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JAKOB VON UEXKÜLL, NASCEU NA ESTÓNIA EM 1864; ESTUDOU ZOOLOGIA NA UNIVER SIDADE DE DORPART E FISIOLOGIA NA UNI V E R S ID A D E DE H EID ELBERG . OS SEUS -TRABALHOS SOBRE O «MUNDO-PRÓPRIO E MUNDO-INTERIQR DOS ANIMAIS» FORAM NÃO SÓ PIONEIROS, CRIANDO RAMO CIEN TÍFICO, MAS TAMBÉM, ATÉ HOJE, DEFINI TIVOS, JA QUE 0 ,áEU CONCEITO DE CICLO- -DE-FUNÇÃO JAMAIS FOI CONTESTADO OU U LTR A P A S S A D O . V IA JO U POR TO DO O MUNDO, çj^MO INVESTIGADOR E CONFE RENCISTA. pÒUTOROU-SE TAMBÉM EM MEDI CINA, PELjjí UNIVERSIDADE DE HEIDELBERG E FOI PROFESSOR NA DE HAMBURGO E NA DE KIEL, TENDO SIDO GALARDOADO DOUTOR HONORIS CAUSA POR OUTRAS UNIVERSI DADES EUROPEIAS T r a d u ç ã o d e A LBERTO CAN D EIA S e A N ÍBA L GARCIA PE R E IR A ♦ Capa de A. PEDRO * T ítu lo da edição original ST R E IFZ U G E DURCH D IE UM W ELTEN VON T IE R E N UND M EN SCH EN * Reservados todos os direitos pela legislação em vigor * Edição fe ita por acordo com a BOW OHLTS D EU TSCH E EN ZY K LO PÄ D IE C O L E C Ç Ã O V I D A E C U L T U R A J A K O B V O N U E X K Ü L L Dos animais e dos homens Digressões pelos seus próprios m undos D o u trin a do Significado EDIÇÃO «LIVROS DO BRASIL» LISBOA Rua dos Cae t anos , 22 UM PRECURSOR DA NOVA BIOLOGIA por A do lf Portmann A obra de Jacob von Uexküll veio a ter resultados fecundos nas ideias e nas tarefas da biologia actual. As investigações dos nossos dias falam de mundos-próprios dos animais no sentido particular que Uexküll atribuiu a este conceito e apresentam ciclos-de-função do ser vivo exactamente como ele no-los tinha definido em dezenas de anos de labor intenso. Se hoje encaramos os fenóme nos da vida não só como causa de certos efeitos mas também como partes componentes de um conjunto preexistente devemo-lo principalmente ao seu trabalho. A nova geração, que agora começa a trabalhar, já não teve oportunidade de o conhecer e quase não mantém com a sua obra relações directas. Uexküll morreu durante os anos negros do fim da Segunda Grande Guerra e, na confusão desse período, muitos investigadores se esqueceram de quanto ficaram devendo a esse homem que foi, simultaneamente, um grande biólogo e um génio de forte personalidade. Vamos acompanhar a elaboração e a influência desta obra notável, para entrarmos depois na própria natureza dos dois trabalhos mais recentes, reunidos neste volume. [ 5 ] A AUTONOMIA DO SER VIVO O que Uexküll trouxe de novo ou simplesmente apro fundou, a partir\de investigações já feitas, teve o seu início na última década do século passado, nos anos que se seguem imediatamente aos sugestivos estudos de Hans Driesch. As experiências de Driesch com as pri meiras formas embrionárias do ouriço-do-mar tinham revelado particularidades de desenvolvimento que deixa vam transparecer nitidamente a autonomia do ser vivo e contnibuíram também de maneira definitiva para que, na busca de uma interpretação do ser vivo, se afirmasse, com nova força, a par da interpretação mecanista domi nante, a outra possibilidade: o vitalismo. Se, daí em diante, caem em desuso os termos mecanismo e vita lismo, por se ter reconhecido amplamente a existência de uma autonomia relativa, de uma independência, do ser vivo, também para este facto tão importante deu larga contribuição o trabalho criador de Jacob Uexküll. A sua obra foi muito particularmente sugerida pela vida dos animais marinhos. E é mais uma vez a utilização genial deste campo das formas animais marinhas que lhe revela novos factos acerca da função dos músculos e nervos e das relações com o meio. Os movimentos dos espinhos do ouriço-do-mar, os movimentos das lapas ou da medusa, o estímulo da sombra que actua no ouriço- -do-mar, a maneira como os vermes ou os espatangói- des (1) se ocultam na areia, a observação da vida dos chocos e das lagostas — cada um destes estudos é um raio de luz que ilumina as densas trevas da vida marinha. Já nestes primeiros trabalhos de fisiologia se dese nham os contornos de uma concepção de organismo que está em flagrante oposição com as ideias ainda larga mente aceitas no seu tempo, que vêem no organismo o (’) Ouriços-do-mar de simetria bilateral. [ 6] resultado de processos ocasionais de transformação, dos quais a selecção natural manteve os favoráveis, permi tindo assim a evolução das formas vivas. Desde o princípio, Uexküll dirige a atenção do obser vador para as propriedades supermecânicas da matéria viva, para o facto misterioso de que no organismo adulto se nos apresenta um todo organizado segundo um plano. Nós verificamos, impressionados e surpreendidos, que este plano já actua no óvulo e continua no desenvolvi mento individual deste. Uexküll já tinha mostrado há muito, em expressivas descrições, o que existe de extraordinário na matéria viva, no protoplasma. Esta necessidade de expor com clareza impeliu-o toda a sua vida para o género de comunicação mais capaz de atingir um largo círculo de pessoas interessadas no assunto. Tornou-se um mestre na exposição arguta e incisiva da sua concepção da natureza. Era-o na explanação oral e é-o também, com igual vigor e poder de sugestão, nos seus escritos. O nunca se ter integrado nas verdadeiras activi dades da ciência académica retardou, porventura, a expansão das suas ideias no campo espiritual da Univer sidade, mas permitiu, por outro lado, que tirássemos pro veito de muitos trabalhos seus, estimulantes e combati vos, que possivelmente seriam incompatíveis com a faina do ensino. CICLO-DE-FUNÇÃO E MUNDO-PRÓPRIO A concepção de ser vivo, de Uexküll, encontrou a sua integral explanação nas obras Um welt und Innenwelt der Tiere, 1921, e Theoretische Biologie. A primeira trata com mais pormenor da observação de factos particulares da vida das mais diversas formas animais; a segunda, mais abstracta, é uma tentativa para ajustar o estudo da vida animal, principalmente com a posição filosófica inspirada em Kant. [ 7] Uexküll tem o seu lugar histórico na solução da antiga querela travada à volta das concepções mecanista e v ita lis ta do ser vivo. Pela influência da época, da escola, e da natureza fisiológica do trabalho, está ligado de várias maneiras — e mais solidamente do que ele próprio era capaz de ver — à interpretação mecanista, para a qual, aliás, era solicitado pelo mais íntimo do seu ser. Verifica, assim, como eminente fisiólogo da vida animal inferior, as grandes possibilidades da simplificação mecanista, que concebe, por vezes/como mecânico cada um dos sis temas da vida animal. Ele considera como maquinismos as estruturas mais evoluídas. Assim, para ele, «a amiba é menos maquinismo que o cavalo» porque dispõe de menos estruturas adultas. Finalmente, Uexküll também se aproxima da interpretação mecanista quando isola a substância e a concebe como dirigida por uma forma de actividade não dimensional. São pois os «impulsos» — agentes não espaciais de ocorrências espaciais — que, por um processo morfogenético conferem à substância uma contextura mecânica. O protoplasma, como um todo, é sempre supermecânico. Na luta que travou por esta concepção, Uexküll emparelha com Hans Driesch. Mas em breve se manifesta a originalidade das suas investigações, quando, no núcleo do seu trabalho, se começa a levantar, a cada passo, uma questão soberana: como deve então entender-se a rela ção entre o ser vivo e o meio quFõ~cTrcunHã?~A pãrtTF de 1910, começa também a expor, de maneira mais inci siva, as suas ideias fundamentais, com que ajudou a for mar, tão decididamente, a biologia dos tempos futuros. Duas dessas ideias directrizes vieram a tornar-se parti cularmente importantes. Uexküll verificou uma correlação estrutural, já exis tente no óvulo, entre o corpo do animal e certos factores do ambiente, sejam estes de natureza inanimada, orga [ 8 ] nismos ou até inimigos e chamou a essa correlação «ciclo-de-função». O ambiente tem notas ou sinais, noverdadeiro sentido destas palavras: estruturas que o animal assinala por meio dos órgãos sensoriais consti tuídos para esse efeito e para as quais se elaboram res postas e reacções especiais no organismo. Quanto às possibilidades de relação ,d e -, um organismo com o ambiente, elas estão já determinadas segundo qualidade e i ntens i dadé7 por estrüturas pre viámente~-or-qaaizadas.. Os diversos ciclos^de-função, no seu conjunto, deter minam uma secção de propriedades com significado na vida do animal. Elas são, no âmbito mais largo da natu reza, a parte que no caso respectivo forma o ambiente limitado e típico de uma espécie animal. OS «PAPÉIS» DAS COISAS NO CENÁRIO DA VIDA; O ESTUDO DO SEU SIGNIFICADO Na vida animal, as coisas são portadoras de signi ficados, têm nela papéis a desempenhar. Ao referir-se a este facto potencial e real, Uexküll revelou à investi gação biológica um aspecto do ser vivo que, nas Ciências Naturais do século XIX, alguns tinham votado a inteiro esquecimento e outros simplesmente banido, como não científico, do domínio dos estudos biológicos. Guiados por Uexküll, encontramos circunstâncias que não podem entrar, reduzidas a medidas e números, numa explicação matemática da natureza, circunstâncias que dizem respeito a um aspecto da vida que é complementar de todas as conclusões obtidas por métodos quantitati vos. O mundo das qualidades experimentadas, com as suas cores e formas, os seus sons e aromas, as suas dores e os seus prazeres, aparece então como o objecto primacial da investigação biológica. Com Uexküll, o [9 ] sujeito percipiente é tomado, pela primeira vez, como objecto de investigação positiva. Neste mundo comple mentar, tornh-se essencial o que no outro não passa de secundário; é\, pelo contrário, insignificante o que ali se tomava como decisivamente importante. Sucede assim, ser indiferente no mundo dos sujeitos se uma cor, como, por exemplo, o azul do céu, depende do carácter de uma combinação química ou se resultou de determinadas estruturas físicas. O importante, neste mundo, é que o azul se apresenta como fenómeno experimentado e que, como tal, desempenha no cenário da vida papéis diversos e rigorosamente determinados. E com que sagacidade dirige Uexküll esta introdução do sujeito na biologia! Ele afirma que as coisas do ambiente possuem um tom ou «teor» prático, quer dizer, que lhes pertence, conforme o seu papel, uma qualidade qüe~nÕs"véFdàdèiramente não conhecemos no seu con teúdo" subjecfivõ mas- cuja actividade é possível discernir ~através"dò comportamento do animal. Com o reíevo dado ã- esfã_tõnãTiFáção dos objectos inicia-se uma orientação na investigação que teve finalmente de reconhecer, como uma das últimas realidades biologicamente inteligíveis, o complemento e a correspondência interiores dessa tonalização: a disposição íntima. A tonalização, atribuição dos teores, eis uma das primeiras verificações no caminho da subjectividade oculta. Uexküll remonta, muito conscientemente, ao grande biólogo Joh. Müller (1801-1858), cuja concepção da vida comentou mais tarde com desenvolvimento e cujo conceito de energia específica dos sentidos cedo se reve lou um poderoso estímulo no seu pensamento. «Qualquer que seja o meio por que se excite um olho» — escreve Müller-— «seja ele esfregado, puxado, comprimido, gal vanizado ou receba estímulos que de outros órgãos lhe são transmitidos por simpatia, em resultado de todas estas causas diferentes, como se se tratasse de causas [ 1 0 ] idênticas, meramente estimulantes, o nervo óptico é sem- pre afectado sob a forma de sensação luminosa, conside rando-se a srproprTõ^mergGTFiãdo na escuridão, quand<5 em repouso.» Também cedo Uexküll acentuou o papel do «estado interior» como um dos factores decisivos para a tonalização das coisas do mundo-próprio. Limitou então o conceito da disposição interior às influências naturais no equipamento interno e define-o pela designa ção de «disposição química». O MUNDO-PRÓPRIO E O HOMEM A doutrina de Uexküll acerca do mundo-próprio, característico de cada espécie animal, veio a constituir uma parte fundamental da biologia moderna mas a exten são que o autor fez da sua doutrina até ao homem foi, desde o início, justamente contestada. Como a digressão aqui publicada conclui com uma aplicação pormenorizada desta doutrina ao homem, é necessário que nos detenha mos por um momento neste caso limite. O que há de fundamental na teoria do mundo-próprio, de Uexküll, é que, segundo ela, este mundo-próprio tem para um gato, para um cavalo ou um macaco, a sua forma específica, não obstante as características comuns de mamíferos. Do mesmo modo, é também específico o mundo da gralha, o da galinha-d agua, o do falcão, ape sar das suas características comuns de aves. Trata-se de uma particularidade hereditária, tipicamente especí fica, invariável. Se no mundo do cão ou no do papagaio que habita connosco o mesmo quarto podem aparecer coisas do mundo do homem, elas transformam-se em coisas do papagaio ou do cão, com as suas tonalidades inteiramente próprias. Mas, para ilustrar o seu conceito de mundo-próprio, Uexküll também põe em relevo o mundo diferente em que, separadamente, se move cada [ 11] pessoa e mostra, com o exemplo da árvore, como a mesma coisa toma, consoante o género de vida da pes soa, tonalidades absolutamente diferentes. Aqui, escapa- -Ihe, no entanto, um pormenor: que todas essas maneiras diversas de ver o mundo fazem parte de um mundo comum à espécie, que é possível uma compreensão des ses vários mundos-próprios da mesma espécie, que é possível, enfim, existirem contrastes de interpretação. Estas esferas de afinidade do mundo do homem, nas quais se incluem os mundos individuais com as suas peculiaridades — grandes peculiaridades como Uexküfl e nós próprios reconhecemos — , esta amplitude da possi bilidade fundamental de compreensão criam uma situação particular para o homem. Por muito acentuados que se considerem os contrastes dos mundos humanos, filhos da tradição ou das diferenças de factores hereditários, o certo é que todos se contêm na mesma esfera. Toda a poesia vive da representação dessas variadas maneiras de ver o mundo e das suas coincidências. Mas precisa mente a poesia assenta no princípio da última possibili dade de compreensão dos outros. A expressão «mundo- -próprio» afirma e acentua a separação de mundos específicos dos animais, como esferas particulares e, exactamente por isso, devemos excluir este conceito na caracterização dos contrastes de visão do mundo entre os homens. Todavia, o homem põe à antropologia filosó fica do nosso tempo um problema particularíssimo, que se avoluma ainda com a caracterização do nosso compor tamento como independente do mundo, em oposição à conduta das espécies animais, estritamente obrigadas ao mundo-próprio. Rejeitando os excessos do conceito de mundo-próprio, a biologia e a antropologia modernas defendem o que há de mais original na obra de Uexküll contra os seus impulsos temperamentais. [ 12] NA SENDA DO ESTUDO DO COMPORTAMENTO A influência das ideias de Jacob Uexküll alarga-se ao estudo do comportamento nos nossos dias. A sua acção, embora velada, é tanto maior, quanto estimula, de maneira decisiva, o começo de uma nova orientação no campo da investigação alemã. O que O. Heinroth e K. Lorenz, o que H. Hediger e Frau Meyer-Holzapfel, entre outros, lograram descobrir de essencial durante a ter ceira década do século, pressupõe a fermentação das ideias de Uexküll, até onde elas se não encontram expres samente mencionadas. Uexküll não é o fundador do estudo do comportamento, produto colectivo de várias fontes. Vamos indicar mais uma vez, apenas algumas destas fontes, para mostrar o maior âmbito de ideias em que a obra de Uexküll exerceu influência de relevo. Num trabalho notável, o americano Craig salienta, em 1918, a importância do estudo das coisas do mundo- -próprio, estudo que,por sua vez, faz intervir o ciclo-de- -função do animal. Designa o estado que conduz a deter minados fins por apetência, paralelamente ao que sucede no fenómeno elementar da nutrição e reconhece, assim, a validade de uma generalização que já era corrente na Antiguidade (em Santo Agostinho, por exemplo). A ape tência é um tipo de comportamento: corresponde-lhe um estado interior especial. Lembremo-nos de que também Uexküll já reconhecera distintamente este aspecto do fenómeno vital. Pela mesma época, o ornitólogo inglês E. Howard (1922) provou que as aves, no período de incubação, rei vindicam e defendem uma porção de espaço, um territó rio — observação que então ocasionou uma imensidade de outras verificações, como, por exemplo, a descoberta da distância rigorosamente mensurável do voo e da resis tência, etc., devida a Hediger. A explicação de muitos destes factos estava confiada, desde os tempos primiti- [ 13] vos, aos caçadores familiarizados com a Natureza. A im portância dò «defeso» para as aves já foi posta em relevo por B. von Al(tum, na Alemanha, na sexta década do século passado. Assim, quando Howard é hoje apontado como o «descobridor» da posse territorial, isso significa que ele pôs o facto em evidência num momento particularmente «exacto» e que desempenhou papel preponderante no reconhecimento da sua importância. Já em 1912, Julian Huxley observara a descrevera pormenorizadamente em Inglaterra, pela primeira vez, a cópula dos mergulhões, que ele depois interpretou com notável clareza. Abriu-se, assim, à investigação científica um vasto campo de trabalho. Desde tempos imemoriais que estes factos se tinham observado repetidas vezes. Desde os tempos primitivos que o homem observava a cópula do galo e outros fenómenos semelhantes. Mas a consideração conscienciosa da sua significação e a clara ordenação de conceitos que agora se apresentava tiveram importância decisiva. O. Heinroth actuou no mesmo sen tido mas a contribuição de Huxley quase não é citada por ele. Por volta de 1920, Thorleif Schjelderup-Ebbe começou a estudar em Greifswald a hierarquia social num pátio de criação de aves. Mostrou então que um grupo qualquer de aves de criação se encontra solidamente organizado; que os vários indivíduos se dispõem numa hierarquia só deles próprios dependente e que esta hierarquia é muito complicada e variável, isto é, depende da condição dos indivíduos. Como consequência desta primeira investi gação, surgiu grande número de estudos sobre a ordem de precedência observada no exercício das actividades vitais dos animais de várias espécies. Muitos biólogos ficaram tão surpreendidos com a novidade que foram levados à generalização precipitada que via nessa hierar quia uma lei geral. Só mais tarde se impôs uma observa ção dirigida em maior número de sentidos, a qual revelou [ 14] a existência de grupos de animais sem tal escala de cate gorias. Para a investigação biológica, estes trabalhos significam o início de uma revalorização das formas de vida animais que era tanto mais importante quanto mais profundamente a fatuidade da teoria mecanista menos prezara o animal. Em 1899, o biólogo dinamarquês Mortensen intro duziu a marcação individual das aves por meio de anilhas. Desde então, inúmeras aves isoladas da multidão anó nima, por meio de anilhas numeradas, transformaram-se para nós, observadores humanos, em indivíduos e o número de aves marcadas é hoje tão extraordinário como o de conhecimentos que devemos a este método. Algu mas conclusões fundamentais dos nossos investigadores do comportamento animal assentam exactamente na mar cação do indivíduo isolado, pelo que a «história natural» geral e vaga de uma espécie pôde transformar-se na des crição fiel da vida do animal individualizado. Por isso, a marcação de animais de todos os grupos, do insecto ao morcego, se tornou um dos processos técnicos impor tantes da biologia e fonte de perspectivas inesperadas. Além destas, outras tendências de valia se podiam ainda mencionar, se o nosso intento não fora apenas apontar que, das muitas tentativas, resulta, enfim, uma nova orientação investigadora. Uma destas fontes abriu a muitos investigadores o caminho de êxitos futuros e veio aumentar a possibilidade de aceitar novas concep ções: foi a doutrina de Uexküll, com os seus ramos fun damentais na apresentação dos ciclos-de-função e na do mundo-próprio. A INVESTIGAÇÃO PROSSEGUE A importância da obra de Uexküll reside principal mente na sua luta tenaz em favor da actual posição bio [151 lógica, que reconhece a particularidade da esfera da vida e a autonomia relativa do ser vivo. As suas contribuições foram dominadas pelo método fisiológico e pelo exame da natureza especial do ser vivo como objecto de investi gação. O desejo de se limitar aos métodos científicos levou-o à rejeição total de qualquer afirmação sobre o aspecto experimental do sujeito e, implicitamente, à renúncia a qualquer espécie de psicologia animal, que ele considerava situada para além do «biológico». O seu caminho para chegar à compreensão do animal era, por tanto, o estudo da harmonia entre a estrutura e o com portamento. Não esqueçamos que, exactamente no seu tempo, era particularmente vivo o clamor erguido a pro pósito do cavalo sábio e de outros cavalos calculadores e de cães que raciocinavam. A humanização do animal encontrava-se então no seu ponto culminante. Esta coin cidência temporal havia de fortalecer, no pensamento de Uexküll, todas as tendências contrárias e, na verdade, o seu temperamento combativo fê-lo, às vezes, parecer quase mecanista, muito mais singularmente do que seria de esperar da sua concepção da natureza, que reconhecia sempre em acção qualquer coisa de supernatural. A mis são do biólogo parecia-lhe residir na busca de estruturas que, por exemplo, no sistema nervoso central, determi navam a génese do mundo-prório e o comportamento do animal. Tão onge foram os seus escrúpulos perante "os resultados de carácter experimental que se, na ver dade, por um lado, classificava a «tonalidade» das coisas do mundo-próprio como descritível, como parte do mundo exterior, por outro, nunca deixa de mencionar, cautelosa mente, a, correspondente «disposição» complementar e, como já vimos, acentua bem o que nela há de «químico», a natureza material do seu condicionamento, não fossem torná-lo suspeito de impulsos românticos. A evolução mais significativa, a partir de Uexküll é o aprofundamento dos estudos da autonomia do ser vivo [16] pela verificação mais intensa de todas as provas que apre sentam o organismo como centro especial de actividade e simultaneamente de um viver que, embora velada- mente, é aparentado com o que melhor conhecemos do nosso próprio ser mais íntimo. É principalmente pelo estudo desta «intimidade», desta maneira de ser peculiar do ser vivo e do animal em especial que aquilo que é observável de fora recebe a sua mais ampla interpreta ção. Tomar, de vez, o sujeito para objecto da investigação biológica, eis o passo para o desconhecido que a obra de Uexküll principalmente preparou. O estudo da presença desta subjectividade é_a_carac- terístÍcã~dõ~trãbalho biológico dos nossos dias. Mas tão peculiares como isso são as consequências metodológi cas desta atitude. Em vez de introduzirmos no jogo de factores do fenómeno vital um agente misterioso, que interviesse em toda a parte como factor explicativo, nós vemos nesta subjectividade uma das incógnitas que o naturalista procura abordar, objectivamente, pelo estudo das manifestações. Pela observação rigorosa de todas as manifestações do animal, de todas as suas respostas, nós avançamos cautelosamente para resultados que des crevem a descoberta e ocupação de espaço ou compreen dem a relação com o ritmo do dia e da noite e com o das estações do ano, exactamente como também des cobrimos nas hierarquias da vida social a subjectividade de um sujeito em acção. A grandelista de «manifesta ções» que nos dão testemunho da subjectividade é uma das mais significativas realizações da biologia contem porânea. O estudo do comportamento já hoje não se desvia dos problemas que o duplo aspecto do ser vivo nos apre senta: aborda-os por vários caminhos e cautelosamente. Aprendemos a distinguir, no estabelecimento de correla ções, o que é inato, hereditário, do que tem de ser aprendido e transformado em hábito. Aprendemos a dis 2 - A . HOMENS [17] cernir as estruturas transmitidas, relativamente rígidas, das outras, mais flexíveis^ Sabemos como estímulos iguais podem actuar de maneira tão diversa-s- reconhe cemos assirrTã variacãa..dQS_estados interiores. Por sua vez, nestes estados, nestas «disposições», entramos em contacto com um último elemento, para além do qual a investigação não passa, por enquanto. Assim, numa época em que a própria filosofia descobriu — ou melhor, redes- cobriu o papel fecundo da adaptabilidade perfeita (Befin- d iichke it) os que se dedicavam ao estudo do comporta* mento chegaram, por caminhos absolutamente diferentes, a este princípio fundamental da conduta e, desse modo, a uma manifestação objectiva da maneira de ser, des conhecida para nós, como experiência, da subjectividade dos animais. O estudo dos estados interiores e do com portamento eliminou um grave inconveniente: superou a distinção entre corpo e alma como substâncias distintas qüè, ~ jüritas, constituem o ser vivo — separação que rãcfica em tradições antiquíssimas da nossa vida repre sentativa, da nossa imaginação. A biologia contemporâ nea não estuda separadamente.-o. .aspectõTcofpõfèo ou somático, por um lado, e o espiritual ou psíquico, por outro. Pelo estüdo~cfõ’ cõmportamento, nós procuramos ■fioje surpreender, na sua pureza, a realidade desconhe cida e, antes de qualquer divisão mais ou menos estabe lecida, conhecê-la na sua actividade, como a unidade que originalmente nos é dada. Do mesmo modo, a nova ciên cia do homem — a antropologia — também já começa a dirigir-se para o comportamento do homem, para a par ticularidade dos seus modos de relação e não reconhece, neste campo, discutíveis esquematizações de «compo nentes» do género corpo-alma-espírito ou «bios» e «logos», como partes do ser vivo. Esta orientação tem uma longa história que se não pode expor aqui. Ela ultrapassa também a posição atin gida pela obra de Uexküll que preparou este passo em [ 18] frente ao considerar com clareza inexcedível e graças a um trabalho insano, não só a actividade do centro vital como a de um_suje[to criador de mundos mas também o entrelaçamento intrínseco do ser vivo com partes do seu ambiente. O PROBLEMA DA ORGANIZAÇÃO SEGUNDO UM PLANO Ainda noutro sentido o estudo da vida, no nosso tempo, está prestes a transpor a posição em que o pen samento de Uexküll se deteve há cerca de vinte anos. Trata-se da superação do conceito de «planeamento» do ser vivo. Uexküll mostrou incansavelmente, em repetidos exemplos, que o plano de construção de .um„Pxq3ílÍsmQ não está situadorFõra deíêTcomo o de uma máquina. A sua obra d^crêvê7cõm~grande minúcia, como os organismos se constroem por si próprios, como os estádios de desen volvimento se sucedem, ordenados como numa melodia e como o plano de amadurecimento da forma funcio nal é um processo de autoconstrução e auto-requlação. Mas o «planeamento», operante, por si mesmo, no orga nismo, acabou por se tomar,~nãsua exposição, um factor particular, uma forma de actividade do género superme- cânico e inespacial. Outra não era a posição do vitalismo/ que, na verdade, tinha superado a estreiteza do meca nismo mas que, ao fazê-lo, tinha também ultrapassado, na sua ânsia de esclarecimento completo, os limites da possibilidade científica. A panaceia de Driesch era o princípio orgânico indi vidual da enteléquia; a solução de Uexkiill era a -ru-gani- zação segundo um plano que, à luz..da._.a.QSÍcãQ_.„tomada pelo autor, passava a ser factor explicativo, uma das qualidades Têconhecidas no ser vivo. [ 19] A biologia admite hoje esta dificuldade. Como W. Szilasi afirma radicalmente numa importante exposi ção, o «plano» do comportamento animal formula, nem sempre com felicidade, esta questão: «Como é que, por exemplo, a abelha é exactamente uma abelha ou como é que o animal é, em suma, um animal» (C iência e Filoso fia, Zurique/Nova Iorque, 1945, pág. 72). Na afirmação de que determinada coisa é susceptível de plano, é «planeá- vel», atribui-se a essa «alguma coisa» uma qualidade, um predicado, o que sugere a ideia de que, com isso, alguma coisa é esclarecida ou explicada. Na realidade, a expres são aponta o grande e obscuro enigma, exactamente aquilo que escapa à compreensão: o mesmo enigma que nós também designamos, sim, mas não explicamos, com a palavra «vida». Vemos hoje mais claramente que não podemos ocul tar o mistério que envolve o problema do ser vivo com uma palavra que finge de predicado. Sentimos, de novo, o que há de obscuro na realidade, em todo o seu poder misterioso e procuramos descobrir, pela investigação cautelosa das propriedades reconhecíveis, o que é inves- tigável. Assim, fala-se hoje menos de totalidade e de organi zação segundo um plano do que habitualmente se falava há vinte anos e por isso vamos pondo, a pouco e pouco, a descoberto o conjunto de factores, por meio de cuja acção uma coisa se nos apresenta como um todo ou pro curamos determinar a espécie de estrutura que sugeriu a existência de um plano. É uma ciência do ser vivo na sua evolução, ciência que não é uma mecânica, nem uma pneumática, para empregar uma expressão de E. Heuss (1939). A nova noção de realidade explica também a ati tude perante o problema da organização segundo um plano. O próprio Uexküll diz algures: «O Sol que propor ciona a dança de uma nuvem de mosquitos não_é_o nosso [ 2 0 ] sol mas um sol dos mosauitos que só existe graças aos olhos destes.» Nada porém, podemos dizer do sol dos mosquitos sem ter verifjcado^o plano de organização do mundo-próprio dos mosquitos (Teor. Biológ., pág. 233). E aqui se nos apresenta, com clareza, a organização segundo um plano como aquilo que é para nós: um enigma que se entrevê de uma para outra espécie animal e que, de cada vez, importa resolver. O próprio Uexküll acentuou mais de uma vez ser a pesquisa deste plano a missão da biologia: «Todos os planos se enquadram num plano de organização extraor dinariamente vasto que, até agora, tem sido negado obsti nadamente. Por muito cómodo que isso fosse, já hoje, porém, não é admissível.» Com estas palavras termina a Biologia Teórica, de Jacob Uexküll. Elas apontam muito para além do horizonte que limita o campo de trabalho biológico e atestam a atitude do investigador que durante toda a sua vida pesquisou os modos de ordenação do mundo orgânico e cujo labor arreigou cada vez mais a sua convicção acerca das ordenações cósmicas. Os tra balhos reunidos neste volume também aludem, repetidas vezes, à concepção da Natureza que Uexküll representou. Essa concepção não se limita a ver nos fenómenos da natureza só os aspectos pesquisados mas também venera o segredo que se fecha em cada ser vivo à nossa volta. [ 21] DIGRESSÕES PELOS MUNDOS- -PRÓPRIOS DO HOMEM E DOS ANIM AIS Por J. v. Uexküll e Georg Kríszat PR EFÁCIO O presente livrinho não tem a pretensão de servir de guia de uma ciência nova. Limita-se, antes, a incluir o que podia chamar-se a descrição de um passeio por mundos desconhecidos. Estes mundos não são apenas desconhecidos, são também invisíveis: mais do que isso: o seu direito de existir é-lhes, em geral, contestado por muitos fisiólogos e zoólogos. Esta bem curiosa atitude é, para quem conheça esses mundos, perfeitamente compreensível, pois que o cami nho que a eles conduz não é transitável para quem sofra de certos preconceitos capazes de obstruírem a porta que lhes dá acesso, tão impenetravelmente que nem um raio da luzesplendorosa que os inunda a pode atra vessar. Quem se agarrar ao preconceito de que todos os seres vivos são apenas máquinas, perde toda a esperança [ 23] de vir jamais a lobrigar os seus mundos-próprios (’)■ Mas quem ainda não se ajuramentou na doutrina mecanista dos seres vivos, pode prosseguir nas suas especula ções. Todos os nossos dispositivos^e todos os nossos maquinismos não passam de meios auxiliares das acti vidades do hfltnem. E, efectivamente, há certos meios auxiliares de trabalho — os chamados instrum entos de trabalho — em que se incluem todos os complicados maquinismos que servem, nas nossas fábricas, para a laboração de matérias-primas, e ainda caminhos-de-ferro, automóveis, aviões... Mas há também meios auxiliares de controlo, a que podemos chamar instrumentos-indica- dores, como telescópios, óculos, microfones, aparelhos de rádio, etc. De sorte que é, então, óbvio admitir que um animal não é mais do que um conjunto de instrumentos-de-traba- Iho e de instrumentos-indicadores que, pela intervenção de um dispositivo coordenador, constituem um todo, que, na realidade, não deixará de ser um maquinismo, ainda que adequado ao desempenho da função. É esta, de facto, a maneira de ver de todos os mecanistas teóricos, quer, até certo ponto, se inclinem mais no sentido de pensar num mecanismo rígido, quer no de um dinamismo plás tico. Os animais ficam, pois, taxados de meros objectos. Com o que se esquece que, desde logo, se pôs de parte o que é essencial, istò é, o suje ito, o qual se utiliza do instrumento auxiliar, com ele assinala e com ele actua. A partir da concepção inadmissível de um instru- ('} O termo Umwelt corresponde em português a ambiente, mundo ambiente ou, com menos propriedade, meio ambiente. No sentido, porém, em que o autor o emprega, ele significa qualquer coisa que depende do ser vivo considerado, e resulta de uma como que selecção por este realizada, dentre todos os elementos do ambientè, em virtude da sua própria estrutura específica — o seu mundo-próprio. [ 24] mento simultaneamente de assinalamento e de acção, não se limitaram aqueles a fazer passar os órgãos dos sentidos e os órgãos de movimento por peças de uma máquina (sem atenderem ao seu assinalar e actuar) mas foram mais longe, mecanizaram o homem, reduziram o homem a uma máquina. Segundo os beaviouristas, as nossas sensações e a nossa vontade são meras aparên cias, no melhor dos casos vêm a valer como acidentes incómodos. Quem, porém, ainda considera que os nossos órgãos dos sentidos servem para o nosso assinalar e os nossos órgãos de movimento servem para o nosso actuar, verá nos animais, não apenas um sistema mecânico, mas dis cernirá também o maquinista que se aloja nos órgãos, como nós próprios no nosso corpo. Então considerará os animais, não já como meros objectos, mas como sujeitos, cuja actividade essencial consiste em assinalar e actuar. Com o fazê-lo abre-se já a porta que conduz aos mun dos-próprios animais, porque tudo aquilo que um sujeito assinala passa a ser o seu mundo-de-percepção, e o que ele realiza, o seu mundo-de-acção. Mundo-de-percepção e mundo-de-acção constituem uma unidade íntegra — o mundo-próprio do sujeito, Os mundos-próprios, que são tantos quantos os pró prios animais, oferecem a qualquer admirador da Natu reza novas terras, tão ricas e tão belas que compensam bem uma excursão através delas, mesmo quando elas se não patenteiem aos nossos olhos materiais mas somente à nossa visão espiritual. As melhores condições para iniciar tal digressão são um dia de Verão e um prado coberto de flores, ressoante de zumbidos de coleópteros e pululante de adejares de borboletas; então construiremos para cada animal dos que povoam o prado, uma como que bola de sabão, que [25] represente o seu mundo-próprio, preenchida por todos aqueles sinais^ característicos que são acessíveis ao sujeito. Logo qi^e entremos numa dessas bolas de sabão transfigura-se completamente o mundo ambiente (') que se abria em volta do sujeito. Muitas qualidades do varie gado prado desaparecem inteiramente, outras perdem as suas propriedades gerais; surgem novas correlações. Em cada bola de sabão passa a existir um mundo novo. Para atravessar connosco esses mundos convidamos o leitor a acompanhar a descrição que se segue. Os auto res, ao prepararem este livro, distribuíram as suas tare fas; de modo que um (Uexküll) encarregou-se do texto, e o outro (Kriszat), do material das gravuras. Esperamos dar, com esta descrição de viagem, um decisivo passo em frente, e assim convencer muitos leito res de que existem, com efeito, mundos-próprios, e que com isso se abre um novo e inesgotável campo de investi gações. Simultaneamente, este livro testemunhará o espí rito de investigação colectiva dos activos colaboradores do Instituto para o Estudo do Mundo-Próprio, em Ham burgo (2). Agradecemos em particular aoJD r_ K. Lorenz, que enviando-nos as gravuras que ilustram as suas fecundas experiências sobre gralhas e estorninhos favoreceu o nosso trabalho. O Prof. Eggers cedeu-nos amavelmente um relato pormenorizado dos seus estudos sobre borbo- (’) Umgebung, em alemão, na acepção de tudo que em volta do sujeito se desenrola, independentemente de o impressionar ou o estimular, ou não. H Comp. Friedrich Brock: Verzeichnis der Schriften J. v. Uexküll und der aus dem Ins titu t fu r Umweltíorschung zu Hamburg hervorgegangenen Arbeiten. Sudhoffs Archiv fur Gesch. d. Medizin und d. Naturwiss. Bd, 27, H. 3-4, 1934. J. A. Barth, Leipzig. (Nota da ed. alemã.) [26] letas nocturnas. O conhecido aguarelista Franz Hutk esbo çou para nosso uso os desenhos do quarto e do carvalho. A todos deixamos aqui expressos os nossos cordiais agra decimentos. Hamburgo, Dezembro, 1933. J. v. Uexküll [27] IN T R O D U Ç Ã O Não há, certamente, camponês que tendo batido com o seu cão matos e bosques não tenha travado conheci mento com um animalzinho que, suspenso dos ramos dos arbustos, espia a sua vítima, homem ou bicho, para sobre Fig. 1 — Carraça ela se precipitar e se saciar com o seu sangue, inchando, das dimensões de, o máximo, dois milímetros, até ao volume de uma ervilha (fig. I). A carraça, ou carrapato, nomes por que se designa [ 29] esse animal,^ não é realmente perigosa, mas nem por isso deixa de ser um hóspede incómodo dos mamíferos, e mesmo do homem. O seu ciclo biológico foi de tal modo esclarecido pô r trabalhos recentes que dele podemos traçar um relato exacto. Do ovo sai um pequeno ser ainda não completamente desenvolvido, a que faltam um par de patas e os órgãos da reprodução. Nesta fase já pode atacar animais de tem peratura variável, como, por exemplo, lagartos, que espera emboscado na extremidade da haste de uma erva. Depois de sofrer algumas mudas, os órgãos que lhe faltavam acabam por se desenvolver, passando então a caçar ani mais de temperatura constante. Já fecundada, a fêmea sobe, com as suas já então oito patas, até à parte supe rior de um arbusto que lhe agrade, para, de altura conve niente, se deixar cair sobre pequenos mamíferos furtivos que passem ao seu alcance, ou arrastar por animais de maior porte. O caminho para a sua torre de vigia descobre-o o ani- malzinho, que é desprovido de olhos, valendo-se do seu tegumento, sensível à luz. A aproximação da vítima é revelada ao salteador, que além de cego é também surdo, pelo seu sentido do olfacto. As emanações de ácido butírico que provêm das glândulas da pele dos mamífe ros servem para a carraça de sinal de advertência para abandonar o seu posto de vigia e lançar-se sobre a presa. Se vem a cair sobre qualquer animal de temperatura cons tante, que um apurado sentido térmico lhe denunciou — então atingiu a sua vítima, e só falta agora, ainda com o auxílio do seu sentido do tacto, encontrar uma zona tanto quanto possível livre de pêlos, para se introduzir, até para trás da cabeça, nos tecidos cutâneos daquela; e põe-sea sugar lentamente o sangue quente que jorra. Experiências feitas com membranas artificiais e com outros líquidos que não sangue mostraram que a carraça é desprovida de sentido do gosto, pois que depois de [30] perfurar a membrana absorve qualquer líquido, contanto que este esteja a temperatura conveniente. Se a carraça cai sobre qualquer coisa fria, depois de o sinal de ácido butírico ter funcionado, então errou de hospedeiro, e tem de voltar a trepar para o seu posto de espia. . O lauto festim de sangue que a carraça goza é, simul taneamente, o seu último repasto, pois que agora nada lhe resta senão deixar-se tombar no chão, fazer a postura e morrer. Os breves acidentes da vida da carraça dão-nos uma adequada pedra-de-toque da solidez do ponto de vista bio lógico, comparado com o método fisiológico, como até aqui se tem aplicado. Para o fisiólógo, cada ser vivo é um objecto que se situa no seu mundo-próprio do homem. Examina-lhe os órgãos e o seu funcionamento total, como um técnico examinaria uma máquina que seja nova para ele. O biólogo, ao contrário, toma em conta que cada ser vivo é um sujeito, que vive num mundo que lhe é particular, de que ele constitui o centro; e, por isso, pode comparar-se, não a uma máquina, mas apenas ao maquinista que maneja a máquina. Resumindo, a questão pode pôr-se assim: a carraça é uma máquina ou um maquinista? É um mero objecto ou um sujeito? A fisiologia interpretará a carraça em termos de uma máquina e dirá: na carraça podem-se distinguir recepto res, isto é, órgãos dos sentidos, e efectores, isto é, e órgãos de acção, que, por meio de dispositivo coorde nador no sistema nervoso central, estão mutuamente rela cionados. O conjunto é uma máquina de que se não dis cerne o maquinista. «É exactamente nisso que está o erro», objectará o biólogo. «Nenhuma das partes do corpo da carraça tem as características de umãlriáquina, ém to'da efa o~que~ actua são maquinistas.p [ 31] O fisiólogo continuará inabalável: «Na carraça, precisamente, verifica-se que todas as actividades assen tam exclusivamente em reflexos (1), e o arco-reflexo cons titui a base de cada máquina animal (fig. 2). Este começa por um receptor, isto é, um dispositivo que só admite certas influências exteriores, como ácido butírico e calor, mas rejeita tudo mais. E termina num músculo que põe > — 0 - 0 - >f t £2. ttZ t Fig. 2 — Arco-reflexo em actividade um efector, o dispositivo locomotor, ou o dispositivo perfurador. As células sensoriais, que libertam a excitação dos sentidos, e as células motoras, que libertam o impulso de movimento, funcionam apenas como peças conecto- ras que conduzem as ondas excitadoras, absolutamente materiais, que são originadas nos nervos, sob a acção do choque exterior. Todo o arco-reflexo trabalha com trans missão de movimento, como qualquer máquina. Nenhum factor subjectivo, como seja, um ou mais maquinistas, intervém no fenómeno, seja como for.» «O que se passa é exactamente o contrário», repli- (') Reflexo, originalmente, significa a captação e reenvio de um raio de luz, por um espelho. Aplicado aos seres vivos, o termo reflexo significa a captação de um estímulo exterior por um recep tor e a resposta provocada pelo estímulo do efector do ser vivo. No fenómeno o estímulo transforma-se em excitação nervosa, que tem de passar por várias estações para ir do receptor ao efector. O caminho assim seguido designa-se por arco-reflexo. (Nota da ed. alemã.) [32] cará o biólogo. «Do que se trata, principalmente, é de maquinistas e não de partes de máquinas. Porque todas e cada uma das células do arco-reflexo funcionam não com transmissão de movimento, mas com transporte de estímulo. Um estímulo, porém, deve ser notado por um sujeito e essencialmente não provém de um objecto.» Qualquer parte de uma máquina, um badalo de um sino, por exemplo, trabalha apenas maquinalmente quando de determinada maneira é posto a oscilar. Quaisquer outras intervenções despertam nele respostas como o fariam em qualquer mero pedaço de metal. Ora, desde John Müller O , nós sabemos que um músculo se com porta de uma forma completamente diferente. A qualquer intervenção exterior ele responde sempre da mesma maneira: por uma contracção. Toda a intervenção exterior é por ele transformada no mesmo estímulo; a todas res ponde com o mesmo impulso que obriga o corpo da célula à contracção. John Müller demonstrou ainda que todas as acções exteriores que incidem nos nossos nervos visuais, sejam elas ondas do éter, compressões ou correntes eléctricas, produzem uma sensação visual, isto é, as nossas células sensoriais visuais respondem com o mesmo sinal-per- ceptivo. Disto devemos concluir que cada célula viva é um maquinista, que assinala e actua, e por isso possui «assi nalamento» ou percepção e «activação^» ou impulso. As múltiplas marcas e acções do sujeito-animal total são, por consequência, atribuíveis ao trabalho de conjunto de pequenos maquinistas celulares, cada um dos quais somente decide sobre um sinal-perceptivo ou um sinal- -de-impulso. Para que seja possível uma cooperação ordenada, o (') Fundador da moderna fisiologia (1801-1858). (Nota da ed. alemã.) 3 - A. IIOMENS [ 33] organismo se^ve-se das células do cérebro (que são tam bém maquinistas elementares), e agrupa metade delas como «células assinaladoras» ou células-de-percepção na parte do cére&ro receptora de estímulos, isto é, no «órgão-assinalador, ou de-percepção», em faixas mais ou menos extensas. Estas faixas correspondem a grupos de estímulos exteriores que entram como perguntas no sujeito-animal. A outra metade das células do cérebro utiliza-as o organismo como «células activadoras» ou células-de-impulso, e agrupa-as em faixas com que comanda os movimentos dos efectores, que comunicam ao mundo exterior as respostas do sujeito-animal. As faixas das células-de-percepção constituem o «órgão-de-percepção» do cérebro, e as faixas das células- -de-impulso, o «órgão-de-impulso». Se, pois, nos permitimos imaginar um órgão-de-per cepção como um centro de faixas de percepção alternadas e maquinistas celulares que são os portadores de percep ções específicas, no entanto elas conservam-se entida des espacialmente distintas. Os seus sinais-perceptivos permaneceriam também distintos, se não tivessem a pos sibilidade de se fundirem em novas unidades, fora do órgão-de-percepção, espacialmente fixado. Ora tal possi bilidade existe efectivamente. Os sinais-perceptivos de um grupo de células-de-percepção reúnem-se fora do órgão-de-percepção, na realidade fora do corpo de animal, em unidades que passam a ser atributos dos objectos situados fora do sujeito-animal. Este facto é bem conhe cido de todos. Todas asjiossas sensações humanas, que figuram os nossos assinalamentos, ou percepções, espe.- cíficos, convergem nos atributos dos objectos exteriores, que nos servem como sinais-característicos que utiliza mos. A sensação «azul» passa a ser a «cor azul» do céu; a sensação «verde» passa a ser a «cor verde» da relva, etc. No sinal-característico, ou carácter, azul, reconhece mos o céu, no carácter verde reconhecemos a relva. [34] Outro tanto, exactamente, se passa no órgão-de- -impulso. Nele as células-de-impulso desempenham o papel de maquinistas elementares, que, neste caso, con soante as suas actividades, ou impulsos, se ordenam em grupos bem articulados. Também aqui existe a possibili dade de os impulsos individualizados se concentrarem em unidades que actuam sobre os músculos, a elas subordi nados, como impulsos encadeados ou melodias de impul sos, ritmicamente articulados. Depois do que os efectores postos em acção pelos músculos imprimem aos objectos situados fora do sujeito a sua realidade. A _marca-de-acção que os efectores imprimem ao objecto é directamente reconhecível — como a ferida que o ferrão da carraça produz na pele do mamífero por ela atacado. Mas, primeiro, a difícil descoberta dos sinaiscaracterísticos do ácido butírico e do calor completou o quadro da carraça laboriosa no seu mundo-próprio. Em sentido figiiradfl.,.p_ode. dizer-aeque cada sujeito- -animal apreende o seu obieclQ-com-as_duas hastes de urna_tenaz — uma haste de perceber out ra de impulsio nar. Com uma confere-lhe, um atributo, com a_ontra. uma marca-de-acção. Por este meio certas propriedades do objecto passam a ser portadoras de sinal-caracterís tico, certas outras, de marca-de-acção. Como todas as propriedades de um objecto estão ligadas umas às outras pela estrutura deste, as atingidas pelo sinal-de-impulso devem exercer no objecto a sua influência sóbre as por tadoras de sinal-característico e também actuar sobre estas modificando-as, o que resumidamente melhor se exprime dizendo: a marca-de-acção cancela o sinal-carac- terístico. O número e a ordenação das células-de-percepção que por meio dos seus sinais-perceptivos assinalam os objectos do seu mundo-próprio com sinais-característicos e o número e ordenação das células-de-impulso que por meio dos seus sinais-de-impulso dão aos mesmos objec- [ 35] tos marcas-de-acção são, principalmente, e a par da selecção de estímulos que os receptores realizam e da ordenação dos músculos que permite aos efectores mani festarem-se, decisivos no desenrolar de cada forma de comportamento de todos os sujeitos animais. O objecto, somente no que respeita ao comporta mento, é como se devesse possuir as propriedades neces sárias, que por um lado pudessem servir como portado ras de sinais-característicos, e por outro de portadoras Mundo de Percepção órgão de Percepfio Órgão de impulso Receptor Portador de sinal característico Portador de marca de acção Efector Mundo de acção Fig. 3 — Ciclo-de-Função de marcas-de-acção que devessem estar em associação por ajustamento mútuo. As relações de sujeito com objecto jsstão ilustradas no ésquemã~gõ~ciclo-de-funcão ffiq. 3). Ele mostra corrio sujeito e objecto se ajustam reciprocamente e constituem um todo que obedece a um plano. Se, além disso, se supõe que um sujeito se liga a um ou vários objectos por vários ciclos-de-função, fica-se, então, fazendo uma ideia do conceito fundamental da doutrina do mundo-próprio, a saber: todos os sujeitos animais, os mais simples como os mais complexos, estão ajustados com a mesma per [36] feição aos seus mundos-próprios. Aos primeiros corres pondem mundos-próprios simples, aos segundos, mundos- -próprios complexos. E agora situemos no esquema do ciclo-de-função a carraça como sujeito e o mamífero como objecto. Verifi ca-se imediatamente que decorrem segundo um plano três ciclos-de-função, e uns a seguir aos outros. As glân dulas cutâneas do mamífero constituem o portador de sinal característico do primeiro ciclo, pois o estímulo ácido butírico liberta no órgão-de-percepção sinais-per- ceptivos, específicos, que são transportados para a peri feria como carácter olfactivo. Os fenómenos que se pas sam no órgão-da-percepção provocam por indução (em que tal consiste, ignoramo-lo) no órgão-de-impulso impul sos correspondentes, que produzem o movimento dos membros locomotores e a queda do animal. A carraça ao cair confere aos pêlos do mamífero a marca-de-acção do choque, que então, por seu turno, liberta um carácter táctil pelo que o carácter olfactivo do ácido butírico é cancelado. O novo carácter provoca um movimento de vaguear, até que na primeira zona sem pêlos é remido pelo carácter calor, e aí começa o trabalho de perfu ração. Sem dúvida trata-se aqui de três reflexos que se vão anulando sucessivamente e são sempre desencadeados por acções físico-químicas objectivamente determináveis. Mas quem se contente com esta verificação e julgue ter com ela resolvido a questão, mostra apenas que não alcançou o verdadeiro problema. Não é o estímulo quí mico do ácido butírico que se debate, nem tão-pouco o estímulo mecânico (desencadeado pelos pêlos), nem ainda o estímulo térmico da pele, mas apenas o facto de saber £orquê, entre as centenas de. acções que resul- tam_das propriedades do corpo do mamífero, só três se tornam portadoras de sinais característicos relativamente à carraça, e porquê essas três e não outras. [37] Não se trata de qualquer reciprocidade de forças entre dois objectos, mas sim das correlações entre um sujeito vivo e o\seu objecto, e estas manifestam-se num plano inteiramente diferente, a saber entre as percep ções do sujeito e o estímulo do objecto. A carraça está suspensa, imóvel, da extremidade de um ramo numa clareira. Pela sua situação oferece-se-lhe a oportunidade de cair sobre um mamífero que por ali passe. De todo o ambiente não incide sobre ela nenhum estímulo. Então, aproxima-se um mamífero, de cujo san gue ela necessita para o desenvolvimento da sua prole. E agora qualquer coisa de bem maravilhoso se passa: de todas as acções provenientes do corpo do mamífero só três passam a constituir estímulos e, essas, em sequência bem determinada. Do vasto mundo que rodeia a carraça fulguram três estímulos, como sinais luminosos dentre as trevas, e servem à carraça de guias, que ela confiadamente segue até atingir o seu objectivo. Para tal ser possível as carraças são dotadas, além do seu corpo com os seus receptores e efectores, de três sinais- -perceptivos que pode utilizar como três sinais caracte rísticos. E é por meio destes que à carraça o fluir do seu comportamento é tão determinadamente prescrito que ela só pode realizar actos perfeitamente determinados. Todo o opulento mundo ambiente que rodeia a car raça se contrai e se transforma num quadrõ~me"squinh5 que essencialmente consiste ainda em três sinais carac- teríitlcõs~êlrês marcas-dF-ãQção^rã-seu-muncio-própxJo. A indigência desse mundo-próprio ajusta-se, porém, estreitamente à segurança do comportamento, e segu rança vale mais que riqueza. Do exemplo da carraça pode deduzir-se o que é fundamental na estrutura dos mundos- -próprios dos diferentes seres, e é válido para todos os animais. Mas a carraça possui uma faculdade muito notá [ 38] vel, que nos desvenda uma perspectiva muito mais vasta dos mundos-próprios. É imediatamente evidente que a inesperada fortuna da passagem de um mamífero por sob o ramo sobre que a carraça se encontra é muito rara. Este inconveniente nem pelo grande número de carraças que se emboscam nos arbustos é suficientemente compensado para asse gurar a subsistência da espécie. A faculdade de a carraça poder viver muito tempo sem se alimentar, aumenta as probabilidades de vir a passar uma presa ao seu alcance. Essa faculdade possui-a a carraça em grau invulgarmente elevado. No Instituto Zoológico de Rostock conserva ram-se vivas carraças que chegaram a jejuar durante dezoito anos (1). Isso a nós, homens, ser-nos-ia impossí vel. O tempo no nosso mundo-humano é constituído por uma série de momèntos curtrssmTõí^^injrante os quais o mundo não manifesta qualquer mudança._ Durgiile- um momentãà iaundo xions.erva;se.invarlável. O momento do (') A carraça está, sob todos os pontos de vista, organizada para resistir a um longo período de jejum. As células seminais que a fêmea recebeu e conserva dentro de si durante o período de espera estão contidas dentro de cápsulas, até o sangue do mamí fero chegar ao estômago da carraça. Quando isso se dá elas são postas em liberdade e fecundam os óvulos que esperavam nos ovários. Em contraste com a adaptação perfeita da carraça ao seu objecto-presa, que ela acaba por encontrar, está a fraquíssima pro babilidade de que tal suceda, mesmo apesar do longo tempo de espera possível. Bodenheimer tem perfeitamente razão quando fala de um péssimo, isto é, de um mundo reconhecidamente desfavo rável em que vive a maioria dos anit|hais. Somente, este mundo não é o mundo-próprio de cada um delés, mas o mundo ambiente de todos. Mundo-próprio óptimo, isto é, reconhecidamente favorável, e mundo ambiente péssimo, pode considerar-se a regra geral.Porque sucede sempre deverem tombar muitos indivíduos para que a espé cie subsista. Se o mundo ambiente não fosse, para certa espécie, péssimo, então esta, devido ao seu mundo-próprio, óptimo, podia conquistar a supromacla sobro todas as outras. (Noto do autor.) [ 39] homem é de 1/18 segundos Q . Veremos adiante que a duração do momento varia com os diferentes animais, mas seja qual for o valor que queiramos estabelecer para o caso da carraça, a possibilidade de suportar um mundo- -próprio invariável durante dezoito anos está fora do alcance de todas as probabilidades. Admitiremos, pois, que a carraça durante o seu período de espera se encon tra como que num estado de letargia, que também em nós interrompe o tempo por horas. Somente, o tempo no mundo-próprio da carraça pára, durante o seu período de espera, não por horas apenas, mas por vários anos, e ela volta à actividade quando o sinal de aviso «ácido butírico» a desperta para a nova fase de actividade. Que ganhámos com esta noção? Alguma coisa muito significativa. O tempo, que serve de moldura a todo o acontecer, apresenta-se como a única constante objectiva perante a variada mudança do seu conteúdo, e agora vemos que o sujeito controla o tempo do seu mundo-pró- prio. Ao passo que até agora dizíamos: sem tempo não pode existir nenhum sujeito vivente, devemos agora dizer: sem um sujeito vivente não pode existir qualquer tempo. No próximo capítulo veremos que outro tanto sucede com o espaço: sem um sujeito vivente não pode existir nem qualquer espaço nem qualquer tempo. Com isto encontrou a biologia unidade definitiva na doutrina de {') Demonstra-o o cinema. Na passagem de um filme, os qua dros devem suCeder-se e deter-se alternadamente. Para que apare çam com perfeita nitidez, as exposições instantâneas e distintas devem ser ocultadas por um anteparo. A ocultação produzida, ver dadeiramente passa despercebida, se entre a ocultação e a exposi ção medear um intervalo de tempo de 1/18 segundos. Se esse tempo fosse mais longo resultaria uma tremulação insuportável. (Nota do autor.) [40] Kant, unidade que ela aproveitará no aspecto científico- -natural da doutrina dos mundos-próprios, ao acentuar-se o papel decisivo do sujeito. 1. OS ESPAÇOS DOS MUNDOS-PRÓPRIOS Assim como um gastrónomo, do bolo só escolhe as passas, assim também a carraça, das coisas do seu ambiente só seleccionou o ácido butírico. Não nos inte ressa saber que sensação gustativa as passas desper tam no gastrónomo, mas apenas o facto de as passas se tornarem sinais-característicos do seu mundo-próprio, pois que, para ele, são dotadas de significado biológico especial; assim, também, não perguntamos como o ácido butírico cheira ou sabe à carraça, mas registamos apenas o facto de o ácido butírico ter passado a ser biologica mente significante como sinal-característico carraça. Contentamo-nos com o admitir que no órgão-de-per- cepção da carraça devem existir células de percepção que manifestam os seus sinais-perceptivos, como o admi timos igualmente relativamente ao órgão assinalador do gastrónomo. A única diferença é que a percepção do ácido butírico passa a ser um sinal característico do seu mundo-próprio, ao passo que é a percepção das passas o que, no gastrónomo, passa a ser um sinal característico do seu. O mundo-próprio do animal, que exactamente preten demos estudar, é apenas uma fracção do mundo ambiente que nós vemos desenrolar-se em volta do animal — e este mundo ambiente não é mais que o nosso mundo-próprio humano. O primeiro problema no estudo dos mundos- -próprios consiste em escolher, dentre os sinais carac terísticos do mundo que o rodeia, aqueles que são par ticulares ao animal e com eles construir o seu mundo- -próprio. O sinal característico «passas» deixa a carraça [41] perfeitamente indiferente, ao passo que o sinal caracte rístico ácido bgtírico desempenha no seu mundo-próprio um papel importante. No mundo-próprio do gastrónomo o que tem significado acentuado é, não o sinal caracterís tico ácido butírico mas o sinal característico «passas». Cada sujeito fia as suas correlações como os fios de uma aranha, relativamente a determinadas proprie dades das coisas, e tece-as numa sólida teia que suporta a sua existência. Quaisquer que possam ser as correlações entre o sujeitõ~e~os objectos do seu mundo ambiente elas ocor- r6[D„sempre exteriormente.ao sujeito em que temos de escolher os sinais característicos. Os sinais característi cos, ou qualidades, são, por isso, sempre de qualquer modo espacialmente ligados, e, põís que eles sVlibertãm uns aos outros numa certa ordem, são também ligados temporalmente. Só por excessiva leviandade alimentamos a ilusão de as correlações do sujeito, outro que não nós, com as coisas do seu mundo-próprio existirem no mesmo espaço e no mesmo tempo que as que nos ligam às coisas do nosso próprio mundo humano. Esta ilusão é alimentada pela suposição da existência de um mundo único em que todos os seres vivos estão encerrados. Daí, a convicção geralmente aceite, de que deve haver um único espaço e um único tempo para todos os seres vivos. Só recen temente surgiram no espírito dos físicos dúvidas sobre a existência de um universo com um espaço válido para todos os seres. Que tal espaço não pode existir resulta já do facto de cada homem viver em três espaços que se penetram mutuamente, completando-se, mas que tam bém até certo ponto se contrapõem. [42] a) O espaçazd£.-axzeãe- Quando, de olhos fechados, movemos livremente os nossos membros, estes movimentos, tanto em direcção como em extensão, são-nos exactamente conhecidos. Abrimos com as nossas mãos caminho num espaço a que damos o nome de âmbito dos nossos movimentos, ou, abreviadamente, espaço-de-acção. Todos estes caminhos são por nós seguidos a peque nas passadas a que chamamos passos-de-orientação, por que a direcção de cada uma delas nos é rigorosamente conhecida mercê de uma sensação de orientação, ou sinal-de-orientação. E, na realidade, distinguimos seis orientações, que se opõem duas a duas: para a direita e para a esquerda, para cima e para baixo, para diante e para trás. Têm-se feito estudos que provam ser de cerca de dois centímetros as passadas mais curtas que podemos dar, avaliadas pelo avanço do dedo indicador com o braço estendido. Estas passadas não dão, como se vê, uma medida exacta do espaço em que elas são seguidas. Cada um de nós pode fazer uma ideia aproximada desta inexac tidão, procurando levar ao contacto uma da outra, as pon tas dos dois indicadores das mãos. Verificaremos que a maior parte das vezes isso não se consegue e que aquelas passam à distância de dois centímetros uma da outra. É, para nós, do mais alto significado o poder muito facilmente reter de memória o deslocamento uma vez seguido, o que nos permite escrever às escuras. Chama mos a esta capacidade «cinestesia», designação que nada de novo nos diz. Ora, o espaço-de-acção não é meramente um espaço de movimento constituído por milhares de passadas-de- -orientação que se cruzam, mas possui um sistema de referência formado por planos perpendiculares entre si, [43] que definem o conhecido sistema de coordenadas, que serve de base a todas as determinações espaciais. É de fundamentai importância que quem se ocupa do estudo do problema do espaço se compenetre deste facto. Que é tudo que há de mais simples. Basta movermo-nos para um e outro lado, com os olhos fechados e as palmas das mãos verticais e perpendiculares à testa, para, sem mais nada, podermos fixar o limite entre direita e esquerda. Este limite coincide aproximadamente com o plano mediano do corpo. Se nos deslocamos com as pal mas das mãos colocadas horizontalmente e à altura dos olhos, para cá e para lá, podemos analogamente determi nar onde se encontra o limite entre abaixo e acima. Este limite está, na maioria das pessoas, situado à altura dos olhos; mas em muitas encontra-se à alturado lábio supe rior. O limite entre o anterior e o posterior, que se deter mina com as palmas das mãos voltadas para a frente de um e outro lado da cabeça e deslocando-as para trás e para diante, está situado, em grande número de pessoas, à altura do orifício do ouvido, noutras, à altura da arcada zigomática, e ainda noutras, à altura da ponta do nariz. Cada pessoa normal dispõe de um sistema de coordena das formado por estes três planos, estritamente relacio nado com a cabeça (fig. 4) e com que confere ao seu espaço-de-acção o quadro fixo em que se dão os passos- -de-orientação. No labirinto confuso dos passos-de-orientação, que como elementos de deslocamento não podem conferir ao espaço-de-acção nenhuma fixidez, os planos fixos de refe rência fornecem uma estrutura segura que garante a ordem no espaço-de-acção. A grande contribuição de Cyon (1) consistiu em refe- O Elie v. Cyon (1842-1912), fisiólogo russo, descobridor de nervos e funções nervosas muito importantes. (Nota da edição alemã.) [44] rir a tridimensionalidade do nosso espaço a um órgão sensorial situado no nosso ouvido interno — os canais semicirculares (fig. 5), cuja posição corresponde aproxi madamente aos três planos do espaço-de-acção. Esta correspondência mostram-na tão claramente numerosas experiências, que podemos formular a seguinte proposição: todos os animais que possuem três canais semicirculares dispõem também de um espaço tridimensional. A fig. 6 representa os canais semicircula res de um peixe. É evidente que estes devem ser da máxima importância para o animal. Em apoio disto se pronuncia também a sua estrutura interna, que neles tem um sistema de canais em que, sob o controlo dos nervos, se desloca um fluido nas três direcções do espaço. O movimento do fluido reflecte fielmente os movimentos de todo o corpo. Isto mostra-nos que o órgão, além da [45] função de deslocar os três planos no espaço-de-acção, tem ainda um outro significado. E, de facto, parece que ele desempenha ainda o papel de bússola. Não uma bús sola que se oriente sempre na direcção norte-sul, mas na Fig. 6 — Canais semicirculares de um peixe [46] direcção das «portas de entrada». Quando todos os movi mentos do corpo em bloco, se decompõem e são regista dos em três direcções nos canais semicirculares, o ani mal deve encontrar-se no ponto de partida, quando, por meio de vibrações, os sinais nervosos tenham voltado ao zero. É indubitável que uma bússola que indique as portas de entrada deve ser, para todos os animais que dispo nham de um lugar onde se recolham, ninho ou local de postura, um recurso indispensável. A garantia de terem à sua disposição as portas que lhe dão acesso, obtida por sinais ópticos no espaço visual, não é, em geral, sufi ciente, porque eles devem poder reencontrá-las mesmo quando elas tenham mudado de aspecto. A capacidade de redescobrirem as portas de entrada no espaço-de-acção puro, pode demonstrar-se que existe também nos insectos e moluscos, apesar de estes ani mais não possuírem canais semicirculares. A seguinte experiência é bem convincente (fig. 7). Enquanto a maior parte das abelhas de uma colmeia voam pelo campo, desloca-se esta do seu lugar habitual para uns dois metros de distância. Verifica-se então que, de volta a ela, se acumulam pairando no ar, no lugar em que ela antes se encontrava e com ela o orifício de acesso — o seu ponto de partida. Só passados uns cinco minutos elas se resolvem a voar para aquela sua nova situação. Levando mais longe esta experiência demonstrou-se que aquelas abelhas a que se tinham cortado as antenas se dirigiam sem se deterem para a colmeia deslocada, o que significava que, só enquanto as possuíam se orienta vam no espaço-de-acção. Sem elas orientam-se à custa dos sinais visuais do campo. As antenas da abelha devem, pois, considerar-se como órgão que, de qualquer modo, desempenha o papel de bússola da porta de acesso na sua vida normal, e lhe indica o caminho de regresso com mais certeza que os sinais visuais. [47] Posição anterior da cclmsia Fig. 7 — Espaço-de-acção da abelha Ainda mais surpreendente é a análoga descoberta- -do-lar, que os Ingleses designam pelo termo homing, por parte da lapa (’} (fig. 8). A lapa vive entre as zonas das marés, sobre as rochas. Os grandes exemplares da espé cie gravam na rocha para seu uso e com a sua concha dura, um leito em que, aderindo fortemente a ela, pas sam o período da baixa-mar. No período da preia-mar começam a deslocar-se e a pastar nas rochas dos seus arredores. Logo que a maré começa a baixar buscam de novo o seu leito, não seguindo sempre o mesmo caminho. Os olhos da lapa são tão rudimentares que o molusco, só à custa deles, muito dificilmente consegue reencontrar o seu ponto de partida. A existência de qualquer indício de olfacto é tão improvável como a de um sentido de visão. Só resta admitir a existência de uma como que bússola orientadora no espaço-de-acção, de que todavia não pode mos fazer a mínima ideia. (’) Molusco gastrópode marinho do género Patella. [48] b) O espaço tác til A pedra de fundação do espaço táctil não é nenhuma grandeza cinemática como a passada-de-orientação, mas sim uma grandeza estática, isto é, o local. O local tam- Fig. 8 — Descoberta do lar pela lapa bém deve a sua existência a um sinal-perceptivo do sujeito e não é qualquer aspecto inerente à matéria do ambiente. Foi Weber (') quem o demonstrou. Quando se colocam as pontas de um compasso, afastadas de (') Ernest Heinrich Weber (1795-1878) contribuiu para a fundação da fisiologia moderna. Estudou o sentido do tacto na pele. (Nota da ed. alemã.) 4 -A . IIOMENS [49] um centímetro uma da outra (fig. 9), sobre o pescoço de uma pessoa, elas são apercebidas como distintas uma da outra. Cada àma delas encontra-se num local diferente do da outra. Quando se transportam, sem alterar a sua distância, as duas pontas do compasso para as costas e para pontos cada vez mais afastados do pescoço, é como Fig. 9 — Compasso de Weber se elas estivessem cada vez mais próximas uma da outra, até que, com esse mesmo afastamento, é como se as duas pontas tocassem a pele no mesmo ponto. Daqui se conclui que além do sinal-perceptivo da sensação do tacto possuímos sinais-perceptivos para a sensação do local, a que chamamos sinais do local. Cada percepção-de-localização corresponde, exteriorizada, a [ 50] um local em espaço-táctil. Os territórios da nossa pele que, ao serem tocados, produzem a mesma percepção- -de-localização variam largamente de extensão, conforme a importância que tem para o tacto a região da pele que é tocada. A par da ponta da língua, que tacteia a cavi dade bucal, as extremidades dos nossos dedos possuem os territórios de menor extensão, e podem, por isso, dis tinguir uns dos outros a maior parte dos locais. Quando tocamos com os dedos um objecto, atribuímos, por inter médio destes, à sua superfície um delicado mosaico de locais. O mosaico de locais dos objectos dos lugares fre quentados por um animal é, tanto no espaço táctil como no espaço visual, uma atribuição feita pelo sujeito às coisas do seu mundo-próprio, que de modo nenhum existe no ambiente. Ao tocarem-se pontos diferentes, os locais relacio nam-se com as passadas-de-orientação e juntos servem para o esboçar da forma. O espaço táctil desempenha um papel muito impor tante em muitos animais. Os ratos e os gatos continuam a deslocar-se sem hesitar, mesmo quando cegos — con tanto que conservem os seus pêlos tácteis. Todos os ani mais nocturnos e todos os que habitam em grutas vivem essencialmente em espaço táctil, que uma fusão de loca lizações e passadas-de-orientação delimita. c) O Rspar.n-viRual Os animais desprovidos de olhos, que, como a car raça, possuem pele sensível à luz, é de presumir que possuam as mesmas zonas tegumentares para a realiza ção de localizações, tanto por meio de estímulos lumino sos como por meio de estímulos tácteis.Localizações ópticas e localizações tácteis coincidem no seu mundo- -próprio. [51] Só nos animais providos de olhos, o espaço visual e o espaço táctil se distinguem um do outro. Na retina do olho os pequeníssimos territórios elementares — os elementos visuais — dispõem-se muito densamente uns em relação aos outros. A cada elemento visual corres ponde um acidente local no mundo-próprio, pois que se provou que a cada elemento visual corresponde um sinal- -do-local. A fig. 10 representa o espaço visual de um insecto voador. É fácil ver que, em consequência da forma con vexa do ,olho, o território do mundo exterior que atinge um elemento visual aumenta com a distância, e por cada local é discernida uma parte do mundo ambiente cada vez mais vasta. Disto resulta que todos os objectos que ficam mais afastados do olho se apresentam cada vez mais pequenos até desaparecerem no interior de um [ 52] local. De modo que o local representa a menor porção de espaço dentro do qual não há qualquer diferenciação. A aparente diminuição de grandeza dos objectos não se dá no espaço táctil. E é neste ponto que espaço visual e espaço táctil se opõem. Quando pegamos numa chá vena com o braço estendido e a dirigimos para a boca, ela aumenta de dimensões aparentes em espaço visual, mas não em espaço táctil. Neste caso o espaço táctil tem vantagem sobre o espaço visual pois que o aumento de tamanho da chávena passa despercebido a um obser vador não atento. Como a mão que palpa, o olho que olha em volta estende sobre todas as coisas do mundo-próprio um deli cado mosaico de locais, cuja finura depende do número de elementos visuais que atingem as mesmas secções do ambiente. Pois que o número dos elementos visuais varia muito de animal para animal, o mosaico-de-locais deve também variar. Quanto menos fino for tanto maior número de par ticularidades das coisas devem perder-se, e o mundo, visto por um olho de mosca deve parecer muito mais grosseiro do que o visto por um olho humano. Como cada imagem pode variar por sobreposição de uma rede fina num mosaico de locais, o método da rede proporciona-nos a possibilidade de realizar a representa ção dos mosaicos de locais dos diferentes animais. Basta, para tanto, reduzir sucessivamente a mesma representação, vê-la depois através da mesma rede, foto- grafá-la e depois ampliá-la. Assim aquela se pode trans formar num mosaico cada vez mais grosseiro, reprodu zindo-o em aguada, sem rede, que tornaria confuso o seu aspecto. As figs. 11 a-d são aqui representadas tal como se obtiveram pelo método da rede, e dão-nos a possibili dade de se obter um aspecto do mundo-próprio de um animal, quando se conhece o número de elementos visuais do seu olho. A fig. 11 c corresponde aproximada- [53] Fig. 11 a — Fotografia de uma rua de aldeia [ 54] mente à reprodução fornecida pelo olho da mosca domés tica. É fácil de compreender que num mundo-próprio que apresenta tão poucas particularidades, os fios de uma teia de aranha devem passar completamente despercebi dos, e é legítimo dizer: a aranha tece uma teia que é completamente invisível à sua presa. A última figura (11 d) corresponde aproximadamente à representação da impressão dada por um olho de molusco. Como se vê, o espaço visual das lapas e dos mexilhões contém apenas algumas manchas escuras e claras (’). Como no espaço táctil, as conexões no espaço visual são feitas por passadas de orientação de local para local. Quando fazemos uma preparação à lupa, que tem por função discernir um grande número de locais em uma pequena área, podemos verificar que não é só a nossa vista mas também a nossa mão que guia a agulha de dissecção, realiza passadas-de-orientação muito mais curtas, correspondentes a locais tornados muito mais próximos uns dos outros. 2. O HORIZONTE Ao contrário do espaço-de-acção e do espaço táctil, o espaço visual é limitado em toda a volta por uma parede impenetrável, a que chamamos o campo longín quo, ou o horizonte. Sol, Lua e estrelas movem-se, sem distância em pro- (’) Estas representações indicam apenas o processo que leva a fazer uma primeira ideia das diferenças dos aspectos sob que vários animais vêem os objectos exteriores. Quem queira ficar com uma ideia das particularidades desses aspectos dinâmicos, no caso dos insectos, terá um guia na obra de K. v. Frisch Aus dem Leben der Bienen («Acerca da Vida das Abelhas»), ed. Springer, 5.“ edi ção, 1953. (Nota da ed. alemã.) [55] r< f . í. *>.- rf f fv WM f d B a & t t - Fig. 11 c — A mesma para um olho de mosca Fig. 11 d — A mesma para um olho de molusco [56] fundidade entre si, sobre o mesmo horizonte, que inclui tudo o que se abrange com a vista. A situação do hori zonte não é invariavelmente fixa. Quando depois de uma grave febre tifóide eu dei o meu primeiro passeio fora de casa, o horizonte pendia como uma colgadura varie gada a uns vinte metros de distância, sobre a qual tudo o que eu via se delineava. Para além de vinte metros não havia quaisquer objectos mais próximos ou objectos mais afastados, mas só objectos maiores ou menores. A lente do nosso olho (o cristalino) tem a mesma função que a de uma câmara fotográfica: a de projectar nitidamente na retina, que corresponde à placa fotográ fica, os objectos situados em frente dos nossos olhos. A lente do olho humano é elástica e pode, pela acção de músculos próprios a ela ligados, variar mais ou menos de curvatura (o que corresponde à focagem da lente da câmara fotográfica). Em virtude da contracção dos músculos do cristalino manifestam-se sinais de orientação no sentido de trás para diante do olho. Quando esses músculos, relaxan- do-se, se alongam pela acção da elasticidade da lente, os sinais dados indicam o sentido de diante para trás. Quando os músculos estão completamente relaxa dos, o olho está acomodado para a distância desde dez metros até ao infinito. Dentro de um círculo de dez metros, as coisas no_ nosso mundo-próprio, em virtude da acção dos movimen: tõs~dõs músculos do cristalino, apresentam-se-nos como próximas ou afastadas. Para além desse .círculo dá-se, naturalmente, apenas um aumento ou diminuição do tama nho dos objectos. Nas crianças de peito o espaço visual termina àquela distância, limitado por um horizonte que tudo abrange. Só depois, a pouco e pouco, começamos a aprender, à custa de sinais-de-distância, a alargar cada vez mais o nosso horizonte, até que, ainda gradualmente com o nosso desenvolvimento, este limita o espaço visual [57] a uma distância de seis a oito quilómetros, em que aquele começa. A diferença entre o espaço visual de uma criança e o de um adulto eWá figurada na fig. 12, que reproduz grafi camente uma experiência comunicada por Helmholtz (1). Relata ele que, ainda pequeno, ao passar pela igreja da guarnição de Potsdam, notara na galeria da torre daquela alguns operários. Pediu então a sua mãe que lhe fosse buscar um daqueles bonequitos pequenos. A igreja e os operários já estavam contidos no seu horizonte, e por isso não estavam afastados, eram apenas pequenos. Tinha pois toda a razão para admitir que sua mãe podia, com os seus braços compridos, tirar os bonecos da galeria. Ele não sabia que no mundo-próprio de sua mãe a igreja tinha dimensões perfeitamente diferentes das que tinha no seu, e que na galeria o que havia era homens, não, pequenos, mas, afastados. Quanto aos animais, a situa ção do horizonte nos seus mundos-próprios é difícil de determinar, porque a maior parte das vezes não é fácil de experimentalmente verificar quando é que um objecto do ambiente, ao aproximar-se do sujeito não só passa a ser maior mas também a ficar aparentemente mais pró ximo. Estudos de captura de moscas domésticas mostram que só quando a nossa mão se aproxima até cerca de meio metro de distância esta foge voando. Por conse guinte, é de admitir que o horizonte da mosca deverá estar a esta distância aproximadamente. Mas outras experiências
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