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Concepção de Estado e conhecimento histórico no século XIX

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1 
Concepção de Estado e conhecimento histórico entre 
Leopold von Ranke e Jacob Burckhardt 
 
Cássio da Silva Fernandes1 
 
 Do conjunto de componentes que formam a subjetividade do historiador, há um, 
em especial, que exerceu tamanha influência sobre a ciência histórica no século XIX, 
que cabe ao estudioso interessado na história da historiografia tecer algumas 
considerações, ainda que de caráter provisório. Trata-se do nexo entre pesquisa histórica 
e concepção de Estado, que se interligam de modo tão forte no Oitocentos, a ponto de se 
poder quase afirmar que dificilmente, em outras épocas, a política encarregou-se tanto 
de história, ao mesmo tempo em que a história dependeu tanto das discussões sobre a 
forma do Estado e de sua efetivação no mundo da natureza e dos fatos. 
 
 Concentremos-nos apenas no cenário dos países de língua germânica, não 
porque ali a conexão entre história e política seja mais íntima que em outros espaços, 
mas porque em nenhum outro ambiente, no século XIX, formou-se um grupo tão rico de 
estudiosos, em grande parte saídos dos seminários berlinenses dirigidos por Leopold 
von Ranke (1795-1886). Tanto é assim, que se nos detivermos apenas no dissídio entre 
as posições políticas de Ranke e de um de seus alunos mais significativos, o suíço Jacob 
Burckhardt (1818-1897), teremos um exemplo contundente de tal problemática. 
 
 Entre as obras de Ranke e de Burckhardt situa-se o mais emblemático vértice 
que separou, no século XIX, a história política e a história da cultura. Enquanto o nome 
de Ranke soa em nossos ouvidos como sinônimo de clássico historiador que pôs no 
centro da interpretação histórica a esfera política, a imagem de Burckhardt nos remete 
imediatamente à riqueza da civilização italiana do Renascimento observada sob a ótica 
da história da cultura. No entanto, o que se pretende afirmar é que a diferença de 
perspectiva entre os dois historiadores dependeu, em grande medida, do modo como 
cada um deles se colocou diante dos caminhos que a política seguiu em sua época. Em 
outras palavras, pretende-se observar aqui o quanto a imbricação entre pesquisa 
 
1 Cássio da Silva Fernandes, Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas, é Professor 
Adjunto do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora. 
 
 2 
histórica e discussão sobre o Estado tenha sido determinante inclusive para a elaboração 
de um gênero historiográfico ao qual Burckhardt denominou Kulturgeschichte. 
 
 É importante ressaltar que não de trata de empreender uma crítica à interligação 
entre pesquisa histórica e pensamento político, seja num, seja noutro autor. Ao 
contrário, é claro para nós o quanto a relação entre história e política, em Ranke ou em 
Burckhardt, é carregada do mais sincero e profundo traço que liga o homem às mais 
dramáticas discussões de seu tempo. Discussões em meio às quais um e outro se 
colocou, não com egoísticas ou mesquinhas intenções, mas com plena e ampla 
consciência das grandes tarefas do presente. Ou seja, com aquela metade da esfera que 
forma o “eu” do historiador (como certa vez definiu Friedrich Meinecke2), que 
malgrado seu esforço por esconder, se faz presente nas entrelinhas de sua obra, e que 
torna possível inclusive a existência da história da historiografia. Nossas considerações, 
portanto, pretendem ser de caráter político-historiográfico. 
 
 É certo que, para os germânicos, a experiência da luta contra Napoleão e a 
potência francesa havia, num primeiro momento, encorajado o estudo e a compreensão 
da história. Significativa, neste contexto, é a carta em que Hegel descreve suas 
impressões ao presenciar a entrada de Napoleão, com seu exército, em Jena, em 13 de 
outubro de 1806: 
 
Vi o Imperador (esta alma do mundo) cavalgar pela cidade em visita de 
reconhecimento: suscita verdadeiramente um sentimento maravilhoso a vista de tal 
indivíduo, que, abstraído em seu pensamento, montado a cavalo, abraça o mundo e o 
domina. 
 
 O fascínio de tal imagem sobre a mente de Hegel, doze anos antes do filósofo 
assumir a cátedra em Berlim, antes portanto de seu reconhecimento da existência de 
“afinidades eletivas” entre o seu sistema de compreensão da história e os projetos do 
Estado prussiano, continha certamente já o teor de sua reflexão futura sobre o papel dos 
indivíduos na condução dos processos históricos universais. 
 
 
2 Ver MEINECKE, Friedrich. La storia e il presente. In: MEINECKE, F. Senso storico e significato della 
storia. Napoli: Edizoni Scientifiche Italiane, 1980, p.31. 
 
 3 
 Para Leopold von Ranke, entretanto, cioso da hercúlea tarefa de fazer silenciar a 
própria voz interior para ouvir apenas os murmúrios do passado, a experiência política 
de seu tempo interveio em seus estudos, ora como elemento suscitador de interesse, ora 
como força perturbadora e mesmo transformadora de toda a sua obra. 
 
 Na juventude, Ranke havia assistido com entusiasmo, na Universidade de 
Berlim, às conferências do historiador e diplomata Barthold Niebuhr, sobre a História 
de Roma. Ranke tinha presenciado, portanto, a poderosa relação entre história e política 
contida na interpretação de Niebuhr do Estado romano. Uma interpretação que 
compreendia a história como educadora do homem de Estado, no entanto, sem subtrair 
seu ponto de vista científico, sem colocar a pesquisa a serviço de interesses políticos. 
Mas as conferências de Niebuhr tinham exercido sobre o jovem Ranke ainda o fascínio 
da problemática sobre o significado e o caráter da idéia de Europa. De certo modo, o 
teor universalizante do estudo de Niebuhr sobre o papel do Império Romano na 
formação do que seria a Europa, entendida como unidade civilizacional, estaria presente 
no centro das discussões trazidas por Ranke em sua primeira obra importante, as 
Geschichten der romanischen und germanischen Völker (Histórias dos povos 
romanos e germânicos), publicada em 1824. A idéia da unidade dos povos europeus, 
unidade caracterizada pela diversidade dos povos situados no amplo espaço geográfico 
entre Madri e Moscou e entre Londres e Constantinopla, era agora representada pela 
imagem do velho Império romano-germânico. Império que, na visão de Ranke, 
emoldurava a colorida inter-relação dos povos formadores da Europa. O livro de 1824 
rendeu a Ranke a viagem de três anos e meio entre Viena e a Itália, além do chamado 
para o ensino (ainda de caráter provisório) em Berlim. Mas este livro era ainda, para o 
historiador, o capítulo introdutório de uma História da Europa jamais levada a cabo, 
apesar das incursões neste sentido, realizadas durante a estadia na Itália, como se pode 
verificar em seu estudo sobre a poesia épica italiana de Luigi Pulci a Torquato Tasso, ou 
ainda em seu artigo intitulado Zur Geschichte der italianischen Kunst (Para a história da 
arte italiana), um estudo que vai de Giotto aos mestres do Cinquecento, publicado 
apenas postumamente, em suas Obras Completas.3 
 
 
3 RANKE, Leopold von. Samtliche Werke. Band 51-52. 
 
 4 
 Se por um lado é difícil imaginar Leopold von Ranke como historiador da arte e 
da cultura, por outro lado torna-se bastante significativo o fato do historiador ter 
deixado inconcluso seu projeto de uma História da Europa, pensada em sua unidade de 
povos formadores, e ter-se debruçado, após a publicação da História dos Papas (1836), 
no estudo de uma série de histórias nacionais. Há aqui, de fato, uma certa inflexão em 
sua obra. É claro, e é importante que se diga, a série de histórias nacionais, ou histórias 
de Estados, escrita por Ranke, possuía como fundamento a história universal, e esta, por 
sua vez, nada mais era do que uma história européia. Porém, uma história européia 
pensada não mais a partir do princípio universal (como no caso dos povos romano-germânicos ou da história dos Papas), mas concebida agora pelo princípio dos temas 
nacionais, princípio que guiou seus estudos até a idade avançada. O que se pretende 
frisar é que o modelo que gerou as obras de Ranke publicadas a partir do primeiro 
volume da História Alemã na Época da Reforma (editada entre 1839 e 1847), e que 
segue presente nos estudos de histórias nacionais, tais como a História da Prússia, a 
História da França, a História da Inglaterra, a História da Rússia, e que somente 
muda de foco em seu empreendimento entre os 80 e os 90 anos de idade (a História 
Universal), este empreendimento que toma todo o período em que Ranke foi catedrático 
de História Moderna na Universidade de Berlim, era sustentado pela idéia das 
individualidades nacionais e estatais e tinha a esfera política no centro da compreensão 
histórica. 
 
 Portanto, a base ideal da historiografia de Ranke, durante todo o período em que 
deteve a cátedra em Berlim (de 1836 a 1867), esteve ancorada na concepção da 
individualidade nacional de um ponto de vista político. Então, uma perspectiva 
histórico-universal que se dissolve numa teoria da potência das individualidades 
nacionais. Ou seja, sua compreensão da história está sustentada num pressuposto 
concebido no interior do movimento intelectual de caráter europeu que foi o 
Romantismo: a idéia de nação. 
 
 Ranke tratou o problema político de seu tempo, em especial, durante os anos 
1832 e 1836, em que esteve à frente, juntamente com Savigny, da Historisch-
politische Zeitschrift (Revista Histórico-Política). Posteriormente, no famoso ensaio 
Die grossen Mächte (As Grandes Potências), detém-se nas relações externas entre 
 
 5 
os Estados na Europa, desde o século XVII até por volta de 1830. Em As Grandes 
Potências, ao afirmar a diversidade fundamental, originária, natural dos povos 
europeus, Ranke aproxima-se da filosofia da história de Herder, ao mesmo tempo 
em que, com um impulso de historiador da política, empreende variadas análises de 
conjuntura da relação entre os Estados nacionais no grandioso teatro da história 
universal. Leitor de Herder, Ranke compreende o cenário europeu a partir da relação 
externa entre poderosas individualidades nacionais, dotadas de alma ou de espírito 
próprio. Mas, se a idéia de nação como algo simplesmente sentido, a ser buscado no 
passado, é uma construção setecentista, o historiador, que vive quase todo o século 
XIX, conhece também um sentimento próprio de seu tempo: as paixões nacionais. 
Ou seja, se com o grande movimento cultural europeu, que foi o Romantismo, a 
idéia de nação surge e triunfa contra as tendências iluministas do cosmopolitismo, 
do universalismo, que ditavam leis abstratas válidas para todos os povos; se nação 
significa sentido de singularidade de cada povo, defesa das particularidades de seu 
caráter nacional, reinvindicando ainda os direitos do sentimento e da imaginação, 
Ranke pensava que os Estados nacionais deveriam apenas ser conseqüências 
políticas de uma reconhecida individualidade moral e cultural da nação. Assim, no 
ensaio sobre as grandes potências, interessa a Ranke especialmente dois 
movimentos: o processo de formação dos Estados nacionais na Europa moderna, e 
as lutas travadas por estas “potências” nacionais pela hegemonia na política 
européia. Ranke, então, imerso nessa problemática, expressa sua convicção do 
perigo que se constituía para a Europa o racionalismo nivelador da Revolução 
Francesa. 
 
 A Revolução, para Ranke, trazia à tona um “fogo subterrâneo”, uma 
“explosão titânica que transbordou nas fronteiras geográficas [da França] e se fez 
contagiosa”, um sentimento nacional capaz de “empenhar e concentrar todas as 
forças num único objetivo: a guerra”4. Para Ranke, o sentimento nacional francês foi 
traduzido em despotismo militar: “o general vitorioso acabou tomando a coroa 
imperial, cingindo com ela a própria cabeça”5. Era a época de Napoleão Bonaparte. 
 
 
4Trad. livre de: RANKE, Leopold von. Die grossen Mächte. Leipzig: Verlag Philipp Reclam, s.d, p. 61. 
5Idem, ibidem, p. 62 (trad. livre). 
 
 6 
 Mas, se Leopold von Ranke era pessimista em relação à Revolução Francesa, 
era otimista no que diz respeito à Europa. Ainda em As Grandes Potências, ele 
afirma que a Europa, para enfrentar essa potência militar (a França de Napoleão), 
que avançava destrutivamente sobre o princípio das individualidades nacionais, vale 
dizer sobre o intrínseco equilíbrio europeu, teve que rejuvenescer o espírito nacional 
de seus povos. Ele observa, após a catástrofe da Revolução, que culminara em 
Napoleão Bonaparte, que a Europa conhece uma Restauração: a restauração de força 
dos Estados através do incremento do princípio das nacionalidades. Era a 
restauração de um princípio subjacente aos povos europeus, que, após a derrota de 
Napoleão, a política soube de novo construir. Era a vitória do gênio europeu, que, 
em suas próprias palavras: 
 
Além de criar as grandes potências, renovou vivamente o princípio condutor de todos 
os Estados, da religião, do direito, da individualidade de cada um. Nisto está o traço 
característico de nossos dias. [...] Longe de contentar-se apenas com a negação, nosso 
século deu resultados dos mais positivos. Lavrou grande tendência para a liberdade, 
não porém no sentido de absoluta dissolução, porque a liberdade também serviu para 
construir e preservar.6 
 
 Era, de fato, uma alusão à idéia de liberdade subjacente ao espírito da 
Revolução, que Ranke observava como desagregador, como uma ameaça ao 
equilíbrio intrínseco à alma européia, ou seja, ao equilíbrio presente no princípio 
individualizador das nações na Europa. Esse equilíbrio, que o historiador percebia 
como algo dado no espírito europeu, deveria se efetivar na história através do papel 
da política de aglutinar em unidades estatais as totalidades históricas inerentes à 
Europa moderna. Uma nação, para Ranke, somente deve ser una e independente, 
constituindo um Estado, se for de fato uma individualidade histórica, com 
características próprias, características étnicas, lingüísticas, mas também de tradição 
e de pensamento. Ranke acreditava que nenhum Estado jamais poderia existir sem 
um fundamento espiritual que o sustentasse, e que, portanto, na potência nacional, 
constituída pela esfera política, aparece uma essência espiritual originária que tem 
vida própria. O império de Napoleão Bonaparte, para ele, avançando sobre as 
potências vizinhas, ameaçava o princípio natural formador da Europa, o princípio 
das nacionalidades. 
 
6Idem, ibidem, p. 66 (trad. livre). 
 
 7 
 
Sobre este princípio, Ranke baseou sua compreensão histórica e, por 
conseqüência, seu entendimento do papel do indivíduo no cenário dos 
acontecimentos. Para Ranke, o acontecimento individual faz sentido sempre, num 
primeiro momento, no contexto da nação a que pertence o ator histórico, para 
somente depois possuir significado para a história universal. Conseqüentemente, 
quando o homem age, agiu sobre ele povo, pátria, nação, ou seja, agiu sobre ele a 
nacionalidade à qual pertence. Este parece ser o ponto de partida e o fundamento da 
historiografia de Ranke. 
 
Com Jacob Burckhardt, no que diz respeito às conseqüências da Revolução 
Francesa e ao papel do Estado nacional na Europa do século XIX, tem-se, em 
relação a Ranke, uma opinião distinta. Burckhardt, suíço de Basiléia, estuda história 
na Universidade de Berlim, onde é aluno de Ranke, para depois retornar à Suíça e 
assumir, em 1858, a cátedra de História Moderna na universidade de sua cidade 
natal. 
 
 O que sobretudo caracteriza a ligação de Burckhardt com as discussões 
políticas em sua época é um afastamento consciente e desejado. É significativa sua 
carta de fevereiro de 1846, em que polemiza com um amigo alemão a respeito da 
posiçãoa ser tomada diante dos acontecimentos políticos de seu tempo. Ele afirma: 
 
Daqui quatro semanas e meia parto para Roma. [...] 
Vocês não fazem senão desafiar com cada vez maior audácia esta época 
indigna - eu, ao contrário, conservo silêncio a esse respeito, mas rescindi 
qualquer ligação com ela e justamente por isso me perco no doce Sul morto à 
história, mas que admirável e silencioso monumento fúnebre, deverá me 
encorajar, cansado como estou da modernidade, com seu brívido de 
antigüidade. Sim, quero esconder-me de todos: radicais, comunistas, 
industriais, doutos, ambiciosos, reflexivos, abstratos, absolutos, filósofos, 
sofistas, fanáticos do Estado, idealistas - ais e istas de todos os gêneros.7 
 
 Era a sua primeira viagem a Roma, e se lhe apresentava como uma espécie 
de fuga do presente, um presente que desgostava o jovem suíço, em especial, pela 
dimensão quase religiosa com que as polêmicas políticas se apresentavam, pelo teor 
 
7Trad. livre de: BURCKHARDT, Jacob. Briefe. Basel/Birsfelden: Schibli-Doppler, s.d, pp. 143-144. 
 
 8 
grave (e já a seus olhos, trágico) com que os debates sobre o Estado nacional se 
mostravam no centro dessas discussões. No futuro, o dissídio de Burckhardt em 
relação a seu tempo se dará sobretudo pela reserva (poder-se-ia dizer até, pelo 
pessimismo) com que observará o contexto que propiciou a Revolução Francesa e a 
hegemonia adquirida na Europa pelo Estado-nação. 
 
 Nos cursos e conferências ministrados entre 1868 e 1873, em Basiléia, aos 
quais Burckhardt deu o título Über das Studium der Geschichte (Sobre o Estudo da 
História), postumamente publicados como Weltgeschichtliche Betrachtungen 
(Considerações Sobre a História Universal), o historiador demonstra sua descrença 
em relação à democracia moderna: 
 
É absurda a hipótese do contrato social relativo a um Estado a ser erigido, 
formulada por Rousseau [...]. Nunca surgiu até hoje um Estado criado por um 
contrato verdadeiro, isto é: aceito livremente por todos os seus integrantes. [...] 
Contratos desse tipo não existirão nem mesmo no futuro. [...] 
O Estado não corresponde facilmente à totalidade de uma população e sim a 
uma parte integrante dela, dominante, ou então a uma região determinada, a 
um determinado clã ou ainda a uma determinada camada social.8 
 
 Certamente, esta afirmação contém um dos traços mais pessoais do 
pensamento de Burckhardt, traços encontráveis de modo mais ou menos implícito 
em toda a sua obra. De fato, a sua descrença na democracia contemporânea, do 
modo como havia sido gestada pelo ideário da Revolução Francesa, era 
conseqüência de sua profunda compreensão da posição do ideal suíço do pequeno 
Estado no mundo histórico. A idéia da particularidade do pequeno Estado e de sua 
colocação na história do Ocidente está estritamente ligada ao conceito 
burckhardtiano de civilização. No conjunto de sua obra, a separação original entre 
Ocidente e Oriente, coloca-se em sua interpretação das guerras entre Gregos e 
Persas, na Griechische Kulturgeschichte (História da Cultura Grega). Este livro, 
publicado postumamente, resultou de uma série cursos ministrados por Burckhardt 
na Universidade de Basiléia, entre 1872 e 1885. No contexto das guerras persas, 
Burckhardt, tomando especialmente o depoimento da Heródoto, percebe que a 
distinção feita pelos gregos de seus opositores dizia respeito ao caráter da polis 
 
8Trad. livre de: BURCKHARDT, Jacob. Weltgeschichtliche Betrachtungen. Pfullingen: Verlag Günther 
Neske, 1949, pp, 55-56. 
 
 9 
frente à constituição do Império Persa. O sentido de nacionalidade para os gregos, na 
concepção de Burckhardt, distinguia-se (na visão dos próprios gregos) daquela dos 
persas, por ser formada por um conjunto de pequenos-Estados, por um conjunto de 
polis, diante da centralização de poder do Estado persa.9 Portanto, a identidade grega 
marcava, para Burckhardt, a origem da identidade do Ocidente. 
 
 Mais de um estudioso da obra de Jacob Burckhardt observou que, pelo modo 
de ver e julgar a realidade histórica e política, há uma certa semelhança entre o 
historiador suíço e Maquiavel. Certamente, os escritos do secretário florentino foram 
para a mais conhecida obra de Burckhardt, Die Kultur der Renaissance in Italien 
(A Cultura do Renascimento na Itália), uma das principais fontes históricas. Porém, 
mais do que isso, a obra de Maquiavel exerceu, de fato, influência sobre a mente de 
Burckhardt. Para Maquiavel, também a distinção entre Gregos e Persas foi o marco 
original em que o historiógrafo florentino se baseou para formular sua idéia de 
Europa. No capítulo IV de Il Príncipe, Maquiavel afirma o seguinte: 
 
Os principados de que se conserva memória têm sido governados de duas formas 
diversas: ou por um príncipe, sendo todos os demais servos, [...] ou por um príncipe e 
por barões, os quais, não por graça do senhor, mas por antigüidade de sangue, têm o 
grau de ministros. [...] Os exemplos dessas duas espécies de governo são, em nossos 
tempos, o Turco e o rei da França. Toda a monarquia do Turco é dirigida por um 
senhor: os outros são seus servos. [...] Mas a França está no meio de uma multidão de 
antigos senhores que, nessa qualidade, são reconhecidos pelos seus súditos e por eles 
amados. [...] Ora, se for considerado de que natureza era o governo de Dário [Dário I, 
imperador persa entre 521 a.C. e 485 a.C], se o encontrará semelhante ao reino do 
Turco.10 
 
 Quanto à origem de Estados semelhantes ao da França, Maquiavel recorre ao 
“grande número de principados”11 na Grécia antiga. Portanto, o secretário florentino 
puxava um fio de tradição que, de um lado, estendia-se do império persa ao moderno 
império turco, de outro lado, dos Estados gregos antigos ao Estado francês de seu 
tempo. Deste modo, a identidade de Europa era marcada em oposição ao inimigo 
comum dos príncipes católicos entre os séculos XV e XVI, ou seja, os turcos. Mas a 
 
9 BURCKHARDT, Jacob. Griechische Kulturgeschichte. Erster Band, IV (Die Einheit der griechischen 
Nation), pp. 270-289. In: BURCKHARDT, J. Gesammelte Werke. Band V. Basel\Stuttgart: Schwabe & 
Co., 1978. 
10 MACHIAVELLI, Niccolò. Il Principe. In: MACHIAVELLI, N. Tutte le opere, pp.162-263. 
11 Idem, ibidem, p. 263. 
 
 10 
identidade de Europa, para Maquiavel, tinha como elemento original a distinção 
entre Gregos e Persas na época de Heródoto. 
 
Para Jacob Burckhardt, a Europa moderna, nascida das ruínas do mundo 
romano, representou, o retorno a uma criação citadina que teve como base a refinada 
cultura desenvolvida nas cidades-Estado italianas desde os primeiros sinais do 
Renascimento. Foram somente os pequenos Estados singulares italianos, ou seja, os 
comuni, a representar uma civilização universal. Foi ainda esta forma de organização 
estatal, com suas inúmeras particularidades nas cidades da península itálica, a 
propiciar a maior das obras de arte da Renascença italiana, qual seja, o nascimento 
do indivíduo moderno. Foi, na compreensão de Burckhardt, o pequeno Estado a 
gestar a civilização do Renascimento na Itália. Portanto, também Burckhardt 
perseguiu aquele fio de tradição que separa originalmente o Ocidente do Oriente e 
que, no futuro conceberia a idéia de Europa. 
 
A idéia de Europa foi, de fato, a força que moveu o historiador em direção ao 
Renascimento italiano. E o Renascimento que Burckhardt construiu em sua obra 
teve como base compreensiva não a totalidade nacional, mas a diversidade da 
cultura citadina. A Itália renascentista, nas mãos de Burckhardt, não possui a 
uniformidade que a concepção do Estado nacional conferiu à interpretação da 
história no século XIX. A Itália renascentista de Burckhardt possui o colorido das 
diversidades culturais nas inúmeras cidades da península itálica e, ao mesmo tempo, 
o sentido universalque toca não a história nacional italiana, mas a história da 
Europa. Além disso, o acontecimento individual é interpretado não na chave da 
esfera nacional, mas primordialmente no cenário da cultura local (citadina), para 
apenas num segundo momento fazer sentido no âmbito da unidade histórica a que 
Burckhardt chamou Renascimento italiano. Foi neste sentido, que ele retirou a 
política do centro da compreensão histórica, para percebê-la no mais vasto campo a 
cultura. Foi assim que sua posição política no contexto de seu tempo atuou na 
elaboração de um gênero historiográfico que ficou conhecido como 
Kulturgeschichte. 
 
 
 11 
Com respeito à idéia de nação, Burckhardt novamente distancia-se de Ranke 
e se aproxima de Maquiavel. Nas Weltgeschichtliche Betrachtungen, o historiador 
suíço afirma: 
 
O pequeno-Estado existe para que possa haver sobre a face da terra um ponto em 
que o maior número possível de indivíduos sejam cidadãos no mais pleno sentido da 
palavra. [...] O pequeno Estado não possui em geral outra coisa senão a real, efetiva 
liberdade, mediante a qual ele contrabalança idealmente de modo perfeito as fortes 
vantagens do grande Estado, até mesmo a sua potência.12 
 
 Na verdade, Jacob Burckhardt é um entre poucos historiadores de língua 
germânica que, no século XIX, não centraliza sua compreensão da história no 
conceito de nação. Este conceito, de origem não puramente histórica, mas oriundo 
da filosofia da história, aparentado à biologia (porque ancorado na idéia de raça), 
aparentado à filologia (porque também sustentado por discussões sobre a origem das 
línguas), este conceito representava, para Burckhardt muito mais uma tendência 
política em sua época. Para ele, era um engano considerar a história da Europa como 
uma história de nações, do mesmo modo em que era um erro imaginar a existência 
de uma entidade nacional no espírito dos povos antecedendo a efetivação política do 
Estado-nação. Burckhardt contestava então a geração romântica e se distanciava do 
idealismo alemão. No mesmo instante, levantava-se a voz do cidadão de Basiléia. 
Era, então, seu consciente pertencimento à República citadina de Basiléia, unido à 
clareza com que observava a força ganha em seu tempo pela idéia do Estado 
nacional, e conseqüentemente a compreensão da perda da hegemonia da cidade-
Estado no panorama político europeu, a conferir um traço determinante à sua 
interpretação da história. 
 
 Neste caso, há novamente um ponto de contato entre o historiador suíço e 
Maquiavel. Nos Discorsi sopra la prima Deca de Tito Livio é possível perceber a 
posição do secretário florentino diante desta problemática. Maquiavel raramente 
utiliza-se do termo “nazione”, e quando o usa, o confunde com um outro: 
“provincia”.13 Seu interesse, de fato, é pela unidade estatal, e não propriamente pela 
 
12 Trad. Livre de: BURCKHARDT, Jacob. Weltgeschichtliche Betrachtungen, op. cit., p. 60. 
13 Ver: MACHIAVELLI, Niccolò. Discorsi sopra la prima Deca de Tito Livio, I, 12. In: 
MACHIAVELLI, N. Tutte le opere. Milano: Sansoni Editore, 1993. 
 
 12 
nação. Para Maquiavel, nação só existe no sentido de unidade política. Não há 
efetivamente nenhum espírito ou alma nacional. O que há, para Maquiavel, é a 
política a se consolidar em aparatos estatais, em dominação concreta de um 
território, em um governo regular. O que existe, portanto, é a província constituída 
como corpo político, e não a nação no sentido que o Romantismo lhe confere 
posteriormente. A posição de Burckhardt, neste sentido, concorda com a de 
Maquiavel. 
 
Burckhardt, além do mais, havia reconhecido por detrás da ideologia do 
Estado nacional liberal e democrático a futura realidade do despotismo das massas. 
Ele tinha vislumbrado naquela forma estatal de vastas dimensões a uniformização da 
cultura e o rebaixamento da vida política. Ele via na forma hegemônica ganha pelo 
Estado, na Europa do século XIX, a centralização do poder e a militarização das 
relações internacionais. Ele trata este problema efetivamente no semestre de inverno 
de 1871, na Universidade de Basiléia, num curso acadêmico que tinha como tema 
sua própria época, e que teve o título Geschichte des Revolutionszeitalters (História 
da Era da Revolução). Desse curso sobreviveu apenas o manuscrito de 6 de 
novembro, que servia como introdução. Em A Era da Revolução, Jacob Burckhardt 
pretendeu traçar as origens da crise européia, uma crise que, segundo ele próprio, 
surgira na metade do século XVIII e se efetivara na Revolução Francesa. Burckhardt 
sustenta, então, que os efeitos da Revolução Francesa se prolongaram no século 
XIX, assumindo formas e configurações novas, e carregando em seu bojo uma 
contradição: contradição caracterizada pelo binômio democracia/cesarismo 
moderno. Para ele, a revolução tinha centralizado enquanto destruía. Era esse um 
processo definitivo de centralização do poder político e de acirramento do 
nacionalismo, que assumia, então, as vestes do que chamou “cesarismo moderno”. É 
neste contexto que o historiador percebe a figura política de Napoleão Bonaparte. 
Para Burckhardt, Napoleão é o maior condottiere de sua época: “plena desenvoltura 
moral aliada a uma suprema capacidade militar”14. Entretanto, a tragédia de 
Napoleão reside no fato de que este mesmo condottiere, capaz de conduzir seus 
exércitos para a vitória nas batalhas é, porém, incapaz de transformar os povos 
 
14BURCKHARDT, Jacob. Geschichte des Revolutionszeitalters. Einleitung. In: Studi Storici, anno 38, 
gennaio-marzo, 1997, p. 36 (trad. livre). 
 
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vencidos em aliados. A tragédia de Napoleão é, portanto, a tragédia de seu tempo. 
Napoleão concentra em torno de si o novo significado da nacionalidade e o novo 
conceito de Estado. A política de anexação e a centralização do poder, mecanismos 
utilizados pelas potências nacionais, desencadeiam a destruição daquilo que 
Burckhardt convencionou chamar “a velha Europa”: a Europa do equilíbrio político 
das cidades-Estado, das ligas e das confederações de pequenos Estados, a Europa da 
ecumene dos povos e da descentralização política, a Europa da tradição. Esta 
Europa, que havia gestado o indivíduo moderno, que tinha preservado a plena 
liberdade individual frente à onipotência do Estado nacional, perdia a força, no 
século XIX. 
 
 Para Burckhardt, enfim, entre a idéia de Europa e a concepção do Estado 
nacional existia uma trágica incompatibilidade. E esta incompatibilidade ficaria clara 
aos europeus num momento em que o historiador de Basiléia não vivia mais, ou 
seja, na primeira metade do século XX.

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