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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL - MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: SERVIÇO SOCIAL, TRABALHO, PROTEÇÃO SOCIAL, CULTURA E RELAÇÕES SOCIAIS. ALUIZIA DO NASCIMENTO FREIRE A INSERÇÃO DAS MULHERES NA CÂMARA MUNICIPAL DE NATAL (1988-2004) NATAL 2008 ALUIZIA DO NASCIMENTO FREIRE A INSERÇÃO DAS MULHERES NA CÂMARA MUNICIPAL DE NATAL (1988 - 2004) Dissertação de Mestrado apresentado ao programa de pós-graduação em Serviço Social, área de concentração: Serviço Social, Trabalho e Proteção Social, Cultura e Relações Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Sob a orientação da profª Drª Rita de Lourdes de Lima. NATAL 2008 2 3 4 Esta é a mulher moderna: a autodisciplina, em vez de um sentimentalismo exagerado, a apreciação da liberdade e da independência, em vez de submissão e de falta de personalidade; a afirmação da sua individualidade e não os estúpidos esforços para se identificar com o homem amado; a afirmação do direito a gozar dos prazeres terrenos e não a máscara hipócrita da pureza, e finalmente, a subordinação das aventuras do amor, a um lugar secundário na vida. Diante de nós temos não uma fêmea, nem uma sombra do homem, mas sim uma mulher-individualidade (Alexandra Kollontai) Dedico este trabalho a todas as mulheres que lutam e sonham por um mundo melhor e àquelas que continuam adormecidas esperando serem despertadas para a vida real. 5 AGRADECIMENTOS Meus agradecimentos a todos que contribuíram para a realização deste trabalho em especial a minha orientadora profª Drª Rita de Lourdes de Lima pela orientação, dedicação e competência no desenvolvimento do nosso trabalho. Agradeço também a Capes pela bolsa concedida para realização da pesquisa e aos componentes da banca examinadora. Aos professores em geral do PPGSS - Programa de Pós – Graduação em Serviço Social. As professoras Drªs Maria da Conceição Fraga do Departamento de História, pela paciência e contribuição no decorrer do meu trabalho e a profª Drª Silvana Mara Santos, pelas valiosas colaborações por ocasião do exame de qualificação. A profª Drª. Francinete de Oliveira do Depto de Enfermagem e Françoise Dominique Valery do Depto de Arquitetura, pelo incentivo dado à pesquisa na temática de gênero ainda na graduação, onde participava como bolsista do NEPAM (Núcleo Nízia Floresta de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e Relações Sociais de Gênero). Um agradecimento as minhas colegas de sala de aula e a funcionária Lúcia pela paciência e atenção aos meus questionamentos e aflições no dia-a-dia. Aos meus amigos e amigas, especial atenção a Neide, Estefânia, Divanice, Adriana e meus familiares pela contribuição no decorrer do meu trabalho. Agradeço a todos aqueles (as) que diretamente e indiretamente contribuíram de alguma forma para o desenvolvimento desta dissertação. Para finalizar a todos e todas que ainda acreditam nas mudanças e agem no sentido da busca de transformações sociais. 6 LISTAS DE SIGLAS AI-5 – Ato Institucional Número Cinco ANL – Aliança Nacional Libertadora AMB - Articulação das Mulheres Brasileiras ARENA – Aliança Renovadora Nacional CAPES- Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CMDM - Conselho Municipal dos Direitos da Mulher CMDMN - Conselho Municipal dos Direitos da Mulher em Natal CMM - Conferência Mundial das Mulheres CNMB - Conselho Nacional de Mulheres do Brasil CFEMEA - Centro Feminista de Estudo da Mulher CMN - Centro da Mulher Natalense CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito DP - Departamento Feminino ENF - Encontro Nacional Feminino EUA - Estados Unidos da América FMB - Federação das Mulheres do Brasil FMP - Federação da Mulher Potiguar FMI - Fundo Monetário Internacional INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa INPD - Instituto Nacional de Pesquisa em Domicílio MDB - Movimento Democrático Brasileiro MR8 - Movimento Revolucionário Oito de Outubro NEPAM – Núcleo Nizia Floresta de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e Relações Sociais de Gênero. ONU - Organização das Nações Unidas PCB - Partido Comunista do Brasil PCB - Partido Comunista Brasileiro PCdoB - Partido Comunista do Brasil PDS - Partido Democrático Social PDT - Partido Democrático Trabalhista 7 PFL - Partido da Frente Liberal PHC - Partido Humanista Cristão PMDB - Partido do Movimento Democrático Brasileiro PPS - Partido Popular Social PPB - Partido Progressista Brasileiro PRN - Partido da Renovação Nacional PSB - Partido Socialista Brasileiro PSD - Partido Social Democrático PSDB - Partido do Social Democrático Brasileiro PT - Partido dos Trabalhadores PTB - Partido Trabalhista Brasileiro PTR - Partido Trabalhista Renovador RN - Rio Grande do Norte SBPC - Sociedade Brasileira Pelo Progresso da Ciência TRE - Tribunal Regional Eleitoral TSE - Tribunal Superior Eleitoral UFB - União Feminina do Brasil UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas 8 RESUMO Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a inserção das mulheres na Câmara Municipal de Natal no período de 1988 a 2004. Focalizamos nossa discussão no contexto da política de cotas que tem como objetivo diminuir o quadro de desigualdades existentes entre mulheres e homens na política, além de analisar quais os determinantes responsáveis pela sub-representação das mulheres. A pesquisa consta ainda de uma análise do perfil das mulheres vereadoras e como elas eram vistas nesse espaço de poder. Analisamos o nosso objeto de estudo numa visão de gênero, já que este está intrinsecamente relacionado as relações sociais e as relações de poder. As mulheres, durante muito tempo, estiveram excluídas da participação na vida pública, sendo vistas apenas como meras expectadoras. Esta pesquisa esta baseada em autores que discutem a questão de gênero, como (Scott,1990), (Perrot,1988), (Badinter,1985 (Bruschini, 2002) entre outros. Analisamos também o poder, e a política na visão de ( Marx, 1996), (Foucault,1982) e (Arendt, 2001) e outros. Tentamos analisar também a presença das mulheres nos espaços público e privado, mostrando os seus conflitos e contradições enfrentados na sociedade, focalizando o caráter político da inclusão das mulheres nos espaços em que estão inseridas. O instrumento de coleta de dados foi o questionário semi-estruturado, descritivo e analítico - critico. As análises das entrevistas por sua vez, apontam para a sub-representação das mulheres ao longo dos anos como fator determinante para que essas mulheres continuem na invisibilidade. As mulheres entrevistadas foram ex-vereadoras no período delimitado de 1988 a 2004. A conclusão a que chegamos é que esta sub-representação tem como determinante o sistema patriarcal que predominou durante muito tempo em 9 nossa sociedade e ainda predomina e atinge as mulheres em todos os âmbitos de sua vida. Isto se torna mais grave na sociedade capitalista na qual predomina os interesses daqueles que detém a riqueza produzida. Palavras chave: Gênero. Poder. Patriarcado. 10 ABSTRACT This work has as objective to reflect about the insertion of the women in the City Council of Natal in the period from 1988 to 2004. We focused our discussion in the context of the politics of quota that has with objective to decrease the frame of inequalities existent between women and men in the politics, besides of to analyze which the determinants responsible for the women's sub-representation. The research still consists of an analysis of the councilor’s women profile and how they were seen in that space of power. We analyzed our study object in a gender vision, since this is related intrinsically the socialrelationships and the relationships of power. The women, for a long time, they were excluded of the participation in the public life, being just seen as mere expectants. This research is informed mainly by studies which discuss the Gender (Scott, 1990), (Perrot, 1988), (Badinter, 1995), (Bruschini, 2002). We also analyzed the power, politics in the vision of Marx (1996), Foucault (1982) and (Arendt, 2001). We tried to analyze the women's presence in the spaces public and private, showing your conflicts and contradictions faced in the society, focalizing the political character of the women's inclusion in the spaces in that are inserted. The instrument of collection of data was the semi-structured questionnaire, descriptive and analytical - critical. The analyses of the interviews show to the sub-representation of women over the years as a determining factor for these women continue in the invisibility. The women were interviewed councillora ex- bounded from 1988 to 2004. The conclusion the one that we arrived is that this sub-representation has as decisive the patriarchal system that prevailed for a long time in our society and still dominates and affects women in all areas of your life. This becomes more serious in the capitalist society in which prevail the interests of those that it stops the produced wealth. KEY-WORDS:Gender.Power.Patriarchate. 11 SUMÁRIO 1- INTRODUÇÃO.......................................................................................................12 2 - O PATRIARCADO E A QUESTÃO DE GÊNERO AO LONGO DA HISTÓRIA...20 2.1 - As Mulheres na Grécia e Roma Antiga..........................................................24 2.2 - O Pensamento Religioso Judaico-Cristão Acerca das Mulheres...................31 2.3 - As Mulheres na Idade Média –Influência da Igreja Católica..........................34 2.4 - As mulheres na Sociedade Moderna e na Contemporaneidade...................39 2.5 - O Movimento Feminista na Modernidade......................................................44 3 – AS MULHERES NA SOCIEDADE BRASILEIRA................................................50 3.1 - A Situação das Mulheres no Brasil Colonial e a Influência das Oligarquias..56 3.2 - O Sistema Oligárquico no Brasil e Rio Grande do Norte...............................59 3.3 - O Movimento Sufragista e Feminista no Brasil..............................................59 3.4 - A Política de Cotas e a Democracia no Brasil...............................................68 4- QUADRO REPRESENTATIVO DAS ELEIÇÕES EM NATAL/RN NO PERÍODO DE 1988 - 2004 .........................................................................................................82 4.1 - As Mulheres e a Participação Política no Rio Grande do Norte/Natal...........82 4.2 - A Política de Cotas no Rio Grande do Norte.................................................90 4.3 - Refletindo Sobre a Participação das Mulheres Eleitas a Partir do Seu Perfil.......................................................................................................................95 5- CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................103 REFERÊNCIAS........................................................................................................106 APÊNDICES.............................................................................................................114 12 1- INTRODUÇÃO A participação das mulheres na vida pública é o tema central da presente pesquisa, a qual abordará o perfil das mulheres que pleiteiam cargos públicos, enfatizando a inserção da mulher na política partidária, tendo como enfoque central a participação das mulheres na Câmara Municipal de Natal e sua sub-representação no contexto das políticas de cotas. Trata-se de uma pesquisa descritiva e analítica. O interesse pela temática Gênero e Política partiu da nossa Militância Política nos Movimentos Sociais, a partir dos anos 1980, período em que o Brasil estava passando pelo processo de redemocratização, pós-ditadura militar, período marcado por uma grave crise econômica, repressão e violência aos direitos políticos e civis daqueles que faziam oposição ao governo. Além disso, fomos pesquisadoras do Núcleo Nísia Floresta de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e Relações Sociais de Gênero (NEPAM/ UFRN), no período de 2001 a 2004, no qual desenvolvemos uma pesquisa sobre a Participação da Mulher na Insurreição Comunista, em 1935, na cidade de Natal/RN, culminando na elaboração da monografia de final de curso, em História, no ano de 2004. Assim desenvolveu-se nossa aproximação e paixão por essa temática. Em relação à política de cotas também objeto dessa dissertação, observou-se que, através de dados do Cfêmea (2004), houve um aumento de mulheres candidatas em relação ao período em que as cotas não tinham sido instituídas, no entanto percebe-se também que, apesar desse crescimento, o sistema de cotas não apresentou efeito direto sobre as candidaturas de mulheres. Percebemos que o crescimento de inserção da mulher na política obteve uma visibilidade até então inexistente. Diante disso, optamos por analisar a sub-representação da mulher nos espaços de poder, especificamente na Câmara Municipal de Natal no contexto da política de cotas, enfatizando principalmente o perfil das ex-vereadoras. Neste sentido, este estudo propõe-se a discutir a desigualdade de gênero na Câmara Municipal de Natal. Outro elemento que nos levou a esta escolha foi o pequeno número de pesquisas nesta área, e o fato de não existir estudos traçando o perfil dessas 13 mulheres. Neste sentido, o principal objetivo dessa pesquisa consistiu em analisar as relações de gênero na Câmara Municipal, situada na cidade do Natal/RN, visando verificar a submissão feminina nesses espaços de poder. A escolha do nosso objeto se deu a partir da análise de dados do Tribunal Regional Eleitoral, através dos requerimentos na Câmara e, principalmente, através das entrevistas com as ex-vereadoras. Através dos dados do tribunal obtivemos o número de mulheres eleitas no período de 1988 a 2004. Escolhemos este recorte porque em 1988, pós - ditadura militar, foi elaborada uma nova Constituição que, em parte, reconhecia os direitos das mulheres, abolindo o pátrio poder, garantindo a “igualdade” entre homens e mulheres na sociedade e na família. Este recorte se estendeu até 2004 porque nesse período nenhuma mulher teve representação política na Câmara Municipal de Natal. São vários os questionamentos levantados, entre eles: como se dão as relações de poder na Câmara? O que falta para que as mulheres participem da vida política e para que tenham uma maior visibilidade? Quais os determinantes que obstaculizam as mulheres de uma maior participação na vida política? Como está a representação política das mulheres na Câmara Municipal de Natal? Qual o perfil das mulheres que pleiteiam ou ocupam cargos na Câmara de vereadores de Natal? Que elementos dificultam as mulheres terem uma maior participação na vida política? Para entender a contextualização histórica a partir da política partidária optamos por conceituar a política a partir do significado atribuído na polis grega. Segundo Aristóteles, a política é a arte do possível, a qual leva em conta como as coisas estão e não como elas deveriam estar e refere-se a administração da polis (cidade) (GRUPPI, 1987). O conceito de política chegou até nós, a partir dos gregos, com a retomada do pensamento dos autores clássicos da Grécia antiga a partir do Renascimento e do Iluminismo1, no século XVI. Desta forma, as sociedades ocidentais da atualidade tiveram sua organização política pensada a partir dos autores gregos. 1 Iluminismo ou século das “Luzes” é o projeto racionalista que se inaugura na Polis Grega, caracterizadocomo um projeto sócio cultural de largo curso histórico, que visa à emancipação, baseado no conhecimento racional.(NETTO, 2002). 14 O método de análise da realidade escolhido foi a perspectiva crítico – dialética, a partir das categorias totalidade, contradição e historicidade. A revisão da literatura existente na área se fez imprescindível nesse processo, para a melhor compreensão do objeto de estudo. Para nortear nosso estudo, nos baseamos nas seguintes categorias centrais: relações de Gênero, Patriarcado e Poder nos detendo, particularmente, nas discussões acerca da Sub-representação política da mulher no contexto das políticas de cotas. Para isto, nos aproximamos de autores e autoras que discutem tais questões, entre eles e elas: Scott (1990), Safiotti (2004), Santos (2004), Marx (2006), Foucault (1982), Arendt (2001) Toledo (2001). Acerca da Política de cotas buscamos autores como Miguel e Grossi (2001), Bruschini (2002), Araújo (2002) e Cfêmea (1998 2004). Primeiramente, foi feito um levantamento bibliográfico a respeito do tema, uma análise histórica e uma pesquisa documental no TRE, na Câmara Municipal e nos Partidos Políticos, buscando resgatar a trajetória das mulheres na vida política da Câmara. Em seguida, realizaram-se as entrevistas semi-estruturadas2 com as mulheres eleitas, para identificar as suas visões políticas e razões de sua entrada na vida política de Natal. Escolhemos a entrevista semi-estruturada porque nela temos a liberdade de trabalhar com fontes orais, na qual podemos fazer perguntas de esclarecimento e teremos a oportunidade de entender a inserção das mulheres na política, tendo uma compreensão da visão das mulheres candidatas antes das cotas e após as cotas. Partindo do conceito de Fraga, as fontes orais se mostram, metodologicamente, essenciais, porque privilegiam a análise das representações sobre a política, já que as fontes escritas são escassas e repassam, por vezes, a visão dos grupos dominantes (FRAGA, 2000). Portanto, o universo da pesquisa foram as mulheres eleitas vereadoras no município de Natal, delimitando o período histórico compreendido entre 1988 a 2004. Desse universo foi retirado uma amostra, tendo como critérios entrevistar todas as mulheres eleitas de cada partido, levando em consideração os partidos representativos como: Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Socialista Brasileiro (PSB), Partido da Frente Liberal (PFL), atualmente Democratas (DEM). Portanto, entrevistamos as mulheres eleitas dos cinco partidos citados anteriormente. É importante, destacar que no período 2 Entrevista semi – estruturada é uma série de perguntas abertas, feitas verbalmente em uma ordem prevista, no qual os entrevistadores podem acrescentar perguntas de esclarecimentos (LAVILLE, 1999). 15 citado acima foram eleitas 7 (sete) mulheres à frente da Câmara Municipal de Natal, foram elas: Lindalva Santos Neo Maia, Gilda Medeiros de Souza, Verônica Maria dos Santos, Ana Catarina Alves, Sonali Rosado Cascudo Rodrigues, Maria de Fátima Benetto Fernandes Carrilho e Fernanda Freire. O objetivo geral deste trabalho foi analisar a Representação Política das mulheres na Câmara Municipal de Natal e teve como objetivos específicos: refletir sobre as relações de gênero e sua representatividade na esfera pública; analisar os determinantes da sub-representação feminina na Câmara Municipal de Natal; refletir sobre a representação política das mulheres no contexto da política de cotas e analisar a participação das mulheres eleitas à Câmara Municipal de Natal, traçando o perfil das mulheres que ocuparam cargos de vereadoras na Câmara Municipal de Natal. Para alcançar os objetivos propostos, se fez uso de técnicas e instrumentos (entrevista semi-estruturada, revisão bibliográfica, roteiro de observação) visando conhecer os processos, dinâmicas e problemáticas das desigualdades de gênero existentes na Câmara Municipal de Natal. Deste modo, utilizou-se pesquisa qualitativa com a aplicação de entrevistas semi-estruturadas que combinaram questões abertas e fechadas, dando a possibilidade ao informante de discorrer sobre o assunto. Seguimos um roteiro de entrevista composto de duas partes: na primeira, foram realizadas perguntas com o intuito de conhecer o perfil das entrevistadas. Na segunda parte, pretendíamos descobrir como e por que se deu a inserção das mulheres vereadoras na Câmara Municipal no período de 1988 a 2004 (ver apêndice). Infelizmente apenas uma entrevista foi gravada. Assim, fomos anotando, de próprio punho as respostas que as ex-vereadoras davam sobre as questões das entrevistas, tentando ser fiel as suas falas e mantendo em sigilo a identidade de cada uma. Em cada uma delas, explicava-se a natureza e os objetivos da pesquisa; confirmava-se a disposição do entrevistado em participar da pesquisa; solicitava-se autorização para gravar depoimentos, buscando com essa gravação, fidedignidade no processo de transcrição das respostas dadas. As entrevistas contemplam em parte os questionamentos levantados no decorrer da pesquisa uma vez que nos levam a entender melhor os determinantes para a sub-representação política das mulheres. 16 A escolha da observação se deu primeiramente na Câmara Municipal pela possibilidade entrar em contato com a realidade em estudo, não somente através da análise dos documentos e requerimentos propostos pelas vereadoras, assim como as falas das entrevistadas, e também porque tal método permitiu analisar a realidade em momentos diversos do seu cotidiano de forma assistemática. Assim, através da observação buscamos analisar como as mulheres estavam inseridas nos espaços de poder. Os espaços selecionados para a pesquisa foram o Tribunal Regional Eleitoral e a Câmara Municipal de Natal. Nossa análise documental tinha como objetivo conhecer as mulheres, as demandas e daí possibilitar a escolha da amostra da pesquisa. Usamos como referencial de análise os requerimentos solicitados pelas mulheres, durante seus mandatos. Os documentos são restritos dificultando o andamento da pesquisa. Como já assinalamos, entrevistamos 5 (cinco) mulheres eleitas vereadoras na cidade de Natal, pois não conseguimos contatar com as duas ex vereadoras, Ana Catarina Alves Wanderley - segundo as informações ainda reside em Natal - e Fernanda Freire, que reside atualmente no Rio de Janeiro. Portanto, não foi possível entrevistar todas as ex-vereadoras. As entrevistas foram realizadas no período de 2008, no segundo semestre, durante todo o mês de julho e todas foram realizadas de forma individual e em ambiente reservado. Apesar das dificuldades encontradas para a realização da pesquisa, como o receio de algumas ex-vereadoras em conceder as gravações das entrevistas, além de problemas de ordem estrutural, buscou-se o esforço, no sentido da maior apreensão possível para o desvelamento do nosso objeto de estudo. Podemos afirmar, após a realização desse estudo, que as desigualdades sociais, preconceitos e discriminações ainda predominam na atualidade e apontam para a continuidade do processo de segregação de gênero, no campo da sexualidade, seja no campo da política. Assim a participação feminina na política está muito aquém do que as mulheres representam na sociedade. No Brasil, esta participação encontra-se abaixo dos padrões internacionais médios. Enquanto a representatividade das mulheres nas instâncias de poder político do Brasil gira em torno de 10% (dez por cento), os países nórdicos já têm quase metade das vagas parlamentares ocupadas por 17 mulheres. Uma das explicações para a limitada participação da mulher nas esferas de poder está ligada a questões econômico-sociais. Quanto melhor o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de um país, mais equilibradaé a participação das mulheres nos espaços de poder. A lentidão do avanço das mulheres no campo político também está relacionada com a propriedade da riqueza, uma vez que apenas 4% (quatro por cento) da riqueza do mundo está nas mãos de mulheres. (CFEMEA, 2006). A respeito dessa questão as analises apresentadas sobre a sub- representação das mulheres na política e os dados analisados encontram-se no corpo do texto. Ainda no ano de 2004, a média nacional de candidaturas de mulheres para as câmaras municipais foi de apenas 22,1% (vinte e dois vírgula um por cento). Ou seja, os partidos não cumpriram mais uma vez, a política de cotas vigente desde as eleições de 1996. Além disso, voltaram a apresentar candidaturas laranja3 e a não apoiar efetivamente as campanhas das mulheres. O resultado efetivo foi que, dos 51.808 (cinqüenta e um mil oitocentos e oito) vereadores(as) eleitos no País, apenas 6.556 (seis mil quinhentos e cinqüenta e seis) são vereadoras, o que significa que a média nacional de mulheres ocupando o cargo de vereadoras é só de 12,6% (doze vírgula seis por cento), enquanto os homens chegam a 87,4% (oitenta e sete vírgula quatro por cento). O Nordeste se coloca acima da média nacional, com 14,63% (quatorze vírgula sessenta e três por cento) o que corresponde a 2.420 (dois mil quatrocentos e vinte) vereadoras eleitas na região, em 2004. Isso tem se figurado em todas as eleições. Dos 5.560 (cinco mil quinhentos e sessenta) municípios brasileiros, hoje apenas 418 (quatrocentos e dezoito) são governados por mulheres. Em termos das candidaturas de mulheres ao cargo de prefeita, observou-se uma grande discrepância, tanto entre os estados quanto entre os diversos partidos políticos. O percentual de candidatas mulheres distancia-se muito da média nacional: 9,43% (nove vírgula quarenta e três por cento), variando de 3,70% (três vírgula setenta por cento) a 17,31% (dezessete vírgula trinta e um por cento) por Estado. Em termos de partidos políticos, a variação é de 0% (zero por cento) a 18,27% (dezoito vírgula vinte e sete por cento) em todo o país4. 3 Candidatura laranja termo utilizado para designar candidaturas de “mentirinha”, ou seja, inscrições que tinham como objetivo, apenas completar o quadro de candidaturas. Prática corrente nas disputas eleitorais em que os candidatos(as) emprestam seu nome sem nenhum compromisso político (GROSSI E MIGUEL, 2001). 4 Dados retirados do Boletim do Centro de Informação, Pesquisa e Comunicação da Mulher e Democracia, ano 1, nº 01 abril/julho, 2005. 18 Embora o movimento feminista tenha se destacado no cenário político nos mais diversos espaços e eventos nacionais e internacionais, a presença das mulheres ainda é restrita em espaços estratégicos como na política; inclusive nas três esferas do poder: Legislativo, Executivo e Judiciário. As mulheres estão sub- representadas nesses espaços, pois ainda permanece a resistência por parte dos dirigentes em relação as pautas comprometidas com a equidade de gênero, consideradas de menor importância. A participação das mulheres na política tem relevância para a atualidade por contemplar, em parte, o crescimento delas no cenário político, apesar de sabermos que nenhuma mulher, no período de realização da pesquisa, ocupa uma cadeira na Câmara Municipal de Natal no Rio Grande do Norte (RN) e foram poucas as que ocuparam. Desde a criação da Câmara Municipal, em 1611, aproximadamente, 12 (doze) mulheres ocuparam cadeiras como vereadoras. Percebemos que houve um aumento significativo de mulheres candidatas e mulheres eleitas, mas ainda predomina o número de homens candidatos e eleitos em relação ao número de mulheres. Nesse sentido, não podemos dizer que a política de cotas5 têm tido efeito direto sobre as candidaturas das mulheres. Para apresentarmos os dados, esta dissertação está estruturada em 4 (quatro) capítulos, além das considerações finais, referências bibliográficas e apêndices. A introdução apresenta algumas considerações a respeito da inserção das mulheres na política enfatizando a sub-representação e uma discussão acerca das políticas de cotas, as motivações e a justificativa para o estudo proposto, questões da pesquisa, os objetivos da dissertação e a relevância do estudo. No segundo capítulo fazemos um resgate histórico acerca das relações de gênero na Grécia e Roma antigas e como se davam as relações sociais nestes países, tendo como sistema de dominação o patriarcado. Em seguida nos detemos na influência da Igreja como instituição de dominação a partir da Idade Média. O estudo a que nos propomos desenvolver neste capítulo, acerca do patriarcado e a questão de gênero, tem como principal objetivo contextualizar as características, que determinaram as relações de poder impostas às mulheres pelo sistema capitalista, 5 A discussão acerca da política de cotas será feita posteriormente. 19 até chegar às transformações por elas protagonizadas durante a modernidade e na contemporaneidade, através do movimento feminista. Posteriormente, no terceiro capítulo, analisamos as mulheres na sociedade brasileira enfatizando a situação delas no Brasil Colônia e a influência das oligarquias do Rio Grande do Norte e Natal, buscando-se analisar a participação política das mesmas na esfera pública e privada, bem como se davam e se dão as relações sociais, uma vez que ainda predomina o poder dos homens sobre as mulheres. Analisaremos ainda neste capítulo, os efeitos das políticas de cotas e como elas vêm modificando o quadro de desigualdades na política partidária e seus efeitos na luta pela equidade de gênero. Este capítulo teve como eixo central a discussão das relações de gênero na sociedade patriarcal brasileira e potiguar e as suas modificações pós - políticas de cotas. No quarto e último capítulo, apresentamos um quadro representativo das mulheres eleitas em Natal/RN, de 1988-2004, a partir de uma reflexão da participação das mesmas, tendo como parâmetro de discussão o perfil delas. Apresentamos ainda as falas destas mulheres, enfocando, como elas estavam inseridas nesse espaço de poder uma vez que predomina a figura masculina. Desta forma, analisamos a presença feminina na política potiguar, discutindo as relações de gênero existentes no local pesquisado. Podemos afirmar, a partir desse estudo, que as desigualdades sociais, preconceitos e discriminações ainda predominam na atualidade e apontam para a continuidade do processo de desigualdades e discriminações as mulheres. Neste sentido, todas as entrevistadas relataram preconceitos e discriminações sofridas pelo fato de serem mulheres. A contribuição desse estudo, portanto, se dá na perspectiva de apreender o processo das relações sociais e das relações de gênero que se passam nesse universo e visa contribuir também para futuros estudos na área e novas pesquisas, assim como chamar a atenção para uma problemática que direta ou indiretamente afeta a todos (as) nós. Neste sentido, esperamos que este estudo possa contribuir com reflexões que nos auxiliem na busca do enfrentamento das desigualdades existentes entre homens e mulheres. Quanto a prática das mulheres que constroem os espaços públicos, entendemos que estes vão sendo construídos, cotidianamente, na ocupação de 20 lugares antes predominantes dos homens, mostrando nas suas ações e suas vidas, o movimento feminino e feminista de participação das decisões e nos espaços de poder. Desta forma, a temática da inserção feminina na política torna-se significativa, na medida em que abre espaço para discussão da igualdade de oportunidades para as mulheres em relação à ocupação de cargos na política. 2 - O PATRIARCADO E A QUESTÃO DE GÊNERO AO LONGO DA HISTÓRIA. Scott (1990) apresenta o patriarcado como um sistemabaseado na figura do “patriarca” (pai) ao qual todas as mulheres estão submissas. A este respeito, a autora apresenta três abordagens acerca das relações de gênero: a) a abordagem do patriarcado - empenha-se em explicar a subordinação das mulheres, a partir da necessidade masculina de dominar; b) as abordagens marxistas as quais, segundo Scott, explicam a subordinação da mulher a partir do modo de produção; c) as abordagens psicanalíticas - divididas em dois sub - grupos: o pós-estruturalismo francês e as teorias de relação do objeto. Ambas apóiam-se em escolas psicanalíticas para explicar a produção e a reprodução da identidade do gênero do sujeito, interessando-se pelas primeiras etapas do desenvolvimento da criança. A primeira enfatiza a experiência concreta no desenvolvimento da criança, enquanto a segunda sublinha o papel da linguagem na comunicação, interpretação e representação do gênero. Outra explicação a respeito do patriarcado está na visão de Marx. Em Marx, tal termo era bastante utilizado para definir as sociedades coloniais, estando ligado à tirania familiar, a uma forma de poder arbitrário que não foi derrubada pela Revolução Francesa (MARX, 2006), Tal sistema atinge as mulheres no âmbito econômico, político e social; institucionaliza-se e vai para os partidos dentro dos quais, muitas vezes, as mulheres não estão nos espaços de decisão. Dessa forma, a dominação dos homens sobre as mulheres predomina na sociedade capitalista, na qual as desigualdades entre ambos geram submissão e chega até os dias atuais com características diferentes. Vejamos uma citação de Louro (1997). “A segregação social e política a que as mulheres foram historicamente conduzidas tivera como conseqüência sua ampla invisibilidade como sujeito, inclusive como sujeito da ciência” Louro (1997 p. 95). 21 Na visão de Lima (2002), todas as abordagens trazem contribuições e limitações. A abordagem do patriarcado prende-se a uma análise interna ao sistema de gênero, afirmando a prioridade desse sistema em relação à organização social; as abordagens marxistas, por vezes, fazem o inverso da anterior: o gênero torna-se um sub-produto das estruturas econômicas e a última abordagem tende a uma fixação exclusiva no sujeito e na ênfase ao antagonismo subjetivamente produzido entre homens e mulheres. A este respeito, concordamos com a visão analisada por Scott e Lima, por entender que a opressão da mulher passa por estes três elementos enfatizados pelas abordagens, ou seja, pelo patriarcado, pelo modo de produção e pela formação subjetiva, fruto da história de vida e inserção cultural. Contudo, consideramos importante assinalar, desde já, nossa posição teórica: para nós, a transformação passa, fundamentalmente, pela modificação das relações econômico- sociais e o estabelecimento do socialismo6. Entretanto, temos a compreensão que, com a chegada do socialismo e o fim do capitalismo, as mudanças não se darão automaticamente, já que são frutos de um processo histórico. A questão das desigualdades sociais, as diferenças, preconceitos e a opressão da mulher, são construções sociais que levam tempo para serem desconstruídas. Mas, ao nosso ver, o estabelecimento do socialismo, em condições para a igualdade e liberdade é o começo desta transformação cultural, podendo ou não se efetivar. Em se tratando do conceito de patriarcado, Saffioti (2004), faz uma análise deste, relacionando-o com o conceito de gênero e afirma que no patriarcado as relações são, necessariamente, hierarquizadas entre seres socialmente desiguais, enquanto o conceito de gênero compreende tanto relações desiguais quanto igualitárias. Desta forma, o patriarcado é um caso especifico de relações de gênero. Neste sentido, podemos analisar que vivemos numa sociedade onde predomina relações patriarcais de gênero, ou seja, relações de gênero nas quais predomina a dominação. Assim, o patriarcado serve aos interesses de grupos/classes dominantes e o sexismo não é meramente um preconceito, sendo também o poder 6 Socialismo - entendemos a proposta do socialismo como a construção de uma nova sociedade na qual os homens e as mulheres tornem-se a medida de todas as coisas. Neste sentido a sociedade socialista deverá ser justa, mas sempre preservando a liberdade. Portanto, o socialismo em condições para a igualdade e liberdade acontecer. 22 de agir de acordo com ele. As relações patriarcais, suas hierarquias, sua estrutura de poder “contaminam” a sociedade e o direito patriarcal perpassa toda a sociedade civil, mas impregna também o Estado. Para a autora nas relações sociais de gênero se imbricam, o patriarcado e o racismo e estes não estão indissociados das classes sociais. Isso faz supor que, existe não apenas uma hierarquia entre as categorias de sexo, mas também uma contradição de interesses entre as classes e entre as raças. Desta forma, não basta que uma parte das mulheres ocupe posições econômicas, políticas, religiosas etc, tradicionalmente reservada aos homens, para modificar a sociedade, pois estas mulheres também personificam relações de poderes de classe e de raça e não só de sexo. Deste modo, qualquer discussão sobre participação política das mulheres não pode ser dissociada da discussão acerca da classe social e da raça das quais estas mulheres fazem parte. Na verdade, o conceito de patriarcado e de gênero, como categoria de análise utilizado na maioria das pesquisas sobre as relações entre mulheres e homens vem das concepções teóricas defendidas por cientistas norte-americanas, dentre as quais Joan Scott, que buscou no pós-estruturalismo, os fundamentos para sua análise, buscando a desconstrução teorizada por Jacques Derrida como método de análise7. Dentro deste contexto não podemos deixar de considerar também que ao contrário do que se pensa, não foi uma mulher a primeira a conceituar gênero. O primeiro estudioso a mencionar o conceito de gênero foi Robert Stoller, porém só a partir de 1975, com o famoso artigo da feminista Gayle Rubin, frutificaram estudos de gênero, dando origem a uma ênfase pleonástica em seu caráter relacional (SAFFIOTI, IBIDEM). Deste modo, para Saffioti o conceito de sistema de sexo/gênero é neutro, servindo a objetivos econômicos, políticos distintos daqueles aos quais originariamente atendia e, neste sentido, deve-se considerar sexo e gênero uma unidade, uma vez que não existe uma sexualidade biológica independente do contexto social em que é exercida. A esse respeito concordamos com as autoras, pois não podemos negar que um depende do outro. 7 No campo das teorias feministas, muitas autoras se filiam ao pós-estruturalismo e as posturas teóricas que enfatizam “a desconstrução”. Tal filiação, em parte, se explica pela necessidade que têm, as feministas, de erodir as certezas, construídas ao longo dos séculos, sempre na perspectiva masculina. Assim, agora, enfatiza-se a necessidade de “desconstruir” estes saberes e construir um novo saber, mais eqüitativo e feminista (SCOTT, 1990). 23 Se contrapondo ao conceito de Scott que por sua vez, define gênero como categoria de análise, Saffioti (IBIDEM), afirma que o conceito de gênero pode representar uma categoria social-histórica, se tomado em sua dimensão meramente descritiva, ainda que seja preferível voltar a velha expressão categoria de sexo. Nesse caso, podemos afirmar que a categoria gênero, no sentido defendido por Saffioti faz entender a construção sócio-histórica que as mulheres tiveram. Por outro lado, Saffioti questiona a categoria gênero, uma vez que esta não explicita, as desigualdades nem o poder, nem aponta a parte oprimida, ou seja, o termo gênero é despolitizado, não diz o que é a opressão, nem quem é o oprimido. Portanto, gênero diz respeito as representações domasculino e do feminino, a imagem construída pela sociedade a propósito do masculino e do feminino, estando estas inter- relacionadas. As construções simbólicas em geral guardam pouca ou nenhuma relação com a realidade concreta, com as condições materiais de vida e com os fatos históricos. Desta forma, o conceito de gênero, segundo a autora, nunca pode ser dissociado das relações patriarcais, das relações de raça/etnia e das relações de classe, pois estas tornam o sujeito histórico concreto. Neste sentido Scott, (1990, p.16), define gênero a partir de dois aspectos fundamentais e intrinsecamente relacionados: as relações sociais e as relações de poder. “As relações sociais, que são baseadas nas diferenças entre os sexos, implicam na existência de elementos inter-relacionados, que não operam necessariamente de modo simultâneos ou dependentes”. Nesse caso, a autora ressalta a relação existente entre gênero e poder, articulados entre si, que se define como igualdade e desigualdade no qual divide-se o campo feminista. Gênero assim é um primeiro modo de dar significado as relações de poder (IBIDEM, 1990 ). Por isso, as mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre a mudanças nas representações de poder. Contudo, na visão de Foucault (1982), o poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. O poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O que significa dizer que o poder é sempre algo que se exerce, que se efetua, que funciona como uma máquina que vai sendo manipulada nos micro-espaços. Por outro lado, Marx (1987) apresenta um outro conceito e uma outra concepção de poder. Marx entende o poder a partir das relações sociais que lhe dão sentido, ou seja, visto numa perspectiva de totalidade, 24 na qual qualquer explicação acerca da relação de poder deve ser baseada no conjunto das relações sociais da qual faz parte8. Partindo dessa compreensão, vê-se que as relações de poder se exercem nos vários níveis sociais, contudo sua explicação sempre reside no conjunto das relações histórico-sociais. Por isso, Scott (1990) define gênero a partir de vários determinantes. Primeiro, dos símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas e contraditórias, mostrando Eva e Maria como símbolo da mulher na tradição cristã do Ocidente, mas também o mito da luz e da escuridão; da purificação e da poluição, da inocência e da corrupção. Em segundo lugar, define gênero a partir dos conceitos normativos que põem em evidência as interpretações dos sentidos dos símbolos, expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e toma a forma típica de oposição binária, do significado do masculino e do feminino. Em terceiro lugar a política, as instituições e a organização social que reproduzem também os valores dominantes; e por último a identidade subjetiva que se forma através da aculturação, que transforma a sexualidade biológica dos indivíduos em identidade de gênero (IBIDEM). Para Sardenberg e Costa (1991), a subordinação da mulher na sociedade, além de se manifestar como fenômeno milenar e universal, também se configura como a primeira forma de opressão na história da humanidade. De fato, a história nos mostra a opressão e a subordinação das mulheres ao longo dos anos. Vejamos isto a seguir. 2.1- As Mulheres na Grécia e Roma Antiga O conceito de política chega até nós, a partir dos gregos, com a retomada do pensamento dos autores clássicos da Grécia antiga a partir do Renascimento e Iluminismo, no século XVI. Desta forma, as sociedades ocidentais da atualidade têm sua organização política pensada a partir dos autores gregos. É lógico que, os autores da Grécia antiga (Sócrates, Platão, Aristóteles, etc...) juntaram-se os pensadores modernos (Locke, Rousseau, Montesquieu, Maquiavel, Hobbes, Marx etc.) que configuraram assim, o pensamento moderno ocidental acerca da política. 8 Sabemos que estes autores partem de perspectivas teóricas diferentes, mas, mesmo assim achamos importante resgatar suas visões acerca dessas categorias. 25 Para entender a contextualização histórica a partir da política optamos por conceituá-la a partir do seu sentido original na polis grega. Segundo Aristóteles, a política é a arte do possível, é a arte da realidade que pode ser efetivada, a qual leva em conta como as coisas estão e não como elas deveriam estar. Ou seja, a política leva em consideração a natureza dos homens e refere-se a administração da polis (cidade) no sentido do bem coletivo (GRUPPI, 1987). Entretanto, Marx, pensador moderno, se contrapõe ao conceito de política em Aristóteles, pois para Marx, (apud Tonet, 2005), “a política tem um caráter essencialmente negativo”. O que isto significa? Para Marx (APUD TONET, 2005), os fenômenos não são um todo homogêneo. Todos são marcados pela unidade, pela diferença e pela contradição. Desse modo, um fenômeno pode ser positivo, mas, contraditoriamente, ser também negativo, ou vice-versa. Assim, o pensamento de Marx foge das classificações dicotômicas binárias, as quais o pensamento ocidental está tão acostumado. Para ele, o caráter essencialmente negativo da política, significa, apenas, que ela é uma expressão da alienação, ao mesmo tempo, ela nem faz parte da natureza essencial do ser social, nem é uma dimensão insuperável dele, portanto pode tornar-se um obstáculo à plena autoconstrução humana (TONET, 2005, p.92). Nesse sentido, Marx (APUD, 2005), entende política como algo necessário a condição humana, mas também como algo negativo no sentido de poder fazer com que o indivíduo veja a política do ponto de vista da classe dominante, ou seja, a política se dá numa sociedade de classes não possibilita a transformação, nem as condições necessárias para que a classe subalterna participe das decisões políticas. Apesar destes limites, por um caráter contraditório, a política também pode contribuir para o processo de organização das classes trabalhadoras nos seus diversos movimentos sociais, sindicatos, etc... Desta forma, pode-se contribuir para a construção de uma cultura política que leve em consideração os interesses da maioria. Percebemos, portanto que o pensamento ocidental moderno tem, suas raízes na Grécia Antiga e para compreendermos a forma de pensar da sociedade hoje, inclusive na forma como vê as mulheres, é preciso recuar no tempo e buscar nossas raízes e os valores que formaram a Civilização Ocidental Cristã. 26 Na Grécia Antiga, as mulheres, escravos e estrangeiros eram excluídos (as) da vida pública, um processo visto então, como natural. Havia muitas diferenças entre as mulheres e homens. As mulheres abastadas viviam separadas dos homens, em cômodos diferentes, reservados a elas dentro da casa, chamados gineceus, onde ficavam confinadas a maior parte do tempo. As mulheres eram responsáveis pela administração da casa e o cuidado com os filhos, de acordo com as orientações recebidas pelo marido. Assim, a boa esposa, casta, silenciosa, tinha nas mãos as rédeas da economia doméstica. Os meninos eram educados para a guerra e para a vida pública, logo, a educação das crianças tinha um papel fundamental na transformação dos homens em guerreiros ferozes, e das mulheres em donas de casa, educadas para o casamento e o lar. Nesse sentido, a cidadania concebida pelos Gregos era um atributo de homens livres, que seriam as pessoas aptas para as atividades políticas. As mulheres não podiam ser consideradas cidadãs, pois, as mulheres e escravos eram relegados a margem dos assuntos de interesse público; uma vez que não tinham cultura e na Grécia, um atributo fundamental para atividade política era a cultura, que por sua vez só era “atributo” dos homens abastados e livres. A partir desta concepção de cidadaniajá se estabelece a dicotomia entre esfera pública e privada, na qual caberá aos homens os assuntos públicos. Assim o conceito de democracia9 grega nasceu em uma sociedade que não levava em consideração os direitos das mulheres, já que as mulheres, escravos e estrangeiros, eram excluídos da participação na vida pública. De acordo com Pimentel (1987), uma sociedade é democrática quando além de eleições e da existência de partidos políticos, “todos sem distinção de sexo podem votar e ser votados”. Contudo, entendemos também que somente este elemento não define a democracia, pois ela está profundamente marcada pela estreita correlação de mercado e capitalismo. Neste sentido, só é possível falar em democracia plena quando se fala também em socialização da riqueza produzida, caso contrário, a democracia será somente representativa e formal. Uma vez que, o processo eleitoral permite que os políticos carreiristas se beneficiam da miséria da 9 O conceito de Democracia vem do grego demos (povo) e Kracia (poder, autoridade), portanto poder do povo. Ao excluir mulheres, escravos e estrangeiros da participação na vida pública e de quaisquer outras atividades, o termo Democracia não exprimia seu pleno sentido. Aliás, até hoje, inúmeros estudiosos mostram que o conceito pleno de Democracia implica participação política da população, e isto significa também socialização da riqueza produzida (FUNARI, 2001). 27 classe trabalhadora e impõe a troca do seu voto pelo política de favores, ou seja, o uso da máquina eleitoral usado em beneficio do representado. De acordo com Costa (2007), democracia representativa é mediada entre o sujeito - indivíduo e um sujeito coletivo, que são os partidos políticos, sindicatos, igreja, etc... As eleições se constituem num momento importante, votar é a condição necessária e fundamental de participação política, entretanto para Costa (2007), a relevância deste ato se expressa, basicamente, porque não há outra forma de participação política que envolva um maior número de indivíduos. Neste momento há uma mediação do sujeito que representa. Na Grécia Antiga, a democracia era direta, ou seja, “todos” os cidadãos podiam participar da assembléia do povo, que tomava decisões relativas aos assuntos políticos em praça pública. Os cidadãos tinham direitos essenciais como liberdade, individualidade e igualdade, dentro de certos limites como já assinalamos anteriormente. Uma vez que para os pensadores gregos, havia uma objetividade no modo de ser do homem, para estes, tanto o conhecimento como as ações são objetivadas no mundo real. Arendt (2001) dirá assim, que para os gregos é próprio da condição humana - ou seja, aquilo que a caracteriza com atributos específicos - são o diálogo e a ação, ambos situados na esfera do público. Deste modo, participar da esfera do público na Grécia, significava que tudo poderia ser dito pela persuasão. A esfera de discussão e do diálogo, o jogo de perguntar e responder, forma parte desse âmbito da existência que os gregos isolaram como sendo o âmbito do “propriamente humano”. Este se refere ao modo de existir entre iguais, a dialética e a retórica. Ainda de acordo com Arendt (2001, p. 36), em linhas gerais era essa a concepção de política que permitia aos gregos conviver com formas despóticas de organização como a escravidão ou o patriarcado, que estavam reservadas exclusivamente ao âmbito do privado. Os escravos, os bárbaros e as mulheres eram “aneu logou” (sem logos). Porém, isso não significava que estivessem “desprovidos da faculdade do discurso, mas sim de uma forma de vida em que o discurso, e somente o discurso, tinha sentido e onde a primeira preocupação entre os cidadãos era falar entre eles”. 28 Desta forma, o âmbito do privado10 tinha seu centro no interior da família e do doméstico. Era ali onde as necessidades vitais básicas deveriam ser satisfeitas como condição para a realização da vida pública. Esse âmbito das diferenças e desigualdades era considerado espaços de violência muda e do segredo, na medida em que implicava estar privado de ser visto e ouvido por outros. Isso demonstra que o patriarcado e a escravidão, relações eminentemente desiguais, eram tolerados no âmbito do privado. As pessoas que pertenciam exclusivamente a esse espaço como mulheres, escravos e bárbaros careciam de significação e de conseqüências para os outros. Arendt (IBIDEM) mostra no pensamento grego, o que significava estar no mundo privado e familiar. Ser Mulher na Grécia era viver confinada e afastada das decisões políticas. Para o indivíduo, viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais a vida verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação “objetiva” decorrente do fato de ligar-se e separar- se deles mediante um mundo comum de coisas e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida. A privatividade reside na ausência de outros; para estes, o homem privado não se dá a conhecer, portanto é como se não existisse. (ARENDT, 2001). Dentre do que foi levantado a respeito do privado podemos observar que as mulheres e escravos eram recolhidos ao mundo privado, não participavam das atividades da polis grega e estavam submetidos a esfera da necessidade, lugar privilegiado da violência, onde se trava a luta pela sobrevivência. Neste sentido, podemos entender o conceito de liberdade na polis grega, também através de ARENDT (2001). Liberdade situa-se na esfera política; a necessidade é primordialmente um fenômeno pré-político, característico da organização do lar privado; e a força da violência é justificada nesta última esfera, por serem os únicos meios de vencer a necessidade. Assim, a liberdade é a condição essencial daquilo que os gregos chamavam de eudaimonia - ventura - estado objetivo dependente da riqueza e da saúde. Desta forma, dentro da esfera da família, a liberdade não existia, pois o chefe da família, seu dominante, só era considerado livre na medida em que tinha a faculdade de deixar o lar e ingressar na esfera política, onde todos eram iguais. 10“O lar é a esfera do nascimento e da morte, que devia ser escondida da esfera pública por abrigar coisas ocultas aos olhos humanos e impenetráveis ao conhecimento humano, ela se refere ao termo oculto porque o homem não sabe de onde vem, quando nasce, nem tem conhecimento do lugar para onde vai quando morrer” (ARENDT, 2001, p.72). 29 Liberdade, no nosso entendimento, difere, portanto, do conceito de liberdade na Grécia Antiga. A liberdade passa pela autodeterminação do ser social e, neste sentido, a plena liberdade não existe para o indivíduo na sociedade capitalista, uma vez que nela, quem determina é o capital, segundo suas necessidades. Portanto, o papel reservado às mulheres na Polis Grega era de objeto sexual e de dar descendência legítima aos homens. Para assegurar essa legitimidade da descendência, necessário se fazia manter as mulheres submissas, obedientes e principalmente fiéis. Já ao homem se aconselhava fidelidade somente para mostrar a sua superioridade sobre seus desejos, como forma de dar provas de domínio de si. O poder, quase total, exercido pelos homens sobre as mulheres era socialmente reconhecido e considerado correto. “Para Aristóteles, por exemplo, o papel do homem era governar a mulher e o poder do marido era aristocrático, ou seja, proporcional a seu mérito e por isso, era justo” (LIMA, 2002, p.97). Ainda a esse respeito Badinter (1985), cita Aristóteles como o primeiro a justificar, do ponto de vista filosófico, a autoridade do marido e do pai. Para Aristóteles, a mulher é essencialmente inferior ao homem, seja qual for a sua idade.É desvalorizada do ponto de vista metafísico, pois encarna o principio negativo, a matéria. Aristóteles pensava que a menstruação era a matéria a que o esperma dava a forma. A inteligência, virtude da humanidade, só era transmitida, portanto, pelos homens. Como para ele a mulher era dotada de uma frágil capacidade de deliberação, o filósofo deduz “logicamente” que sua opinião não é digna de consideração, uma vez que, a única virtude moral da mulher era de obedecer e manter-se no silêncio. É preciso acentuar contudo, que o pensamento grego é adotado de forma dialética, pela sociedade ocidental contemporânea, ou seja, há incorporação e superação, destruição e reconstrução a partir do recebido, mas permanece na cultura ocidental contemporânea, muitos dos elementos da cultura ocidental grega, que justificam o papel da mulher de submissão aos homens. Segundo Maar (1994), a política grega se diferenciava da romana. Enquanto na Grécia a política era vista como algo mais coletivo, em Roma a política estava voltada a objetivos manifestamente particulares: os interesses das gens originais, não eram a polis. 30 Em Roma, a atividade política concentrava-se na disputa pelo poder de tutela do Estado, como instituição à serviço de interesses privados. Contudo, o povo romano não sacrificou o privado em benefício do público, mas compreendeu que estas duas esferas podiam subsistir sob a forma de coexistência. A maioria da população, nos tempos da realeza, era composta pelos chamado plebeus - pessoas livres, que não tinham prestígio – e pelos patrícios – grupo privilegiado enriquecido pelas guerras. Os plebeus não podiam participar das decisões políticas, assim como as mulheres. A subordinação feminina era a base do sistema social do patriarcado romano, que era fixo e imutável e confirmado na figura do pater famílias, que tinha total controle sobre as esposas e filhos. A sexualidade antiga ligava-se de forma direta a vida cotidiana, a procriação e aos vários estágios da vida, a morte e ao devir. Assim, como em todas as sociedades, Roma não se diferenciava, na questão da mulher, a finalidade do casamento era a procriação. Em latim, o casamento chama-se matrimonium: encontramos aí a raiz da palavra mater, mãe, definindo o casamento como sendo relacionado com a noção de fecundidade. A etimologia da palavra mostra-nos qual a concepção da sociedade da época acerca do casamento. O matrimonium era o local por excelência da mater, portanto, das mulheres. Segundo Funari (2001), em Roma existia maior interação entre homens e mulheres, diferentemente do que ocorria na Grécia. As mulheres tinham uma inserção social ampla, participavam de banquetes e reuniões sociais, chegavam inclusive a participar de campanhas eleitorais. No que se refere à educação das mulheres, esta era quase inexistente, apesar de algumas meninas humildes e abastardas serem alfabetizadas e haver entre elas algumas poetisas e intelectuais que se destacaram. Assim, a sociedade romana centrava-se no homem e nos valores tidos como conexos à virilidade: a guerra, bem como as vantagens que dela decorriam. O patriarcalismo imperava na Roma assim como na Grécia, e foram estes os dois berços da civilização ocidental – cristã. 2.2 – O Pensamento Religioso Judaico-Cristão Acerca das Mulheres 31 Como já foi visto anteriormente a cultura ocidental tem suas raízes na cultura grego-romana, mas também na cultura judaico-cristã, todas, eminentemente, patriarcais. É a partir desse contexto, que nos reportaremos para entender a influência do cristianismo para nossa formação, e como as construções de gênero vão sendo tratadas na historiografia e nos discursos religiosos, para justificar as relações hierárquicas entre homens e mulheres. Assim sendo nos embasaremos na leitura do mito de Adão, Eva e Lilith, esquecida pela história judaico - cristã. De acordo com Badinter (1985, p.33), a Teologia Judaico-Cristã em todo decorrer da história, em virtude de suas raízes judaicas teve sua cota de responsabilidade ao justificar a autoridade paterna e marital. No que concerne a questão da mulher, podemos observar isso nos textos do Gênesis, que mostra inicialmente a criação do homem do qual veio à humanidade, e como se deu à criação do homem e mulher. Este é o mito judaico-cristão de Adão e Eva. O homem pôs nome a todas os animais, a todas as aves dos céus, todos os animais dos campos; mas não se achava para ele uma ajuda que lhe fosse adequada. Então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto dormia, tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar. E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma Mulher, e levou-a junto do homem. (Bíblia, Gênesis-As Origens, Cap 2, 1993 p. 50) Os escritos do Talmude - livro hebraico de comentários da Bíblia - se contrapõe a história da Bíblia que mostra que Adão e Eva são o primeiro casal de humanos e fazem parte do imaginário, na civilização ocidental. O Talmude, entretanto, nos apresenta uma história diferente a respeito do primeiro casal. Segundo o mesmo, Deus criou Adão, ele o fez macho e fêmea, depois cortou-o ao meio, chamando a outra metade de Lilith. Porém, Lilith reivindicando igualdade em relação a seu companheiro briga, com este. E dizia: “Por que ser sempre dominada por ti? Eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual” Lilith queria liberdade de agir, de escolher e decidir, ela queria os mesmos direitos do homem, porém Adão se recusava a inverter as posições. Vendo que o companheiro não atendia a seus apelos e que não daria condições de igualdade, Lilith se revolta, pronunciando nervosamente o nome de Deus, faz acusações a Adão e vai embora; é o momento em que o sol se despede e a noite começa a descer o seu manto de escuridão soturna, tal como na ocasião em que Jeová –Deus fez vir ao mundo os demônios. 32 Neste mito, Lilith11 se afirmou como um demônio, e é o seu caráter demoníaco que leva a mulher a contrariar o homem e a questionar o seu poder. Por isso é vista como força destrutiva. Foi a partir daí que Deus ouvindo os apelos de Adão decide criar outra companheira que é Eva, moldada exatamente como a conhecemos hoje. É o modelo feminino permitido ao ser humano pelo padrão ético judaico-cristão, portanto Eva é construtiva e Mãe de toda Humanidade, contudo, esta nova companheira não tem individualidade, pois foi criada da costela do homem como já relatamos anteriormente. “Eis agora aqui” disse o homem: o osso de meus ossos, e a carne de minha carne; ela se chamará mulher, porque foi tomada do homem” Por isso o homem deixa o seu pai e sua mãe para se unir á sua mulher; e já não são mais que uma só carne( Bíblia, Gênesis 2, 1993, p..50). De acordo com os escritos bíblicos essa mulher, a qual relatamos acima, é Eva, a mãe de todos os seres humanos, e com ela se dá o pecado original, se tornando responsável pelo pecado e sofrimento da humanidade e sua submissão. Segundo a Bíblia, o pecado original ocorre porque Deus havia proibido à Adão e Eva comerem de um determinado fruto do jardim. Eva foi tentada pela serpente que prometia a ela ser semelhante a Deus, diz à Eva: “Mas Deus bem sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal”. Ela comeu o fruto e ofereceu a Adão, que não recusou. Vendo a desobediência de suas criaturas, Deus pediu explicações a Adão, “A mulher que puseste ao meu lado apresentou-me deste fruto, e eu comi” (BIBLÍA, IDEM). Para Badinter (1985) um outro texto bíblico que exerce um importante papel na história ocidental para a determinação da condição feminina foi o de São Paulo, na Epistola aos Efésios. O apóstolo expõe ali uma teoria que modifica o pensamento de Jesus. O homem deve ser o chefe do casal, pois foi criado em primeiro lugar e deu origem à mulher. E a ele, portanto, que cabe o poder de mandar. Mulheressejam submissas a seus maridos, como ao senhor, assim como a igreja está submissa a Cristo (BIBLÌA, 1993. Carta de São Paulo aos Efesios, 5,23-24). 11 Aqui apresentamos uma síntese com as informações sobre Lilith é um resumo de informações de vários sites acerca do assunto. Para uma leitura mais detalhada há um clássico do assunto (SICUTERI, 1990). 33 Ainda de acordo com Badinter (1985), é através dos textos de Santo Agostinho que no século IV, a figura da mulher também é mostrada como maligna, e endiabrada, e evocava as más condições da mulher: um animal que não é firme, nem estável, odioso, que alimenta a maldade... Ela é fonte de todas as discussões, querelas e injustiças. Esse é o imaginário masculino no qual a mulher é responsável pela discórdia entre homens e mulheres. É importante lembrar que os pensadores ocidentais medievais e modernos têm a base de seu pensamento construída a partir da influência grego-romana e judaico-cristã. Assim, o pensamento medieval cristão é o resultado de uma série de influências recebidas ao longo dos séculos e estas influências eram sobretudo patriarcais. Neste sentido, a figura de Maria, como apresentada pela igreja Católica, sendo mãe de Deus redentora e protetora, descarta todo o imaginário referenciado a Eva e Lilith. Maria representação do divino é santificada, como modelo de mulher acolhedora, exemplo de virtude e bondade. Segundo Boff (In PAIVA, 1990, p.71), Maria é apresentada pela igreja como uma mulher que vive totalmente à sombra do varão, Jesus, mulher que tece, cozinha, busca água no poço e vive sepultada no anonimato familiar. As mulheres, contudo, tiveram um papel significativo na vida de Jesus, foram elas que estavam no começo, no meio e no fim da vida de Jesus: é através de Maria que ele entra no mundo e as mulheres são as primeiras testemunhas da ressurreição de Jesus, segundo a Bíblia. Fica demonstrado assim, que em todo decorrer do texto o pensamento Judaico-Cristão se utiliza de teorias para justificar o patriarcalismo e a posição feminina de subalternidade. Ora, a maioria dos filósofos medievais eram cristãos e consideravam a mulher como ser acidental e falho, não sendo a realização do pensamento de Deus. No que diz respeito a sexualidade, a igreja teve papel nefasto e repressor, pois além de incultar na mulher comportamentos morais reprimindo sua sexualidade e anulando a mulher como ser consciente de si mesmo, mostrava a superioridade masculina como forma de oprimir a mulher. Ao colocar a mulher como mera reprodutora e com obrigação de ser mãe, pura, casta e obediente, nega ao mesmo 34 tempo, a mulher como ser capaz de reagir aos prazeres da carne, e mostra a propensão “natural” da mulher para a vida doméstica. Baseando-se nesses mitos, entendemos que nas sociedades ocidentais, o mito dos Gênesis que envolvem Adão, Lilith, Eva e Maria é condicionante do papel da mulher na sociedade. Quando se trata da questão de inferioridade social em relação ao homem, a mulher é vista sempre como a responsável pelo pecado original, por isso é banida e relegada a viver no silêncio e na obediência e este é considerado o seu papel. 2.3 - AS MULHERES NA IDADE MÈDIA – INFLUÊNCIA DA IGREJA CATÓLICA Durante a Idade Média a Igreja católica, instituição que exerceu o domínio espiritual e político sobre as mulheres, se dá em função do pecado original em que a mesma vai ser vista como ser distante de Deus, portanto, propícia a influência do demônio. Para entendermos como estava organizada a sociedade na Idade Média, partimos da visão de Tonet (2005), “o qual afirma que, na Idade Média, o mundo era possuidor de uma estrutura e de uma ordem hierárquicas definidas e essencialmente imutáveis”. Estrutura e ordem no interior das quais também a posição do homem estava claramente definida. O mundo natural, como também o mundo social, não era visto como históricos e muito menos como resultantes da atividade do homem. Entre mundo e homem se configurava uma relação de exterioridade. O poder era teocrático, por isso, todas as ações do homem eram em nome de um poder divino – Deus. Esse pensamento teocrático predominou durante todo o decorrer da Idade Média, sendo rompido com a Revolução Francesa em 1789.12 Como a sociedade na Idade Média estava organizada hierarquicamente, analisaremos neste contexto, como a mulher era vista e quais os aspectos 12 A Revolução Francesa é somente o marco histórico de uma modificação econômica - política e cultural, na qual se mesclam diversos determinantes e que culmina com a consolidação do modo de produção capitalista. Entre estes determinantes citamos: a ilustração, o projeto iluminista, a revolução científica e industrial e a reforma protestante. 35 relevantes para entendermos a situação das mulheres na instituição familiar e suas formas de atuação fora dos meios domésticos e sua participação na sociedade. A Idade Média foi um período marcado pela dominação da Igreja, instituição dominadora para a qual a sociedade se constituía em nome da fé divina e da concepção cristã do mundo, e para quem a mulher era um ser inferior. Nesse período, como em outros já analisados, a sociedade definia os papéis e os lugares reservados aos sexos, no entanto o controle cabia aos homens, cujos valores oscilavam entre os princípios éticos cristãos e o ideal da guerra. Como já mencionamos na Antiguidade, as mulheres estavam restritas ao domínio privado, o papel da mulher era de exclusão pública, política e administrativa, suas relações se limitavam ao espaço da casa. Na Idade Média, para Tonet (2005), tal cultura permanece, ou seja, predomina a visão teológico-machista, na qual a liberdade não seria um elemento conatural ao homem, mas um dom gratuito concedido por Deus. O homem, apesar da queda provocada pelo pecado original, disporia do livre-arbítrio isto é, teria a capacidade de escolher entre o bem e o mal. Essa capacidade só se dá porque ele participa de algum modo, da mera bondade divina, da natureza de Deus, isto é, da própria liberdade. Desta forma, nesta visão o pecado original, provocado pela mulher - Eva, levou à subjugação das mulheres. Como a sociedade era patriarcal, era também patrilinear, ou seja, as mulheres eram excluídas da sucessão e da partilha das heranças. Deste modo, na Idade Média quando o senhor feudal morria, o filho primogênito passava a herdar a maior parte das posses e as filhas eram totalmente excluídas da sucessão. Para Macedo (2002), tais regras de transmissão dos bens tinha por finalidade evitar a divisão do patrimônio, que colocaria em risco a riqueza da família. Antes de morrer o senhor feudal, caso não tivesse filho varão, obrigava sua única filha a casar, nesse caso o marido seria o responsável pela herança. As estratégias matrimoniais organizavam e sustentavam as relações sociais. O casamento antes de tudo era um pacto entre famílias. Nesse ato, as mulheres serão, ao mesmo tempo, doadas e recebidas como um ser passivo. Sua principal virtude dentro e fora do casamento deveria ser a obediência e a submissão. Temos a compreensão de que toda essa subjugação era justificada pela Igreja, já que a mesma determinava os papeis sociais entre homens e mulheres. 36 Toda essa discussão nos leva a refletir sobre o poder de comando da Igreja e a preocupação da mesma em justificar o matrimônio apenas para procriação e a condenação do prazer físico. Durante esse período, as expressões de afeto não eram considerados importantes nas uniões, a continuidade da linhagem era o único objetivo da conjugalidade. De acordo com Kollontai (1982), a mulher durante muitos séculos, foi valorizada, não pelas propriedades da sua alma, mas sim pelas virtudes femininas que exigia a moral da propriedade: a pureza, a virtude sexual,não havendo perdão para a mulher que pecasse, segundo o código rígido da moral sexual. Em suma, não existia liberdade para que as mulheres fossem de encontro aos preceitos morais da época. Macedo (2002), mostra que, embora juridicamente dependentes, as mulheres de elite e do povo tiveram distintas experiências de vida e ocuparam variadas posições na sociedade medieval, dela participando ativamente com menor ou maior grau de intensidade. Diante do que foi exposto cabia à mulher a responsabilidade pelo suprimento de alimentos e vestimentas da família. Elas tinham que administrar o trabalho doméstico, acompanhar passo a passo a fabricação dos tecidos, controlar e subvencionar o abastecimento em geral. Contudo, algumas mulheres conseguiram ir além dos papéis convencionais a que estavam destinadas e romper barreiras definidas pelo sexo. A Igreja católica e seus representantes durante todo o seu domínio, definiram e classificaram, várias categorias para dividir, excluir e perseguir as mulheres consideradas perniciosas e malignas para a cristandade. Entre essas categorias havia perseguição: aos hereges, bruxas e feiticeiras e prostitutas13. As hereges eram consideradas pessoas que se rebelavam contra as “verdades” da Igreja ou contra o seu enriquecimento ilícito e distanciamento dos princípios da vida apostólica. Essas pessoas apresentavam certo incorfomismo social e político. Ainda de acordo com Macedo (2002), através dos seus teóricos, a Igreja justificava seu preconceito em relação às mulheres, consideradas feiticeiras que rompiam com os preceitos impostos pela sociedade de castas. Dentre estes 13 As feiticeiras, segundo as crenças da época realizam praticas individuais, ao contrário das bruxas (MACEDO, 2002). 37 teóricos, temos São Tomás de Aquino, pensador cristão do século XIII, que afirmava que os demônios existem e que são capazes de causar danos e impelir ao ato carnal. Assim, para o imaginário da época, as bruxas em suas reuniões, o sabat, concebido como uma orgia satânica praticavam atos sexuais abomináveis, e os faziam para conseguir, malefícios de toda a espécie. Neste sentido, as bruxas e as feiticeiras eram mulheres que exerciam sua sexualidade livremente, rompendo com os padrões rígidos da época. As perseguições às mulheres associadas a figura maligna e perniciosa à sociedade, ocorreu também com as mulheres que detinham o poder de cura através da preparação de chás, pois a medicina ainda não estava instituída, contudo, encontrava-se em processo de institucionalização. A Igreja passou a considerar bruxas e feiticeiras mulheres que lidavam com o poder da cura através de chás e ervas. Deste modo, deu-se a criação e o desenvolvimento de órgãos repressivos no interior da Igreja como a inquisição, para punir e “educar” aqueles que fossem contrários aos ensinamentos da Igreja. Segundo Alambert (1986), nesta época, algumas vozes se ergueram contra a inferioridade social da mulher, um nome que se destacou foi Christiane de Pison, cuja figura se projetou na historia literária. Nas suas obras ela afirmou que homens e mulheres são iguais pela própria natureza. De acordo com Macedo (2002), no imaginário social da época, as crenças nos poderes mágicos e nos praticantes da magia e nos seus vôos noturnos, em suas metamorfoses em animais e a crença nos males que causavam as colheitas e as crianças recém-nascidas, impregnavam a imaginação popular, mas os religiosos consideravam tudo isso mera superstição. A ligação das atividades mágicas, próprias da feiticeira, ao culto satânico e a depravação sexual deram origem a figura da bruxa e ao fenômeno da bruxaria. A velha feiticeira fruto de ilusões populares, aos poucos desapareceu da imaginação do povo, cedendo lugar à bruxa – temida por todos. As bruxas, ao contrário dos magos, eram vistas como adoradoras do Demônio, por isso eram perseguidas. Ao mostrarmos a perseguição as bruxas e hereges, nos reportaremos também as prostitutas da época, vistas como pessoas que romperam com o modelo imposto e desejado, ao qual as mulheres estavam submetidas, contudo não foram 38 perseguidas, desde que se mantivessem no seu lugar. A quebra do padrão de sexualidade se dá com as prostitutas, que eram vistas como mulheres de vida fácil e que atuavam em “casas de mulheres”, ou zonas de meretrício. Um paradoxo presente nesse período é que a prostituição era considerada um mal pela sociedade, contudo, ao mesmo tempo, era tolerado. A prostituição, uma atividade oposta aos rígidos padrões morais da época, ao mesmo tempo, recriminada por uma parte da população, tornou-se uma atividade pública. Segundo Macedo (IBIDEM), chegavam a existir lugares alugados pelos chefes da comunidade ou pelos burgueses ricos – os prostíbulos públicos que eram protegidos pelas autoridades, nos quais a fornicação era exercida livre e oficialmente. Existiam estabelecimentos para banhos, onde se podiam desfrutar os prazeres carnais, sem falar dos bordeis particulares. O papel dos prostíbulos era e continua sendo o de dar sustentação aos prazeres carnais do sexo masculino, pois era fora do casamento que o homem encontrava o sexo livre. Assim, a prostituição era discretamente aceita na sociedade como um mal necessário para garantir a moralidade familiar. Porém, era nesses espaços que as mulheres assim, como os homens exerciam sua sexualidade de forma livre. A teoria popular supunha que a sexualidade masculina era ativa e precisava ser satisfeita, e a feminina passiva: a mulher não teria frustração sexual. Como o casamento monogâmico era visto como a única base social viável, e este tipo de casamento restringia a sexualidade, portanto, a válvula de escape encontrada foi a prostituição. Ainda de acordo com Macedo (2000), no imaginário da época, a prostituição colaborava para a sanidade da sociedade, atenuando as tensões e servindo de válvula de escape para os homens que deviam exercer sua sexualidade livremente para assim, serem considerados homens. Assim, os teólogos incentivavam a busca do prazer fora da conjugalidade. Com a esposa, o homem cumpria as obrigações de marido, já que com as prostitutas buscava-se o deleite. No entanto, as prostitutas eram mantidas afastadas das “pessoas de bem”, ou seja, isolavam-se as meretrizes para que as mulheres de bem não fossem “contaminadas”. Os prostíbulos eram freqüentados principalmente pela nobreza, que aprisionavam suas esposas como forma de mantê-las afastadas desse “mal necessário”. 39 Contudo, a partir do século XVI uma série de transformações abalam o poder da Igreja e da sociedade feudal, deflagrando posteriormente o surgimento da sociedade burguesa moderna. Nesta, convém ressaltar que em pleno século XXI, os prostíbulos continuam cumprindo o seu papel, de saciar os prazeres e atenuar as tensões servindo de válvula de escape para os homens exerceram sua sexualidade livremente, assim como permitindo às mulheres uma opção de sobrevivência. Deste modo, O capitalismo foi modificando as formas e práticas da prostituição, inserindo- as na lógica do mercado global. Exemplo disso é o “turismo sexual”, que envolve hotéis, agências de viagem etc, com a formação de redes de prostituição em todo o mundo. 2.4 - AS MULHERES NA SOCIEDADE MODERNA E NA CONTEMPORANEIDADE O contexto de nascimento e consolidação do saber científico – desde o Renascimento14 até o século XIX - vai significar o progressivo rompimento com as explicações teológicas do mundo, que predominou na Idade Média. O que antes era explicado a partir do poder divino, pouco a pouco, passa a ser explicado através da racionalidade, experimentação, observação e teorias científicas. Nesse contexto de nascimento das ciências modernas, percebe-se o jogo de poder entre os sexos, particularmente entre a medicina e as curadeiras que exerciam a prática
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