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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO AUTORA: ANDRÉA GABRIEL F. RODRIGUES EDUCAR PARA O LAR, EDUCAR PARA A VIDA: cultura escolar e modernidade educacional na Escola Doméstica de Natal (1914 – 1945) NATAL – 2007 Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA Divisão de Serviços Técnicos Rodrigues, Andréa Gabriel F. Educar para o lar, educar para a vida : cultura escolar e modernidade educacional na Escola Doméstica de Natal (1914-1945) / Andréa Gabriel F. Rodrigues. – Natal, 2007. 306 f. : il. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marlúcia Menezes de Paiva. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós- Graduação em Educação. 1. Educação - Tese. 2. História da educação - Tese. 3. Cultura escolar - Tese. 4. Escola Doméstica - Tese. I. Paiva, Marlúcia Menezes de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BS/CCSA CDU 37.035 (043.2) 1 ANDRÉA GABRIEL F. RODRIGUES EDUCAR PARA O LAR, EDUCAR PARA A VIDA: cultura escolar e modernidade educacional na Escola Doméstica de Natal (1914-1945) Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob orientação da profª Drª. Marlúcia Menezes de Paiva. NATAL – 2007 2 ANDRÉA GABRIEL FRANCELINO RODRIGUES EDUCAR PARA O LAR, EDUCAR PARA A VIDA: cultura escolar e modernidade educacional na Escola Doméstica de Natal (1914-1945). Tese de doutorado aprovada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão formada pelos (as) seguintes professores (as): Aprovada em: ____/_____/_____ BANCA EXAMINADORA: __________________________________________________ Prª. Dra. Marlúcia Menezes de Paiva Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN __________________________________________________ Prª Dra.Maria Inês Sucupira Stamatto Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN __________________________________________________ Pro Dr. Jorge Carvalho do Nascimento Universidade Federal de Sergipe - UFS __________________________________________________ Pro Dr. Antônio Carlos Ferreira Pinheiro Universidade Federal da Paraíba – UFPb __________________________________________________ Pro Dr. Antônio Basílio Thomaz Novaes de Menezes Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN ___________________________________________________ Prª Dra Maria Arisnete Câmara de Morais Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN ___________________________________________________ Prª Dra Maria Lindací Gomes da Silva Universidade Estadual da Paraíba - UEPb 3 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho A Deus, pela paz interior, A minha querida Mãe Hilda (in memória), A Carlos Antônio, Aos meus filhos Juliana e Carlos Henrique. 4 AGRADECIMENTOS Para a realização deste trabalho, recebi contribuições diversas de muitas pessoas que, direta ou indiretamente, participaram da construção da tese. Não poderia deixar de explicitar o nome dessas pessoas e instituições, porque reconheço a importância que cada uma representou, como também a importância de um trabalho de pesquisa que contabiliza a somatória de muitas contribuições e ajudas envolvidas, desde os mais próximos (familiares, amigos etc.) até os mais distantes como funcionários ligados aos locais de pesquisa. Destaco inicialmente o valioso apoio afetivo do meu esposo, Carlos Antônio, que soube compreender as minhas faltas em diversos momentos e assumiu com muita paciência e dedicação os papéis de pai e mãe durante as muitas ausências minhas no lar e em alguns momentos de lazer. Aos meus filhos, Carlos Henrique e Juliana, por suportarem as minhas ausências enquanto mãe, para que eu pudesse cumprir determinadas etapas da pesquisa. As minhas secretárias Neide e Neire, por me ajudarem nos cuidados diários com meus filhos. A minha mãe (in memória), a quem devo gratidão eterna pelo incentivo nos estudos e por me estimular desde cedo a conhecer e a gostar do universo da leitura. A minha irmã, Adriana Gabriel, pelo grande incentivo aos estudos. A Marlúcia Paiva, pelas valiosas contribuições na orientação da tese, pela amizade e profissionalismo desempenhado durante todo o percurso da construção da tese e durante os mais de dez anos que estudamos juntas. Ao grupo de estudo da Base de Pesquisa Educação e Práticas Culturais do PPGEd, da UFRN, particularmente às colegas Neide Sobral, Keila Cruz, Otêmia Porpino, Salete Queiroz, Márcia de Sá, Nivaldete Ferreira, Maria Lindací, Ana Zélia e aos colegas José Mateus e Lusival Barcelos, pessoas com as quais convivi durante alguns anos, discutindo, pesquisando, vivenciando experiências que foram momentos valiosos de trocas culturais e que contribuíram para a construção do conhecimento. Agradeço também à Universidade Estadual da Paraíba/RN, instituição que me liberou integralmente das atividades da docência durante o período de um ano e meio, quando eu ainda fazia parte do seu quadro de funcionários, para a realização do Curso de Doutorado. Essa liberação foi muito importante, porque durante aquele período, pude me dedicar 5 efetivamente às atividades de pesquisa. Com especial atenção, agradeço às professoras da UEPb, Cleonice Agra do Ó e Valniza, pela amizade conquistada e incentivo para que eu desse continuidade aos estudos. Ao Centro Federal de Educação Tecnológica do RN – CEFET, instituição onde atualmente exerço a função de docente, pela redução da minha carga horária de trabalho para que eu pudesse concluir a fase final da tese (parte escrita). Particularmente, aos colegas de trabalho Dante Henrique, Maria Daguia (Nina), Malco Geisiel, Gerson Gomes e Eulália Raquel, pelo apoio afetivo nos momentos de incertezas e dificuldades. À Escola Doméstica de Natal, instituição em que realizei vasta parte da coleta de dados durante os três anos da pesquisa, especialmente à diretora Sra. Noilde Ramalho Pessoa que me recebeu com muita educação e considerou desde os nossos primeiros contatos a importância da pesquisa que me propus a realizar. A Noilde Ramalho, agradeço pela paciência em me atender insistentemente nos muitos momentos de dúvida, nas etapas em que era necessário saber da existência de um documento, requisitando alguma fonte histórica que estava sob sua responsabilidade. Às funcionárias desta instituição, o meu agradecimento, às professoras Margarida Morgantine, Ell Marinho, Sônia Araújo, Dione e ao professor Alexandre Marinho. Ao grupo de algumas das ex-alunas da Escola Doméstica que foram entrevistadas por mim. Pela disponibilidade com que me receberem em seus lares, despendendo tempo e dividindo comigo fotografias de época e recordações diversas sobre o período em que estudaram na Instituição. A todas elas agradeço pelos valiosos diálogos estabelecidos e por me receberem com carinho e atenção nos momentos em que me foi necessário entender o cotidiano e as práticas vividas na escola, cotidiano este que foi tão bem relatado. A vocês: Margarida Morgantine, Neide Galvão, Ell Marinho, Tereza Fonseca e Eulália Barros, o meu agradecimento especial. Ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grandedo Norte, local onde realizei parte da pesquisa de dados. À funcionária Antonieta, ao diretor do Instituto, Sr. Enélio Petrovich, por alguns diálogos estabelecidos durante a pesquisa e que muito me ajudaram a localizar algumas fontes. Ao corpo docente do PPGEd da UFRN, pelos saberes transmitidos e construídos junto aos discentes, particularmente às professoras Marta Araújo, Rosanália de Sá Leitão, Maria Aparecida Queiroz, Magna França, Inês Stamatto, Rosália de Fátima. Aos funcionários do Programa em Pós-Graduação em Educação: Milton, Radir, Letsandra, Jeane, Raquel, pelo excelente atendimento. Às funcionárias do Departamento de Educação dessa 6 instituição: Laíse, Gleide e Graça. À bibliotecária Albanita, pela revisão das normas técnicas do trabalho. A Greycimar Silva dos Santos, pela paciente leitura e revisão gramatical do texto escrito. Sem o apoio dessas pessoas e das instituições citadas, tão importantes para a trajetória de construção da tese, seria difícil realizar um trabalho dessa natureza, porque o próprio ato de pesquisar envolve pessoas, objetos e instituições. A pesquisa não se dá no vazio da objetividade; é fruto de emoções, pensamentos, sofrimentos e alegrias, desânimos, desafios e conquistas, exigindo de quem a pratica um mergulho num universo atordoante e prazeroso de grandes aprendizagens. 7 Hoje desaprendo o que tinha aprendido até ontem e que amanhã recomeçarei a aprender. Todos os dias desfaleço e desfaço-me em cinzas efêmera: Todos os dias reconstruo minhas edificações, em sonho eternas. Esta frágil escola que somos, levanto-a com paciência dos alicerces às torres, sabendo que é trabalho sem termo. E do alto avisto os que folgam e assaltam, donos de risos e pedras. Cada um de nós tem sua verdade, pela qual deve morrer. De um lugar que não se alcança, e que é, no entanto, claro, minha verdade, sem troca, sem equivalência nem desengano permanente constante, obrigatória, livre: Enquanto aprendemos, desaprendo e torno a aprender. (Cecília Meireles) 8 LISTA DE QUADROS QUADRO 1 – Classificação dos sócios da LERN, 1911..................................................... 60 QUADRO 2 – Cronograma dos presidentes da LERN, 1914.............................................. 79 QUADRO 3 – Quadro de matrícula das alunas da ED, 1914-1964 ....................................135 QUADRO 4 – Demonstrativo de horários da ED, 1927......................................................141 QUADRO 5 – Percentual de alunas diplomadas pela Escola Doméstica de Natal: de 1919 a 1945 .............................................................................................146 QUADRO 6 – Quadro demonstrativo de distribuição de matérias do Curso Doméstico, 1919 ..........................................................................................155 QUADRO 7 – Demonstrativo das matérias do Curso Doméstico da ED, 1927 ..................158 QUADRO 8 – Lista de enxoval das alunas da ED, 1927.....................................................242 9 LISTA DE FOTOS FOTO 1 – Registro fotográfico de Henrique Castriciano de Souza .................................. 48 FOTO 2 – Primeira turma de alunas da Escola Doméstica de Natal em aula de culinária, 1918.................................................................................................. 111 FOTO 3 – Foto do primeiro corpo docente da Escola Doméstica de Natal, 1919 ............ 116 FOTO 4 – Registro fotográfico do primeiro Corpo docente da Escola Doméstica de Natal, 1925 .................................................................................................. 118 FOTO 5 – Fotografia da primeira turma de discente da Escola Doméstica de Natal e o professor Clodoaldo de Góes, 1928.................................................. 134 FOTO 6 – Alunas internas da ED em momento de descontração extra sala de aula, 1945 ......................................................................................................... 145 FOTO 7 – Alunas da Escola Doméstica de Natal em momento de aula prática sobre culinária, 1927 ........................................................................................ 166 FOTO 8 – Imagem de uma ex. aluna da ED, em momento de aula de Puericultura, 1948 ............................................................................................ 169 FOTO 9 – Alunas da Escola Doméstica de Natal em aula prática de Puericultura, 1926 ............................................................................................ 171 FOTO 10 – Turma de alunas da Escola Doméstica em aula prática de Ginástica Suéca, 1929 ...................................................................................................... 187 FOTO 11 – Alunas da Escola na sala-laboratório de Puericultura, 1926............................ 193 FOTO 12 – Alunas da Escola em aula de jardinagem ao ar livre na instituição escolar, 1926..................................................................................................... 195 FOTO 13 – Alunas da Escola Doméstica de Natal em aula prática de jardinagem, 1927.................................................................................................................. 196 FOTO 14 – Alunas da Escola em aula sobre manipulação de lacticínios, 1927 ................. 197 FOTO 15 – Alunas da Escola em momento de aula sobre lavagem e engomado de roupas, 1927 ..................................................................................................... 202 FOTO 16 – Alunas em aula prática sobre Educação Doméstica e Higiene do Lar, 1924 ................................................................................................................. 204 10 FOTO 17 – Registro fotográfico da turma de formandas da ED no ano 1931? .................. 224 FOTO 18 – Primeiro Corpo discente da Escola Doméstica de Natal, 1928........................ 230 FOTO 19 – Alunas internas da Escola Doméstica de Natal, 1945...................................... 237 FOTO 20 – Imagem do Corpo discente da ED, ao centro destaque para o professor Clodoaldo de Góes, 1928 ................................................................. 239 FOTO 21 – Registro fotográfico da primeira turma de docentes da Escola Doméstica de Natal, 1919 ................................................................................ 246 FOTO 22 – Vista da Escola Doméstica de Natal no ano de sua inauguração, 1914 ........... 249 FOTO 23 – Alunas da Escola Doméstica em momento de aula prática sobre culinária, 1927.................................................................................................. 252 FOTO 24 – Fachada principal da ED de Natal, 1939.......................................................... 255 FOTO 25 – Dormitório das alunas da ED, 1919 ................................................................ 257 FOTO 26 – Sala de aula de costura Meira e Sá. Alunas em momento de aprendizado prático, 1930 ................................................................................ 258 FOTO 27 – Momento de aula prática de Anatomia desenvolvida pelo prof. Varela Santiago, 1927 ..................................................................................... 259 FOTO 28 – Alunas da Escola Doméstica de Natal em aula de Português com o professor Meira e Sá, 1914............................................................................... 260 FOTO 29 – Alunas da Escola Doméstica de Natal no jardim da Escola, em aula de jardinagem, 1926 ......................................................................................... 262 FOTO 30 – Gabinete da diretoria da ED, 1914 ..................................................................272 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO O contexto do pesquisador e o universo a ser pesquisado................................................... 14 A acepção sobre os documentos e os arquivos ................................................................... 18 A construção da pesquisa ................................................................................................... 39 1 ESCOLA DOMÉSTICA DE NATAL: UM PROJETO MODERNIZADOR 1.1 O INÍCIO DE TUDO: a Liga de Ensino do RN e o seu idealizador, Henrique Castriciano..................................................................................................................... 47 1.2 A inauguração da Escola Doméstica de Natal ............................................................. 83 2 IDÉIAS INSPIRADORAS DE UM NOVO MODELO ESCOLAR 2.1. O modelo Escolar Suíço ............................................................................................... 95 2.2. Os princípios filosóficos da Escola Doméstica ............................................................108 3 DOCENTES E DISCENTES: CONSTRUTORES DE UMA NOVA CULTURA ESCOLAR 3.1. As primeiras diretoras e professoras ............................................................................118 3.2. O corpo discente ..........................................................................................................134 4 PRÁTICAS NO COTIDIANO DA ESCOLA DOMÉSTICA DE NATAL 4.1. O saber e o fazer no currículo escolar ..........................................................................150 4.2. Algumas práticas de leituras ........................................................................................208 4.3. A ordem, a disciplina, a vigilância ...............................................................................222 4.4. Modelando o corpo: a vestimenta escolar ...................................................................233 4.5. Espaço, tempo e cultura escolar ..................................................................................249 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................274 REFERÊNCIAS ................................................................................................................283 ANEXOS ............................................................................................................................303 12 RESUMO A pesquisa apresenta um novo olhar para a instituição escolar Escola Doméstica de Natal, tentando dar conta da multiplicidade dos atores e práticas envolvidas na escola que melhor definiam e explicavam os fenômenos daquela realidade educativa e das relações com o tempo e lugar em que estava inserida. Neste sentido, os conceitos de memória e cultura escolar foram fundamentais para a compreensão dessas práticas, porque contribuíram para fazermos uma leitura histórico-cultural do conjunto de aspectos institucionalizados na escola, como o seu currículo, finalidades, modos de ensinar e aprender, condutas, normas, enfim, o que caracterizavam a sua organização e práticas cotidianas. Sendo a Escola Doméstica de Natal uma instituição pioneira no modelo de ensino voltado para a educação feminina no Brasil, priorizamos reconhecê-la e circunscrevê-la na sua indelével contribuição à História da Educação norte-rio-grandense. Concebida por um modelo de organização escolar europeu para a educação feminina, a Escola Doméstica de Natal foi inaugurada em 1914, tendo como seu criador, o intelectual norte-rio-grandense Henrique Castriciano de Souza. Sua singularidade, divergindo das escolas femininas existentes no RN e no país naquele momento, advinha do modelo escolar adotado, que enfatizava a formação de uma mulher voltada para atender aos anseios modernos despontados com o advento da República. Esse ideário exigia, por parte da escola, a formação de um modelo de mulher em seus aspectos moral, físico, cultural e intelectual moldados nos ideais da ordem e do progresso. Essa seria uma nova forma de educação escolar que poderia favorecer a modernização dos velhos métodos de ensino, provocando o surgimento de modelos que implicariam numa nova organização pedagógica nas escolas existentes no Estado e conduziriam a cidade a novos e elevados patamares de cultura e civilidade. Estava presente, também a representação de que, com essa formação, a escola contribuiria para que a mulher atuasse na sociedade de forma mais ativa, social e ajustável ao meio. As palavras ordem, novo, civilidade, moderno e progresso circulavam e se entrecruzavam com valores arcaicos ainda arraigados e permanentes na visão da vida e na idéia de mundo de então. Assim, percebia-se a Escola Doméstica como instituição modelo, específica em sua função, que iria trazer para a cidade e, particularmente para o Estado do RN, idéias de civilidade, ordem e progresso. Palavras-chave: Educação História da Educação. Cultura Escolar. Escola Doméstica, Modelo escolar. 13 RÉSUMÉ La recherche propose un nouveau regard sur l’Institution Scolaire École Doméstica de Natal, en essayant de tenir compte de la multiplicité des auteurs et des pratiques développées à l’école qui définissaient le mieux et expliquaient les phénomènes de cette réalité éducative et des rapports avec le temps et le lieu où elle s’insérait. Pour ce faire, les concepts de mémoire et culture scolaire ont été fondamentaux pour la compréhension de ces pratiques, parce qu’ils ont contribué à notre lecture historique-culturelle de l’ensemble d’aspects institutionnalisés à l’école, comme son curriculum, ses finalités, ses façons d’enseigner et d’apprendre, ses règles de conduite, ses normes, enfin, ce qui caractérisait son organisation et ses pratiques quotidiennes. C’était l’École Doméstica de Natal l’institution pionnière dans le modèle d’éducation féminine au Brésil, nous le reconnaissons en priorité et nous visons à le circonscrire à son indélébile contribution à l’Histoire de l’Éducation de Rio Grande do Norte. Conçue par un modèle d’organisation scolaire européen pour l’éducation féminine, l’École Doméstica de Natal a été inaugurée en 1914, en ayant comme créateur l’intelectuel de Rio Grande do Norte Henrique Castriciano de Souza. Sa singularité, s’opposant aux écoles féminines existantes au Rio Grande do Norte et au Brésil en ce temps-là, était dû au modèle scolaire adopté, qui appuyait sur la formation d’une femme préparée à répondre aux aspirations modernes surgissant avec l’avènement de la République. Ce contexte exigeait de l’école la formation d’un modèle de femme dans les aspects moral, physique, culturel et intelectuel modelés sur les idéaux de l’ordre et du progrès. Ce serait une nouvelle méthode d’éducation scolaire qui pourrait favoriser la modernisation des anciennes méthodes d’enseignement, provoquant le surgissement de modèles qui impliqueraient une nouvelle organisation pédagogique aux écoles de l`État et conduiraient la ville à de nouveaux et hauts paliers de culture et civilité. Avec cela, l’école contribuerait à ce que la femme joue un rôle dans la société d’une manière plus active, sociale et mieux adaptée. Les mots ordre, nouveau, civilité, moderne et progrès se répandaient et s’entrecroisaient avec des valeurs archaïques toujours permanentes et enracinées dans la vision de vie et l’idée de monde d’alors. Ainsi, on voyait que l’École Doméstica était une institution modèle, spécifique dans sa fonction, qui apporterait à la ville et, particulièrement au Rio Grande do Norte, des idées de civilité, ordre et progrès. Mots-clés: Éducation. Histoire de l’Éducation. Culture Scolaire. École Doméstica. Modèle Scolaire. 14 INTRODUÇÃO Todos nós, inevitavelmente, escrevemos a história de nosso próprio tempo quando olhamos o passado e, em alguma medida, empreendemos as batalhas de hoje no figurinodo período. Mas, aqueles que escrevem somente a história do seu próprio tempo não podem entender o passado e aquilo que veio dele, podem até mesmo falsificar o passado e o presente, mesmo sem a intenção de o fazer. (ERIC HOBSBAWM). O contexto do pesquisador e o universo a ser pesquisado As relações temporais entre passado e presente são importantes para compreendermos os acontecimentos e neles as experiências que se entrecruzam na história. Relações que vão do tempo vivido, no qual estamos mergulhados, a um tempo que já passou, mas que mantêm ligações e aproximações com o presente. O exercício de ir e vir parece à primeira vista atordoante, no entanto, para o historiador/pesquisador é condição ímpar, é salutar a percepção de tempo histórico e os acontecimentos nele ocorridos. Como lembra Hobsbawm (1996), os que escrevem apenas a história do seu tempo, limitam-se a ela, sem entender os elos que se estabelecem de um passado que parece fugidio aos nossos olhos e o que dele ficou e permanece diante das lentes de um olhar mais meticuloso. Diante dessas inquietações, decorreu o surgimento do nosso objeto de estudo, a Escola Doméstica de Natal, fruto de germinações históricas, de manuseios documentais, debates, reflexões. Nas primeiras tentativas de aproximações com o objeto, alguns diálogos foram estabelecidos: primeiro em conversas informais ou planejadas (com professoras, ex.funcionárias que atuaram no estabelecimento de ensino), depois através da leitura de materiais de pesquisa coletados. Esses diálogos contribuíram para definir algumas situações- problema, delimitações e focos do nosso estudo. Os levantamentos feitos indicavam que a Escola Doméstica de Natal foi para o Rio Grande do Norte um marco importante por ser uma instituição educativa destinada ao ensino voltado para as mulheres. Pioneira na América Latina na sua forma de organização escolar e curricular, o que a diferenciava das demais instituições existentes no país, marcou uma época, enquanto modelo escolar. O conceito de modelo escolar tratado neste estudo está 15 relacionado à noção de organização pedagógica de uma instituição escolar, com regras específicas que pode passar a impor racionalmente a forma de seu funcionamento a outras escolas no referente ao currículo, metodologias de ensino, administração e funcionamento, dentre outros aspectos. O entendimento de modelo escolar envolve muitos estudos realizados sobre a história das instituições escolares, a exemplo da pesquisa de Souza (1998) utilizada para configurar o modelo de organização do ensino, modalidade de escola primária - o Grupo Escolar - que foi implantado pela primeira vez no Brasil em 1894, em São Paulo. Nesse estudo, o Grupo Escolar é tomado para evidenciar que: Tratava-se de um modelo de organização do ensino elementar mais racionalizado e padronizado com vistas a atender um grande número de crianças, portanto, uma escola adequada à escolarização em massa e à necessidade da universalização da educação popular. Ao implantá-lo, políticos, intelectuais e educadores paulistas almejavam modernizar a educação e elevar o país ao patamar dos países mais desenvolvidos. (SOUZA, 1998, p. 20). No presente estudo, o conceito de modelo escolar foi usado para delinear a organização pedagógica da Escola Doméstica de Natal, percebida como criação de um grupo de intelectuais norte-rio-grandenses preocupados em criar um padrão de instituição voltada especificamente para a formação de uma mulher culta e civilizada que a República almejava; isso acontecia numa conjuntura histórica, sinalizada por um período de remodelação da educação no Brasil e também no Rio Grande do Norte, quando intelectuais lançavam tentativas reformistas priorizando o campo educacional como modalidade cultural importante para a modernização do Estado e do país. Esses primeiros diálogos com o objeto eleito, na verdade, já se configuravam na investigação, ao que chamamos de primeiras aproximações com o objeto, posto que o entendimento de pesquisar ultrapassa etapas de coleta e análise dos dados, indo além, iniciando com as escolhas, seleções do objeto, definições, delimitações do corpus teórico, problematizações iniciais, até consolidar-se nas etapas seguintes, quando o contato mais efetivo com o objeto dar-se-á numa construção permanente, planejada a priori, mas não definitiva, fechada, em consonância com a idéia de Bogdan & Biklen (1994, p. 249), quando estes dizem que: 16 Uma pesquisa qualitativa é, sobretudo, uma construção teórico- metodológica, um processo no qual nada é definitivo, porém passível de modificações, mesmo no instante em que põe o ponto final no seu relatório ali está começando uma nova pesquisa sua ou de outrem. Não deve haver preocupações somente com os dados evidentes, mas a tentativa de aprofundar a complexidade dos acontecimentos em sua essência, nas suas relações e interdependências, para ir tecendo o conhecimento sobre o objeto de estudo situado num tempo. Também sentimos necessidade de operar cortes seletivos no universo da pesquisa, de definir o quê e como pesquisar, porque o contato inicial com um universo diversificado de fontes documentais exige do pesquisador, separações, delimitações e definições a partir dos objetivos da pesquisa. O recorte do objeto dá-se, portanto, como função necessária. Indagações sobre as pretensões, as possibilidades, limites e contribuições do estudo e outras situações e questionamentos foram aflorando a partir de então. A organização de um plano de investigação, de fato, passou a auxiliar e iluminar os passos, sinalizando para a bibliografia existente sobre a temática da Escola Doméstica de Natal, o universo a ser pesquisado, o aporte teórico-metodológico a seguir, o levantamento dos espaços para pesquisar, posto que toda pesquisa histórica, além de um tempo específico, inscreve-se em algum lugar na sociedade, articula-se com um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural, enraíza-se em uma particularidade. (LE GOFF ; NORA, 1979). É em função desse lugar social e desse meio de elaboração que alguns questionamentos se formulam, que se definem e apuram os métodos e esboçam-se riscos e uma trajetória (CERTEAU, 2002). Afinal, para Nora (1981, p. 13): Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais. Apresenta também essa proposição o significado de reconhecer que nesses lugares pesquisados, ao fazermos história, temos o contato com as fontes, sendo necessário perceber como estas se organizam e em função de que e quem, definindo os momentos e espaços onde se realiza a pesquisa. Certeau (2002) ainda chama a atenção para entendermos a articulação da história com um lugar social e histórico, tomando isto como condição ímpar 17 para uma análise da sociedade, posto que não exista análise que não seja totalmente dependente de situações criadas por relações sociais ou analíticas. Levar a serio o seu lugar não é ainda explicar a história. Mas é a condição para que alguma coisa possa ser dita sem ser nem legendária (ou ‘edificante’), nem a-tópica (sem pertinência). Sendo a denegação da particularidade do lugar o próprio princípio do discurso ideológico, ela exclui toda teoria. Bem mais do que isto, instalando o discurso em um não- lugar, proíbe a história de falar da sociedade e da morte, quer dizer, proíbe-a de ser a história. (CERTEAU, 2002, p. 77). Nora (1981) ao falar desses lugares, também chama a atenção para o sentido de que eles devem ser percebidos como lugares portadores de memória em disputa de grupos, a determinar o que deve ser resguardado ou não; a memória é tida nesse contexto,como um instrumento de buscas e disputas de grupos sociais. Nesse raciocínio, Burke (1992, p.80) também se atém ao estudo da memória enquanto campo de disputas, pois para ele, “a produção de esquecimentos se efetiva no confronto entre memórias em disputas, entre grupos que constroem versões opostas, destruindo fatos relevantes para seus opositores”. Nesse raciocínio, assim como Nora (1981), Burke (1992), Le Goff (1996) e Certeau (2002), também compreendemos que toda pesquisa histórica se articula como um lugar de produção sócio-econômica, político e cultural e está submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada, portanto, em particularidade, sendo que em função desse lugar se instauram os métodos, os interesses, organiza-se a busca pelas fontes e elabora-se a proposta de pesquisa. A história sendo relativa a um lugar e a um tempo também depende, para ser construída, de técnicas de produção e uso de técnicas apropriadas e cada sociedade, no seu contexto, faz uso de acordo com os instrumentos disponíveis que são usados por sua vez por portadores de interesses individuais e grupais. Ao tecer algumas reflexões nesse sentido, destacamos algumas limitações impostas a nossa trajetória de pesquisa, com as quais nos deparamos no decorrer da investigação, como por exemplo, o uso dos espaços-arquivos da Escola Doméstica de Natal. Uma dessas limitações refere-se às restrições no manuseio de alguns documentos de época que versam sobre as práticas da Escola, posto a condição que nos foi colocada no manuseio e registro de algumas fotos de época, pois, por serem alguns 18 documentos bastante antigos, nos foi negado o registro fotográfico de algumas imagens. Outro aspecto a destacar diz respeito a algumas restrições de entrada e saída do Memorial (local que acondiciona os documentos da Escola Doméstica de Natal), tendo em vista que a visita e consulta a esse espaço deveria sempre ser acompanhada pela direção da instituição, o que significou uma limitação ao nosso tempo de trabalho. A acepção sobre os documentos e os arquivos No tocante ainda ao estudo documental, tivemos algumas dificuldades no percurso da pesquisa em relação ao acesso às fontes históricas, pois alguns documentos procurados no Memorial da Escola não foram localizados nos arquivos pesquisados, a exemplo da Planta Arquitetônica do prédio Escolar onde a instituição funcionou nas suas origens, no bairro da Ribeira. Isso limitou a nossa análise na parte que havíamos proposto, inicialmente estudar, pois a idéia inicial era detalhar os lugares ocupados pela ED a partir da proposta arquitetônica detalhando a divisão dos espaços e suas respectivas construções enfim, desnudar a parte física da escola. Por serem as fontes pesquisadas, em sua maioria, localizadas no interior da própria instituição pesquisada, houve alguns empecilhos para nos aproximarmos delas. A inexistência de um repertório de fontes organizadas inicialmente também dificultou o acesso. Posteriormente, foi inaugurado na Escola Doméstica de Natal (no ano de 2005) um Memorial da escola, contendo em seu interior uma ordenação de documentos diversos de época que versam sobre a trajetória da instituição, o que proporcionou melhor visualização das fontes de pesquisa: fotografias, vestimentas, objetos matérias de época, livros, textos, etc, demonstrando uma regularidade na história da instituição, tendo em vista conter o memorial uma ordenação cronológica da trajetória institucional, destacando o quadro de objetos e pessoas que foram os marcos de vida da instituição proporcionando aos olhos de quem a visita uma História linear, pronta para ser lida e apreciada. Apesar dessas limitações tentamos, dentro do possível, preencher essas lacunas existentes e muito recorrentes nas pesquisas, quando lançamos propostas de garimpar e analisar alguns documentos que ficam, com o passar do tempo reservados às instituições privadas. A busca por outros caminhos e fontes que fornecessem novas pistas e informações que melhor preenchessem os espaços questionados durante a sua investigação terminou sendo 19 a via mais importante diante das adversidades surgidas, ocasionando também novos aprendizados: como pesquisar e redimensionar a metodologia de trabalho. Pensando nessa perspectiva, entendemos que uma trajetória de pesquisa deve realmente, como sugere Certeau (2002), considerar os lugares em que se inserem as fontes como espaços construídos historicamente, de acordo com os interesses individuais e grupais de cada época, priorizando também os lugares de memória que são marcados por conteúdos múltiplos e são, ao mesmo tempo, material, simbólico e funcional. Configuradas neste sentido, é preciso pensá-las, a história e a memória, enquanto plurais, construídas e interpretadas sob diversos ângulos num determinado espaço de tempo. Assinalamos nesse primeiro momento uma grande e importante preocupação essencial ao historiador, como nos lembra Le Goff (1996), a do tempo que não é linear, mas múltiplo, permeado por rupturas e nele, a idéia de situar o objeto no tempo e reconhecer as diversidades desse tempo, quais as complexidades para uma instituição escolar como a Escola Doméstica de Natal e como ela foi capaz de se estruturar nesse determinado tempo em que se inscreveu. Reencontramos no levantamento bibliográfico e no diálogo entre os textos que versam sobre a Escola Doméstica de Natal e/ou por onde ela fala, não apenas nomes de pesquisadores, mas também, resultados de pesquisa e pistas onde localizar novos documentos. Fizemos deste momento uma aprendizagem: a de que é possível empreendermos olhares diversos para o mesmo objeto e dele apreendermos várias interpretações, cada uma com a sua singularidade, nenhuma maior ou melhor que a outra, mas diferentes em interpretações. Neste sentido, a busca neste estudo foi manter a análise e a interpretação mais próxima possível das experiências ocorridas, e o que parecia supor um passado acabado, transmudava-se e emergia nos textos e nos documentos escritos, impulsionando mergulhar num novo conjunto de indagações, de deslindamentos. Mergulhar no universo da pesquisa sobre a Escola Doméstica de Natal, significou também no campo da História da Educação um esforço de conjugar a análise da singularidade de uma instituição educacional da cidade do Natal e o estabelecimento de suas relações com as determinações mais conjunturais do Estado, Brasil e de outros países, transpondo a esfera local, mas sem limitar-se somente a uma análise macroestrutural, buscando-se alguns elementos que conferiam à identidade da instituição um sentido único no cenário social do qual fez parte. O nosso propósito foi apresentar a escola à luz das fontes documentais, sabendo que a seleção e interpretação dessas fontes são feitas pelo historiador. Esses dois 20 momentos, seleção e interpretação, são condições ímpares para que o passado seja analisado de forma significativa e contextualizado. Ao que lembra Carr (2002, p. 25), A história exige a seleção e ordenação de fatos sobre o passado à luz de algum princípio ou norma de objetividade aceito pelo historiador, que necessariamente inclui elementos de interpretação. Sem isso, o passado se dissolve em uma confusão de inumeráveis incidentes isolados e insignificantes, e a história não pode ser escrita de modo algum. O historiador Carr (2002, p. 26) expõe que história significa muito mais do que a simples coleta e narração das experiências vividas; história é interpretação; a “história é o que o historiador faz”, constituindo-se num contínuo processo de interação e diálogo entre presente e passado. Ao estabelecer os diálogos entre passado e presente, observamos que a presença do documento, como objeto que é, exprime idéias, valores, crenças, interesses de quem o escreveu eo resguardou, pois concordamos com as palavras de Le Goff (1996, p. 9- 10) ao dizer que o documento “[...] não é um material bruto, objetivo e inocente, mas que exprime o poder da sociedade do passado sobre a memória e o futuro.” Assim, ao pensar em interpretar o modelo escolar da Escola Doméstica de Natal, onde o corpus documental maior encontra-se nos arquivos da própria instituição, tivemos o cuidado de fazer a leitura meticulosa desse corpus com um olhar mais atento, afoito e questionador sobre as informações nele descritas, posto que os espaços que servem como locais da pesquisa (arquivos) e os documentos neles pesquisados devem ser vistos sob diversos aspectos, críticos e reflexivos, uma vez sabendo que os documentos não são neutros, inócuos, na expressão de Le Goff (1996, p. 547-548): [...] é antes de mais nada o resultado de uma montagem, consciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando-lhes o seu significado aparente. Da escrita do autor, apreendemos que a leitura do documento não deve se dar 21 com idéias preconcebidas nem com ingenuidade, posto que o documento não é neutro, mas impregnado de valores sociais, culturais, políticos, merecendo, por isso, maior atenção por parte de quem o manuseia e dele tenta abstrair a essência dos acontecimentos. Esse olhar ampliou também a abordagem teórico-metodológica, fazendo aproximar a História de outros campos do conhecimento como a Sociologia, Geografia, Economia e principalmente a Antropologia, numa abordagem mais global de interpretação, contemplando uma leitura voltada para os documentos como testemunhos de história e histórias. Essa postura metodológica no trato com os documentos sintetiza um método oposto ao que propõe a corrente positivista, pois esta corrente cria um modelo de conhecimento da realidade que limita a visão de documento ao material escrito, oficial, assim como limita a interpretação dos fatos. No que se refere à interpretação dos acontecimentos, a corrente positivista propõe que “[...] o cientista social deve pôr de lado sistematicamente todas as prenoções antes de começar a estudar a realidade social. Essas prenoções seriam ‘viseiras’ que impediriam de ver o que realmente estaria se passando.” (LOWY, 1985, p. 42). Nessa perspectiva teórica, temos que considerar que essa receita clássica da vertente positivista é utópica e inviável, impossível de ser aplicada aos estudos que pretendam desvendar a história problematizando-a, conhecendo-a nas múltiplas interfaces e nuances das realidades distintas. É difícil considerar as proposições apontadas pelo sociólogo Durkheim (considerado um precursor do positivismo) ao defender que “[...] o sociólogo deve rodear de todas as precauções possíveis contra sugestões irracionais. Opor a essas paixões irracionais acalma a imparcialidade científica, o sangue-frio.” (DURKHEIM apud LOWY, 1985, p. 42). Acreditamos que é inviável pesquisar sem trazer para o corpus da nossa análise os desejos e as paixões, os interesses, a nossa percepção de vida e de mundo. A subjetividade é uma realidade presente desde os primeiros momentos em que realizamos as escolhas, delimitamos o objeto da pesquisa e o percurso da mesma. Como seria essa escolha pensada com o pressuposto da objetividade? Mera ilusão do pesquisador! Assim como é difícil pensar na pesquisa segundo os postulados positivistas, é questionável também os locais que abrigam e resguardam os documentos que servem de suporte à memória. A disposição dos documentos em determinados espaços sofrem seleções por parte de pessoas e instituições que definem a sua importância ou não em ser resguardado e servir de legado histórico. As palavras escritas por Le Goff (1996), na sua obra ‘ História e Memória ’, ecoava em nossas lembranças, nos diversos momentos da realização do levantamento e análise das fontes. Nesses momentos, pensávamos sobre as suas afirmações que dizem: 22 De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, que pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores. (LE GOFF, 1996, p. 535). Portanto, refletíamos sobre suas palavras escritas e as trazíamos para o nosso plano de investigação, reconhecendo que os documentos que versam sobre os acontecimentos da Escola Doméstica de Natal são produtos de escolhas, seleções, de acordo com os interesses da instituição e/ou de pessoas em fazer memorar o que consideravam relevante, o que deveria ser lembrado, lido e perpetuado pelas gerações dos que passaram e permanecem na história dessa instituição pioneira na educação da mulher no Brasil, nos moldes Suíço e Escolanovista. O historiador Veyne (1995) também conclama a reflexão sobre a ótica imposta pelas fontes documentais, devendo ser este aspecto o centro da reflexão sobre o conhecimento histórico, onde perguntas devem ser levantadas, as problemáticas colocadas, para que não falte uma atitude mais crítica por parte do pesquisador em relação ao material analisado. Os suportes materiais existentes que auxiliaram na pesquisa, clareando o objeto de estudo, dando vida à sua existência, foram diversos. Seu corpus foi composto de correspondências, livros, ofícios, relatórios, fotografias, jornais, revistas, textos mimeografados, considerando que as fontes retratam uma época, práticas, momentos, imaginários; são, portanto, prenúncios que permitem a leitura de novas investigações sobre a Escola Doméstica de Natal. Os autores Carr (2002) e Le Goff (1996) chamam a atenção para a correlação documento/construção histórica, ao lembrar ao pesquisador/historiador que as informações contidas nos documentos não lhes chegam de forma pura, descontextualizada, pois são sempre refratadas através da mente do registrador. Assim alguns registros importantes encontrados nos documentos precisam ser processados pelo historiador antes de serem usados, necessitando trabalhar o material pesquisado para decifrá-lo. Neste raciocínio, os documentos são essenciais ao trabalho de reconstituição histórica, sabendo que eles, por si só, não constituem a história; são fragmentos que precisam ser interpretados, atribuindo-lhes vida e significado. Na leitura das experiências históricas sobre a instituição escolar feminina que estudamos, buscamos as indicações de Certeau (2002, p. 81) quando adverte que o historiador, no seu oficio: 23 Longe de aceitar os ‘dados’, ele os constitui. O material é criado por ações combinadas, que o recortam no universo do uso, que vão procurá-lo também fora das fronteiras do uso, e que o destinam a um reemprego coerente. É o vestígio dos atos que modificam uma ordem recebida e uma visão social. Instauradora de signos, nem apenas nem primordialmente, o efeito de um olhar. É necessário aí uma operação técnica. Portanto as condições de produção e arquivamento dos documentos pesquisados foram consideradas, no sentido de analisar as possíveis tentativas de se legar um testemunho à posteridade. Concordamos com a afirmação de Le Goff (1996) que lembra ao historiador/pesquisador o fato acima referido e que: Quer se trate de documentos conscientes ou inconscientes (traços deixados pelos homens sem a mínima intenção de legar um testemunho à posteridade), as condições de produção do documento devem ser minuciosamente estudadas. [ ] Nenhum documento é inocente. Deve ser analisado. Todo o documento é um monumento que deve ser des- estruturado. O historiadornão deve ser apenas capaz de discernir o que é ‘falso’, avaliar a credibilidade do documento, mas também desmistificá-lo. (LE GOFF, 1996, p. 110). As maneiras de pensar as particularidades e realidades diversas de determinadas épocas através das fontes documentais devem incidir no questionamento dos vestígios deixados como testemunhos de um tempo. Neste sentido, a busca do pesquisador deve ser mais analítica que a primeira leitura desses vestígios, concordando com as palavras de Bloch (2001, p. 83) ao destacar que: A despeito do que às vezes parecem imaginar os iniciantes, os documentos não surgem, aqui, ou ali, por efeito de [não se sabe] qual misterioso decreto dos deuses. Sua presença ou ausência em tais arquivos, em tal biblioteca, em tal solo, deriva de causas humanas que longe de terem apenas o alcance de exercícios de técnicos, tocam eles mesmos no mais íntimo da vida do passado, pois o que se encontra posto em jogo é nada menos do que a passagem da lembrança através de gerações. As palavras de March Bloch nos fez pensar, ao pesquisarmos as práticas da Escola Doméstica de Natal, sobre a existência do Memorial dessa instituição, espaço que 24 aloca os documentos de época sobre o percurso histórico da Escola. Visualizamos esse local como um espaço que tem por finalidade perpetuar uma memória e as fontes que lá se encontram cumprem uma certa cronologia de idéias, imprimindo uma memória gloriosa sobre a trajetória da instituição. Na nossa pesquisa, fizemos uso da iconografia, tomando-a como fonte documental e, nesse sentido, a leitura realizada das imagens como documentos possibilitou retratar uma época, através de sua leitura simbólica. As fotografias não figuraram no trabalho como meras ilustrações e apoio ao texto escrito. Trazê-las para o corpo da nossa pesquisa representou para nós desvendar possíveis significados circunscritos e materializados no imaginário das (os) professoras (es) e alunas da escola Doméstica de Natal. Uma grande dificuldade e obstáculo ao uso da fotografia é o seu acesso. Muitas delas podem ser utilizadas como fontes para a história da educação, porém, em sua maioria, pertencem a arquivos particulares. No caso específico da nossa pesquisa, as fotos pesquisadas e trazidas para o corpo do nosso trabalho pertencem ao acervo particular da Escola Doméstica de Natal. Houve também certa dificuldade para identificar as fotos; algumas continham em seu corpo a data em que foram registradas, outras não tinham a data definida; as com data registrada nos possibilitou fazermos aproximações do período a partir de alguns elementos que levassem à compreensão daquela época, através da observação da vestimenta, dos costumes espelhados nos penteados, corte de cabelo, calçado, gestos, modos de se comportar, etc. Esse procedimento foi importante afinal, como nos lembra Miguel (1993, p. 124): A fotografia tomada como documento histórico precisa ser decodificada e apreendida em sua conotação. É preciso romper com as pesquisas que se orientam a partir da ‘teoria do espelho’, isto é, aquelas que encaram a fotografia como reflexo da realidade e tentam compreende-la através de suas proposições evidentes. Considerando a fotografia como um corpo de signos e todo signo como constituinte ideológico, a questão do sentido que o permeia somente pode ser formulada a partir do estudo das relações dos signos com aqueles que os emitem. A fotografia é sempre uma mensagem situada, produzida por alguém e com endereço determinado. Assim como na leitura do texto escrito, houve uma leitura interpretativa das fotografias, através das quais surgiram possibilidades de identificá-las no contexto, considerando: as condições de produção da imagem, a sua inserção social, o autor da foto, os 25 sujeitos nela inseridos, as suas vinculações institucionais e as formas como ela foi resguardada. Os registros fotográficos presentes no Memorial da Escola Doméstica de Natal foram resultantes de uma organização da instituição com a finalidade de estabelecer certa cronologia para os melhores momentos vividos pela escola, formulando, através dessa periodicidade, a sistematização de acontecimentos memoráveis. Grande parte do acervo fotográfico foi doado por pessoas (ex-alunas, ex-professoras, funcionárias...) que passaram pela instituição e outra parte do acervo é fruto de registros já existentes no próprio estabelecimento educacional. Em cada momento histórico, os pesquisadores e a sociedade criam suas condições de interpretação do real e esta realidade é apreendida e registrada de diversas formas. Entendemos que as imagens corporificam concepções culturais coletivas. Elas podem retratar o imaginário de uma época e não o real como tal, porque elas produzem diversas representações da realidade. Nesta compreensão, surge a necessidade de realizar os entrecruzamentos com o texto escrito e com outras imagens de época. Nas primeiras décadas do século XX, historiadores como March Bloch, Lucien Fevre, Lê Goff, dentre outros, buscaram interpretar o documento para além do texto escrito, enfatizando a idéia de que o homem poderia fazer história a partir de diversos vestígios humanos: fotografias, objetos, testemunhos orais, etc. Esse pensamento materializado e publicado em diversos artigos defendidos por esses pesquisadores contribuiu significativamente para o entendimento da palavra documento para além do registro escrito e oficial significando o alargamento dos registros históricos, o que de fato acreditamos ter enriquecido o campo dos estudos históricos. Na prática da pesquisa, buscar nas fontes os acontecimentos, explícitos ou não, sobre a Escola Doméstica de Natal e o que contribuiu para as autoridades políticas, educacionais e intelectuais criá-la, tornou-se vivo, dinâmico e presente ao olhar do hoje. Isto é uma busca do passado feita, não com propósito e intuito de explicitar o presente, e sim no sentido singular ao que Bloch (2001) defende sobre o conhecimento do passado. Nas suas palavras: O conhecimento do passado reavivado pelas tintas do presente, num exercício vigoroso de comparação que tem claro e preciso o pressuposto de que a ignorância do passado não se limita prejudicar o conhecimento presente. Vai além, compromete, no presente a própria ação. (BLOCH, 2001, p. 2). 26 A História, nesse contexto, pôde ser percebida não como ciência do passado, uma vez que tal idéia é contestada pelo autor, mas como ciência dos homens no tempo, o passado que atrai homens pela busca das raízes e identidades e o presente que se constitui no lugar da prática do historiador. Assim na visão de Motta (1998), a História (como ciência) comporta uma operação intelectual quando, ao criticar as fontes, reconstruindo-as à luz de uma teoria, realiza uma interpretação do passado, onde o que importa não é somente a noção de um consenso, mas também a de conflito. Não tivemos, pois, a intenção de eleger a história para justificar as práticas educativas da Escola Doméstica de Natal, recuando a um período histórico distante e objetivando evidenciar que o presente, no qual estamos mergulhados, tem a sua justificativa devido aos acontecimentos do passado. Não buscamos uma história invertida, fragmentada, nem a glorificação de um passado, mas sim a compreensão entre os elos que se estabelecem entre passado, memória, presente e o conhecimento histórico, para desvelar o nosso objeto de estudo (a história da Escola Doméstica de Natal, seu modelo escolar, saberes, práticas escolares, sua pedagogia), através de um passado construído pela memória. O caminho de investigação que percorremos desencontra-se com a tarefa atribuída ao historiador menos atento, na expressão de Certeau (2002), com os ‘não ditos na História’, pois para esse autor, vários motivos, dentre eles pessoais e grupais, suscitam a nãorevelação dos acontecimentos na história e assim alguns acontecimentos passam a ser registrados e outros legados. Inversamente aos ‘não ditos’, a tentativa na nossa pesquisa tem sido a de vasculhar os pedaços deixados, contidos nas memórias documentais e nas falas de alguns depoentes, sujeitos que atuaram na instituição pesquisada tentando explicitar as nuanças implícitas em registros históricos; memórias diversas, plurais, que são fontes históricas, cuja compreensão simboliza conhecimento de nossa identidade enquanto sujeito histórico, ativo, crítico e empreendedor de suas histórias, percebendo os elos entre o tempo presente e o passado. Expressa o sentido que Ferro (1989, p.100-101) atribui à tarefa do historiador: “Dotar um grupo, uma nação de sua memória, restituí-la - esta é de fato uma das funções do historiador. A segunda é sem dúvida, contribuir para a inteligibilidade do passado, dos vínculos entre o passado e o presente.” A memória emerge como elemento mediador das lembranças sob o efeito de uma série de pensamentos individuais e coletivos, com unidade e multiplicidade que o tempo muitas vezes, contribui para apagar e o historiador envida esforços de reavivar as tintas desse passado, destacando que as lembranças fazem parte das memórias dos sujeitos e não são 27 lineares, posto que: A sucessão de lembranças, mesmo daquelas que são mais pessoais, explica- se sempre pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos meios coletivos, isto é, em definitivo, pelas transformações desses meios, cada um tomado à parte, e em seu conjunto. (HALBWACHS, 1990, p. 51). Um dos primeiros pesquisadores da memória enquanto fenômeno social, Halbwachs (1990), chamou a atenção nos seus estudos para percebê-la enquanto objeto coletivo e social, construído, portanto, sujeita a flutuações e mutações constantes. Adepto também dessa lógica, Pollak (1992) sinaliza para a importância de compreendermos uma das características da memória, que é ser seletiva, porque nem tudo fica gravado e registrado nas nossas memórias e por ser objeto social é considerada elemento de disputa política, onde é possível a existência de conflitos para determinar os acontecimentos e datas que devem permanecer memoráveis numa sociedade. Evidenciando a idéia, também defendida por Halbwachs (1990), que a memória é um fenômeno construído por sujeitos que são sociais, temos a necessidade de a articularmos em três elementos-chave: os acontecimentos, o personagem e o lugar. Compreendemos, pois, essas relações da história e da memória contidas num passado que se entrelaça com o presente e o futuro, mantendo relações afastadas e próximas de forma dinâmica, permeadas de entrecruzamentos que caminham em sentidos variados, e não de forma unívoca e singular como uma reta. Bosi (1998) que estudou sobre as memórias presentes nos grupos como identidade de pertença (onde um grupo se identifica no próprio grupo) e também o conhecimento do sujeito em relação a si próprio, considera que: Não há evocação sem uma inteligência do presente, um homem não sabe o que ele é se não for capaz de sair das determinações atuais. Aturada reflexão pode preceder e acompanhar a evocação. Uma lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. Sem o trabalho da reflexão e da localização, seria uma imagem fugidia. O sentimento também precisa acompanhá-la para que ela não seja uma repetição do estado antigo, mas uma reaparição. (BOSI, 1998, p. 81). 28 Eis um aspecto da memória para o qual Bosi (1998) nos chama a atenção, nos seus escritos sobre “memória e sociedade”: a importância que deveríamos atribuir ao passado, assim como aferimos ao presente. Concordamos com a autora que a memória como função social deve ser buscada, pois a capacidade de compreender e relacionar as vivências passadas com as atuais é um exercício de reconhecimento e pertence ao hoje, constituindo elemento importante para a construção da identidade coletiva e do sujeito individual. Na busca por um passado distante e ao mesmo tempo presente na nossa história local, as fontes mapeadas que deram suporte à investigação, além dos arquivos da Escola Doméstica de Natal, já referenciados, foram buscadas no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e no jornal A República. A idéia presente no momento da seleção e estudo desses espaços foi a de que “[...] mapear fontes é preparar o terreno para uma crítica vigorosa que constitua novos problemas, novos objetos e novas abordagens.” (LE GOFF; NORA, 1979, p. 18). Então, mesmo com a existência de alguns estudos já realizados sobre a Escola Doméstica de Natal, a nossa proposta se debruça no desvelar da instituição escolar, buscando elementos de análise além dos estudos existentes, a exemplo de Pinheiro (1996) que dedicou sua análise às idéias do intelectual potiguar Henrique Castriciano, sua visão de educação, política, e cultura, abordando de forma breve a criação da instituição Escola Doméstica. Nesse estudo dissertativo de Pinheiro (1996), o foco central foi o personagem Henrique Castriciano de Souza. Na pesquisa realizada por Barros (2000), a trajetória histórica da Escola Doméstica é evidenciada, destacando-a quanto aos seus moldes de administração, organização e funcionamento. Esse estudo não se centrou na cultura escolar da instituição, mas trouxe no seu corpus pontos relevantes para conhecermos a evolução histórica da instituição, algumas de suas práticas educativas, a composição do quadro das primeiras docentes e diretoras enfim, sua estruturação no decorrer dos anos. Temos ainda a destacar a dissertação de mestrado de Albuquerque (1981) que priorizou a trajetória de Castriciano na política e na educação, apresentando uma breve incursão das Escolas Domésticas no Rio Grande do Norte e no mundo. Muito embora sem deter-se em uma análise mais profunda da Escola Doméstica de Natal, o autor deixou algumas contribuições de pesquisa, principalmente quando se refere à documentação levantada. Acreditamos que a História é uma ciência interpretativa que nunca repete os fatos, portanto marcada por continuidades, descontinuidades, rupturas e não linearidades, havendo igualmente para quem a constrói uma relatividade do olhar para os acontecimentos e os relatos que deles possam surgir, no sentido que Veyne (1995) denomina de 29 “individualização do olhar”; pois, é isto que torna singular a cada historiador a sua riqueza de idéias e percepções das nuanças perante as experiências e acontecimentos mais gerais. Pela característica de ser dialética, a História e sua escrita não merecem ser apenas explicitadas mediante leis universais, apuradas indutivamente através de generalizações como ocorreu principalmente nos primórdios do século XIX, com o positivismo de Augusto Comte, engessando a História numa masmorra de vidro, purificando-a das influências subjetivas do ser humano e provando ser a melhor via de conhecimento da verdade absoluta dos fatos como se fosse possível separar o objeto do indivíduo. Esses tempos passaram, mas ainda persistem nos dias atuais, pois nos legou marcas e influências significativas nos modos de construção dos objetos de estudos e das formas diversas de se fazer pesquisa. A percepção que sustentou o nosso estudo sobre o que vem a ser História foi um dos pilares e nos moveu no sentido de buscarmos um olhar diferente para os documentos e para a Escola Doméstica de Natal, não nos moldes como foi analisada até então por alguns estudiosos, mas penetrando em no seu interior, tentando evidenciar que existe uma cultura escolar (ou várias culturas na escola) e que esta se manifestou sob diversas formas: na organização do tempo escolar, na estruturação dos conteúdos escolares, nos regimentos de controle das formas de se comportar no interior da escola, na composição do quadro docente enfim,a cultura escolar está presente na história de vida da escola e de como se materializa nos objetos e pessoas que dela fizeram parte. Entender essa matriz de pensamento conduziu a uma análise da instituição escolar para além da sua estrutura material e de funcionamento; implicou perceber a escola como espaço, na mesma linha de raciocínio atribuída por Frago (1994) que delineia a instituição escolar imbricada numa rede de relações sociais, considerando-a numa sociologia das organizações e antropologia de práticas cotidianas. Neste sentido, a escola materializa eixos e idéias, mente e corpo, objetos e condutas, modos de pensar, decidir e fazer, ritos, hábitos, simbologias. Ver a escola como espaço significa reconhecer que o espaço habitado não é neutro, é uma construção social, é condição de quem o habita e nele convive. O espaço, portanto, comunica e varia em cada cultura. No primeiro momento da nossa pesquisa, o mapeamento que realizamos dos estudos já existentes sobre a Escola Doméstica de Natal nos proporcionou uma nova abordagem, novos questionamentos e saberes, bem como um levantamento acerca dos documentos que versam sobre a trajetória da referida escola. A teoria que nos fundamentou foi percebida não como produtora da verdade, mas indispensável para estabelecer relações reflexivas com atividades concretas, criando-se uma teia de significados. A relação 30 teoria/empiria é formulada em dois planos: o histórico-social, onde a teoria depende da prática à medida que a define e é o seu fundamento, o avanço do conhecimento e o plano das operações práticas, onde a teoria pode questionar e problematizar a prática, estabelecendo correspondências, diálogos construtivos entre ambas. Isto se torna importante para a compreensão da nossa pesquisa por ser um exercício de antecipação e articulação, onde as relações dialéticas entre ambas se entrelaçam no decorrer do trabalho com as fontes, com os documentos, proporcionando maior visibilidade à construção de uma história menos fragmentada e mais interpretativa. Diante da dimensão do aparato documental, na imbricação dos registros a caminho da construção de significados, a tentativa de garantir a forte presença no texto do nosso objeto, a Escola Doméstica de Natal e suas ações educativas foi uma finalidade a perseguir. A preocupação primeira foi manter o objeto no texto, de modo que mostrasse independência e existência próprias, oferecendo caracteres de autonomia (STAROBINSKI, 1995). Tentamos perseguir no decorrer da pesquisa a seguinte proposição: a de que a Escola Doméstica de Natal, desde suas origens, apresentou objetivos para a formação da mulher de acordo com os propósitos republicanos e de uma pedagogia que era moderna na época por isso a defesa da instituição por um ensino ativo e moderno, uma educação pautada nos valores cívicos, civilizados, condizentes com os valores da nova organização social que se estabelecia com o advento republicano despontado no início do século XX, que priorizava a ordem e o progresso. (NAGLE, 2001). Junto com o discurso da identidade nacional, era também apregoado o discurso da modernização da sociedade brasileira, segundo Horta (1994), como uma forma de atendimento às exigências da vida moderna. Nos ideais dos intelectuais que fundaram a Escola Doméstica de Natal, ela representaria esses anseios republicanos, de trazer para a cidade do Natal ares de progresso e modernidade. As fontes diversificadas nos cruzamentos realizados subsidiaram a construção do objeto de estudo sobre a Escola Doméstica de Natal, auxiliando a clareá-lo ao emergi-lo do universo dos arquivos, mas também o depoimento dos sujeitos que atuaram na instituição Escola Doméstica como diretoras, funcionárias (os) do estabelecimento, professoras (es), constituindo um corpus no universo da investigação. O depoimento oral, portanto, contribuiu não como puro preenchimento deixado pelo vazio documental, mas como articulador do diálogo com outras fontes iconográficas e também para identificação e análise de narrativas não reveladas pela subjetividade dos documentos escritos. Debruçamos particular atenção aos desvios das narrativas dos depoentes, o que 31 nos foi possível por termos feito o entrecruzamento de fontes orais, escritas e também pelo fato de realçarmos, na nossa análise, que os referentes abstraídos das memórias advêm de indivíduos possuidores de olhares e discursos diferenciados e o que faz com que eles norteiem sua percepção do mundo que o rodeia. No caso das falas orais, a memória individual de cada depoente só teve sentido em função de sua inscrição no conjunto social das demais memórias, permitindo o conhecimento do fenômeno social, pois: “[...] quando se valoriza, na fala contida da narrativa gravada, o conjunto de conteúdos ditos como fator decisivo para as análises, as questões afeitas à memória despontam com caminhos indicativos dos exames sociais.” (MEIHY, 2002, p. 42). O passado contido nessas memórias, que são impregnadas de idéias reporta a um tempo social, cultural, histórico, a um passado que não deve ser compreendido como uma coleção de conhecimentos isolados, um reservatório estático de memórias, concordando com a afirmativa de Bruner (1997) ao lembrar que “uma história é sempre a história de alguém ou algo e como tal, requer uma análise detalhada e contextual.” Neste sentido, Veyne (1995, p. 27) também aponta idéias que complementam as de Bruner, quando afirma que “os fatos não existem isoladamente, mas têm ligações objetivas; ligações, laços objetivos, nas suas atribuições e importância”. Nessa análise contextual, o testemunho oral foi tomado como portador de sentido, representando papel importante no processo de reconstituição histórica da memória, possibilitando trazer à tona traços fugidios, às vezes, não registrados nos documentos escritos, assim como as vivências e vestígios indispensáveis à apreensão do objeto de estudo em seus diversos ângulos. Apresentamos como exemplo as palavras expressas por alguns sujeitos que lecionaram na Escola Doméstica de Natal, que contribuíram para o enriquecimento do texto, clareando aspectos ainda não suficientemente esclarecidos através da análise dos documentos escritos, favorecendo a melhor percepção do nosso objeto de estudo. É relevante destacar a leitura que Halbwachs (1990) tece sobre o indivíduo tomado como testemunha de um tempo, de uma memória, tendo como fio condutor em sua análise a memória coletiva repercutindo na memória individual de forma dinâmica e interativa. Bosi (1998) tomando esse raciocínio de Halbwachs escreveu sobre a memória de idosos e nesse estudo observou que: Uma memória coletiva se desenvolve a partir de laços de convivências familiares, escolares, profissionais. Ela entretém a memória de seus membros, que acrescenta, unifica, diferencia, corrige e passa a limpo. 32 Vivendo no interior de um grupo, sofre vicissitudes da evolução de seus membros e depende de sua interação. (BOSI, 1998, p. 408). Constatou também a autora que “por muito que deva à memória coletiva, é o indivíduo que recorda. Ele é o memorizador e das camadas do passado a que tem acesso pode reter objetos que são, para ele, e só para ele, significativos dentro de um tesouro comum”. (BOSI, 1998, p.408). A memória individual, onde os indivíduos recordam no sentido literal, ganha sentido quando inserida num coletivo que é construído por grupos sociais. O individual, portanto, compõe o corpus da memória coletiva (HALBWACHS, 1990) porque cada membro da sociedade define-se no intergrupal, nas suas relações com os outros e para que a memória individual se auxilie interligue-se com a do outro, não é necessário que haja ponto total de concordância no grupo ao qual o sujeito está inserido, realçando que: Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimentodo passado para se obter uma lembrança. Ë necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. Somente assim podemos compreender que uma lembrança possa ser ao mesmo tempo conhecida e reconstruída. (HALBWACHS, 1990, p. 34). Muito embora não tenhamos especificamente trabalhado com a história oral, pois a nossa pesquisa foi principalmente documental, optamos por ouvir algumas pessoas que fizeram e fazem parte da história da Escola Doméstica de Natal. Nesse sentido, consideram-se os sujeitos individuais ouvidos durante as entrevistas realizadas, porque as atitudes de reconstrução individual da memória de cada sujeito que atuou na ED operaram-se também de práticas compartilhadas a partir de uma cultura escolar grupal que se estabeleceu na escola, comungada, portanto, por diversos agentes. Na busca pelas memórias da Escola, a leitura de algumas obras escritas por um sujeito individual, Henrique Castriciano, contribuiu para a compreensão do seu pensamento e este influiu diretamente na criação do Projeto Escola Doméstica num dado contexto da cidade do Natal nas primeiras décadas do século XX, palco de transformações econômicas, culturais e sociais, no cenário local, com desdobramentos no cotidiano e nos 33 anseios dos seus moradores, revelando um novo perfil para a cidade, marcada pela busca do progresso material e espiritual. Lançamos a tentativa de propiciar uma abordagem epistemológica e metodológica que tentasse distanciar e também aproximar, quando necessário, a relação objeto/sujeito. O uso de técnicas complementares às análises documentais, a aplicação da entrevista semi-estruturada e uma reflexão sobre os dados em toda a sua riqueza nos fez apropriar-se da idéia de que: “A abordagem da investigação qualitativa exige que o mundo seja exatamente examinado com a idéia de que nada é trivial, que tudo tem um potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensão mais esclarecedora do nosso objeto de estudo.” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 49). Algumas poucas entrevistas estruturadas parcialmente possibilitaram um diálogo com sujeitos que vivenciaram e compartilharam de perto as idéias pedagógicas da Escola Doméstica de Natal. As informações apreendidas serviram para a análise dos dados. Atentamos para o que Burke (1992) nos diz sobre a expressão amnésia social que se consubstancia na seleção, por parte do indivíduo, no processo de construção de memórias, implicando em escolhas entre os acontecimentos do passado e o que grupos consideram que devem ser lembrados/rememorados, sob pena de ameaçar a unidade do grupo, questionando a sua identidade, colocando em foco o interesse comum. Perceber as regras, os motivos que suscitaram a supressão e exclusão de dados nesses diálogos foram difíceis para que se operasse uma reconstituição de memórias, trazendo acontecimentos, projetos renegados e/ou esquecidos, tendo presente nessa operação a articulação com as fontes escritas para tecer comparações das escolhas e opções. Segundo Burke (1992, p. 88): Para questionar a memória é preciso então, reconstruir uma gama variável de interpretações da evidência que se pretenda estudar. Somente assim fazendo, torna-se possível a aproximação com a realidade então vivida, fugindo do perigo de um juízo moral que se antecipe ao resgate da evidência, contaminando a própria investigação. As entrevistas foram fontes importantes na nossa pesquisa. Classificaram-se em exploratórias e ilustrativas. As primeiras enquadraram a pesquisa de acordo com os interesses do pesquisador e as ilustrativas funcionaram como uma oportunidade para a busca 34 de pistas e/ou informações historiográficas que suscitaram novas entrevistas e a formulação de novas problemáticas. Para conseguir localizar as pessoas entrevistadas, recorremos ao diálogo anterior com professoras e direção atual da Escola Doméstica de Natal, bem como à leitura de alguns artigos publicados em jornal local que se referiam a depoimentos dados por ex-alunas da escola. A partir dessas pistas, procuramos, em conversas informais com funcionárias da ED, identificar as residências dessas pessoas para fazermos um primeiro contato. Através dessas aproximações, pudemos entrevistar algumas dessas ex-alunas (não foi possível entrevistar algumas ex-alunas devido a problemas de mudança de endereço, situações de doença ou outros motivos). O diálogo inicial com determinados sujeitos, aparentemente desnecessários, funcionou como elo para localizar outros depoentes e novas fontes precisas para a efetivação da pesquisa. Na tentativa de entender as formas de representações sobre o universo cotidiano das práticas educativas da Escola Doméstica de Natal, o foco das entrevistas semi- estruturadas com as ex-alunas da instituição escolar incidiu na preocupação em perceber o cotidiano escolar dessas alunas, seus costumes, valores. Nesse momento, a entrevista foi revestida de uma singularidade que exigiu do pesquisador habilidade para agir, para que os seus objetivos fossem alcançados. Nesses encontros, a forma de comunicação (não influenciando nas respostas das entrevistadas), a maneira de estabelecer os diálogos e interações com as informações recebidas das entrevistadas e o ponto de encerramento do diálogo foram etapas cuidadosas e bem articuladas, administradas corretamente para que houvesse sucesso e não implicações negativas durante a entrevista e/ou bloco de entrevistas. A forma de assegurar posteriormente uma possível análise mais cautelosa das falas dos entrevistados foi disponibilizada a partir da gravação eletrônica de alguns depoimentos. Essa gravação ocorreu com a autorização expressa da (o) entrevistada (o), esclarecendo-se a forma de divulgação dos dados, bem como atendo-se à questão ética, ou seja, não comprometendo a integridade e identidade do sujeito e as informações por ele cedidas. Em nossa pesquisa, a entrevista consistiu numa conversa intencional entre a pesquisadora e o sujeito entrevistado (a), apoiando-se na visão de Haguette (2000) quando diz que a entrevista pode ser definida como um processo de interação social, de captação de informações, que pode ocorrer entre duas ou mais pessoas, dependendo dos propósitos do pesquisador. No diálogo com o outro, a palavra do sujeito entrevistado vai sendo tomada enquanto ato concreto, mediada por discursos que relatam histórias de vida, de experiências, 35 temporalidades diferenciadas como ato que expressa uma cultura de vida. Segundo Brandão (2002, p. 40): [...] a entrevista é trabalho, reclamando uma tenção permanente do pesquisador aos seus objetivos, obrigando-o intensamente à escuta do que é dito, a refletir sobre a forma e conteúdo da fala do entrevistado, os encantamentos, as indecisões, contradições, as expressões e gestos. Tivemos o cuidado de organizar um roteiro de entrevista não constando de uma listagem de perguntas a serem feitas, mas sim de pontos e tópicos relevantes correlacionados à problemática da pesquisa, e o cuidado de informar ao sujeito o objetivo da entrevista, garantindo qual informação obtida seria posta no trabalho, não pondo em foco a ética profissional, mas respeitando-a. Do material gravado durante a entrevista o importante não foi a pura transcrição das falas dos sujeitos, mas os pontos mais relevantes extraídos nos diálogos. Assim as frases recorrentes (que se repetiam com freqüência) dos discursos funcionavam como indícios para a identificação ou não de consensos e conexões de sentido, assim como as contradições nos discursos, as falas implícitas, as coerências nas respostas e outros aspectos apontavam
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