qual a personagem é inserida (aos poucos, em meio à tortura a que estava submetida/o) no decorrer da narrativa. Através desse processo comportamental e científico, Lafarge se dedica a construir uma visão de identidade feminina, apresentando à Ève elementos construídos e marcados culturalmente. Esses elementos marcam características do que é “ser mulher” na sociedade representada por Jonquet e o que Guacira Louro (1997) aponta justificar a desigualdade social. Segundo a autora, “não são propriamente as características sexuais, mas é a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade em um dado momento histórico.” (LOURO, 1997, p. 21). 3 Como a questão de identificação do gênero da personagem se apresenta inconclusa à minha leitura, me reservo o direito de não a/o definir a partir de um gênero específico. Curitiba, Vol. 8, nº 15, jul.-dez. 2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE OKAIGUSIKU, A. E.. O corpo violado... 275 Essas construções culturalmente estabelecidas precisam de fato ser também reiteradas. Tais reiterações se dão num processo discursivo restritivo sobre gênero e funcionam como uma operação reguladora de poder (BUTLER, 2004, p. 43). Para que, então, essa lógica de poder prevaleça, o discurso sobre gênero se pauta na semelhança, produzindo e retomando similitudes outras sucessivamente, em uma cadeia retórica que constrói e mantém as desigualdades produzidas pela binaridade. Segundo Foucault, “a semelhança jamais permanece estável em si mesma; só é fixada se remete a uma outra similitude que, por sua vez, requer outras; de sorte que cada semelhança só vale pela acumulação de todas as outras, e que o mundo inteiro deve ser percorrido para que a mais tênue das analogias seja justificada e apareça enfim como certa.” (FOUCAULT, 2000, p. 40-41). A semelhança que Foucault descreve pode ser vista em Tarântula como processo no qual a personagem se aproxima (ou tenta se aproximar) da norma estabelecida. Ao ver gênero como norma, enxerga-se como “uma forma de poder social que produz o campo inteligível dos sujeitos, e um aparato pelo qual o binarismo de gênero é instituído.” (BUTLER, 2004, p. 48). Não a ser confundida com “regra” (a que Foucault e Butler atribuem o caráter jurídico), a norma é, então, onde, no discurso, os sujeitos são produzidos e é ela mesma atualizada na prática social e reiterada no cotidiano. 3. O DESEJO E A SEXUALIDADE A discussão sobre identidades trabalhada anteriormente não é avulsa ao que se pode discutir em Tarântula a respeito de desejo e sexualidade. Estudos sobre gênero e sexualidade têm mostrado que ambos os conceitos de desejo e identidade são relevantes para os estudos da linguagem. Os conceitos se pautam tanto nas implicações da heteronormatividade quanto na questão de representação, uma vez que o desejo Curitiba, Vol. 8, nº 15, jul.-dez. 2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE OKAIGUSIKU, A. E.. O corpo violado... 276 perpassa as expectativas de representação em um campo onde as identidades já são amplamente questionadas (CANAKIS, 2018). [...] Ela ergueu-se de um salto, estupefata. O lençol deslizara e Richard observou a curva graciosa de seus seios. Com a ponta do indicador, acariciou-a, subindo da pele das vértebras ao topo da aréola. Ela não pôde deixar derir, pegou a mão dele e dirigiu-se para sua barriga. Richard fez menção de recuar. Levantou-se e saiu do quarto. Na soleira da porta, voltou-se. Ève repelira completamente o lençol e lhe estendia os braços. Foi sua vez de rir. — Brutamontes! — ela silvou — Está morrendo de vontade! (JONQUET, 2011, p. 39-40). O desejo no trecho acima exemplifica a relação estreita que a sexualidade estabelece com o corpo e a identidade. O desejo de ambos, Vincent e Ève, demonstra a expectativa que se tem em cima de corpos generificados e os significados que tais características, como “a curva dos seios”, a nudez feminina e a “graciosidade” dos corpos femininos, têm na cultura. O corpo é, portanto, uma inscrição cultural e o corpo de Ève, principalmente, nos remete à visada do corpo feminino na sociedade ocidental. Louro (2000) afirma que identidade é dita e nomeada no contexto da cultura, e as características físicas como os órgãos genitais, a cor da pele e outros aspectos físicos são definidores não apenas de determinadas identidades sociais (como é o caso da pele negra e o lugar social que a identidade implica), mas também nos leva a indagar porque tais características são tão essenciais. Segundo Louro, [...] parece mais fácil (mais seguro?) acreditar que as características chamadas “físicas” estão fora da cultura, são duráveis, estáveis, fixas e, portanto, confiáveis. No entanto, não somente os significados destas marcas modificam-se nas várias culturas, como também mudam ao longo da existência das culturas e dos sujeitos: os corpos alteram-se devido à idade, à doença, às condições de vida; eles mudam pelas imposições sociais, pelas exigências da moda, pelas intervenções médicas, pelas transformações e possibilidades tecnológicas. (LOURO, 2000, p. 91). Dessa forma, a mudança do corpo desempenha um papel chave no despertar de desejos em Tarântula. O processo a que Ève é sujeitada inclui não apenas uma Curitiba, Vol. 8, nº 15, jul.-dez. 2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE OKAIGUSIKU, A. E.. O corpo violado... 277 reeducação de gostos, costumes e vestimenta (uma espécie de “adestração”), mas também uma mudança física. A personagem passa por um processo de redesignação sexual4 e tratamento hormonal forçado, sendo o corpo, então, capturado e violentado, utilizado na experimentação científica para se aproximar da concepção ocidental que se construiu do corpo feminino. Além das injeções, Tarântula fazia-o ingerir diversos remédios, cápsulas multicoloridas, pastilhas insípidas, beberagens. Os rótulos haviam sido arrancados das embalagens… Tarântula perguntara-lhe: está preocupado? Você deu de ombros e respondeu que tinha confiança. Tarântula acariciou sua face. Você então pegou a mão dele para depositar um beijo, na concha da palma. Ele enrijeceu-se, por um instante você julgou que ia esbofeteá-lo novamente, mas seus traços relaxaram, ele abandonou a mão. Você deu-lhe as costas para impedí-lo de ver as lágrimas de alegria que brotavam no canto de suas pálpebras… (JONQUET, 2011, p. 88-89). Em Tarântula, temos, portanto, duas considerações a respeito do desejo e da sexualidade: por um lado, Ève, ainda enquanto Vincent, começa a nutrir um desejo por Lafarge, seu sequestrador a quem chama de “amo”, trazendo discussões acerca da performatividade5; por outro, Lafarge passa a se relacionar com Ève após a transição.6 4 Nenhum termo é abordado na narrativa, mas mantenho a nomenclatura utilizada nos tempos atuais. Contudo, reforço que, para a narrativa em questão, “redesignação sexual” pode ser um tanto quanto problemático, uma vez que o sufixo “re”, de “redesignação”, remete à adequação biológica para pessoas transgêneras que possuem relação disfórica com seu órgão genital, o que penso não fazer parte da narrativa de Ève: personagem cisgênero que passou pelo processo à força. 5 Pensado a partir da noção de identidade como não estável, o conceito de performatividade pelos estudos de Butler (2010) refere-se aos atos que são estilizados, reiterados e são convencionados, produzindo o gênero. Butler (2010, p. 25) faz alusão aos aparatos de produção mediante os quais os sexos são estabelecidos e a performatividade é produzida por práticas reguladoras da coerência de gênero (BUTLER, 2010, p. 48). Ainda sobre o conceito, Loxley (2007, p. 118) afirma que “a identidade que descrevemos por meio dos termos de gênero é constituída através da performance de um conjunto de atos que servem para nos forjar como sujeitos generificados”. Reforço, ainda, que o conceito trata de tais atos ao se referir a essas identidades como produzidas discursiva, cultural e institucionalmente, entendendo o processo pelo qual performamos gênero em uma determinada matriz de inteligibilidade. 6 Ele não se relaciona sexualmente com a personagem, mas passa a vê-la como cônjuge no decorrer da narrativa, trazendo, assim, uma discussão a respeito de sua sexualidade. Curitiba, Vol. 8, nº 15, jul.-dez. 2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE OKAIGUSIKU, A. E.. O corpo violado... 278 A ideia de performatividade se faz necessária para a análise, uma vez que ela expõe os atos, gestos e desejos, sendo eles produzidos no corpo e performativos. Isso sugere que eles são “fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos.” (BUTLER, 2010, p. 194, grifo da autora). Butler ainda diz que “os atos e gestos, os desejos articulados e postos em ato criam a ilusão de um núcleo interno e organizador do gênero, ilusão mantida discursivamente com o propósito de regular a sexualidade nos termos de estrutura obrigatória da heterossexualidade reprodutora.” (BUTLER, 2010, p. 195). A fabricação do corpo feminino em Vincent, sua transformação em Ève, questiona a sexualidade de ambos os lados em face da visada heteronormativa imposta ao corpo generificado. Segundo Santos (2019), a heteronormatividade e a naturalização da heterossexualidade desumaniza o sujeito que se orienta por outras corporalidades além do heterossexual e “essa desumanização é encenada por uma aparente unidade corpórea/biológica, isto é, toma-se o sujeito anatômico, em seus recôncavos, identificando-o por sua existência física/material e não pelo (re)conhecimento que ele quer dar e traçar de si mesmo e para o mundo.” (SANTOS, 2019, p. 489). Portanto, a violência em Tarântula é também sentida nos moldes da sexualidade de Ève, que se vê a todo momento em processo de negação e ressignificação de seus desejos. Esses por sua vez são moldados a partir da heteronormatividade, uma vez que a personagem se vê não mais no corpo masculino, mas tendo que assumir por completo a identidade feminina. Dessa forma, a única sexualidade a ser construída será, por consequência, a heterossexual, vendo a figura de seu sequestrador, o que violou seu corpo e de oposição (binária) ao corpo em que reside agora, como a única figura de desejo a suprir a relação humana e que prevalece até o fim do romance, ultrapassando do desejo ao afetivo de fato: “Richard continuava sentado no corredor, os braços ao longo do corpo, as pernas hirtas. Um leve tique agitava seu lábio superior. Ela sentou-se perto dele e pegou sua mão. Deixou a cabeça repousar sobre seu ombro.” (JONQUET, Curitiba, Vol. 8, nº 15, jul.-dez. 2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE OKAIGUSIKU, A. E.. O corpo violado... 279 2011, p. 158). É, por fim, exatamente na associação entre esses corpos e suas sexualidades que expectativas heteronormativas são representadasna obra e problematizadas neste trabalho, trazendo diálogos e possibilidades outras de viver o corpo, a sexualidade e a identidade. 4. CONCLUSÕES Problemáticas de gênero e sexualidade são expostas em Tarântula, trazendo para o debate, questões a respeito da linguagem, das normas construídas na cultura e da construção das representações. Ao expor tais problemáticas, Jonquet trabalha as identidades de Ève e Vincent, que exploram, em seus universos, as possibilidades de (não) ser frente às contingências. A representação é, portanto, analisada no artigo, explorando os trabalhos com a linguagem que possibilitam tais construções e debates dentro da literatura. Como afirma Foucault, é nela que a linguagem rompe o parentesco com as coisas, “pois que aí a semelhança entra numa idade que é, para ela, a da desrazão e da imaginação” (FOUCAULT, 2000, p. 65). A representação é tomada então pela discussão sobre as identidades. Essas, que perpassam as problemáticas de gênero, sexo e desejo, são, portanto, pautadas em uma aparência binária do gênero (SANTOS, 2019; BUTLER, 2010). Essa binaridade que rege não apenas a maneira dual de ver as identidades de gênero, também promove a violência simbólica (BOURDIEU, 2012) e as problemáticas em torno da construção e reiteração da heteronormatividade. Em Tarântula, foi possível ver a problemática construção do ser mulher para Ève/Vincent. Essa transformação na narrativa reflete não apenas as construções culturais desses corpos e as identidades sociais que os elementos físicos acabam por carregar dentro de uma cultura específica (LOURO, 2000), mas também na única Curitiba, Vol. 8, nº 15, jul.-dez. 2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE OKAIGUSIKU, A. E.. O corpo violado... 280 orientação que o desejo é incumbido de seguir. Essa problemática também constitui uma das violências sentidas ao se ler Tarântula. Portanto, visto que a desumanização da personagem perpassa a unidade corpórea, social e cultural, a obra e o estudo aqui realizados podem nos levar a reflexões contemporâneas. Tendo em debate as relações entre gênero, sexualidade, arte e literatura, é possível estabelecer pontos de problematização, de possibilidades, que essas reflexões podem proporcionar, construindo, assim, um espaço de resistência e existência dessas identidades que venham a dissidiar de normas culturalmente estabelecidas e não questionadas. REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Küner. 11ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. BUTLER, Judith. “Gender Regulations.” In _____. Undoing Gender. New York, London: Routledge, 2004. _____. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. CANAKIS, Costas. “The desire for identity and the identity of desire: language, gender and sexuality in the Greek context.” In MILANI, Tommaso M. (Ed.). Queering Language, Gender and Sexuality. Yorkshire: Equinox Publishing Ltd., 2018. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. JONQUET, Thierry. Tarântula. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Record, 2011 [1984]. LOURO, Guacira Lopes. A emergência do gênero. In _____. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. _____. Corpo, escola e identidade. In _____. Currículo, género e sexualidade. Porto, PT: Porto Editora, 2000. LOXLEY, James. Performativity. New York: Routledge, 2007. Curitiba, Vol. 8, nº 15, jul.-dez. 2020 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE OKAIGUSIKU, A. E.. O corpo violado... 281 SANTOS, Rosana Cristina Zanelatto. A invenção da heteronormatividade: um romance autobiográfico. Caderno de Letras, v. 1, p. 483-497, 2019. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Ler o livro do mundo: Walter Benjamin, romantismo e crítica poética. São Paulo: Iluminuras, 1999. VIEGA, Marla; VANDENBERGHE, Luc. “Behaviorismo: reflexões acerca da sua epistemologia.” Rev. bras. ter. comport. cogn., São Paulo, v. 3, n. 2, p. 09-18, dez. 2001. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517- 55452001000200002&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 22 nov. 2019. Recebido em: 18/08/2020 Aceito em: 04/10/2020
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