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Introdução às Ciências Sociais VILMA AGUIAR In trodução Às Ciên cias Sociais VILMA AGUIAR Vivemos em um mundo cada vez mais complexo, com atores, demandas e desafios novos. Um mundo onde as mudanças ocorrem em velocidade acelerada. Temas como crise, desenvolvimento econômico, tecnologia, problemas ambientais e climáticos, desigualdade, novas identidades, entre outros, pautam não só as discussões acadêmicas, mas também a vida cotidiana de cada um de nós. Para se orientar nesse emaranhado, algumas ferramentas adicionais são importantes. Por isso, uma introdução a alguns dos conceitos e ideias fundamentais das ciências sociais tem sobretudo a função de fornecer aos estudantes instrumentos que lhes permitam compreender melhor nossa realidade. É com esse propósito que este livro foi concebido. Hoje, com a internet, um mundo de conhecimento qualificado pode ser facilmente acessado. Desse modo, esta obra tem o intuito de indicar os primeiros passos de um caminho que o próprio estudante pode trilhar ao longo de sua vida. Trata-se, portanto, antes de tudo, de um convite à reflexão. Pensar que as coisas são sempre mais complexas do que parecem à primeira vista e duvidar de nossas certezas são pré-requisitos imprescindíveis ao pensamento crítico. Código Logístico 59416 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6641-4 9 7 8 8 5 3 8 7 6 6 4 1 4 Introdução às ciências sociais Vilma Aguiar IESDE BRASIL 2020 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2020 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: supanut piyakanont/Shutterstock CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ A233i Aguiar, Vilma Introdução às ciências sociais / Vilma Aguiar. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2020. 108 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6641-4 1. Ciências sociais. I. Título. 20-63901 CDD: 300 CDU: 3 Vilma Aguiar Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ). Graduada em Ciências Sociais pela USP. Atuou na gestão de instituições de ensino superior por mais de 15 anos, promovendo projetos inovadores em educação. É idealizadora e presidente da Escola da Política e avaliadora ad hoc do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP/MEC) para a educação superior. Autora de livros publicados. Áreas de interesse: feminismo, teoria política e políticas públicas. Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 Conhecendo as ciências sociais 9 1.1 O aparecimento da sociologia: contexto histórico 9 1.2 As formas de conhecimento e a ciência 12 1.3 Autores clássicos da sociologia 14 2 Abordagens sociológicas contemporâneas 29 2.1 Transformação político-econômica do capitalismo 30 2.2 Transformações recentes no trabalho e no mercado de trabalho 35 2.3 Terceirização e precarização 37 2.4 Desemprego e exclusão social 42 2.5 Capitalismo global 45 3 O Brasil no contexto da globalização 49 3.1 O Estado brasileiro no final do século XX 50 3.2 Desenvolvimentismo como política econômica 56 3.3 O neoliberalismo 61 4 A democracia contemporânea 67 4.1 Teorias da democracia 68 4.2 Poder político 78 4.3 Poder disciplinar e biopoder 81 5 Temas emergentes das ciências sociais 87 5.1 A desigualdade social 88 5.2 As redes sociais 95 5.3 As questões identitárias 99 5.4 O meio ambiente e a questão da sustentabilidade 103 Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! Vivemos em um mundo cada vez mais complexo, com atores, demandas e desafios novos. Um mundo onde as mudanças ocorrem em velocidade acelerada. Temas como crise, desenvolvimento econômico, tecnologia, problemas ambientais e climáticos, desigualdade, novas identidades, entre outros, pautam não só as discussões acadêmicas, mas também a vida cotidiana de cada um de nós. Para se orientar nesse emaranhado, algumas ferramentas adicionais são importantes. Por isso, uma introdução a alguns dos conceitos e ideias fundamentais das ciências sociais tem sobretudo a função de fornecer aos estudantes instrumentos que lhes permitam compreender melhor nossa realidade. É com esse propósito que este livro foi concebido. No primeiro capítulo, apresentamos autores clássicos da sociologia, como Durkheim, Weber e Marx, e as ideias principais contidas em suas obras. Igualmente, são apresentados os fatos históricos que fertilizaram o solo sobre o qual a sociologia foi criada. Para isso, trabalhamos as ideias e os fatos que a Revolução Francesa e a Revolução Industrial trouxeram como contribuição. Lançando mão de conceitos da sociologia, no segundo capítulo vamos discutir as mudanças sofridas pelo capitalismo ao longo do século XX. Para isso, apresentaremos o fordismo, o chamado capitalismo flexível e a globalização, abordando igualmente os impactos das transformações no mundo do trabalho e na concentração de renda, com a geração em massa de trabalhadores precarizados e empobrecidos, excluídos do mundo do consumo e da cidadania. Na sequência, no terceiro capítulo, abordamos como o Estado brasileiro se formou ao longo do século XX, discutindo seus modelos de desenvolvimento, ou seja, desde o nacional-desenvolvimentismo varguista até chegarmos ao Estado neoliberal da era FHC. Esse panorama nos permitirá compreender suas principais características e os desafios atuais enfrentados por ele. No quarto capítulo, utilizando conceitos da ciência política, vamos abordar o conceito de democracia e algumas das correntes da teoria da democracia, apresentando autores que pensaram a democracia representativa e a participativa. Também serão abordados os conceitos de poder, poder disciplinar e biopoder. Finalmente, no quinto capítulo, trabalharemos alguns temas contemporâneos abordados pela sociologia. Para isso, passaremos em revista APRESENTAÇÃO as desigualdades sociais, as questões identitárias, as redes sociais, a questão ambiental e a sustentabilidade. Nesse percurso, não tencionamos esgotar os temas importantes das ciências sociais. Muitos outros poderiam também ter sido discutidos. Entretanto, hoje, com a internet, um mundo de conhecimento qualificado pode ser facilmente acessado. Desse modo, nosso intuito aqui foi indicar os primeiros passos de um caminho que o próprio estudante pode trilhar ao longo de sua vida. Trata-se, portanto, antes de tudo, de um convite à reflexão. Pensar que as coisas são sempre mais complexas do que parecem à primeira vista e duvidar de nossas certezas são pré-requisitos imprescindíveis ao pensamento crítico. Desejamos, então, uma boa caminhada. Bons estudos! Conhecendo as ciências sociais 9 1 Conhecendo as ciências sociais As ciências sociais nasceram no século XIX e são filhas da so- ciedade que surgiu com a Revolução Francesa e com o desenvol- vimento do capitalismoindustrial. Foi uma época de acentuada efervescência social, em que houve intenso entusiasmo pelo progresso e pela ciência, além de profundas mudanças políticas. O mundo começou a mudar em velocidade e intensidade jamais vistas, fazendo com que a humanidade daquele tempo buscasse compreender o novo mundo, que estava sendo gestado sobre os escombros da sociedade do Antigo Regime, como ficaram co- nhecidos o feudalismo e o absolutismo europeus. Neste capítulo, vamos conhecer esse contexto de surgimen- to das ciências sociais e as principais formas de conhecimento, bem como aprender um pouco sobre os três autores considera- dos fundadores das ciências sociais – o francês Émile Durkheim e os alemães Max Weber e Karl Marx. Será uma apresentação bastante panorâmica e, por isso, deixa de fora uma série de con- ceitos e ideias importantes desses estudiosos e dos seus con- temporâneos, com os quais eles dialogaram e debateram. 1.1 O aparecimento da sociologia: contexto histórico Vídeo Ao longo da história, muitos pensadores se dedicaram a compreen- der a sociedade em que eles viviam e a desvendar suas leis e mecanis- mos de funcionamento. Uma das obras mais antigas dessa tradição é A Política, do filósofo grego Aristóteles, que viveu cerca de 300 anos antes de Cristo. Entretanto, apesar da importância dessas obras, elas se ins- crevem no terreno especulativo – ou seja, no da discussão de ideias –, mais precisamente no terreno da filosofia. 10 Introdução às ciências sociais Apenas no século XIX é que se reconhece o surgimento de uma ciência da sociedade. A sociologia está diretamente ligada ao desenvolvimento da moder- na sociedade ocidental. Foi por meio do culto à ciência e das profundas transformações 1 – trazidas pelo capitalismo industrial, para as cidades europeias e norte-americanas – que a sociologia e as demais ciências sociais se estabeleceram. Tanto as ciências quanto a sociedade moder- na são frutos diretos de duas revoluções que mudaram a face do mun- do em poucas décadas: a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. Para compreender melhor esse contexto histórico, é preciso salien- tar que o capitalismo não nasceu com o processo de industrialização. Antes do capitalismo industrial, houve o capitalismo mercantil, presen- te desde a Renascença, no século XIV. Foi esse capitalismo, inclusive, que criou a burguesia mercantil e a chamada acumulação primitiva, que consistia em um fundo de poupança de capital que, séculos mais tarde, financiou o desenvolvimento industrial. Essa mesma burguesia promo- veu a Revolução Francesa – processo que durou décadas, sacudiu a estrutura de vários países e criou o mundo moderno 2 . Iniciada na Inglaterra, a Revolução Industrial rapidamente se espa- lhou pela Europa e pelos Estados Unidos. A partir daí e ao longo de todo o século XIX, o capitalismo revolucionou o modo como os bens de consumo passaram a ser produzidos, assim como a organização políti- ca e social das nações em que ele chegou. Antes do advento das indús- trias, os produtos eram manufaturados (fabricados manualmente, um a um), o que resultava em uma oferta bastante reduzida e com preços altos. Mudaram, também, as formas de vida, com o início da grande migração dos camponeses para as cidades e a transformação deles em operários. Uma mudança dessa envergadura não poderia ocorrer sem que ondas de miséria, de grandes epidemias e de intensa instabilidade social ocorressem. A Revolução Francesa, por sua vez, transcorreu entre 1789 e 1799 e gerou uma instabilidade política que durou cerca de 60 anos, deixando como herança o fim dos governos absolutistas – como o de Luís XVI, na França, e outros na Europa –, a ascensão da burguesia como classe do- minante, a criação da ideia de cidadania com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, entre outros legados. Entre essas transformações, podemos destacar aqui a intensa urbanização, o surgimento das primeiras favelas e dos cortiços, entre outros. 1 Uma das melhores descrições desse processo complexo pode ser encontrada no livro A Era das Revoluções: Europa 1789-1848, escrito pelo historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012). 2 Historicamente, o início da Revo- lução Industrial ocorreu no fim do século XVIII, quando o inventor Edmund Cartwright (1743-1823) patenteou seu primeiro tear mecânico, em 1785. Curiosidade Conhecendo as ciências sociais 11 Podemos perceber que, em pouquíssimas décadas, o mundo pas- sou de uma sociedade de trabalho manual para a escala industrial, de uma sociedade rural para uma urbana, de uma sociedade cujas mudan- ças levaram séculos para se consumar para outra de rapidez extraor- dinária, de uma sociedade fundada sobre crenças religiosas para outra em que a ciência passou a ter papel dominante. Weber (1864-1920) chamou este último processo de racionalização do mundo. Para os homens do século XIX, tornou-se, então, imperativo com- preender que sociedade era essa e como ela mudava. Ou seja, a pró- pria sociedade tornou-se o “problema” ou o “sujeito” que deveria ser estudado e compreendido, o que só seria possível mediante a criação de uma nova ciência (IANNI, 1988). A sociologia se constitui, portanto, como a forma de conhecimento da sociedade contemporânea, assim como a teologia foi a maneira de conhecimento do mundo feudal, como bem assinalou Augusto Comte. Para Aron (2000, p. 7), autor do magistral As etapas do pensamento sociológico, a sociologia é o “estudo científico do social, seja ao nível elementar das relações interpessoais, seja ao nível macroscópico dos grandes conjuntos, classes, nações, civilizações ou, utilizando uma ex- pressão de uso corrente, sociedades globais”. É preciso considerar, ainda, como aponta Martins (1991 apud MA- RIANO, 2008), que a sociologia é um projeto tenso e contraditório, pois convive com explicações diversas sobre a realidade social. Se tomar- mos apenas os três sociólogos considerados os principais clássicos da disciplina (Marx, Durkheim e Weber), veremos que cada um desenvol- veu não apenas conceitos próprios, mas também perspectivas teórico- -metodológicas com “diferentes estilos de pensamento, distintas visões da sociedade, do mundo” (IANNI, 1988, p. 12). Outra questão importante na sociologia é a metodológica, principal- mente para o clássico questionamento sobre a objetividade e suas im- plicações no modo de pensar a relação sujeito-objeto na produção do conhecimento científico, assim como oposições clássicas encontradas em suas abordagens, como o biológico e o social, o normal e o patoló- gico etc. (MARIANO, 2008). W ik im ed ia C om m on s Auguste Comte (1798-1857) foi um filósofo francês, conhecido pela doutrina do positivismo e por ser o pensador que cunhou o termo sociologia. Biografia Aponte as principais mudanças pelas quais passaram os países capitalistas europeus no século XIX, que levaram vários pensadores a considerar a necessidade de fundar uma ciência da sociedade. Atividade 1 12 Introdução às ciências sociais 1.2 As formas de conhecimento e a ciência Vídeo Para se introduzir o tema do método e do objeto da Sociologia, ou seja, o que a torna a ciência da sociedade, temos de abordar antes uma questão fundamental: a existência de diversas formas de conhe- cimento. Essas diversas formas de conhecimento possuem caracterís- ticas próprias, as quais veremos a seguir. Conhecimento religioso Esse conhecimento se baseia na fé. Sua origem está na busca de explicações para os mistérios do mundo, que tratam dos fenômenos para os quais não se conhecem as causas naturais, como a criação do Universo e da humanidade. As crenças ou dogmas de uma religião são transmitidas oralmente nos cultos e nas missas, podendo ser encontradas em livros considerados sagrados, como a Bíblia e o Alcorão, que contêm as verdades reveladas por santos ou profetas. Esse tipo de conhecimento não pode ser verificado e, em vista disso, sua validação depende exclusivamente da fé dos seusadeptos. Para os cristãos, por exemplo, Jesus Cristo é o filho de Deus, fato que não pode ser confirmado nem desmentido e, por isso, depende da crença. Conhecimento empírico Esse conhecimento fundamenta-se na experiência, na observação e nas interações das pessoas com o meio ambiente e com outras pes- soas. Chamamos de conhecimento espontâneo ou senso comum o sa- ber resultante das experiências levadas a efeito pela humanidade ao enfrentar os problemas da existência (ARANHA, 2012). Todavia, esse conhecimento espontâneo, muitas vezes, se baseia em aparências enganosas (ARANHA, 2012). Por exemplo, poderíamos afirmar erroneamente que o Sol gira em torno da Terra, a qual perma- neceria parada no centro do Universo, pois nos parece que é o Sol que se move quando o observamos nascer ao leste e se pôr ao oeste. Outra característica desse tipo de conheci- mento é a não existência de um método sobre o qual ele se funda, há apenas repetições ou valores pessoais, visto que é um saber empírico, baseado em experiências superficiais. Por isso, é uma forma de conhecimento acrítico, no sentido de que as perguntas sobre as razões das coisas raramente são feitas. Figura 1 A Bíblia é conhecida como um livro sagrado. Ory Gonian /Shut terst ock Figura 2 Por nascer ao leste e se pôr ao oeste, temos a impres- são de que é o Sol que se move, e não a Terra. ELHESHAM/Sh utters tock Conhecendo as ciências sociais 13 Conhecimento científico Esse conhecimento deriva das descobertas da ciência e, assim, per- mite a formulação de explicações e compreensão de causas e efeitos dos fenômenos observados. Já na Antiguidade se fundaram as bases da matemática, da medicina e da física. Entretanto, foi no século XVII que apareceu um fato novo na história: a Revolução Científica. Convencionalmente, conside- ramos Galileu Galilei (1564-1642) o primeiro grande cientista moderno, por seu papel na constituição de métodos de investigação rigorosos. Segundo Aranha (2012, p. 158), a utilização de métodos rigorosos per- mite à ciência que “atinja um tipo de conhecimento sistemático, preciso e objetivo segundo o qual são descobertas relações universais e necessárias entre os fenômenos, o que permite prever acontecimentos e tam- bém agir sobre a natureza de forma mais segura”. Outra característica do conhecimento científico é a aspiração à objetividade e à impessoalidade, pois, além de não depender das cren- ças e opiniões do cientista, seus estudos podem ser repetidos por ou- tros membros da comunidade e suas conclusões podem ser validadas por terceiros. Isso não significa que a ciência seja infalível e que o co- nhecimento gerado por ela não mude; pelo contrário, a ciência evolui e muitos preceitos aceitos podem deixar de sê-lo algum dia. As ciências se especializam e se tornam campos diferentes de co- nhecimento (ARANHA, 2012), como a química e a física, que, apesar de estudarem a matéria, têm abordagens inteiramente diferentes, exigin- do métodos igualmente distintos. Essa discussão sobre os tipos de conhecimento e sobre o científico é importante porque introduz a questão do método nas ciências sociais. Como já vimos, a sociologia surgiu no século XIX, proposta por Augusto Comte (1798-1857), que a pensou como a ciência dos fatos sociais, isto é, das instituições, dos costumes e das crenças coletivas. Apesar disso, sua contribuição é compreendida normalmente no campo da filosofia, justa- mente porque, ao longo de sua obra, distanciou-se dos preceitos científi- cos e adentrou o terreno especulativo, ou seja, do pensamento puro. A questão da objetividade da ciência se manteve no horizonte e o primeiro grande cientista social, Émile Durkheim (1858-1917), escreveu Figura 3 A ciência utiliza-se de méto- dos rigorosos de estudo. AN Im ages /Sh utte rsto ck 14 Introdução às ciências sociais W ik im ed ia C om m on s um livro clássico sobre isso – As regras do método sociológico (1895) –, em que estabeleceu como regra fundamental do método sociológico a abordagem dos fatos sociais como coisas. Para isso, utiliza-se ampla- mente o método estatístico. Weber (1864 -1920) também se interessa pela questão do método nas ciências humanas e, por isso, sublinha a necessidade de se usar o método da compreensão em oposição ao critério da explicação, típico das ciências da natureza. Assim, embora reconheçamos que existam diversas formas de co- nhecimento e que essas sejam igualmente válidas, cumprindo papéis sociais importantes, é preciso salientar que o conhecimento advindo da ciência é o que mais contribui para o avanço humano e para a compreensão dos desafios enfrentados pelas diferentes gerações ao longo do tempo. 1.3 Autores clássicos da sociologia Vídeo A sociologia se consolidou por meio de diversos autores, tais como: Durkheim, que introduziu o método de estudos empíricos da realidade social; Weber, que apresentou uma interpretação ampla e global do desenvolvimento do capitalismo; e Marx, que apontou suas contradi- ções e o modelo de funcionamento. Esses autores, conhecidos como pais da sociologia, introduziram os marcos teóricos e metodológicos da área. Vamos conhecer uma parte da contribuição de cada um deles. 1.3.1 Durkheim e a fundação das ciências sociais O sociólogo francês Durkheim é considerado, por muitos estudiosos, o fundador das ciências sociais. No início de sua carreira, foi influenciado pelo positivismo de Comte e dedicou seus esforços para a elaboração de uma ciência que permitis- se a compreensão dos comportamentos coletivos. Nascido apenas dez anos após o mais longo período tur- bulento da história da França (1789-1848), que foi marcado por conflitos e mudanças políticas frequentes, uma de suas maiores preocupações era explicar os elementos capazes de manter a coesão da sociedade que emergiu da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, ainda em curso. Para compreender bem as notícias diárias, acesse o site do jornal Nexo, que apresenta análises aprofundadas sobre vários assuntos da atualidade. Normal- mente, são produzidos infográficos que auxiliam na compreensão. Disponível em: https://www. nexojornal.com.br/. Acesso em: 7 mar. 2020. Site Figura 4 Émile Durkheim https://www.nexojornal.com.br/ https://www.nexojornal.com.br/ Conhecendo as ciências sociais 15 Autor de obras fundamentais e que tiveram enorme influência so- bre outros autores, Durkheim publicou, em 1893, sua primeira grande obra, Da divisão do trabalho social, na qual delimita o objeto de estudo da sociologia. Em 1895, publicou As regras do método sociológico, em que discute as bases metodológicas da nova ciência. Já em 1897, pu- blicou O suicídio, um estudo em que ele mesmo aplica seu método a um objeto, até então, inédito; a particularidade desse livro é o uso da estatística como recurso metodológico na pesquisa social. Em 1912, publicou As formas elementares da vida religiosa. Além dessas, deixou outras obras publicadas postumamente, entre elas Educação e Sociolo- gia (1922) e Sociologia e Filosofia (1924). Como fundador de um novo campo de conhecimento, buscou criar conceitos e desenvolver técnicas de pesquisa que, apesar de inspirados pelas ciências naturais, pudessem levar os cientistas sociais a discernir um objeto de estudo próprio e os meios adequados para interpretá- -lo. Neste trecho de uma de suas obras mais importantes, As regras do método sociológico, podemos perceber como ele constrói esse objeto: antes de indagar qual o método que convém ao estudo dos fatos sociais, é necessário saber que fatos podem ser assim chamados. [...] Cada indivíduo bebe, dorme, come, raciocina e a sociedade tem todo interesse em que estas funções se exerçam de modo regular. Porém, se todos esses fatos fossem sociais, a Sociologia não teria objeto próprio e seu domínio se confundiria com o da biologia e da psicologia. [...] Na verdade, porém, há em toda so- ciedade um grupo determinado de fenômenos com caracteres nítidos, que se distinguedaqueles estudados pelas outras ciên- cias da natureza. (DURKHEIM, 2014, p. 7) A primeira preocupação será, pois, distinguir os campos da socio- logia daqueles das demais ciências e descrever o que caracteriza seu objeto. Mas quais seriam os traços que distinguem os fatos sociais dos biológicos, por exemplo? O autor segue: estamos, pois, diante de uma ordem de fatos que apresenta ca- racteres muito especiais: coexistem em maneiras de agir, pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coer- ção em virtude do qual se impõem. Por conseguinte, não pode- riam se confundir com os fenômenos orgânicos, pois consistem em representações e em ações; nem com fenômenos psíquicos, que não existem senão na consciência individual e por meio dela. Constituem, pois, uma espécie nova e é a eles que deve ser dada e reservada a qualificação de social. (DURKHEIM, 2014. p. 5) 16 Introdução às ciências sociais Então, quais seriam exatamente as características dos fatos sociais? Durkheim (2014) enumera as três mais importantes: i. Exterioridade: os fatos sociais existem fora do indivíduo e precedem a existência dele; já existiam antes de seu nascimento e atuam sobre ele, independentemente de sua vontade ou de sua adesão consciente. ii. Coercitividade: os fatos sociais exercem força impositiva sobre os indivíduos, le- vando-os a agir segundo regras estabelecidas pela sociedade em que vivem 3 . iii. Generalidade: os fatos sociais atingem muitas pessoas, sendo fenômenos que abrangem, se não o conjunto da sociedade, pelo menos uma parte dela 4 . Um dos exemplos citados por Durkheim é o idioma. Ninguém é obrigado, por lei, a usar a lín- gua falada em um determinado país, mas todos são coagidos a usá-la, uma vez que ela é condição para a comunicação e o convívio social. 3 Exemplos disso são a religião e as práticas sociais, como tradições culturais etc. 4 Outro importante conceito de Durkheim é o de consciência coletiva. Em Da divisão do trabalho social, ele apresenta a ideia de que: o conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determi- nado que tem sua vida própria; poderemos chamá-lo: consciên- cia coletiva ou comum. Sem dúvida, ela não tem por substrato um órgão único; é por definição, difusa em toda extensão da so- ciedade. (DURKHEIM, 2014, p. 40) A consciência coletiva é diferente da consciência individual, muito embora seja incorporada pelos indivíduos. Trata-se das “similitudes sociais” compartilhadas pela média dos membros de uma sociedade. Assim, diz respeito ao que é ou não aceito pela maior parte das pessoas no interior de uma mesma sociedade. Por exemplo, nas sociedades is- lâmicas, a poligamia (um homem casado com várias esposas) é aceita, enquanto nas cristãs há um tabu em torno disso. Entretanto, como aponta Durkheim (2014), quanto mais complexa é uma sociedade, mais fraca é a consciência coletiva, uma vez que muitas determinações não são mais compartilhadas por todos os indivíduos. Para exemplificar, digamos que as pessoas podem fazer escolhas que fogem aos comportamentos mais usuais e, muitas vezes, esse é o co- meço de mudanças em larga escala. A obrigação de casamento de “pa- pel passado” é um exemplo de prática social que está sendo deixada de lado em sociedades complexas. Outra ideia que encontramos na obra Da divisão do trabalho social é a de que a divisão do trabalho (por sexo, por especialização etc.) tem impacto no incremento do individualismo nas sociedades contempo- râneas. Igualmente, faz parte do livro a ideia de que a ampliação das Considerando o conceito de consciência coletiva de Durkheim, pense e aponte alguns exemplos dela em nossa sociedade. Atividade 2 Conhecendo as ciências sociais 17 Na ta ta /S hu tte rs to ck funções econômicas, que antes ocupavam um papel secundário na so- ciedade e agora estão em primeiro plano, ocasionam a diminuição da importância de outras funções, como as religiosas, as administrativas, as militares etc. Essas funções desempenham o papel de integrar o in- divíduo ao corpo social, possibilitando coesão e solidariedade social. Essas questões levantadas pelo autor vão ao encontro de suas preocu- pações com as intensas perturbações sociais que aconteciam em sua época, que foi um tempo de intensas mudanças. Além disso, há diversos conceitos na obra de Durkheim que, ainda hoje, mais de cem anos após sua morte, têm validade e ajudam os cien- tistas sociais a compreender os fenômenos que ocorrem à nossa volta. Entre esses conceitos, há a ideia de que no estudo da sociedade temos sempre que partir dela e não dos indivíduos, se quisermos compreen- der o que ocorre. Isso é particularmente importante porque modifica uma grande parte da tradição filosófica. 1.3.2 Weber e o mundo contemporâneo Max Weber (1864-1920) nasceu na cidade de Erfurt e morreu em Munique (Alemanha). Fez estudos nas áreas de direito, filosofia, his- tória e sociologia. Iniciou sua carreira de professor em Berlim e, em 1895, foi catedrático na universidade de Heidelberg (Alemanha). Suas inclinações políticas eram liberais e parlamentaristas, ou seja, era inclinado a defender as liberdades individuais e uma estrutu- ra republicana de governo. Participou, inclusive, da comissão que redigiu a Constituição da República de Weimar, ou seja, o regime de democracia representativa que se estabeleceu na Alemanha no pós-guerra (1919), durando até o início do regime nazista (1933). Contemporâneo de Durkheim, também se dedicou a com- preender a sociedade capitalista, que se formou na Europa a partir do século XIX. Weber morreu em 1920 e, por isso, vivenciou a Primeira Guerra Mundial (1914-1917), a primeira experiência de um conflito em nível global e que deixou uma legião de mortos e mutilados, além de desorganizar a economia da Alemanha, país vencido na guerra. Em suas obras, Weber abordou uma grande variedade de temas, como economia, história, filosofia, religião e política. Do conjunto de sua obra emerge o que ficou conhecido como sociologia compreensiva, que se baseia na ideia de privilegiar a motivação dos indivíduos e dos grupos nas ações sociais, debruçando-se sobre o sentido que os su- Figura 5 Max Weber 18 Introdução às ciências sociais jeitos atribuem às suas próprias ações, bem como no significado que estas adquirem em um contexto social amplo. Segundo Moraes, Del Maestro e Dias (2003, p. 35): Weber procurou construir um esquema interpretativo funda- mentado na neutralidade axiológica, ou seja, buscou construir uma ciência social sem pressupostos. Preocupado com o proble- ma da ação, desenvolveu o conceito de ação social significativa, tendo como ponto de partida o indivíduo. Assim, definiu a so- ciologia como a ciência da ação social, estruturando os níveis da ação em três tipos básicos: (1) ação frente a uma situação con- creta; (2) ação prescrita com base em regras determinadas; (3) ação decorrente da compreensão informal das regras. Segundo Weber (1999), o papel do sociólogo é compreender o senti- do das ações sociais. Para tanto, ele precisa encontrar os nexos causais que as determinam; assim, o autor propõe o conceito de tipos ideais. A realidade é demasiadamente complexa para ser compreendida sem que destaquemos suas características principais (típicas), o que permite a elaboração de uma ideia ou teoria. Nas palavras do autor, o tipo ideal “não é uma hipótese, mas quer assinalar uma orientação à formação de uma hipótese. Não constitui uma exposição da realidade, porém, quer proporcionar meios de expressão unívocos para repre- sentá-la” (WEBER, 1999, p. 82). Um dos usos que Weber fez do tipo ideal foi o desenvolvimento da teo- ria da ação social, em que lança mão dessa ideia de tipos ideais para che- gar a quatro ações fundamentais da experiência humana em sociedade: i. Ação social racional relacionada a fins: baseia-se na racionalidade, de modo que a ação é orientada por seu fim, buscando-se os melhoresmeios para sua realização. Exemplo: a escolha de uma faculdade, tendo em vista obter uma boa formação profissional. ii. Ação social racional relacionada a valores: não é o fim que orienta a ação, mas o valor atribuído a ela, seja ético, religioso ou político. Exemplo: a escolha de um partido político, buscando obter um governo que tenha como norte a justiça social. iii. Ação social afetiva: não é considerada uma ação racional, pois orienta-se por senti- mentos, como esperança, ciúmes, medo, vingança, compaixão etc. Exemplo: a escolha de um cônjuge para o casamento, com o objetivo de ter uma vida feliz. iv. Ação social tradicional: não é considerada uma ação racional, pois é motivada por hábitos, costumes e tradição. Exemplo: mulheres usarem vestidos. tipos ideias: tipos teóricos que não existem tal qual descritos no mundo real, mas que ajudam na elaboração da análise e que servem para que possamos compreender a realidade. Glossário Conhecendo as ciências sociais 19 Segundo Aron (2000, p. 459), a classificação dos tipos de ação comanda, em certa medida, a interpretação weberiana da época contemporânea. O traço ca- racterístico do mundo em que vivemos é a racionalização. [...] O empreendimento econômico é racional, a gestão do Estado, pela burocracia também. A sociedade moderna tende toda ela à organização racional. O livro mais conhecido de Weber é A ética protestante e o espírito do capitalismo, no qual estuda a influência da religião, em especial do pro- testantismo, na formação do capitalismo ocidental. Aqui, novamente, encontramos um exemplo do uso da ideia de tipo ideal, nesse caso, uma certa noção de capitalismo. Segundo o autor, o capitalismo se apresenta de maneiras variadas na história, dependendo da época e do país onde é encontrado. Porém, algumas caraterísticas se repetem (a busca do lucro e a organização racional do trabalho) e podem ser consideradas típicas desse sistema de produção. Para Weber (1999), o capitalismo é definido pela existência de empresas que buscam produ- zir o maior lucro possível por meio da organização racional do trabalho e da produção, ou seja, dois traços principais: o desejo de lucro e a disciplina racional. Dessa forma, uma empresa capitalista visa à acumu- lação indefinida de capital por meio de uma organização burocrática. Nesse livro, além de buscar uma gênese histórica do capitalismo moderno, Weber arrisca uma hipótese inovadora, que é ligar, do pon- to de vista causal, a economia à religião. A hipótese é de que uma certa interpretação do protestantismo criou algumas das motivações que favoreceram a formação do regime capitalista. Em seus estudos de religião, ele percebeu que, no século XVI, o crescimento do protes- tantismo levou à conversão de muitos cidadãos nas cidades mais ricas do Império Alemão. Ele também constatou que a maioria dos grandes proprietários de empresas e bancos eram protestantes, enquanto os católicos permaneciam em posições de menor destaque. A partir daí, empreendeu uma investigação para descobrir as razões disso, bem como seu impacto. Ele partiu do estudo do calvinismo, que é uma das vertentes da chamada Reforma Protestante do século XVI 5 . Segundo Weber (1999), os protestantes desenvolveram uma nova ética do trabalho com base na ideia de que a salvação de suas almas não estava ga- rantida. Enquanto os católicos acreditavam que a salvação adviria A Reforma Protestante foi uma dissidência do catolicismo, que teve como maiores expoentes João Calvino (1509-1534) e Martinho Lutero (1483-1556). Ela foi tanto um movimento religioso quanto teológico, no sentido de revisar alguns dogmas do catolicismo. 5 20 Introdução às ciências sociais do arrependimento e da penitência, os protestantes defendiam que a salvação é uma prerrogativa de Deus, que define seus escolhidos. Aos seres humanos cabe se esforçarem para fazer o bem a sua co- munidade e serem trabalhadores. Essa ideia foi se aperfeiçoando até chegar ao que o autor chama de ética protestante do trabalho, ou seja, a realização sistemática de um tra- balho metódico, racionalmente organizado. Mas era necessário que o indivíduo poupasse e reinvestisse seus ganhos em uma atividade pro- dutiva. O trabalho, a poupança, o investimento e a melhoria das condi- ções de vida da comunidade eram vistas como uma forma de louvar a Deus. Ora o capitalismo moderno vai se desenvolver exatamente sobre esse tripé de trabalho, acumulação e reinvestimento. De acordo com Aron (2000, p. 459), o essencial para Weber […] é a análise de uma concepção reli- giosa do mundo, isto é, de uma atitude com relação à existência por parte de homens que interpretavam sua situação a partir de certas crenças. Max Weber quis demonstrar principalmente a afinidade intelectual e existencial entre uma interpretação do protestantismo e determinada conduta econômica. Esta afini- dade entre o espírito do capitalismo e a ética protestante torna inteligível o modo como uma forma de conceber o mundo pode orientar a ação. O estudo de Weber permite compreender de forma positiva e científica a influência dos valores e das crenças nas condutas humanas. Mostra a maneira como opera, através da história, a causalidade das ideias religiosas. Para Weber (1999), portanto, os fundamentos do protestantismo – pregando, de um lado, uma intensa dedicação ao trabalho e, de ou- tro, não condenando a acumulação de riquezas – favoreceram o avan- ço e a consolidação do capitalismo nos países em que a influência dele era crescente. Aplicando seus próprios princípios metodológicos, ele demonstra que a maneira como os sujeitos compreendiam seu próprio mundo – sua ética religiosa – influenciou diretamente suas ações, que confluíram, por sua vez, na consolidação do capitalismo moderno. Na obra de Weber, o tema da racionalização do trabalho e, poste- riormente, de outros âmbitos da vida social é a característica mais im- portante do mundo moderno. Por racionalização o autor entende tanto a burocratização 6 das atividades quanto o avanço da ciência sobre ou- tras formas de conhecimento, como o religioso ou místico. No sentido weberiano, burocra- tização significa a organização eficiente do trabalho e das atividades coletivas, além de aplicação de regras gerais e impessoais, ou seja, a formação de quadros profissionais técnicos encarregados pela administra- ção e pelo funcionamento do Estado, empresas, igrejas etc. Já a racionalização, advinda do avanço da ciência e dos métodos científicos, Weber denomina desencantamento do mundo. 6 Conhecendo as ciências sociais 21 W ik im ed ia C om m on s Figura 6 Karl Marx 1.3.3 Karl Marx e a interpretação do capitalismo Karl Marx (1818-1883) nasceu em uma família judia, em Trier, na Alemanha, e morreu em Londres. Estudou direito, história e filosofia na Universidade de Bonn. Dedicou sua vida ao estudo da sociedade ca- pitalista e deixou uma extensa obra, entre as quais o livro O capital, no qual analisa profundamente os pressupostos e o funcionamento dessa sociedade. Ao longo de sua vida, trabalhou como jornalista e morou em várias cidades europeias fora da Alemanha, em ra- zão de ter sido perseguido pelo governo alemão por conta de sua militância política e de suas obras. Em Paris, ainda jovem, conheceu Friedrich Engels, com o qual estabeleceu uma parceria que rendeu um intenso diálogo intelectual, resultando em alguns livros escritos em conjunto, além de uma amizade que duraria toda a sua vida. Engels, filho de uma família rica, muitas vezes foi um mecenas (patrocinador), permitindo que Marx se dedicasse à sua obra. Entre os autores inaugurais da sociologia, Marx é o mais conhecido e o mais polêmico. Sua obra, bastante extensa e variada, é pouco lida, mas uma parte de suas ideias, vulgarizada por teóricos, jornalistas, mi- litantes e políticos, até hoje inspira movimentos sociais e políticos, bem O desencantamento é um dos conceitos mais conhecidos de Weber, referindo-se a um longoperíodo de racionalização religiosa pelo qual passou a religiosidade ocidental, ou seja, a negação do misticismo, da magia etc., dando lugar a uma ideia de ética. Trata-se de um processo que levou muitos séculos para se consumar. Nas palavras do autor, “aquele grande processo histórico-religioso de desencantamento do mundo, que começara com os profetas do antigo judaísmo e, em as- sociação com o pensamento científico helenístico, repudiou todos os meios mágicos de busca da salvação como superstição e sacrilégio, chegou aqui à sua consumação” (WEBER, 2004, p. 72). A obra weberiana é uma das mais fecundas entre os pensadores da contemporaneidade. Sua influência é sentida em vários campos do sa- ber e seus conceitos fundamentais se transformaram em instrumentos poderosos para a compreensão do mundo e do capitalismo modernos. 22 Introdução às ciências sociais como é usada para amaldiçoar um conjunto de perspectivas e valores sociais. Isso porque seu nome está ligado aos movimentos socialistas e comunistas do início do século XX. Antes de Marx, na passagem do século XVIII para o XIX, vários auto- res defenderam ideias socialistas. Os mais conhecidos são Robert Owen (1771-1858), Charles Fourier (1772-1837) e Saint-Simon (1760-1825). Conhecidos como socialistas utópicos, defendiam, cada um à sua ma- neira, uma sociedade mais igualitária, que primasse pela busca da feli- cidade, da liberdade e do prazer. Por sua vez: Marx inaugura aquilo que ficou conhecido como socialismo científico. Comumente, a obra de Marx é dividida entre as de juventude e as de maturidade. As primeiras, de cunho mais filosófico (é preciso lem- brar que ele fez seu doutorado em filosofia), discutem obras de au- tores alemães que o influenciaram, como Friedrich Hegel e Ludwig Feuerbach. As segundas são as mais influentes e registram seu legado mais importante. Da primeira fase, as mais conhecidas são Teses sobre Feuerbach (1845) e A ideologia alemã (1845-1846). Da segunda, desta- cam-se Grundrisse (1857-1858), Para a crítica da economia política (1859) e O capital: crítica da economia política (Livro I: O processo de produção do capital) (1867). Durante os anos seguintes, até sua morte, Marx se dedicara à redação dos demais volumes do livro O capital, publicados postumamente por Engels. Por conta do volume e da diversidade de sua obra, bem como pela polêmica que a cerca, qualquer apresentação breve desta deixará de fora muitos aspectos importantes. Aqui vamos nos concentrar em algu- mas ideias que foram importantes para a sociologia marxista. Uma de suas obras mais conhecidas e lidas foi escrita em conjun- to com Engels. Trata-se do Manifesto do Partido Comunista (1848), que, como o nome sugere, não é um livro teórico, mas, sim, um manifesto. O texto se tornaria rapidamente um clássico relido por gerações, capaz de inspirar movimentos operários ao redor do mundo. Além disso, aqui ele apresenta, de modo didático, algumas ideias que são o cerne de sua interpretação sobre a sociedade capitalista. Isso porque, antes de mais nada, é preciso ter em mente que, para o autor, não é possível a compreender sem uma remissão ao sistema econômico que a rege. W ik im ed ia C om m on s Friedrich Engels (1820-1895) foi um político e filósofo alemão. Ao lado de Marx, fundou o socialismo científico, também denominado marxismo. Engels completou os volumes II e III da obra O capital, que Marx não pôde concluir. Biografia Conhecendo as ciências sociais 23 Segundo Aron (2000, p. 120), “o pensamento de Marx é uma interpretação do caráter contraditório ou antagônico da sociedade capitalista. […] é um esforço destinado a demonstrar que esse caráter contraditório é inseparável da estrutura fundamental do regime capitalista e é, também, o motor do movimento histórico”. Vamos, então, ao Manifesto do Partido Comunista para compreender como isso aparece na obra. Em primeiro lugar, é preciso considerar que Marx descreve o capita- lismo como fruto da revolução que a burguesia empreendeu contra o sistema feudal. Lembremos que a burguesia é, originalmente, a classe dos comerciantes que viviam nos burgos (pequenas cidades), durante a Idade Média. A partir da obra de Marx, o termo burguesia passa a deno- minar os capitalistas, ou seja, os proprietários dos meios de produção, os donos do capital. Onde quer a burguesia tenha chegado ao poder, ela destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Ela rompeu impie- dosamente os variegados laços feudais que atavam o homem ao seu superior natural, não deixando nenhum outro laço entre os seres humanos senão o interesse nu e cru, senão o insen- sível “pagamento à vista”. […] Ela dissolveu a dignidade pessoal em valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades atestadas em documento ou valorosamente conquistadas, colocou uma única inescrupulosa liberdade de comércio. A burguesia, em uma palavra, colocou no lugar da exploração ocultada por ilu- sões religiosas e políticas a exploração aberta, desavergonhada, direta, seca. A burguesia despojou de sua auréola sagrada todas as atividades até então veneráveis, contempladas com piedoso recato. Ela transformou o médico, o jurista, o clérigo, o poeta, o homem das ciências, em trabalhadores assalariados, pagos por ela. […] Apenas ela deu provas daquilo que a atividade dos homens é capaz de levar a cabo. Ela realizou obras miraculosas inteiramente diferentes das pirâmides egípcias, dos aquedutos romanos e das catedrais góticas, ela executou deslocamentos in- teiramente diferentes das Migrações dos Povos e das Cruzadas. (MARX; ENGELS, 2014, p. 25) Para Marx, a burguesia é a classe social responsável por liderar a grande transformação pela qual passou a humanidade ao longo de sé- culos, desde a Idade Média, e que culmina no desenvolvimento do capi- talismo industrial moderno. Por sua ação, a estrutura do mundo feudal vem abaixo, tanto do ponto de vista econômico quanto político e social. 24 Introdução às ciências sociais Assim, os regimes absolutistas dão lugar a monarquias constitucionais ou repúblicas, a população rural se torna eminentemente urbana e o camponês se transforma em operário. Ele segue: a burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção e, assim, o conjunto das relações sociais. Conservação inaltera- da do velho modo de produção foi, ao contrário, a condição pri- meira de existência de todas as classes industriais anteriores. O revolucionamento contínuo da produção, o abalo ininterrupto de todas as situações sociais, a insegurança e a movimentação eternas distinguem a época burguesa de todas as outras. Todas as relações fixas e enferrujadas, com o seu séquito de veneráveis representações e concepções, são dissolvidas; todas as relações novas, posteriormente formadas, envelhecem antes que possam enrijecer-se. Tudo o que está estratificado e em vigor volatiliza- -se, todo o sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar a sua situação de vida, os seus relaciona- mentos mútuos com olhos sóbrios. (MARX; ENGELS, 2014, p. 27) Para compreender essa passagem, é preciso ter em mente que meios de produção (ou instrumentos de produção) são os itens necessários para a produção de um bem ou mercadoria, ou seja, a matéria-prima, as máquinas e os equipamentos, a tecnologia necessária, a estrutura fabril e o capital investido. Nós, que vivemos mais de 180 anos depois que o texto foi escrito, sabemos o quanto os meios de produção mudaram no período. Saímos das máquinas a vapor e chegamos à inteligência arti- ficial, por exemplo. Da mesma forma, a dessacralização tanto religiosa quanto das instituições é outra característica da modernidade. No regi- me absolutista, que vigorou na Europa até o século XVIII, o rei era consi- derado o representante de Deus na terra. Pensemos nisso em oposição à imagem que fazemos hoje de nossos presidentes. Para Marx, o capita- lismo operou essasmudanças por meio da burguesia. Outra ideia, que aparece nesta passagem, é a de que o avanço das forças produtivas não é acompanhado pelo das relações de produção. Nas palavras de Aron (2000, p. 469), a burguesia cria incessantemente meios de produção mais po- derosos. Mas as relações de produção, isto é, ao que parece, ao mesmo tempo as relações e propriedade e a distribuição das rendas, não se transformam no mesmo ritmo. O regime capita- lista é capaz de produzir cada vez mais. Ora, a despeito desse au- mento das riquezas, a miséria continua sendo a sorte da maioria. Conhecendo as ciências sociais 25 Aqui já temos os elementos fundamentais da teoria das classes sociais de Marx. Para ele, no capitalismo existem apenas duas classes sociais estruturais: a burguesia e o proletariado. Além disso, essas classes são antagônicas, ou seja, estão em conflito. O conflito vem do fato de que seus interesses são divergentes, pois, de um lado, há a tentativa da burguesia de aumentar a exploração da força de trabalho e, de outro, há os proletários lutando para suprimir essa exploração e criar uma sociedade mais justa e igualitária. Para Marx, o acirramento desse conflito (mais miséria de um lado e mais riqueza concentrada de outro) levaria, no futuro, a uma crise revolucionária, isto é, uma crise na qual o regime capitalista seria suplantado pelo socialismo, uma vez que os trabalhadores são a maioria da população e seus in- teresses teriam caráter universal. Podemos encontrar no livro Contribuição à crítica da economia políti- ca (1859) outro ponto fundamental da teoria marxista. Trata-se de uma teoria econômica da história. Segundo Aron (2000), é possível indicar algumas ideias gerais dessa teoria. Em primeiro lugar, a ideia de que as relações sociais são determinadas, necessárias e independentes de nossa vontade. Assim, se quisermos compreender uma sociedade ou uma época, a melhor forma é “seguir o movimento da história analisan- do a estrutura das sociedades, as forças de produção e as relações de produção, e não adotando como origem da interpretação o modo de pensar dos homens” (ARON, 2000, p. 134). Outra ideia importante que aparece é a de que em toda sociedade podemos distinguir a base econômica, ou infraestrutura, e a superes- trutura. Enquanto a infraestrutura diz respeito ao modo como a repro- dução da vida social está organizada, a superestrutura é formada pelas instituições jurídicas e políticas, além da cultura e das ideologias. A terceira ideia, que já estava presente no texto do Manifesto, é a de que o movimento histórico tem um motor, uma força que produz sua marcha, e essa é a contradição entre as duas classes sociais que defi- nem o sistema capitalista. Ainda, no livro mais importante de Marx, O capital, o autor busca abordar os vários aspectos do sistema capitalista, como sua estrutura social, seu modo de funcionamento e, também, seu desenvolvimento histórico. Aqui abordaremos uma pequena fração dele, a teoria do va- lor e da mais-valia. 26 Introdução às ciências sociais O tema do trabalho sempre foi importante para Marx. Já em A ideo- logia alemã, ele chama a atenção para o fato de que o trabalho é a atividade que permite a reprodução humana, além de nos diferenciar enquanto espécie. No capitalismo, o trabalho é responsável, também, pela produção de mercadorias. Em um primeiro momento, podemos entender que mercadoria é o resultado do trabalho humano na transformação da na- tureza. É pelo trabalho que uma árvore pode ser transformada em por- ta ou mesa. Nesse registro mais básico, a mercadoria tem apenas valor de uso, ou seja, alguém pode ir a uma floresta, derrubar uma árvore, deixar a madeira secar, fatiá-la e, posteriormente, construir uma mesa para receber a família. No interior do sistema capitalista, entretanto, as mercadorias se destacam por seu valor de troca. Pensemos no seguinte exemplo: uma pessoa constrói uma mesa, mas se dá conta de que seus filhos precisam mais de sapatos do que do objeto construído. Poderia, então, ir ao mercado e trocá-la por quatro pares de sapato. Nesse caso, não haveria excedente ou lucro. Mas esse não seria um mercado capitalista; neste, se quiser comprar quatro pares de sapato, precisaria de dinheiro, o que Marx chama de equivalente uni- versal. Isso porque, com ele, podemos comprar qualquer tipo de merca- doria. No mercado capitalista, é preciso partir não das mercadorias, mas, sim, do dinheiro, resultando, ao fim do processo, em mais dinheiro. Ou seja, precisaríamos trabalhar para alguém que produzisse mesas para que ganhássemos um salário. Esse alguém que as produz tampouco se interessa por elas; a ele importa o dinheiro que restará ao final do pro- cesso. Esse dinheiro deve ser maior do que o inicialmente investido, ha- vendo lucro na atividade. De acordo com Marx, para compreender o capitalismo é preciso de- terminar a origem do lucro. Para responder a essa questão, ele elabora a teoria da mais-valia. Segundo essa teoria, o valor de uma mercadoria corresponde à quantidade média de trabalho social necessário à sua produção. Importante salientar que valor não é preço, pois este pode variar de acordo com a oferta e a demanda, como já havia indicado o economista liberal Adam Smith (1723-1790). Para Marx, a fonte do lucro não é, como parece ao senso comum, vender uma mercadoria por um valor maior que seu custo de produção. A fonte do lucro é o trabalho. Sem trabalho, ou seja, sem a força de transformação produzi- da por ele, não há lucro. Mas de que maneira o trabalho produz lucro? Conhecendo as ciências sociais 27 Conforme a teoria da mais-valia, o tempo de trabalho necessário para o operário produzir um valor equivalente a seu salário é menor que a duração efetiva de sua jornada de trabalho. Desse modo, para pagar seu salário, uma produção equivalente a quatro horas é sufi- ciente, mas ele trabalha oito horas. Nas quatro horas excedentes, ele trabalha para gerar o lucro do patrão. A mais-valia é o sobretrabalho, em outras palavras, a quantidade de valor produzido pelo trabalhador além do tempo necessário para a produção daquilo que ele recebe como salário. Por fim, para Marx, isso só possível porque o trabalhador é um pro- letário, ou seja, ele possui apenas sua própria força de trabalho. Sen- do assim, para sobreviver sob o regime capitalista, ele precisa vender sua força de trabalho para os que possuem e concentram os meios de produção. Dessa maneira, o capitalismo é essencialmente um sistema que baseia seu funcionamento na exploração dos trabalhadores. Eles produzem o valor social e a riqueza, porém são despojados dela. De modo geral, podemos dizer que o estudo dos três autores nos apresenta um painel amplo das diferentes abordagens que os primei- ros estudos sociológicos nos legaram. Com base neles, foram criadas diferentes escolas de pensamento e pesquisa, que atravessaram o sé- culo XX e chegaram até nós. Assista à animação Vida de inseto e a correla- cione com os conceitos de consciência coletiva, coesão social e conflitos entre as classes sociais estudados neste capítulo. Direção: John Lasseter. Estados Uni- dos: Pixar Animation Studios, 1998. Filme Considerando o conceito de luta de classe de Marx, pense e aponte exemplos de como ele poderia ser usado hoje em dia. Atividade 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS As ciências sociais nasceram no século XIX e, desde então, são uma importante ferramenta para a compreensão da sociedade moderna. Elas permitem que a humanidade desenvolva um conhecimento aprofundado sobre como se dão as relações humanas no plano coletivo, como se de- senvolvem as instituições e como funciona o capitalismo. Os autores, brevemente apresentados aqui, contribuíram para forjar- mos essas ciências, criando conceitos que ainda hoje nos ajudam na tare- fa da compreensão e da crítica social. Algumas das ideias abordadas criaram tradições teóricas e enseja- ram estudos e teorias capazes de nos fazer refletir sobre a experiência humanaem várias de suas dimensões, criando, inclusive, outros campos de conhecimento. Um dos fatores a serem levados em consideração é que o conheci- mento social é tão científico quanto o das ciências exatas e, por isso, exige 28 Introdução às ciências sociais o mesmo nível de qualificação e especialização. Desse modo, é ciência e não opinião. Outra característica igualmente importante é a percepção de que o senso comum é bastante enganoso e nos encerra, muitas vezes, num terreno de superficialidade que, apesar de poder ser muito confor- tável, é falso. Se quisermos compreender as coisas de um modo mais profundo e amplo, é necessário recorrer aos estudiosos, aos teóricos e ao conhecimento científico em suma. REFERÊNCIAS ARANHA, M. L. A. Filosofando. São Paulo: Editora Moderna, 2012. ARON, R. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2000. DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2014. DURKHEIM, E. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 2019. IANNI, O. A Sociologia e o Mundo Moderno. Textos em Ciências Sociais, nº 5, EDUC, 1988. MARIANO, S. A. Modernidade e crítica da modernidade: a Sociologia e alguns desafios feministas às categorias de análise. Cadernos Pagu (30), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2008, pp. 99-105. MARTINS, C. B. O que é Sociologia. São Paulo: Brasiliense, 1991. MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martin Claret, 2014 MORAES, L. F. R.; DEL MAESTRO, A. F.; DIAS, D. V. O paradigma weberiano da ação social: um ensaio sobre a compreensão do sentido, a criação de tipos ideais e suas aplicações na teoria organizacional. Revista de Administração Contemporânea, Curitiba, v. 7, n. 2, abr./jun. 2003. WEBER, M. Ensaios de sociologia. São Paulo: LTC, 1999. WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. GABARITO 1. As transformações são várias, entre elas: mudança da distribuição democrática com a migração do campo para a cidade; conversão de camponeses em operárias; suces- sivas insurreições proletárias devido ao aumento do nível de pobreza e à superexplo- ração da mão de obra fabril; problemas de organização das condições sanitárias nas cidades devido às mudanças muito intensas e rápidas etc. 2. Considerando que Durkheim (2014, p. 40) define consciência coletiva como “o con- junto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem sua vida própria; poderemos cha- má-lo: consciência coletiva ou comum”, poderíamos citar, como exemplos, um certo consenso social de que ter uma religião é melhor do que não ter nenhuma, a ideia de que certos comportamentos são mais adequados para homens enquanto outros para mulheres, a visão de que a família, e não o indivíduo, é a base da sociedade etc. 3. Na obra de Marx, o conceito de luta de classe diz respeito à oposição entre capitalistas e proletários; oposição porque seus interesses últimos são opostos. Hoje em dia, com o declínio da produção fabril em vários países, é possível pensar em luta de classe como a oposição entre os interesses de trabalhadores em geral e os donos do capital, como banqueiros e grandes empresários, que concentram a renda nacional em níveis cada vez maiores. Abordagens sociológicas contemporâneas 29 2 Abordagens sociológicas contemporâneas Há cinquenta anos, as empresas mais ricas e valiosas eram montadoras de automóveis ou de produção de bens de capital, ou seja, fabricantes de máquinas que abasteciam outras indústrias. Um cenário bem distinto do que encontramos hoje. Se pensarmos nas empresas mais valiosas atualmente, nenhuma delas é produ- tora de mercadorias físicas. Dentre as maiores, a Amazon é uma empresa de e-commerce e o Google é uma empresa de inteligência informacional. Isso significa que, ao longo das últimas décadas, profundas mu- danças transformaram o mundo. Neste capítulo, vamos analisar as transformações pelas quais o capitalismo passou, desde o seu surgimento, como capitalismo industrial, até os dias atuais, deno- minado capitalismo contemporâneo. É importante compreendermos que esse estudo trata de uma análise sociológica do capitalismo, na qual procuramos identificar as implicações sociais desse tipo de sistema econômico, que não é apenas um modo de organizar o mercado, mas também uma forma de organização da vida em sociedade. Assim, para que possamos compreender o capitalismo atual, va- mos discutir as características desse sistema durante grande parte do século XX, como um sistema econômico pós-industrial mais re- lacionado à circulação de capital que à produção de mercadorias. 30 Introdução às ciências sociais 2.1 Transformação político-econômica do capitalismoVídeo O capitalismo industrial teve início no final do século XVIII e se de- senvolveu enormemente ao longo do século XIX. No final deste, ele já tinha alcançado vários países da Europa e estava em plena arrancada nos Estados Unidos. Desde meados do século XIX, a forma de organização da produção procurava encontrar meios de aumentar a produtividade e a eficiência de recursos, o que, historicamente, ficou conhecido como taylorismo – descrito como um modelo de administração e de organização do traba- lho criado pelo norte-americano Frederick Taylor. O caso clássico é o de Henry Ford, que, em 1914, introduziu a jor- nada de trabalho de oito horas e estabeleceu um salário de cinco dólares para os trabalhadores de sua empresa de produção de auto- móveis. Esse modelo, aliado à produção em massa, ficou conhecido como fordismo. Para Ford, era importante a criação de um mercado consumidor para os produtos das empresas capitalistas, que deveria ser formado também pela classe trabalhadora. Ficou famosa a ideia de que a produção em massa – formada pelo fordismo/taylorismo – criaria um consumo em massa. O capitalismo fordista sofreu um revés na década de 1930, nos anos seguintes à famosa crise de 1929, quando a bolsa de valores de Nova York quebrou, levando as empresas e seus acionistas a grandes perdas. A economia mundial entrou em um período deno- minado Grande Depressão, que se estendeu até 1939, quando ini- ciou a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O esforço de guerra e, posteriormente, o de reconstrução da Europa, que foi palco desta, realimentou o crescimento capitalista e o fordismo seguiu vigoroso, estendendo-se até o fim dos anos de 1970, quando entra em declí- nio e passa a conviver com o toyotismo, cujas características estuda- remos a seguir. É preciso lembrar que o fordismo floresceu no pós-Segunda Guerra. A tarefa de reconstrução das cidades e economias europeias, devastadas pela guerra, deu-se concomitantemente à formação do Frederick Taylor (1856-1915) foi conhecido como o pai da Administração Científica. Suas ideias, denominadas princípios do taylorismo, que tratavam da organização de empresas, foram adotadas por muitos capitalistas no início do século XX. W ik im éd ia C om m on s Biografia Henry Ford (1863-1947) foi o fundador da Ford Motor Company. Ficou conhecido como um inovador na fabricação de automóveis, por ser o primeiro empresário a implantar a linha de montagem em série. W ik iIm ag en s/ Pi xa ba y Biografia Abordagens sociológicas contemporâneas 31 Estado do Bem-Estar Social 1 (Welfare State). Este se configurou como resposta ao próprio desafio de estabilizar politicamente o continente, dado o apelo dos movimentos socialistas sobre o crescente movimen- to sindical, principalmente tendo em vista o sucesso da União Sovié- tica na guerra. Outro fator não menos importante é a questão geopolítica e de abertura de mercados. De acordo com Harvey (2008, p. 131): o fordismo do pós-guerra também teve muito de questão inter- nacional. O longo período de expansão do pós-guerra dependia de modo crucial de uma maciça ampliação dos fluxos de comér- cio mundial e de investimento internacional.De desenvolvimen- to lento fora dos Estados Unidos antes de 1939, o fordismo se implantou com mais firmeza na Europa e no Japão depois de 1940 como parte do esforço de guerra. Foi consolidado e ex- pandido no período de pós-guerra, seja diretamente, através de políticas impostas na ocupação (ou, mais paradoxalmente, no caso francês, porque os sindicatos liderados pelos comunistas viam o fordismo como a única maneira de garantir a autonomia econômica nacional diante do desafio americano) […]. Essa aber- tura do investimento estrangeiro (especialmente na Europa) e do comércio permitiu que a capacidade produtiva excedente dos Estados Unidos fosse absorvida alhures, enquanto o progres- so internacional do fordismo significou a formação de mercados de massa globais e a absorção da massa da população mundial fora do mundo comunista na dinâmica global de um novo tipo de capitalismo. Esse fenômeno de mercados de massa globais marca, na visão do autor, o tipo de capitalismo que se desenvolveu no período. Para Har- vey (2008, p. 131), “o fordismo do pós-guerra tem de ser visto menos como um mero sistema de produção em massa do que como um modo de vida total. Produção em massa significava padronização do produto e consumo de massa, o que implicava toda uma nova estética e merca- dificação da cultura”. Assim, podemos entender que: já a partir do fordismo, o capitalismo deixou de ser apenas um tipo de sistema de pro- dução de mercadorias para constituir um sistema econômico e, mais que isso, um tipo de sociedade. O Estado do Bem-Estar Social é aquele que executa políticas públicas de proteção social a seus cidadãos, principalmente aos trabalhadores. 1 alhures: em outro lugar. Glossário 32 Introdução às ciências sociais Essa sociedade é aquela em que o consumo de massa abrange mui- tos aspectos da vida social. Por exemplo, no século XIX, para se ouvir um concerto, era necessário ir ao teatro. Nessa nova sociedade, pode-se comprar um disco e o mesmo concerto que podia ser visto apenas por algumas dezenas de pessoas passa a estar ao alcance de milhões. A partir de meados dos anos 1970, esse tipo de capitalismo começa a entrar em crise. Ao mesmo tempo, surge um novo modelo de produ- ção, conhecido como toyotismo, que, assim como o fordismo, foi conce- bido em uma montadora de automóveis – a empresa japonesa Toyota. O toyotismo altera o desenho da planta de produção com o intuito de aumentar a produtividade e eliminar desperdícios, mas, principalmen- te, se caracteriza pela chamada produção just-in-time, ou seja, produ- ção por demanda. David Harvey, em seu já clássico A condição pós-moderna, indica em linhas gerais os traços que caracterizam o fordismo em oposição ao modelo just-in-time. Ele classifica a produção fordista como sendo ba- seada em economias de escala e a produção just-in-time como baseada em economias de escopo (Quadro 1). Quadro 1 Comparação entre os modelos de produção fordista e just-in-time Produção fordista Produção just-in-time • Bens homogêneos produzidos em massa. • Uniformidade e padronização. • Grandes estoques e inventários. • Testes de qualidade ex-post (detecção tardia de erros e produtos defeituosos). • Ocultação de produtos defeituosos nos estoques. • Perda de tempo de produção por causa de longos tempos de preparo, peças com defeito, pontos de estrangulamento nos estoques. • Redução de custos por meio do controle dos salários etc. • Produção em pequenos lotes de uma variedade de tipos de produto. • Ausência de estoques. • Controle de qualidade integrado ao processo (detecção imediata de erros). • Rejeição imediata de peças com defeito. • Redução do tempo perdido, diminuindo-se “a porosidade do dia de trabalho”. • Subcontratação. • Aprendizagem na prática integrada ao planejamento a longo prazo etc. Fonte: Elaborado pelo autor com base em Swyngedouw (1986 apud Harvey, 2008). Abordagens sociológicas contemporâneas 33 Para esse autor, além de se diferenciarem nos modelos de pro- dução, os sistemas fordista e just-in-time distinguem-se em relação à organização do trabalho. Podemos compreender esses contrastes ana- lisando o Quadro 2. Quadro 2 Comparação entre a organização do trabalho fordista e just-in-time Organização fordista Organização just-in-time • Realização de uma única tarefa pelo trabalhador. • Pagamento pro rata (proporcional ao tempo). • Alto grau de especialização de tarefas. • Pouco ou nenhum treinamento no trabalho. • Organização vertical do trabalho. • Ênfase na redução da responsabilidade do trabalhador (disciplinamento da força de trabalho). • Múltiplas tarefas. • Pagamento pessoal (sistema detalhado de bonificações). • Eliminação da demarcação de tarefas. • Longo treinamento no trabalho. • Organização mais horizontal do trabalho. • Nenhuma segurança no trabalho e condições de trabalho ruins para trabalhadores temporários. Fonte: Elaborado pelo autor com base em Swyngedouw (1986 apud Harvey, 2008). Esse novo capitalismo que surge a partir da crise dos anos 1970 desemboca, nos anos 1980, no capitalismo financeiro de cunho neoli- beral, fenômeno político e econômico marcado pela flexibilidade que vai caracterizar não apenas as linhas de produção e a organização do trabalho em torno delas, mas também a: flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de tra- balho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mer- cados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. (HARVEY, 2008, p. 140) O autor vai chamar esse novo capitalismo de acumulação flexível, a qual: envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego do chamado “setor de serviços”, bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas […] Ela também envolve um novo movimento que chamarei de 34 Introdução às ciências sociais “compressão do espaço-tempo”[...] no mundo capitalista – os horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitaram, enquanto a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variegado. (HARVEY, 2008, p. 140) O capitalismo que emerge na década de 1980 será então mais global, alcançando países cujos mercados eram até então inexplorados. É mais integrado, baseia seu desenvolvimento crescentemente em tecnologia e na desestruturação do mercado de trabalho e do movimento sindical. Além dessas características gerais, é possível destacar que, à me- dida que esse novo modelo se desenvolve, a importância do capital financeiro sobre o produtivo é cada vez maior. Os chamados capitais voláteis, que migram de um país para outro por um mero clique, es- tabeleceram uma nova lógica de instabilidades crescentes. Por isso, outra característica muito importante desse capitalismo são as crises recorrentes. Segundo Harvey (2008, p. 155): a acumulação flexível evidentemente procura o capital financeiro como poder coordenador mais do que o fordismo o fazia. Isso significa que a potencialidade de formação de crises financeiras e monetárias autônomas e independentes é muito maior do que antes, apesar de o sistema financeiro ter mais condições de mi- nimizar os riscos através da diversificação e da rápida transfe- rência de fundos de empresas, regiões e setores em decadência para empresas, regiões e setores lucrativos. Boa parte da fluidez, da instabilidade e do frenesi pode ser atribuída diretamente ao aumento dessa capacidade de dirigir os fluxos de capital para lá e para cá de maneiras que quase parecem desprezar as restri- ções de tempo e de espaço que costumam ter efeito sobre as atividades materiais deprodução e consumo. Desde que a análise de Harvey foi feita, ainda no fim dos anos de 1980, esse modelo de capitalismo só se aprofundou e nos dias atuais o capital é cada vez mais financeirizado e desregulamentado, ou seja, os Estados nacionais foram perdendo sua capacidade regulatória sobre o fluxo de capital. Por isso mesmo, o paradigma de crises constantes foi agravado pelo fato de que, pela globalização da economia mundial, elas se tornaram contagiosas, pois a partir de um país elas se alastram e contaminam outras economias. No início da década de 1990, tivemos as crises escandinavas e japonesas; entre 1997 e 1999, a crise asiática; variegado: diversificado. Glossário frenesi: exaltação violenta; excitação. Glossário Abordagens sociológicas contemporâneas 35 e em 2007-2008, a crise americana dos títulos imobiliários podres (que ficou conhecida como sub-prime), a qual contaminou rapidamente vá- rios países da Europa, como a Grécia e a Espanha (AMARAL, 2009). As mudanças ocorridas no capitalismo a partir da crise do fordismo nos trouxeram para um mundo em que as crises se aprofundaram. Novos elementos entraram fortemente em cena, como o avanço da tecnologia e o uso dela encurtando o tempo e diminuindo distâncias, a internacionalização crescente das economias, a desregulamentação progressiva e constante do mercado de trabalho, a consolidação geo- política entre países centrais e periféricos, entre outras. Considerando as diferenças entre o fordismo e o toyotismo, aponte as caraterísticas do toyotismo que dizem respeito à organização do trabalho, correlacionando-as à acumula- ção flexível. Atividade 1 2.2 Transformações recentes no trabalho e no mercado de trabalhoVídeo A reestruturação produtiva que levou do fordismo à acumulação flexível aconteceu em meio à evolução tecnológica e a uma crise econô- mica intensamente vivida na década de 1970 nos países centrais. Essa crise reuniu estagnação, ou depressão econômica, e inflação, tendo fi- cado conhecida como estagflação. Esse processo levou a um declínio das taxas médias de lucro do capitalismo global. Para Antunes e Praun (2015, p. 421, grifos do original): em resposta aos obstáculos impostos ao processo de acumula- ção, nos anos 1980, um conjunto de medidas, articuladoras de velhas e novas formas de exploração do trabalho, passou a re- desenhar a divisão internacional do trabalho, alterando também de forma significativa a composição da classe trabalhadora em escala global. Movendo-se com facilidade pelo globo, fortemen- te enraizadas no capital financeiro, um número cada vez mais reduzido de corporações transnacionais passou a impor à classe- -que-vive-do-trabalho, nos diferentes países do mundo, patama- res salariais e condições de existência cada vez mais rebaixadas . Para compreender bem esse fenômeno, é preciso considerar que a oligopolização de vários setores e a migração das fábricas para países cada vez mais periféricos, acabou criando uma espécie de concorrência entre os trabalhadores do mundo. Por exemplo, nos anos 1990, uma grande parte do parque industrial automobilístico americano migrou para outros países, onde a mão de obra era mais barata e os direitos tra- balhistas menores ou ausentes, deixando atrás de si cidades destruídas 36 Introdução às ciências sociais e trabalhadores desempregados. O mesmo fenômeno aconteceu com a indústria têxtil. Países como Bangladesh e Índia, e mais recentemente a China, passaram a ser novos núcleos de produção. Esses movimentos de transferência sempre foram feitos mediante políticas de cortes de cus- tos, com redução da massa salarial e de direitos trabalhistas. Na literatura, isso ficou conhecido como uma nova divisão interna- cional do trabalho, que se caracteriza pela transferência para os países da periferia global de atividades mais ligadas à agroindústria, à indús- tria de transformação de base, como a siderurgia, e ao setor de servi- ços, mantendo nos países centrais os setores de tecnologia, finanças, desenvolvimento científico etc. Isto é, as atividades com mais valor agregado e mais bem pagas ficam nos países centrais (Europa Ociden- tal, EUA, Canadá, Japão etc.) e as demais, de baixa tecnologia e conse- quentemente que exigem baixa qualificação profissional, concentram -se nos países chamados emergentes ou não desenvolvidos. Desde o final da chamada era de ouro do capitalismo (1946-1973), em que os países centrais apresentaram índices robustos de cres- cimento econômico, produção e distribuição de riquezas, não houve mais um ciclo de crescimento estável e de longa duração nos países capitalistas. Crises sucessivas levaram à compressão contínua dos salá- rios, à desestruturação do sindicalismo, que tinha conseguido alcançar ganhos salariais expressivos no período fordista, e, também, à crise do Estado do Bem Estar Social. Nas palavras de Harvey (2008, p. 140): esses poderes aumentados de flexibilidade e mobilidade per- mitem que os empregadores exerçam pressões mais fortes de controle do trabalho sobre uma força de trabalho de qualquer maneira enfraquecida por dois surtos selvagens de deflação, força que viu o desemprego aumentar nos países capitalistas avançados (salvo, talvez, no Japão) para níveis sem precedentes no pós-guerra. [...] A acumulação flexível parece implicar níveis relativamente altos de desemprego estrutural [...], rápida des- truição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos (quan- do há) de salários reais [...] e o retrocesso do poder sindical – uma das colunas políticas do regime fordista. O Estado do Bem-Estar Social é resultante das políticas públicas de proteção aos trabalhadores e cidadãos que emergiram na Europa e nos Estados Unidos logo depois da Segunda Guerra Mundial. Incluem polí- ticas de saúde, educação, previdência social, seguro-desemprego e ou- Abordagens sociológicas contemporâneas 37 tras, inspiradas na obra do economista britânico John Maynard Keynes. Para ele, mesmo resguardado o princípio da livre iniciativa, o Estado de- veria assegurar direitos sociais, pleno emprego e o controle da inflação. Nos anos de 1990, esse Estado entra em crise e, até os dias atuais, há um embate político em torno de sua manutenção ou diminuição de seu escopo de atuação. Entre os vários exemplos desse embate, po- demos citar o movimento dos “coletes amarelos”, realizado na França, país que ainda mantém um dos Estados de Bem-Estar Social mais ro- busto, em 2019/2020. Esse movimento lutou contra uma reforma da previdência que retirava direitos dos trabalhadores. O fato é que, embora de maneira desigual, muitos países viram o padrão de seus empregos decair e seus trabalhadores empobre- cerem. Em alguns casos, como na Inglaterra da primeira-ministra Margaret Thatcher (1925-2013), que governou o país entre 1979 e 1990, com viés fortemente liberal e sendo uma das precursoras do chamado neoliberalismo, o mercado de trabalho é fortemente desre- gulamentado se comparado a outros países europeus com o mesmo nível de desenvolvimento. Observamos que no capitalismo, que surge a partir da crise do for- dismo, a questão do trabalho pode ser abordada tanto do ponto de vista de que há uma nova divisão internacional do trabalho, com a ex- portação de empregos menos qualificados para os países da periferia do sistema (como América Latina, África e partes da Ásia), quanto de um movimento internacional de rebaixamento das condições de tra- balho, mesmo nos países centrais, com pressões constantes sobre os estados de bem-estar social remanescentes. Keynes (1883-1946) defendia a intervenção econômica do Estado na economia, contrariando os preceitos liberais clássicos do capitalismo que preconizam, por sua vez, que as forças de mercado comandem não apenas a economia, mas também a repartição social do seu resultado. W ikim édia Com m ons Biografia 2.3 Terceirização e precarização Vídeo A evolução do capitalismo nos últimos 40 anos foi acompanhada pela progressiva deterioração
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