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UEXKüLL, Jacob Von - Dos animais e dos homens

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JAKOB VON UEXKÜLL, NASCEU NA ESTÓNIA 
EM 1864; ESTUDOU ZOOLOGIA NA UNIVER­
SIDADE DE DORPART E FISIOLOGIA NA UNI­
V E R S ID A D E DE H EID ELBERG . OS SEUS 
-TRABALHOS SOBRE O «MUNDO-PRÓPRIO 
E MUNDO-INTERIQR DOS ANIMAIS» FORAM 
NÃO SÓ PIONEIROS, CRIANDO RAMO CIEN­
TÍFICO, MAS TAMBÉM, ATÉ HOJE, DEFINI­
TIVOS, JA QUE 0 ,áEU CONCEITO DE CICLO- 
-DE-FUNÇÃO JAMAIS FOI CONTESTADO OU 
U LTR A P A S S A D O . V IA JO U POR TO DO 
O MUNDO, çj^MO INVESTIGADOR E CONFE­
RENCISTA. pÒUTOROU-SE TAMBÉM EM MEDI­
CINA, PELjjí UNIVERSIDADE DE HEIDELBERG 
E FOI PROFESSOR NA DE HAMBURGO E NA 
DE KIEL, TENDO SIDO GALARDOADO DOUTOR 
HONORIS CAUSA POR OUTRAS UNIVERSI­
DADES EUROPEIAS
T r a d u ç ã o d e
A LBERTO CAN D EIA S e A N ÍBA L GARCIA PE R E IR A 
♦
Capa de 
A. PEDRO 
*
T ítu lo da edição original 
ST R E IFZ U G E DURCH D IE UM W ELTEN 
VON T IE R E N UND M EN SCH EN 
*
Reservados todos os direitos pela legislação em vigor 
*
Edição fe ita por acordo com a 
BOW OHLTS D EU TSCH E EN ZY K LO PÄ D IE
C O L E C Ç Ã O V I D A E C U L T U R A
J A K O B V O N U E X K Ü L L
Dos animais 
e dos homens
Digressões pelos seus próprios m undos 
D o u trin a do Significado
EDIÇÃO «LIVROS DO BRASIL» LISBOA 
Rua dos Cae t anos , 22
UM PRECURSOR DA NOVA BIOLOGIA
por A do lf Portmann
A obra de Jacob von Uexküll veio a ter resultados 
fecundos nas ideias e nas tarefas da biologia actual. As 
investigações dos nossos dias falam de mundos-próprios 
dos animais no sentido particular que Uexküll atribuiu a 
este conceito e apresentam ciclos-de-função do ser vivo 
exactamente como ele no-los tinha definido em dezenas 
de anos de labor intenso. Se hoje encaramos os fenóme­
nos da vida não só como causa de certos efeitos mas 
também como partes componentes de um conjunto 
preexistente devemo-lo principalmente ao seu trabalho.
A nova geração, que agora começa a trabalhar, já não 
teve oportunidade de o conhecer e quase não mantém 
com a sua obra relações directas. Uexküll morreu durante 
os anos negros do fim da Segunda Grande Guerra e, 
na confusão desse período, muitos investigadores se 
esqueceram de quanto ficaram devendo a esse homem 
que foi, simultaneamente, um grande biólogo e um génio 
de forte personalidade. Vamos acompanhar a elaboração 
e a influência desta obra notável, para entrarmos depois 
na própria natureza dos dois trabalhos mais recentes, 
reunidos neste volume.
[ 5 ]
A AUTONOMIA DO SER VIVO
O que Uexküll trouxe de novo ou simplesmente apro­
fundou, a partir\de investigações já feitas, teve o seu 
início na última década do século passado, nos anos que 
se seguem imediatamente aos sugestivos estudos de 
Hans Driesch. As experiências de Driesch com as pri­
meiras formas embrionárias do ouriço-do-mar tinham 
revelado particularidades de desenvolvimento que deixa­
vam transparecer nitidamente a autonomia do ser vivo e 
contnibuíram também de maneira definitiva para que, na 
busca de uma interpretação do ser vivo, se afirmasse, 
com nova força, a par da interpretação mecanista domi­
nante, a outra possibilidade: o vitalismo. Se, daí em 
diante, caem em desuso os termos mecanismo e vita­
lismo, por se ter reconhecido amplamente a existência 
de uma autonomia relativa, de uma independência, do 
ser vivo, também para este facto tão importante deu 
larga contribuição o trabalho criador de Jacob Uexküll.
A sua obra foi muito particularmente sugerida pela 
vida dos animais marinhos. E é mais uma vez a utilização 
genial deste campo das formas animais marinhas que 
lhe revela novos factos acerca da função dos músculos 
e nervos e das relações com o meio. Os movimentos dos 
espinhos do ouriço-do-mar, os movimentos das lapas ou 
da medusa, o estímulo da sombra que actua no ouriço- 
-do-mar, a maneira como os vermes ou os espatangói- 
des (1) se ocultam na areia, a observação da vida dos 
chocos e das lagostas — cada um destes estudos é um 
raio de luz que ilumina as densas trevas da vida marinha.
Já nestes primeiros trabalhos de fisiologia se dese­
nham os contornos de uma concepção de organismo que 
está em flagrante oposição com as ideias ainda larga­
mente aceitas no seu tempo, que vêem no organismo o
(’) Ouriços-do-mar de simetria bilateral.
[ 6]
resultado de processos ocasionais de transformação, dos 
quais a selecção natural manteve os favoráveis, permi­
tindo assim a evolução das formas vivas.
Desde o princípio, Uexküll dirige a atenção do obser­
vador para as propriedades supermecânicas da matéria 
viva, para o facto misterioso de que no organismo adulto 
se nos apresenta um todo organizado segundo um plano. 
Nós verificamos, impressionados e surpreendidos, que 
este plano já actua no óvulo e continua no desenvolvi­
mento individual deste. Uexküll já tinha mostrado há 
muito, em expressivas descrições, o que existe de 
extraordinário na matéria viva, no protoplasma. Esta 
necessidade de expor com clareza impeliu-o toda a sua 
vida para o género de comunicação mais capaz de atingir 
um largo círculo de pessoas interessadas no assunto. 
Tornou-se um mestre na exposição arguta e incisiva da 
sua concepção da natureza. Era-o na explanação oral e é-o 
também, com igual vigor e poder de sugestão, nos seus 
escritos. O nunca se ter integrado nas verdadeiras activi­
dades da ciência académica retardou, porventura, a 
expansão das suas ideias no campo espiritual da Univer­
sidade, mas permitiu, por outro lado, que tirássemos pro­
veito de muitos trabalhos seus, estimulantes e combati­
vos, que possivelmente seriam incompatíveis com a faina 
do ensino.
CICLO-DE-FUNÇÃO E MUNDO-PRÓPRIO
A concepção de ser vivo, de Uexküll, encontrou a sua 
integral explanação nas obras Um welt und Innenwelt der 
Tiere, 1921, e Theoretische Biologie. A primeira trata com 
mais pormenor da observação de factos particulares da 
vida das mais diversas formas animais; a segunda, mais 
abstracta, é uma tentativa para ajustar o estudo da vida 
animal, principalmente com a posição filosófica inspirada 
em Kant.
[ 7]
Uexküll tem o seu lugar histórico na solução da 
antiga querela travada à volta das concepções mecanista 
e v ita lis ta do ser vivo. Pela influência da época, da escola, 
e da natureza fisiológica do trabalho, está ligado de várias 
maneiras — e mais solidamente do que ele próprio era 
capaz de ver — à interpretação mecanista, para a qual, 
aliás, era solicitado pelo mais íntimo do seu ser. Verifica, 
assim, como eminente fisiólogo da vida animal inferior, 
as grandes possibilidades da simplificação mecanista, 
que concebe, por vezes/como mecânico cada um dos sis­
temas da vida animal. Ele considera como maquinismos 
as estruturas mais evoluídas. Assim, para ele, «a amiba 
é menos maquinismo que o cavalo» porque dispõe de 
menos estruturas adultas. Finalmente, Uexküll também 
se aproxima da interpretação mecanista quando isola a 
substância e a concebe como dirigida por uma forma de 
actividade não dimensional. São pois os «impulsos» — 
agentes não espaciais de ocorrências espaciais — que, 
por um processo morfogenético conferem à substância 
uma contextura mecânica. O protoplasma, como um todo, 
é sempre supermecânico.
Na luta que travou por esta concepção, Uexküll 
emparelha com Hans Driesch. Mas em breve se manifesta 
a originalidade das suas investigações, quando, no núcleo 
do seu trabalho, se começa a levantar, a cada passo, uma 
questão soberana: como deve então entender-se a rela­
ção entre o ser vivo e o meio quFõ~cTrcunHã?~A pãrtTF 
de 1910, começa também a expor, de maneira mais inci­
siva, as suas ideias fundamentais, com que ajudou a for­
mar, tão decididamente, a biologia dos tempos futuros. 
Duas dessas ideias directrizes vieram a tornar-se parti­
cularmente importantes.
Uexküll verificou uma correlação estrutural, já exis­
tente no óvulo, entre o corpo do animal e certos factores 
do ambiente, sejam estes de natureza inanimada, orga­
[ 8 ]
nismos ou até inimigos e chamou a essa correlação 
«ciclo-de-função». O ambiente tem notas ou sinais, noverdadeiro sentido destas palavras: estruturas que o 
animal assinala por meio dos órgãos sensoriais consti­
tuídos para esse efeito e para as quais se elaboram res­
postas e reacções especiais no organismo. Quanto às 
possibilidades de relação ,d e -, um organismo com o 
ambiente, elas estão já determinadas segundo qualidade 
e i ntens i dadé7 por estrüturas pre viámente~-or-qaaizadas..
Os diversos ciclos^de-função, no seu conjunto, deter­
minam uma secção de propriedades com significado na 
vida do animal. Elas são, no âmbito mais largo da natu­
reza, a parte que no caso respectivo forma o ambiente 
limitado e típico de uma espécie animal.
OS «PAPÉIS» DAS COISAS NO CENÁRIO DA VIDA;
O ESTUDO DO SEU SIGNIFICADO
Na vida animal, as coisas são portadoras de signi­
ficados, têm nela papéis a desempenhar. Ao referir-se 
a este facto potencial e real, Uexküll revelou à investi­
gação biológica um aspecto do ser vivo que, nas Ciências 
Naturais do século XIX, alguns tinham votado a inteiro 
esquecimento e outros simplesmente banido, como não 
científico, do domínio dos estudos biológicos.
Guiados por Uexküll, encontramos circunstâncias que 
não podem entrar, reduzidas a medidas e números, numa 
explicação matemática da natureza, circunstâncias que 
dizem respeito a um aspecto da vida que é complementar 
de todas as conclusões obtidas por métodos quantitati­
vos. O mundo das qualidades experimentadas, com as 
suas cores e formas, os seus sons e aromas, as suas 
dores e os seus prazeres, aparece então como o objecto 
primacial da investigação biológica. Com Uexküll, o
[9 ]
sujeito percipiente é tomado, pela primeira vez, como 
objecto de investigação positiva. Neste mundo comple­
mentar, tornh-se essencial o que no outro não passa de 
secundário; é\, pelo contrário, insignificante o que ali se 
tomava como decisivamente importante. Sucede assim, 
ser indiferente no mundo dos sujeitos se uma cor, como, 
por exemplo, o azul do céu, depende do carácter de uma 
combinação química ou se resultou de determinadas 
estruturas físicas. O importante, neste mundo, é que o 
azul se apresenta como fenómeno experimentado e que, 
como tal, desempenha no cenário da vida papéis diversos 
e rigorosamente determinados.
E com que sagacidade dirige Uexküll esta introdução 
do sujeito na biologia! Ele afirma que as coisas do 
ambiente possuem um tom ou «teor» prático, quer dizer, 
que lhes pertence, conforme o seu papel, uma qualidade 
qüe~nÕs"véFdàdèiramente não conhecemos no seu con­
teúdo" subjecfivõ mas- cuja actividade é possível discernir 
~através"dò comportamento do animal. Com o reíevo dado 
ã- esfã_tõnãTiFáção dos objectos inicia-se uma orientação 
na investigação que teve finalmente de reconhecer, como 
uma das últimas realidades biologicamente inteligíveis, 
o complemento e a correspondência interiores dessa 
tonalização: a disposição íntima.
A tonalização, atribuição dos teores, eis uma das 
primeiras verificações no caminho da subjectividade 
oculta. Uexküll remonta, muito conscientemente, ao 
grande biólogo Joh. Müller (1801-1858), cuja concepção 
da vida comentou mais tarde com desenvolvimento e cujo 
conceito de energia específica dos sentidos cedo se reve­
lou um poderoso estímulo no seu pensamento. «Qualquer 
que seja o meio por que se excite um olho» — escreve 
Müller-— «seja ele esfregado, puxado, comprimido, gal­
vanizado ou receba estímulos que de outros órgãos lhe 
são transmitidos por simpatia, em resultado de todas 
estas causas diferentes, como se se tratasse de causas
[ 1 0 ]
idênticas, meramente estimulantes, o nervo óptico é sem- 
pre afectado sob a forma de sensação luminosa, conside­
rando-se a srproprTõ^mergGTFiãdo na escuridão, quand<5 
em repouso.» Também cedo Uexküll acentuou o papel 
do «estado interior» como um dos factores decisivos 
para a tonalização das coisas do mundo-próprio. Limitou 
então o conceito da disposição interior às influências 
naturais no equipamento interno e define-o pela designa­
ção de «disposição química».
O MUNDO-PRÓPRIO E O HOMEM
A doutrina de Uexküll acerca do mundo-próprio, 
característico de cada espécie animal, veio a constituir 
uma parte fundamental da biologia moderna mas a exten­
são que o autor fez da sua doutrina até ao homem foi, 
desde o início, justamente contestada. Como a digressão 
aqui publicada conclui com uma aplicação pormenorizada 
desta doutrina ao homem, é necessário que nos detenha­
mos por um momento neste caso limite.
O que há de fundamental na teoria do mundo-próprio, 
de Uexküll, é que, segundo ela, este mundo-próprio tem 
para um gato, para um cavalo ou um macaco, a sua forma 
específica, não obstante as características comuns de 
mamíferos. Do mesmo modo, é também específico o 
mundo da gralha, o da galinha-d agua, o do falcão, ape­
sar das suas características comuns de aves. Trata-se 
de uma particularidade hereditária, tipicamente especí­
fica, invariável. Se no mundo do cão ou no do papagaio 
que habita connosco o mesmo quarto podem aparecer 
coisas do mundo do homem, elas transformam-se em 
coisas do papagaio ou do cão, com as suas tonalidades 
inteiramente próprias. Mas, para ilustrar o seu conceito 
de mundo-próprio, Uexküll também põe em relevo o 
mundo diferente em que, separadamente, se move cada
[ 11]
pessoa e mostra, com o exemplo da árvore, como a 
mesma coisa toma, consoante o género de vida da pes­
soa, tonalidades absolutamente diferentes. Aqui, escapa- 
-Ihe, no entanto, um pormenor: que todas essas maneiras 
diversas de ver o mundo fazem parte de um mundo 
comum à espécie, que é possível uma compreensão des­
ses vários mundos-próprios da mesma espécie, que é 
possível, enfim, existirem contrastes de interpretação.
Estas esferas de afinidade do mundo do homem, nas 
quais se incluem os mundos individuais com as suas 
peculiaridades — grandes peculiaridades como Uexküfl 
e nós próprios reconhecemos — , esta amplitude da possi­
bilidade fundamental de compreensão criam uma situação 
particular para o homem. Por muito acentuados que se 
considerem os contrastes dos mundos humanos, filhos 
da tradição ou das diferenças de factores hereditários, o 
certo é que todos se contêm na mesma esfera. Toda a 
poesia vive da representação dessas variadas maneiras 
de ver o mundo e das suas coincidências. Mas precisa­
mente a poesia assenta no princípio da última possibili­
dade de compreensão dos outros. A expressão «mundo- 
-próprio» afirma e acentua a separação de mundos 
específicos dos animais, como esferas particulares e, 
exactamente por isso, devemos excluir este conceito na 
caracterização dos contrastes de visão do mundo entre 
os homens. Todavia, o homem põe à antropologia filosó­
fica do nosso tempo um problema particularíssimo, que 
se avoluma ainda com a caracterização do nosso compor­
tamento como independente do mundo, em oposição à 
conduta das espécies animais, estritamente obrigadas ao 
mundo-próprio. Rejeitando os excessos do conceito de 
mundo-próprio, a biologia e a antropologia modernas 
defendem o que há de mais original na obra de Uexküll 
contra os seus impulsos temperamentais.
[ 12]
NA SENDA DO ESTUDO DO COMPORTAMENTO
A influência das ideias de Jacob Uexküll alarga-se 
ao estudo do comportamento nos nossos dias. A sua 
acção, embora velada, é tanto maior, quanto estimula, 
de maneira decisiva, o começo de uma nova orientação no 
campo da investigação alemã. O que O. Heinroth e 
K. Lorenz, o que H. Hediger e Frau Meyer-Holzapfel, entre 
outros, lograram descobrir de essencial durante a ter­
ceira década do século, pressupõe a fermentação das 
ideias de Uexküll, até onde elas se não encontram expres­
samente mencionadas. Uexküll não é o fundador do 
estudo do comportamento, produto colectivo de várias 
fontes. Vamos indicar mais uma vez, apenas algumas 
destas fontes, para mostrar o maior âmbito de ideias em 
que a obra de Uexküll exerceu influência de relevo.
Num trabalho notável, o americano Craig salienta, 
em 1918, a importância do estudo das coisas do mundo- 
-próprio, estudo que,por sua vez, faz intervir o ciclo-de- 
-função do animal. Designa o estado que conduz a deter­
minados fins por apetência, paralelamente ao que sucede 
no fenómeno elementar da nutrição e reconhece, assim, 
a validade de uma generalização que já era corrente na 
Antiguidade (em Santo Agostinho, por exemplo). A ape­
tência é um tipo de comportamento: corresponde-lhe um 
estado interior especial. Lembremo-nos de que também 
Uexküll já reconhecera distintamente este aspecto do 
fenómeno vital.
Pela mesma época, o ornitólogo inglês E. Howard 
(1922) provou que as aves, no período de incubação, rei­
vindicam e defendem uma porção de espaço, um territó­
rio — observação que então ocasionou uma imensidade 
de outras verificações, como, por exemplo, a descoberta 
da distância rigorosamente mensurável do voo e da resis­
tência, etc., devida a Hediger. A explicação de muitos 
destes factos estava confiada, desde os tempos primiti-
[ 13]
vos, aos caçadores familiarizados com a Natureza. A im­
portância dò «defeso» para as aves já foi posta em relevo 
por B. von Al(tum, na Alemanha, na sexta década do século 
passado. Assim, quando Howard é hoje apontado como o 
«descobridor» da posse territorial, isso significa que ele 
pôs o facto em evidência num momento particularmente 
«exacto» e que desempenhou papel preponderante no 
reconhecimento da sua importância.
Já em 1912, Julian Huxley observara a descrevera 
pormenorizadamente em Inglaterra, pela primeira vez, a 
cópula dos mergulhões, que ele depois interpretou com 
notável clareza. Abriu-se, assim, à investigação científica 
um vasto campo de trabalho. Desde tempos imemoriais 
que estes factos se tinham observado repetidas vezes. 
Desde os tempos primitivos que o homem observava a 
cópula do galo e outros fenómenos semelhantes. Mas a 
consideração conscienciosa da sua significação e a clara 
ordenação de conceitos que agora se apresentava tiveram 
importância decisiva. O. Heinroth actuou no mesmo sen­
tido mas a contribuição de Huxley quase não é citada 
por ele.
Por volta de 1920, Thorleif Schjelderup-Ebbe começou 
a estudar em Greifswald a hierarquia social num pátio de 
criação de aves. Mostrou então que um grupo qualquer 
de aves de criação se encontra solidamente organizado; 
que os vários indivíduos se dispõem numa hierarquia só 
deles próprios dependente e que esta hierarquia é muito 
complicada e variável, isto é, depende da condição dos 
indivíduos. Como consequência desta primeira investi­
gação, surgiu grande número de estudos sobre a ordem 
de precedência observada no exercício das actividades 
vitais dos animais de várias espécies. Muitos biólogos 
ficaram tão surpreendidos com a novidade que foram 
levados à generalização precipitada que via nessa hierar­
quia uma lei geral. Só mais tarde se impôs uma observa­
ção dirigida em maior número de sentidos, a qual revelou
[ 14]
a existência de grupos de animais sem tal escala de cate­
gorias. Para a investigação biológica, estes trabalhos 
significam o início de uma revalorização das formas de 
vida animais que era tanto mais importante quanto mais 
profundamente a fatuidade da teoria mecanista menos­
prezara o animal.
Em 1899, o biólogo dinamarquês Mortensen intro­
duziu a marcação individual das aves por meio de anilhas. 
Desde então, inúmeras aves isoladas da multidão anó­
nima, por meio de anilhas numeradas, transformaram-se 
para nós, observadores humanos, em indivíduos e o 
número de aves marcadas é hoje tão extraordinário como 
o de conhecimentos que devemos a este método. Algu­
mas conclusões fundamentais dos nossos investigadores 
do comportamento animal assentam exactamente na mar­
cação do indivíduo isolado, pelo que a «história natural» 
geral e vaga de uma espécie pôde transformar-se na des­
crição fiel da vida do animal individualizado. Por isso, a 
marcação de animais de todos os grupos, do insecto ao 
morcego, se tornou um dos processos técnicos impor­
tantes da biologia e fonte de perspectivas inesperadas.
Além destas, outras tendências de valia se podiam 
ainda mencionar, se o nosso intento não fora apenas 
apontar que, das muitas tentativas, resulta, enfim, uma 
nova orientação investigadora. Uma destas fontes abriu 
a muitos investigadores o caminho de êxitos futuros e 
veio aumentar a possibilidade de aceitar novas concep­
ções: foi a doutrina de Uexküll, com os seus ramos fun­
damentais na apresentação dos ciclos-de-função e na do 
mundo-próprio.
A INVESTIGAÇÃO PROSSEGUE
A importância da obra de Uexküll reside principal­
mente na sua luta tenaz em favor da actual posição bio­
[151
lógica, que reconhece a particularidade da esfera da vida 
e a autonomia relativa do ser vivo. As suas contribuições 
foram dominadas pelo método fisiológico e pelo exame 
da natureza especial do ser vivo como objecto de investi­
gação. O desejo de se limitar aos métodos científicos 
levou-o à rejeição total de qualquer afirmação sobre o 
aspecto experimental do sujeito e, implicitamente, à 
renúncia a qualquer espécie de psicologia animal, que ele 
considerava situada para além do «biológico». O seu 
caminho para chegar à compreensão do animal era, por­
tanto, o estudo da harmonia entre a estrutura e o com­
portamento. Não esqueçamos que, exactamente no seu 
tempo, era particularmente vivo o clamor erguido a pro­
pósito do cavalo sábio e de outros cavalos calculadores 
e de cães que raciocinavam. A humanização do animal 
encontrava-se então no seu ponto culminante. Esta coin­
cidência temporal havia de fortalecer, no pensamento de 
Uexküll, todas as tendências contrárias e, na verdade, 
o seu temperamento combativo fê-lo, às vezes, parecer 
quase mecanista, muito mais singularmente do que seria 
de esperar da sua concepção da natureza, que reconhecia 
sempre em acção qualquer coisa de supernatural. A mis­
são do biólogo parecia-lhe residir na busca de estruturas 
que, por exemplo, no sistema nervoso central, determi­
navam a génese do mundo-prório e o comportamento do 
animal. Tão onge foram os seus escrúpulos perante 
"os resultados de carácter experimental que se, na ver­
dade, por um lado, classificava a «tonalidade» das coisas 
do mundo-próprio como descritível, como parte do mundo 
exterior, por outro, nunca deixa de mencionar, cautelosa­
mente, a, correspondente «disposição» complementar e, 
como já vimos, acentua bem o que nela há de «químico», 
a natureza material do seu condicionamento, não fossem 
torná-lo suspeito de impulsos românticos.
A evolução mais significativa, a partir de Uexküll é 
o aprofundamento dos estudos da autonomia do ser vivo
[16]
pela verificação mais intensa de todas as provas que apre­
sentam o organismo como centro especial de actividade 
e simultaneamente de um viver que, embora velada- 
mente, é aparentado com o que melhor conhecemos do 
nosso próprio ser mais íntimo. É principalmente pelo 
estudo desta «intimidade», desta maneira de ser peculiar 
do ser vivo e do animal em especial que aquilo que é 
observável de fora recebe a sua mais ampla interpreta­
ção. Tomar, de vez, o sujeito para objecto da investigação 
biológica, eis o passo para o desconhecido que a obra de 
Uexküll principalmente preparou.
O estudo da presença desta subjectividade é_a_carac- 
terístÍcã~dõ~trãbalho biológico dos nossos dias. Mas tão 
peculiares como isso são as consequências metodológi­
cas desta atitude. Em vez de introduzirmos no jogo de 
factores do fenómeno vital um agente misterioso, que 
interviesse em toda a parte como factor explicativo, nós 
vemos nesta subjectividade uma das incógnitas que o 
naturalista procura abordar, objectivamente, pelo estudo 
das manifestações. Pela observação rigorosa de todas as 
manifestações do animal, de todas as suas respostas, 
nós avançamos cautelosamente para resultados que des­
crevem a descoberta e ocupação de espaço ou compreen­
dem a relação com o ritmo do dia e da noite e com o 
das estações do ano, exactamente como também des­
cobrimos nas hierarquias da vida social a subjectividade 
de um sujeito em acção. A grandelista de «manifesta­
ções» que nos dão testemunho da subjectividade é uma 
das mais significativas realizações da biologia contem­
porânea.
O estudo do comportamento já hoje não se desvia 
dos problemas que o duplo aspecto do ser vivo nos apre­
senta: aborda-os por vários caminhos e cautelosamente. 
Aprendemos a distinguir, no estabelecimento de correla­
ções, o que é inato, hereditário, do que tem de ser 
aprendido e transformado em hábito. Aprendemos a dis­
2 - A . HOMENS [17]
cernir as estruturas transmitidas, relativamente rígidas, 
das outras, mais flexíveis^ Sabemos como estímulos 
iguais podem actuar de maneira tão diversa-s- reconhe­
cemos assirrTã variacãa..dQS_estados interiores. Por sua 
vez, nestes estados, nestas «disposições», entramos em 
contacto com um último elemento, para além do qual a 
investigação não passa, por enquanto. Assim, numa época 
em que a própria filosofia descobriu — ou melhor, redes- 
cobriu o papel fecundo da adaptabilidade perfeita (Befin- 
d iichke it) os que se dedicavam ao estudo do comporta* 
mento chegaram, por caminhos absolutamente diferentes, 
a este princípio fundamental da conduta e, desse modo, 
a uma manifestação objectiva da maneira de ser, des­
conhecida para nós, como experiência, da subjectividade 
dos animais. O estudo dos estados interiores e do com­
portamento eliminou um grave inconveniente: superou a 
distinção entre corpo e alma como substâncias distintas 
qüè, ~ jüritas, constituem o ser vivo — separação que 
rãcfica em tradições antiquíssimas da nossa vida repre­
sentativa, da nossa imaginação. A biologia contemporâ­
nea não estuda separadamente.-o. .aspectõTcofpõfèo ou 
somático, por um lado, e o espiritual ou psíquico, por 
outro. Pelo estüdo~cfõ’ cõmportamento, nós procuramos 
■fioje surpreender, na sua pureza, a realidade desconhe­
cida e, antes de qualquer divisão mais ou menos estabe­
lecida, conhecê-la na sua actividade, como a unidade que 
originalmente nos é dada. Do mesmo modo, a nova ciên­
cia do homem — a antropologia — também já começa a 
dirigir-se para o comportamento do homem, para a par­
ticularidade dos seus modos de relação e não reconhece, 
neste campo, discutíveis esquematizações de «compo­
nentes» do género corpo-alma-espírito ou «bios» e 
«logos», como partes do ser vivo.
Esta orientação tem uma longa história que se não 
pode expor aqui. Ela ultrapassa também a posição atin­
gida pela obra de Uexküll que preparou este passo em
[ 18]
frente ao considerar com clareza inexcedível e graças a 
um trabalho insano, não só a actividade do centro vital 
como a de um_suje[to criador de mundos mas também o 
entrelaçamento intrínseco do ser vivo com partes do seu 
ambiente.
O PROBLEMA DA ORGANIZAÇÃO 
SEGUNDO UM PLANO
Ainda noutro sentido o estudo da vida, no nosso 
tempo, está prestes a transpor a posição em que o pen­
samento de Uexküll se deteve há cerca de vinte anos. 
Trata-se da superação do conceito de «planeamento» do 
ser vivo.
Uexküll mostrou incansavelmente, em repetidos 
exemplos, que o plano de construção de .um„Pxq3ílÍsmQ 
não está situadorFõra deíêTcomo o de uma máquina. A sua 
obra d^crêvê7cõm~grande minúcia, como os organismos 
se constroem por si próprios, como os estádios de desen­
volvimento se sucedem, ordenados como numa melodia 
e como o plano de amadurecimento da forma funcio­
nal é um processo de autoconstrução e auto-requlação. 
Mas o «planeamento», operante, por si mesmo, no orga­
nismo, acabou por se tomar,~nãsua exposição, um factor 
particular, uma forma de actividade do género superme- 
cânico e inespacial. Outra não era a posição do vitalismo/ 
que, na verdade, tinha superado a estreiteza do meca­
nismo mas que, ao fazê-lo, tinha também ultrapassado, 
na sua ânsia de esclarecimento completo, os limites da 
possibilidade científica.
A panaceia de Driesch era o princípio orgânico indi­
vidual da enteléquia; a solução de Uexkiill era a -ru-gani-
zação segundo um plano que, à luz..da._.a.QSÍcãQ_.„tomada
pelo autor, passava a ser factor explicativo, uma das 
qualidades Têconhecidas no ser vivo.
[ 19]
A biologia admite hoje esta dificuldade. Como 
W. Szilasi afirma radicalmente numa importante exposi­
ção, o «plano» do comportamento animal formula, nem 
sempre com felicidade, esta questão: «Como é que, por 
exemplo, a abelha é exactamente uma abelha ou como é 
que o animal é, em suma, um animal» (C iência e Filoso­
fia, Zurique/Nova Iorque, 1945, pág. 72). Na afirmação de 
que determinada coisa é susceptível de plano, é «planeá- 
vel», atribui-se a essa «alguma coisa» uma qualidade, um 
predicado, o que sugere a ideia de que, com isso, alguma 
coisa é esclarecida ou explicada. Na realidade, a expres­
são aponta o grande e obscuro enigma, exactamente 
aquilo que escapa à compreensão: o mesmo enigma que 
nós também designamos, sim, mas não explicamos, com 
a palavra «vida».
Vemos hoje mais claramente que não podemos ocul­
tar o mistério que envolve o problema do ser vivo com 
uma palavra que finge de predicado. Sentimos, de novo, 
o que há de obscuro na realidade, em todo o seu poder 
misterioso e procuramos descobrir, pela investigação 
cautelosa das propriedades reconhecíveis, o que é inves- 
tigável.
Assim, fala-se hoje menos de totalidade e de organi­
zação segundo um plano do que habitualmente se falava 
há vinte anos e por isso vamos pondo, a pouco e pouco, 
a descoberto o conjunto de factores, por meio de cuja 
acção uma coisa se nos apresenta como um todo ou pro­
curamos determinar a espécie de estrutura que sugeriu 
a existência de um plano. É uma ciência do ser vivo na 
sua evolução, ciência que não é uma mecânica, nem uma 
pneumática, para empregar uma expressão de E. Heuss 
(1939). A nova noção de realidade explica também a ati­
tude perante o problema da organização segundo um 
plano.
O próprio Uexküll diz algures: «O Sol que propor­
ciona a dança de uma nuvem de mosquitos não_é_o nosso
[ 2 0 ]
sol mas um sol dos mosauitos que só existe graças aos 
olhos destes.» Nada porém, podemos dizer do sol dos 
mosquitos sem ter verifjcado^o plano de organização do 
mundo-próprio dos mosquitos (Teor. Biológ., pág. 233). 
E aqui se nos apresenta, com clareza, a organização 
segundo um plano como aquilo que é para nós: um enigma 
que se entrevê de uma para outra espécie animal e que, 
de cada vez, importa resolver.
O próprio Uexküll acentuou mais de uma vez ser a 
pesquisa deste plano a missão da biologia: «Todos os 
planos se enquadram num plano de organização extraor­
dinariamente vasto que, até agora, tem sido negado obsti­
nadamente. Por muito cómodo que isso fosse, já hoje, 
porém, não é admissível.» Com estas palavras termina a 
Biologia Teórica, de Jacob Uexküll. Elas apontam muito 
para além do horizonte que limita o campo de trabalho 
biológico e atestam a atitude do investigador que durante 
toda a sua vida pesquisou os modos de ordenação do 
mundo orgânico e cujo labor arreigou cada vez mais a 
sua convicção acerca das ordenações cósmicas. Os tra­
balhos reunidos neste volume também aludem, repetidas 
vezes, à concepção da Natureza que Uexküll representou. 
Essa concepção não se limita a ver nos fenómenos da 
natureza só os aspectos pesquisados mas também venera 
o segredo que se fecha em cada ser vivo à nossa volta.
[ 21]
DIGRESSÕES PELOS MUNDOS- 
-PRÓPRIOS DO HOMEM 
E DOS ANIM AIS
Por J. v. Uexküll e Georg Kríszat 
PR EFÁCIO
O presente livrinho não tem a pretensão de servir 
de guia de uma ciência nova. Limita-se, antes, a incluir 
o que podia chamar-se a descrição de um passeio por 
mundos desconhecidos. Estes mundos não são apenas 
desconhecidos, são também invisíveis: mais do que isso: 
o seu direito de existir é-lhes, em geral, contestado por 
muitos fisiólogos e zoólogos.
Esta bem curiosa atitude é, para quem conheça esses 
mundos, perfeitamente compreensível, pois que o cami­
nho que a eles conduz não é transitável para quem sofra 
de certos preconceitos capazes de obstruírem a porta 
que lhes dá acesso, tão impenetravelmente que nem um 
raio da luzesplendorosa que os inunda a pode atra­
vessar.
Quem se agarrar ao preconceito de que todos os 
seres vivos são apenas máquinas, perde toda a esperança
[ 23]
de vir jamais a lobrigar os seus mundos-próprios (’)■ Mas 
quem ainda não se ajuramentou na doutrina mecanista 
dos seres vivos, pode prosseguir nas suas especula­
ções. Todos os nossos dispositivos^e todos os nossos 
maquinismos não passam de meios auxiliares das acti­
vidades do hfltnem. E, efectivamente, há certos meios 
auxiliares de trabalho — os chamados instrum entos de 
trabalho — em que se incluem todos os complicados 
maquinismos que servem, nas nossas fábricas, para a 
laboração de matérias-primas, e ainda caminhos-de-ferro, 
automóveis, aviões... Mas há também meios auxiliares 
de controlo, a que podemos chamar instrumentos-indica- 
dores, como telescópios, óculos, microfones, aparelhos 
de rádio, etc.
De sorte que é, então, óbvio admitir que um animal 
não é mais do que um conjunto de instrumentos-de-traba- 
Iho e de instrumentos-indicadores que, pela intervenção 
de um dispositivo coordenador, constituem um todo, que, 
na realidade, não deixará de ser um maquinismo, ainda 
que adequado ao desempenho da função. É esta, de facto, 
a maneira de ver de todos os mecanistas teóricos, quer, 
até certo ponto, se inclinem mais no sentido de pensar 
num mecanismo rígido, quer no de um dinamismo plás­
tico. Os animais ficam, pois, taxados de meros objectos. 
Com o que se esquece que, desde logo, se pôs de parte 
o que é essencial, istò é, o suje ito, o qual se utiliza do 
instrumento auxiliar, com ele assinala e com ele actua.
A partir da concepção inadmissível de um instru-
('} O termo Umwelt corresponde em português a ambiente, 
mundo ambiente ou, com menos propriedade, meio ambiente. No 
sentido, porém, em que o autor o emprega, ele significa qualquer 
coisa que depende do ser vivo considerado, e resulta de uma como 
que selecção por este realizada, dentre todos os elementos do 
ambientè, em virtude da sua própria estrutura específica — o seu 
mundo-próprio.
[ 24]
mento simultaneamente de assinalamento e de acção, 
não se limitaram aqueles a fazer passar os órgãos dos 
sentidos e os órgãos de movimento por peças de uma 
máquina (sem atenderem ao seu assinalar e actuar) mas 
foram mais longe, mecanizaram o homem, reduziram o 
homem a uma máquina. Segundo os beaviouristas, as 
nossas sensações e a nossa vontade são meras aparên­
cias, no melhor dos casos vêm a valer como acidentes 
incómodos.
Quem, porém, ainda considera que os nossos órgãos 
dos sentidos servem para o nosso assinalar e os nossos 
órgãos de movimento servem para o nosso actuar, verá 
nos animais, não apenas um sistema mecânico, mas dis­
cernirá também o maquinista que se aloja nos órgãos, 
como nós próprios no nosso corpo.
Então considerará os animais, não já como meros 
objectos, mas como sujeitos, cuja actividade essencial 
consiste em assinalar e actuar.
Com o fazê-lo abre-se já a porta que conduz aos mun­
dos-próprios animais, porque tudo aquilo que um sujeito 
assinala passa a ser o seu mundo-de-percepção, e o que 
ele realiza, o seu mundo-de-acção. Mundo-de-percepção e 
mundo-de-acção constituem uma unidade íntegra — o 
mundo-próprio do sujeito,
Os mundos-próprios, que são tantos quantos os pró­
prios animais, oferecem a qualquer admirador da Natu­
reza novas terras, tão ricas e tão belas que compensam 
bem uma excursão através delas, mesmo quando elas se 
não patenteiem aos nossos olhos materiais mas somente 
à nossa visão espiritual.
As melhores condições para iniciar tal digressão são 
um dia de Verão e um prado coberto de flores, ressoante 
de zumbidos de coleópteros e pululante de adejares de 
borboletas; então construiremos para cada animal dos 
que povoam o prado, uma como que bola de sabão, que
[25]
represente o seu mundo-próprio, preenchida por todos 
aqueles sinais^ característicos que são acessíveis ao 
sujeito. Logo qi^e entremos numa dessas bolas de sabão 
transfigura-se completamente o mundo ambiente (') que 
se abria em volta do sujeito. Muitas qualidades do varie­
gado prado desaparecem inteiramente, outras perdem as 
suas propriedades gerais; surgem novas correlações. Em 
cada bola de sabão passa a existir um mundo novo.
Para atravessar connosco esses mundos convidamos 
o leitor a acompanhar a descrição que se segue. Os auto­
res, ao prepararem este livro, distribuíram as suas tare­
fas; de modo que um (Uexküll) encarregou-se do texto, e 
o outro (Kriszat), do material das gravuras.
Esperamos dar, com esta descrição de viagem, um 
decisivo passo em frente, e assim convencer muitos leito­
res de que existem, com efeito, mundos-próprios, e que 
com isso se abre um novo e inesgotável campo de investi­
gações. Simultaneamente, este livro testemunhará o espí­
rito de investigação colectiva dos activos colaboradores 
do Instituto para o Estudo do Mundo-Próprio, em Ham­
burgo (2).
Agradecemos em particular aoJD r_ K. Lorenz, que 
enviando-nos as gravuras que ilustram as suas fecundas 
experiências sobre gralhas e estorninhos favoreceu o 
nosso trabalho. O Prof. Eggers cedeu-nos amavelmente 
um relato pormenorizado dos seus estudos sobre borbo-
(’) Umgebung, em alemão, na acepção de tudo que em volta 
do sujeito se desenrola, independentemente de o impressionar ou 
o estimular, ou não.
H Comp. Friedrich Brock: Verzeichnis der Schriften J. v. 
Uexküll und der aus dem Ins titu t fu r Umweltíorschung zu Hamburg 
hervorgegangenen Arbeiten. Sudhoffs Archiv fur Gesch. d. Medizin 
und d. Naturwiss. Bd, 27, H. 3-4, 1934. J. A. Barth, Leipzig. (Nota da 
ed. alemã.)
[26]
letas nocturnas. O conhecido aguarelista Franz Hutk esbo­
çou para nosso uso os desenhos do quarto e do carvalho. 
A todos deixamos aqui expressos os nossos cordiais agra­
decimentos.
Hamburgo, Dezembro, 1933.
J. v. Uexküll
[27]
IN T R O D U Ç Ã O
Não há, certamente, camponês que tendo batido com 
o seu cão matos e bosques não tenha travado conheci­
mento com um animalzinho que, suspenso dos ramos dos 
arbustos, espia a sua vítima, homem ou bicho, para sobre
Fig. 1 — Carraça
ela se precipitar e se saciar com o seu sangue, inchando, 
das dimensões de, o máximo, dois milímetros, até ao 
volume de uma ervilha (fig. I).
A carraça, ou carrapato, nomes por que se designa
[ 29]
esse animal,^ não é realmente perigosa, mas nem por isso 
deixa de ser um hóspede incómodo dos mamíferos, e 
mesmo do homem. O seu ciclo biológico foi de tal modo 
esclarecido pô r trabalhos recentes que dele podemos 
traçar um relato exacto.
Do ovo sai um pequeno ser ainda não completamente 
desenvolvido, a que faltam um par de patas e os órgãos 
da reprodução. Nesta fase já pode atacar animais de tem­
peratura variável, como, por exemplo, lagartos, que espera 
emboscado na extremidade da haste de uma erva. Depois 
de sofrer algumas mudas, os órgãos que lhe faltavam 
acabam por se desenvolver, passando então a caçar ani­
mais de temperatura constante. Já fecundada, a fêmea 
sobe, com as suas já então oito patas, até à parte supe­
rior de um arbusto que lhe agrade, para, de altura conve­
niente, se deixar cair sobre pequenos mamíferos furtivos 
que passem ao seu alcance, ou arrastar por animais de 
maior porte.
O caminho para a sua torre de vigia descobre-o o ani- 
malzinho, que é desprovido de olhos, valendo-se do seu 
tegumento, sensível à luz. A aproximação da vítima é 
revelada ao salteador, que além de cego é também surdo, 
pelo seu sentido do olfacto. As emanações de ácido 
butírico que provêm das glândulas da pele dos mamífe­
ros servem para a carraça de sinal de advertência para 
abandonar o seu posto de vigia e lançar-se sobre a presa. 
Se vem a cair sobre qualquer animal de temperatura cons­
tante, que um apurado sentido térmico lhe denunciou — 
então atingiu a sua vítima, e só falta agora, ainda com o 
auxílio do seu sentido do tacto, encontrar uma zona tanto 
quanto possível livre de pêlos, para se introduzir, até para 
trás da cabeça, nos tecidos cutâneos daquela; e põe-sea sugar lentamente o sangue quente que jorra.
Experiências feitas com membranas artificiais e com 
outros líquidos que não sangue mostraram que a carraça 
é desprovida de sentido do gosto, pois que depois de
[30]
perfurar a membrana absorve qualquer líquido, contanto 
que este esteja a temperatura conveniente.
Se a carraça cai sobre qualquer coisa fria, depois 
de o sinal de ácido butírico ter funcionado, então errou 
de hospedeiro, e tem de voltar a trepar para o seu posto 
de espia.
. O lauto festim de sangue que a carraça goza é, simul­
taneamente, o seu último repasto, pois que agora nada 
lhe resta senão deixar-se tombar no chão, fazer a postura 
e morrer.
Os breves acidentes da vida da carraça dão-nos uma 
adequada pedra-de-toque da solidez do ponto de vista bio­
lógico, comparado com o método fisiológico, como até 
aqui se tem aplicado. Para o fisiólógo, cada ser vivo é 
um objecto que se situa no seu mundo-próprio do 
homem. Examina-lhe os órgãos e o seu funcionamento 
total, como um técnico examinaria uma máquina que seja 
nova para ele. O biólogo, ao contrário, toma em conta 
que cada ser vivo é um sujeito, que vive num mundo 
que lhe é particular, de que ele constitui o centro; e, por 
isso, pode comparar-se, não a uma máquina, mas apenas 
ao maquinista que maneja a máquina.
Resumindo, a questão pode pôr-se assim: a carraça 
é uma máquina ou um maquinista? É um mero objecto ou 
um sujeito?
A fisiologia interpretará a carraça em termos de uma 
máquina e dirá: na carraça podem-se distinguir recepto­
res, isto é, órgãos dos sentidos, e efectores, isto é, e 
órgãos de acção, que, por meio de dispositivo coorde­
nador no sistema nervoso central, estão mutuamente rela­
cionados. O conjunto é uma máquina de que se não dis­
cerne o maquinista.
«É exactamente nisso que está o erro», objectará o 
biólogo. «Nenhuma das partes do corpo da carraça tem 
as características de umãlriáquina, ém to'da efa o~que~ 
actua são maquinistas.p
[ 31]
O fisiólogo continuará inabalável: «Na carraça, 
precisamente, verifica-se que todas as actividades assen­
tam exclusivamente em reflexos (1), e o arco-reflexo cons­
titui a base de cada máquina animal (fig. 2). Este começa 
por um receptor, isto é, um dispositivo que só admite 
certas influências exteriores, como ácido butírico e calor, 
mas rejeita tudo mais. E termina num músculo que põe
> — 0 - 0 - >f t £2. ttZ t
Fig. 2 — Arco-reflexo
em actividade um efector, o dispositivo locomotor, ou o 
dispositivo perfurador.
As células sensoriais, que libertam a excitação dos 
sentidos, e as células motoras, que libertam o impulso 
de movimento, funcionam apenas como peças conecto- 
ras que conduzem as ondas excitadoras, absolutamente 
materiais, que são originadas nos nervos, sob a acção do 
choque exterior. Todo o arco-reflexo trabalha com trans­
missão de movimento, como qualquer máquina. Nenhum 
factor subjectivo, como seja, um ou mais maquinistas, 
intervém no fenómeno, seja como for.»
«O que se passa é exactamente o contrário», repli-
(') Reflexo, originalmente, significa a captação e reenvio de 
um raio de luz, por um espelho. Aplicado aos seres vivos, o termo 
reflexo significa a captação de um estímulo exterior por um recep­
tor e a resposta provocada pelo estímulo do efector do ser vivo. 
No fenómeno o estímulo transforma-se em excitação nervosa, que 
tem de passar por várias estações para ir do receptor ao efector. 
O caminho assim seguido designa-se por arco-reflexo. (Nota da ed. 
alemã.)
[32]
cará o biólogo. «Do que se trata, principalmente, é de 
maquinistas e não de partes de máquinas. Porque todas 
e cada uma das células do arco-reflexo funcionam não 
com transmissão de movimento, mas com transporte de 
estímulo. Um estímulo, porém, deve ser notado por um 
sujeito e essencialmente não provém de um objecto.»
Qualquer parte de uma máquina, um badalo de um 
sino, por exemplo, trabalha apenas maquinalmente quando 
de determinada maneira é posto a oscilar. Quaisquer 
outras intervenções despertam nele respostas como o 
fariam em qualquer mero pedaço de metal. Ora, desde 
John Müller O , nós sabemos que um músculo se com­
porta de uma forma completamente diferente. A qualquer 
intervenção exterior ele responde sempre da mesma 
maneira: por uma contracção. Toda a intervenção exterior 
é por ele transformada no mesmo estímulo; a todas res­
ponde com o mesmo impulso que obriga o corpo da célula
à contracção.
John Müller demonstrou ainda que todas as acções 
exteriores que incidem nos nossos nervos visuais, sejam 
elas ondas do éter, compressões ou correntes eléctricas, 
produzem uma sensação visual, isto é, as nossas células 
sensoriais visuais respondem com o mesmo sinal-per- 
ceptivo.
Disto devemos concluir que cada célula viva é um 
maquinista, que assinala e actua, e por isso possui «assi­
nalamento» ou percepção e «activação^» ou impulso. As 
múltiplas marcas e acções do sujeito-animal total são, 
por consequência, atribuíveis ao trabalho de conjunto de 
pequenos maquinistas celulares, cada um dos quais 
somente decide sobre um sinal-perceptivo ou um sinal- 
-de-impulso.
Para que seja possível uma cooperação ordenada, o
(') Fundador da moderna fisiologia (1801-1858). (Nota da ed. 
alemã.)
3 - A. IIOMENS [ 33]
organismo se^ve-se das células do cérebro (que são tam­
bém maquinistas elementares), e agrupa metade delas 
como «células assinaladoras» ou células-de-percepção na 
parte do cére&ro receptora de estímulos, isto é, no 
«órgão-assinalador, ou de-percepção», em faixas mais ou 
menos extensas. Estas faixas correspondem a grupos de 
estímulos exteriores que entram como perguntas no 
sujeito-animal. A outra metade das células do cérebro 
utiliza-as o organismo como «células activadoras» ou 
células-de-impulso, e agrupa-as em faixas com que 
comanda os movimentos dos efectores, que comunicam 
ao mundo exterior as respostas do sujeito-animal.
As faixas das células-de-percepção constituem o 
«órgão-de-percepção» do cérebro, e as faixas das células- 
-de-impulso, o «órgão-de-impulso».
Se, pois, nos permitimos imaginar um órgão-de-per­
cepção como um centro de faixas de percepção alternadas 
e maquinistas celulares que são os portadores de percep­
ções específicas, no entanto elas conservam-se entida­
des espacialmente distintas. Os seus sinais-perceptivos 
permaneceriam também distintos, se não tivessem a pos­
sibilidade de se fundirem em novas unidades, fora do 
órgão-de-percepção, espacialmente fixado. Ora tal possi­
bilidade existe efectivamente. Os sinais-perceptivos de 
um grupo de células-de-percepção reúnem-se fora do 
órgão-de-percepção, na realidade fora do corpo de animal, 
em unidades que passam a ser atributos dos objectos 
situados fora do sujeito-animal. Este facto é bem conhe­
cido de todos. Todas asjiossas sensações humanas, que 
figuram os nossos assinalamentos, ou percepções, espe.- 
cíficos, convergem nos atributos dos objectos exteriores, 
que nos servem como sinais-característicos que utiliza­
mos. A sensação «azul» passa a ser a «cor azul» do céu; 
a sensação «verde» passa a ser a «cor verde» da relva, 
etc. No sinal-característico, ou carácter, azul, reconhece­
mos o céu, no carácter verde reconhecemos a relva.
[34]
Outro tanto, exactamente, se passa no órgão-de- 
-impulso. Nele as células-de-impulso desempenham o 
papel de maquinistas elementares, que, neste caso, con­
soante as suas actividades, ou impulsos, se ordenam em 
grupos bem articulados. Também aqui existe a possibili­
dade de os impulsos individualizados se concentrarem em 
unidades que actuam sobre os músculos, a elas subordi­
nados, como impulsos encadeados ou melodias de impul­
sos, ritmicamente articulados. Depois do que os efectores 
postos em acção pelos músculos imprimem aos objectos 
situados fora do sujeito a sua realidade.
A _marca-de-acção que os efectores imprimem ao 
objecto é directamente reconhecível — como a ferida que 
o ferrão da carraça produz na pele do mamífero por ela 
atacado. Mas, primeiro, a difícil descoberta dos sinaiscaracterísticos do ácido butírico e do calor completou o 
quadro da carraça laboriosa no seu mundo-próprio.
Em sentido figiiradfl.,.p_ode. dizer-aeque cada sujeito- 
-animal apreende o seu obieclQ-com-as_duas hastes de 
urna_tenaz — uma haste de perceber out ra de impulsio­
nar. Com uma confere-lhe, um atributo, com a_ontra. uma 
marca-de-acção. Por este meio certas propriedades do 
objecto passam a ser portadoras de sinal-caracterís­
tico, certas outras, de marca-de-acção. Como todas as 
propriedades de um objecto estão ligadas umas às outras 
pela estrutura deste, as atingidas pelo sinal-de-impulso 
devem exercer no objecto a sua influência sóbre as por­
tadoras de sinal-característico e também actuar sobre 
estas modificando-as, o que resumidamente melhor se 
exprime dizendo: a marca-de-acção cancela o sinal-carac- 
terístico.
O número e a ordenação das células-de-percepção 
que por meio dos seus sinais-perceptivos assinalam os 
objectos do seu mundo-próprio com sinais-característicos 
e o número e ordenação das células-de-impulso que por 
meio dos seus sinais-de-impulso dão aos mesmos objec-
[ 35]
tos marcas-de-acção são, principalmente, e a par da 
selecção de estímulos que os receptores realizam e da 
ordenação dos músculos que permite aos efectores mani­
festarem-se, decisivos no desenrolar de cada forma de 
comportamento de todos os sujeitos animais.
O objecto, somente no que respeita ao comporta­
mento, é como se devesse possuir as propriedades neces­
sárias, que por um lado pudessem servir como portado­
ras de sinais-característicos, e por outro de portadoras
Mundo de Percepção
órgão de Percepfio
Órgão de impulso
Receptor
Portador de sinal característico 
Portador de marca de acção 
Efector
Mundo de acção 
Fig. 3 — Ciclo-de-Função
de marcas-de-acção que devessem estar em associação 
por ajustamento mútuo.
As relações de sujeito com objecto jsstão ilustradas 
no ésquemã~gõ~ciclo-de-funcão ffiq. 3). Ele mostra corrio 
sujeito e objecto se ajustam reciprocamente e constituem 
um todo que obedece a um plano. Se, além disso, se supõe 
que um sujeito se liga a um ou vários objectos por vários 
ciclos-de-função, fica-se, então, fazendo uma ideia do 
conceito fundamental da doutrina do mundo-próprio, a 
saber: todos os sujeitos animais, os mais simples como 
os mais complexos, estão ajustados com a mesma per­
[36]
feição aos seus mundos-próprios. Aos primeiros corres­
pondem mundos-próprios simples, aos segundos, mundos- 
-próprios complexos.
E agora situemos no esquema do ciclo-de-função a 
carraça como sujeito e o mamífero como objecto. Verifi­
ca-se imediatamente que decorrem segundo um plano 
três ciclos-de-função, e uns a seguir aos outros. As glân­
dulas cutâneas do mamífero constituem o portador de 
sinal característico do primeiro ciclo, pois o estímulo 
ácido butírico liberta no órgão-de-percepção sinais-per- 
ceptivos, específicos, que são transportados para a peri­
feria como carácter olfactivo. Os fenómenos que se pas­
sam no órgão-da-percepção provocam por indução (em 
que tal consiste, ignoramo-lo) no órgão-de-impulso impul­
sos correspondentes, que produzem o movimento dos 
membros locomotores e a queda do animal. A carraça 
ao cair confere aos pêlos do mamífero a marca-de-acção 
do choque, que então, por seu turno, liberta um carácter 
táctil pelo que o carácter olfactivo do ácido butírico é 
cancelado. O novo carácter provoca um movimento de 
vaguear, até que na primeira zona sem pêlos é remido 
pelo carácter calor, e aí começa o trabalho de perfu­
ração.
Sem dúvida trata-se aqui de três reflexos que se vão 
anulando sucessivamente e são sempre desencadeados 
por acções físico-químicas objectivamente determináveis. 
Mas quem se contente com esta verificação e julgue ter 
com ela resolvido a questão, mostra apenas que não 
alcançou o verdadeiro problema. Não é o estímulo quí­
mico do ácido butírico que se debate, nem tão-pouco o 
estímulo mecânico (desencadeado pelos pêlos), nem 
ainda o estímulo térmico da pele, mas apenas o facto 
de saber £orquê, entre as centenas de. acções que resul- 
tam_das propriedades do corpo do mamífero, só três se 
tornam portadoras de sinais característicos relativamente 
à carraça, e porquê essas três e não outras.
[37]
Não se trata de qualquer reciprocidade de forças 
entre dois objectos, mas sim das correlações entre um 
sujeito vivo e o\seu objecto, e estas manifestam-se num 
plano inteiramente diferente, a saber entre as percep­
ções do sujeito e o estímulo do objecto.
A carraça está suspensa, imóvel, da extremidade de 
um ramo numa clareira. Pela sua situação oferece-se-lhe 
a oportunidade de cair sobre um mamífero que por ali 
passe. De todo o ambiente não incide sobre ela nenhum 
estímulo. Então, aproxima-se um mamífero, de cujo san­
gue ela necessita para o desenvolvimento da sua prole.
E agora qualquer coisa de bem maravilhoso se passa: 
de todas as acções provenientes do corpo do mamífero 
só três passam a constituir estímulos e, essas, em 
sequência bem determinada. Do vasto mundo que rodeia 
a carraça fulguram três estímulos, como sinais luminosos 
dentre as trevas, e servem à carraça de guias, que ela 
confiadamente segue até atingir o seu objectivo. Para 
tal ser possível as carraças são dotadas, além do seu 
corpo com os seus receptores e efectores, de três sinais- 
-perceptivos que pode utilizar como três sinais caracte­
rísticos. E é por meio destes que à carraça o fluir do seu 
comportamento é tão determinadamente prescrito que 
ela só pode realizar actos perfeitamente determinados.
Todo o opulento mundo ambiente que rodeia a car­
raça se contrai e se transforma num quadrõ~me"squinh5 
que essencialmente consiste ainda em três sinais carac- 
teríitlcõs~êlrês marcas-dF-ãQção^rã-seu-muncio-própxJo. 
A indigência desse mundo-próprio ajusta-se, porém, 
estreitamente à segurança do comportamento, e segu­
rança vale mais que riqueza. Do exemplo da carraça pode 
deduzir-se o que é fundamental na estrutura dos mundos- 
-próprios dos diferentes seres, e é válido para todos os 
animais. Mas a carraça possui uma faculdade muito notá­
[ 38]
vel, que nos desvenda uma perspectiva muito mais vasta 
dos mundos-próprios.
É imediatamente evidente que a inesperada fortuna 
da passagem de um mamífero por sob o ramo sobre que 
a carraça se encontra é muito rara. Este inconveniente 
nem pelo grande número de carraças que se emboscam 
nos arbustos é suficientemente compensado para asse­
gurar a subsistência da espécie. A faculdade de a carraça 
poder viver muito tempo sem se alimentar, aumenta as 
probabilidades de vir a passar uma presa ao seu alcance. 
Essa faculdade possui-a a carraça em grau invulgarmente 
elevado. No Instituto Zoológico de Rostock conserva­
ram-se vivas carraças que chegaram a jejuar durante 
dezoito anos (1). Isso a nós, homens, ser-nos-ia impossí­
vel. O tempo no nosso mundo-humano é constituído por 
uma série de momèntos curtrssmTõí^^injrante os quais 
o mundo não manifesta qualquer mudança._ Durgiile- um 
momentãà iaundo xions.erva;se.invarlável. O momento do
(') A carraça está, sob todos os pontos de vista, organizada 
para resistir a um longo período de jejum. As células seminais que 
a fêmea recebeu e conserva dentro de si durante o período de 
espera estão contidas dentro de cápsulas, até o sangue do mamí­
fero chegar ao estômago da carraça. Quando isso se dá elas são 
postas em liberdade e fecundam os óvulos que esperavam nos 
ovários. Em contraste com a adaptação perfeita da carraça ao seu 
objecto-presa, que ela acaba por encontrar, está a fraquíssima pro­
babilidade de que tal suceda, mesmo apesar do longo tempo de 
espera possível. Bodenheimer tem perfeitamente razão quando fala 
de um péssimo, isto é, de um mundo reconhecidamente desfavo­
rável em que vive a maioria dos anit|hais. Somente, este mundo não 
é o mundo-próprio de cada um delés, mas o mundo ambiente de 
todos. Mundo-próprio óptimo, isto é, reconhecidamente favorável, e 
mundo ambiente péssimo, pode considerar-se a regra geral.Porque 
sucede sempre deverem tombar muitos indivíduos para que a espé­
cie subsista. Se o mundo ambiente não fosse, para certa espécie, 
péssimo, então esta, devido ao seu mundo-próprio, óptimo, podia 
conquistar a supromacla sobro todas as outras. (Noto do autor.)
[ 39]
homem é de 1/18 segundos Q . Veremos adiante que a 
duração do momento varia com os diferentes animais, 
mas seja qual for o valor que queiramos estabelecer para 
o caso da carraça, a possibilidade de suportar um mundo- 
-próprio invariável durante dezoito anos está fora do 
alcance de todas as probabilidades. Admitiremos, pois, 
que a carraça durante o seu período de espera se encon­
tra como que num estado de letargia, que também em 
nós interrompe o tempo por horas. Somente, o tempo no 
mundo-próprio da carraça pára, durante o seu período de 
espera, não por horas apenas, mas por vários anos, e ela 
volta à actividade quando o sinal de aviso «ácido butírico» 
a desperta para a nova fase de actividade.
Que ganhámos com esta noção? Alguma coisa muito 
significativa. O tempo, que serve de moldura a todo o 
acontecer, apresenta-se como a única constante objectiva 
perante a variada mudança do seu conteúdo, e agora 
vemos que o sujeito controla o tempo do seu mundo-pró- 
prio. Ao passo que até agora dizíamos: sem tempo não 
pode existir nenhum sujeito vivente, devemos agora 
dizer: sem um sujeito vivente não pode existir qualquer 
tempo.
No próximo capítulo veremos que outro tanto sucede 
com o espaço: sem um sujeito vivente não pode existir 
nem qualquer espaço nem qualquer tempo. Com isto 
encontrou a biologia unidade definitiva na doutrina de
{') Demonstra-o o cinema. Na passagem de um filme, os qua­
dros devem suCeder-se e deter-se alternadamente. Para que apare­
çam com perfeita nitidez, as exposições instantâneas e distintas 
devem ser ocultadas por um anteparo. A ocultação produzida, ver­
dadeiramente passa despercebida, se entre a ocultação e a exposi­
ção medear um intervalo de tempo de 1/18 segundos. Se esse 
tempo fosse mais longo resultaria uma tremulação insuportável. 
(Nota do autor.)
[40]
Kant, unidade que ela aproveitará no aspecto científico- 
-natural da doutrina dos mundos-próprios, ao acentuar-se 
o papel decisivo do sujeito.
1. OS ESPAÇOS DOS MUNDOS-PRÓPRIOS
Assim como um gastrónomo, do bolo só escolhe as 
passas, assim também a carraça, das coisas do seu 
ambiente só seleccionou o ácido butírico. Não nos inte­
ressa saber que sensação gustativa as passas desper­
tam no gastrónomo, mas apenas o facto de as passas se 
tornarem sinais-característicos do seu mundo-próprio, 
pois que, para ele, são dotadas de significado biológico 
especial; assim, também, não perguntamos como o ácido 
butírico cheira ou sabe à carraça, mas registamos apenas 
o facto de o ácido butírico ter passado a ser biologica­
mente significante como sinal-característico carraça.
Contentamo-nos com o admitir que no órgão-de-per- 
cepção da carraça devem existir células de percepção 
que manifestam os seus sinais-perceptivos, como o admi­
timos igualmente relativamente ao órgão assinalador do 
gastrónomo. A única diferença é que a percepção do 
ácido butírico passa a ser um sinal característico do seu 
mundo-próprio, ao passo que é a percepção das passas 
o que, no gastrónomo, passa a ser um sinal característico 
do seu.
O mundo-próprio do animal, que exactamente preten­
demos estudar, é apenas uma fracção do mundo ambiente 
que nós vemos desenrolar-se em volta do animal — e este 
mundo ambiente não é mais que o nosso mundo-próprio 
humano. O primeiro problema no estudo dos mundos- 
-próprios consiste em escolher, dentre os sinais carac­
terísticos do mundo que o rodeia, aqueles que são par­
ticulares ao animal e com eles construir o seu mundo- 
-próprio. O sinal característico «passas» deixa a carraça
[41]
perfeitamente indiferente, ao passo que o sinal caracte­
rístico ácido bgtírico desempenha no seu mundo-próprio 
um papel importante. No mundo-próprio do gastrónomo o 
que tem significado acentuado é, não o sinal caracterís­
tico ácido butírico mas o sinal característico «passas».
Cada sujeito fia as suas correlações como os fios 
de uma aranha, relativamente a determinadas proprie­
dades das coisas, e tece-as numa sólida teia que suporta 
a sua existência.
Quaisquer que possam ser as correlações entre o 
sujeitõ~e~os objectos do seu mundo ambiente elas ocor- 
r6[D„sempre exteriormente.ao sujeito em que temos de 
escolher os sinais característicos. Os sinais característi­
cos, ou qualidades, são, por isso, sempre de qualquer 
modo espacialmente ligados, e, põís que eles sVlibertãm 
uns aos outros numa certa ordem, são também ligados 
temporalmente.
Só por excessiva leviandade alimentamos a ilusão 
de as correlações do sujeito, outro que não nós, com as 
coisas do seu mundo-próprio existirem no mesmo espaço 
e no mesmo tempo que as que nos ligam às coisas do 
nosso próprio mundo humano. Esta ilusão é alimentada 
pela suposição da existência de um mundo único em que 
todos os seres vivos estão encerrados. Daí, a convicção 
geralmente aceite, de que deve haver um único espaço 
e um único tempo para todos os seres vivos. Só recen­
temente surgiram no espírito dos físicos dúvidas sobre 
a existência de um universo com um espaço válido para 
todos os seres. Que tal espaço não pode existir resulta 
já do facto de cada homem viver em três espaços que 
se penetram mutuamente, completando-se, mas que tam­
bém até certo ponto se contrapõem.
[42]
a) O espaçazd£.-axzeãe-
Quando, de olhos fechados, movemos livremente os 
nossos membros, estes movimentos, tanto em direcção 
como em extensão, são-nos exactamente conhecidos. 
Abrimos com as nossas mãos caminho num espaço a que 
damos o nome de âmbito dos nossos movimentos, ou, 
abreviadamente, espaço-de-acção.
Todos estes caminhos são por nós seguidos a peque­
nas passadas a que chamamos passos-de-orientação, por­
que a direcção de cada uma delas nos é rigorosamente 
conhecida mercê de uma sensação de orientação, ou 
sinal-de-orientação. E, na realidade, distinguimos seis 
orientações, que se opõem duas a duas: para a direita e 
para a esquerda, para cima e para baixo, para diante e 
para trás.
Têm-se feito estudos que provam ser de cerca de 
dois centímetros as passadas mais curtas que podemos 
dar, avaliadas pelo avanço do dedo indicador com o braço 
estendido. Estas passadas não dão, como se vê, uma 
medida exacta do espaço em que elas são seguidas. Cada 
um de nós pode fazer uma ideia aproximada desta inexac­
tidão, procurando levar ao contacto uma da outra, as pon­
tas dos dois indicadores das mãos. Verificaremos que 
a maior parte das vezes isso não se consegue e que 
aquelas passam à distância de dois centímetros uma 
da outra.
É, para nós, do mais alto significado o poder muito 
facilmente reter de memória o deslocamento uma vez 
seguido, o que nos permite escrever às escuras. Chama­
mos a esta capacidade «cinestesia», designação que 
nada de novo nos diz.
Ora, o espaço-de-acção não é meramente um espaço 
de movimento constituído por milhares de passadas-de- 
-orientação que se cruzam, mas possui um sistema de 
referência formado por planos perpendiculares entre si,
[43]
que definem o conhecido sistema de coordenadas, que 
serve de base a todas as determinações espaciais.
É de fundamentai importância que quem se ocupa do 
estudo do problema do espaço se compenetre deste facto. 
Que é tudo que há de mais simples. Basta movermo-nos 
para um e outro lado, com os olhos fechados e as palmas 
das mãos verticais e perpendiculares à testa, para, sem 
mais nada, podermos fixar o limite entre direita e 
esquerda. Este limite coincide aproximadamente com o 
plano mediano do corpo. Se nos deslocamos com as pal­
mas das mãos colocadas horizontalmente e à altura dos 
olhos, para cá e para lá, podemos analogamente determi­
nar onde se encontra o limite entre abaixo e acima. Este 
limite está, na maioria das pessoas, situado à altura dos 
olhos; mas em muitas encontra-se à alturado lábio supe­
rior. O limite entre o anterior e o posterior, que se deter­
mina com as palmas das mãos voltadas para a frente de 
um e outro lado da cabeça e deslocando-as para trás e 
para diante, está situado, em grande número de pessoas, 
à altura do orifício do ouvido, noutras, à altura da arcada 
zigomática, e ainda noutras, à altura da ponta do nariz. 
Cada pessoa normal dispõe de um sistema de coordena­
das formado por estes três planos, estritamente relacio­
nado com a cabeça (fig. 4) e com que confere ao seu 
espaço-de-acção o quadro fixo em que se dão os passos- 
-de-orientação.
No labirinto confuso dos passos-de-orientação, que 
como elementos de deslocamento não podem conferir ao 
espaço-de-acção nenhuma fixidez, os planos fixos de refe­
rência fornecem uma estrutura segura que garante a 
ordem no espaço-de-acção.
A grande contribuição de Cyon (1) consistiu em refe-
O Elie v. Cyon (1842-1912), fisiólogo russo, descobridor de 
nervos e funções nervosas muito importantes. (Nota da edição 
alemã.)
[44]
rir a tridimensionalidade do nosso espaço a um órgão 
sensorial situado no nosso ouvido interno — os canais 
semicirculares (fig. 5), cuja posição corresponde aproxi­
madamente aos três planos do espaço-de-acção.
Esta correspondência mostram-na tão claramente 
numerosas experiências, que podemos formular a 
seguinte proposição: todos os animais que possuem três 
canais semicirculares dispõem também de um espaço
tridimensional. A fig. 6 representa os canais semicircula­
res de um peixe. É evidente que estes devem ser da 
máxima importância para o animal. Em apoio disto se 
pronuncia também a sua estrutura interna, que neles tem 
um sistema de canais em que, sob o controlo dos nervos, 
se desloca um fluido nas três direcções do espaço. 
O movimento do fluido reflecte fielmente os movimentos 
de todo o corpo. Isto mostra-nos que o órgão, além da
[45]
função de deslocar os três planos no espaço-de-acção, 
tem ainda um outro significado. E, de facto, parece que 
ele desempenha ainda o papel de bússola. Não uma bús­
sola que se oriente sempre na direcção norte-sul, mas na
Fig. 6 — Canais semicirculares de um peixe
[46]
direcção das «portas de entrada». Quando todos os movi­
mentos do corpo em bloco, se decompõem e são regista­
dos em três direcções nos canais semicirculares, o ani­
mal deve encontrar-se no ponto de partida, quando, por 
meio de vibrações, os sinais nervosos tenham voltado 
ao zero.
É indubitável que uma bússola que indique as portas 
de entrada deve ser, para todos os animais que dispo­
nham de um lugar onde se recolham, ninho ou local de 
postura, um recurso indispensável. A garantia de terem 
à sua disposição as portas que lhe dão acesso, obtida por 
sinais ópticos no espaço visual, não é, em geral, sufi­
ciente, porque eles devem poder reencontrá-las mesmo 
quando elas tenham mudado de aspecto.
A capacidade de redescobrirem as portas de entrada 
no espaço-de-acção puro, pode demonstrar-se que existe 
também nos insectos e moluscos, apesar de estes ani­
mais não possuírem canais semicirculares.
A seguinte experiência é bem convincente (fig. 7). 
Enquanto a maior parte das abelhas de uma colmeia voam 
pelo campo, desloca-se esta do seu lugar habitual para 
uns dois metros de distância. Verifica-se então que, de 
volta a ela, se acumulam pairando no ar, no lugar em que 
ela antes se encontrava e com ela o orifício de acesso — 
o seu ponto de partida. Só passados uns cinco minutos 
elas se resolvem a voar para aquela sua nova situação.
Levando mais longe esta experiência demonstrou-se 
que aquelas abelhas a que se tinham cortado as antenas 
se dirigiam sem se deterem para a colmeia deslocada, o 
que significava que, só enquanto as possuíam se orienta­
vam no espaço-de-acção. Sem elas orientam-se à custa 
dos sinais visuais do campo. As antenas da abelha devem, 
pois, considerar-se como órgão que, de qualquer modo, 
desempenha o papel de bússola da porta de acesso na 
sua vida normal, e lhe indica o caminho de regresso com 
mais certeza que os sinais visuais.
[47]
Posição anterior da cclmsia
Fig. 7 — Espaço-de-acção da abelha
Ainda mais surpreendente é a análoga descoberta- 
-do-lar, que os Ingleses designam pelo termo homing, por 
parte da lapa (’} (fig. 8). A lapa vive entre as zonas das 
marés, sobre as rochas. Os grandes exemplares da espé­
cie gravam na rocha para seu uso e com a sua concha 
dura, um leito em que, aderindo fortemente a ela, pas­
sam o período da baixa-mar. No período da preia-mar 
começam a deslocar-se e a pastar nas rochas dos seus 
arredores. Logo que a maré começa a baixar buscam de 
novo o seu leito, não seguindo sempre o mesmo caminho. 
Os olhos da lapa são tão rudimentares que o molusco, só 
à custa deles, muito dificilmente consegue reencontrar o 
seu ponto de partida. A existência de qualquer indício de 
olfacto é tão improvável como a de um sentido de visão. 
Só resta admitir a existência de uma como que bússola 
orientadora no espaço-de-acção, de que todavia não pode­
mos fazer a mínima ideia.
(’) Molusco gastrópode marinho do género Patella.
[48]
b) O espaço tác til
A pedra de fundação do espaço táctil não é nenhuma 
grandeza cinemática como a passada-de-orientação, mas 
sim uma grandeza estática, isto é, o local. O local tam-
Fig. 8 — Descoberta do lar pela lapa
bém deve a sua existência a um sinal-perceptivo do 
sujeito e não é qualquer aspecto inerente à matéria 
do ambiente. Foi Weber (') quem o demonstrou. Quando 
se colocam as pontas de um compasso, afastadas de
(') Ernest Heinrich Weber (1795-1878) contribuiu para a 
fundação da fisiologia moderna. Estudou o sentido do tacto na pele. 
(Nota da ed. alemã.)
4 -A . IIOMENS [49]
um centímetro uma da outra (fig. 9), sobre o pescoço de 
uma pessoa, elas são apercebidas como distintas uma da 
outra. Cada àma delas encontra-se num local diferente 
do da outra. Quando se transportam, sem alterar a sua 
distância, as duas pontas do compasso para as costas e 
para pontos cada vez mais afastados do pescoço, é como
Fig. 9 — Compasso de Weber
se elas estivessem cada vez mais próximas uma da outra, 
até que, com esse mesmo afastamento, é como se as 
duas pontas tocassem a pele no mesmo ponto.
Daqui se conclui que além do sinal-perceptivo da 
sensação do tacto possuímos sinais-perceptivos para a 
sensação do local, a que chamamos sinais do local. Cada 
percepção-de-localização corresponde, exteriorizada, a
[ 50]
um local em espaço-táctil. Os territórios da nossa pele 
que, ao serem tocados, produzem a mesma percepção- 
-de-localização variam largamente de extensão, conforme 
a importância que tem para o tacto a região da pele que 
é tocada. A par da ponta da língua, que tacteia a cavi­
dade bucal, as extremidades dos nossos dedos possuem 
os territórios de menor extensão, e podem, por isso, dis­
tinguir uns dos outros a maior parte dos locais. Quando 
tocamos com os dedos um objecto, atribuímos, por inter­
médio destes, à sua superfície um delicado mosaico de 
locais. O mosaico de locais dos objectos dos lugares fre­
quentados por um animal é, tanto no espaço táctil como 
no espaço visual, uma atribuição feita pelo sujeito às 
coisas do seu mundo-próprio, que de modo nenhum 
existe no ambiente.
Ao tocarem-se pontos diferentes, os locais relacio­
nam-se com as passadas-de-orientação e juntos servem 
para o esboçar da forma.
O espaço táctil desempenha um papel muito impor­
tante em muitos animais. Os ratos e os gatos continuam 
a deslocar-se sem hesitar, mesmo quando cegos — con­
tanto que conservem os seus pêlos tácteis. Todos os ani­
mais nocturnos e todos os que habitam em grutas vivem 
essencialmente em espaço táctil, que uma fusão de loca­
lizações e passadas-de-orientação delimita.
c) O Rspar.n-viRual
Os animais desprovidos de olhos, que, como a car­
raça, possuem pele sensível à luz, é de presumir que 
possuam as mesmas zonas tegumentares para a realiza­
ção de localizações, tanto por meio de estímulos lumino­
sos como por meio de estímulos tácteis.Localizações 
ópticas e localizações tácteis coincidem no seu mundo- 
-próprio.
[51]
Só nos animais providos de olhos, o espaço visual 
e o espaço táctil se distinguem um do outro. Na retina 
do olho os pequeníssimos territórios elementares — os 
elementos visuais — dispõem-se muito densamente uns 
em relação aos outros. A cada elemento visual corres­
ponde um acidente local no mundo-próprio, pois que se 
provou que a cada elemento visual corresponde um sinal- 
-do-local.
A fig. 10 representa o espaço visual de um insecto
voador. É fácil ver que, em consequência da forma con­
vexa do ,olho, o território do mundo exterior que atinge 
um elemento visual aumenta com a distância, e por cada 
local é discernida uma parte do mundo ambiente cada 
vez mais vasta. Disto resulta que todos os objectos que 
ficam mais afastados do olho se apresentam cada vez 
mais pequenos até desaparecerem no interior de um
[ 52]
local. De modo que o local representa a menor porção de 
espaço dentro do qual não há qualquer diferenciação.
A aparente diminuição de grandeza dos objectos não 
se dá no espaço táctil. E é neste ponto que espaço visual 
e espaço táctil se opõem. Quando pegamos numa chá­
vena com o braço estendido e a dirigimos para a boca, 
ela aumenta de dimensões aparentes em espaço visual, 
mas não em espaço táctil. Neste caso o espaço táctil 
tem vantagem sobre o espaço visual pois que o aumento 
de tamanho da chávena passa despercebido a um obser­
vador não atento.
Como a mão que palpa, o olho que olha em volta 
estende sobre todas as coisas do mundo-próprio um deli­
cado mosaico de locais, cuja finura depende do número 
de elementos visuais que atingem as mesmas secções 
do ambiente.
Pois que o número dos elementos visuais varia muito 
de animal para animal, o mosaico-de-locais deve também 
variar. Quanto menos fino for tanto maior número de par­
ticularidades das coisas devem perder-se, e o mundo, 
visto por um olho de mosca deve parecer muito mais 
grosseiro do que o visto por um olho humano.
Como cada imagem pode variar por sobreposição de 
uma rede fina num mosaico de locais, o método da rede 
proporciona-nos a possibilidade de realizar a representa­
ção dos mosaicos de locais dos diferentes animais.
Basta, para tanto, reduzir sucessivamente a mesma 
representação, vê-la depois através da mesma rede, foto- 
grafá-la e depois ampliá-la. Assim aquela se pode trans­
formar num mosaico cada vez mais grosseiro, reprodu­
zindo-o em aguada, sem rede, que tornaria confuso o seu 
aspecto. As figs. 11 a-d são aqui representadas tal como 
se obtiveram pelo método da rede, e dão-nos a possibili­
dade de se obter um aspecto do mundo-próprio de um 
animal, quando se conhece o número de elementos 
visuais do seu olho. A fig. 11 c corresponde aproximada-
[53]
Fig. 11 a — Fotografia de uma rua de aldeia
[ 54]
mente à reprodução fornecida pelo olho da mosca domés­
tica. É fácil de compreender que num mundo-próprio que 
apresenta tão poucas particularidades, os fios de uma 
teia de aranha devem passar completamente despercebi­
dos, e é legítimo dizer: a aranha tece uma teia que é 
completamente invisível à sua presa.
A última figura (11 d) corresponde aproximadamente 
à representação da impressão dada por um olho de 
molusco. Como se vê, o espaço visual das lapas e dos 
mexilhões contém apenas algumas manchas escuras e 
claras (’).
Como no espaço táctil, as conexões no espaço visual 
são feitas por passadas de orientação de local para local.
Quando fazemos uma preparação à lupa, que tem por 
função discernir um grande número de locais em uma 
pequena área, podemos verificar que não é só a nossa 
vista mas também a nossa mão que guia a agulha de 
dissecção, realiza passadas-de-orientação muito mais 
curtas, correspondentes a locais tornados muito mais 
próximos uns dos outros.
2. O HORIZONTE
Ao contrário do espaço-de-acção e do espaço táctil, 
o espaço visual é limitado em toda a volta por uma 
parede impenetrável, a que chamamos o campo longín­
quo, ou o horizonte.
Sol, Lua e estrelas movem-se, sem distância em pro-
(’) Estas representações indicam apenas o processo que leva 
a fazer uma primeira ideia das diferenças dos aspectos sob que 
vários animais vêem os objectos exteriores. Quem queira ficar com 
uma ideia das particularidades desses aspectos dinâmicos, no caso 
dos insectos, terá um guia na obra de K. v. Frisch Aus dem Leben 
der Bienen («Acerca da Vida das Abelhas»), ed. Springer, 5.“ edi­
ção, 1953. (Nota da ed. alemã.)
[55]
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d B a & t t -
Fig. 11 c — A mesma para um olho de mosca
Fig. 11 d — A mesma para um olho de molusco
[56]
fundidade entre si, sobre o mesmo horizonte, que inclui 
tudo o que se abrange com a vista. A situação do hori­
zonte não é invariavelmente fixa. Quando depois de uma 
grave febre tifóide eu dei o meu primeiro passeio fora 
de casa, o horizonte pendia como uma colgadura varie­
gada a uns vinte metros de distância, sobre a qual tudo 
o que eu via se delineava. Para além de vinte metros 
não havia quaisquer objectos mais próximos ou objectos 
mais afastados, mas só objectos maiores ou menores.
A lente do nosso olho (o cristalino) tem a mesma 
função que a de uma câmara fotográfica: a de projectar 
nitidamente na retina, que corresponde à placa fotográ­
fica, os objectos situados em frente dos nossos olhos. 
A lente do olho humano é elástica e pode, pela acção de 
músculos próprios a ela ligados, variar mais ou menos 
de curvatura (o que corresponde à focagem da lente da 
câmara fotográfica).
Em virtude da contracção dos músculos do cristalino 
manifestam-se sinais de orientação no sentido de trás 
para diante do olho. Quando esses músculos, relaxan- 
do-se, se alongam pela acção da elasticidade da lente, os 
sinais dados indicam o sentido de diante para trás.
Quando os músculos estão completamente relaxa­
dos, o olho está acomodado para a distância desde dez 
metros até ao infinito.
Dentro de um círculo de dez metros, as coisas no_ 
nosso mundo-próprio, em virtude da acção dos movimen: 
tõs~dõs músculos do cristalino, apresentam-se-nos como 
próximas ou afastadas. Para além desse .círculo dá-se, 
naturalmente, apenas um aumento ou diminuição do tama­
nho dos objectos. Nas crianças de peito o espaço visual 
termina àquela distância, limitado por um horizonte que 
tudo abrange. Só depois, a pouco e pouco, começamos 
a aprender, à custa de sinais-de-distância, a alargar cada 
vez mais o nosso horizonte, até que, ainda gradualmente 
com o nosso desenvolvimento, este limita o espaço visual
[57]
a uma distância de seis a oito quilómetros, em que aquele 
começa.
A diferença entre o espaço visual de uma criança e o 
de um adulto eWá figurada na fig. 12, que reproduz grafi­
camente uma experiência comunicada por Helmholtz (1). 
Relata ele que, ainda pequeno, ao passar pela igreja da 
guarnição de Potsdam, notara na galeria da torre daquela 
alguns operários. Pediu então a sua mãe que lhe fosse 
buscar um daqueles bonequitos pequenos. A igreja e os 
operários já estavam contidos no seu horizonte, e por 
isso não estavam afastados, eram apenas pequenos. Tinha 
pois toda a razão para admitir que sua mãe podia, com 
os seus braços compridos, tirar os bonecos da galeria. 
Ele não sabia que no mundo-próprio de sua mãe a igreja 
tinha dimensões perfeitamente diferentes das que tinha 
no seu, e que na galeria o que havia era homens, não, 
pequenos, mas, afastados. Quanto aos animais, a situa­
ção do horizonte nos seus mundos-próprios é difícil de 
determinar, porque a maior parte das vezes não é fácil 
de experimentalmente verificar quando é que um objecto 
do ambiente, ao aproximar-se do sujeito não só passa a 
ser maior mas também a ficar aparentemente mais pró­
ximo. Estudos de captura de moscas domésticas mostram 
que só quando a nossa mão se aproxima até cerca de 
meio metro de distância esta foge voando. Por conse­
guinte, é de admitir que o horizonte da mosca deverá 
estar a esta distância aproximadamente.
Mas outras experiências

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