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O ESPAÇO FUNERÁRIO NO EGITO ANTIGO: A TUMBA DE NAKHT (REINO NOVO, c. 1401 – 1353 A.E.C.). VOLUME I - TEXTO PEDRO HUGO CANTO NÚÑEZ UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA III: LINGUAGENS, IDENTIDADES E ESPACIALIDADES O ESPAÇO FUNERÁRIO NO EGITO ANTIGO: A TUMBA DE NAKHT (REINO NOVO, c. 1401 – 1353 A.E.C.). VOLUME I - TEXTO PEDRO HUGO CANTO NÚÑEZ NATAL, MAIO DE 2021 PEDRO HUGO CANTO NÚÑEZ O ESPAÇO FUNERÁRIO NO EGITO ANTIGO: A TUMBA DE NAKHT (REINO NOVO, c. 1401 – 1353 A.E.C.). VOLUME I - TEXTO Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa III: Linguagens, Identidades e espacialidades, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação da Profa. Dra. Marcia Severina Vasques e coorientação da Profa. Dra. M. Violeta Pereyra. NATAL, MAIO DE 2021 Canto Núñez, Pedro Hugo. O espaço funerário no Egito Antigo: a tumba de Nakht (Reino Novo, c. 1401-1353 A.E.C.) - Volume I / Pedro Hugo Canto Núñez. - 2021. 373f.: il. Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2021. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marcia Severina Vasques. Coorientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Violeta Pereyra. 1. Egito Antigo - Dissertação. 2. XVIII Dinastia - Dissertação. 3. Costumes Funerários - Dissertação. 4. Tumbas de Particulares - Dissertação. 5. Tumba de Nakht - Dissertação. I. Vasques, Marcia Severina. II. Pereyra, Maria Violeta. III. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 94:393 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748 PEDRO HUGO CANTO NÚÑEZ O ESPAÇO FUNERÁRIO NO EGITO ANTIGO: A TUMBA DE NAKHT (REINO NOVO, c. 1401 – 1353 A.E.C.). Dissertação aprovada como requisito para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão formada pelos professores: _________________________________________ Nome da Orientadora _________________________________________ Nome da Coorientadora __________________________________________ Nome do Avaliador Externo ________________________________________ Nome do Avaliador Interno ____________________________________________ Nome do Suplente Natal, _________de__________________de____________ AGRADECIMENTOS Em um período de pandemia, que se iniciou no primeiro semestre de 2020 e perdura até a escrita desses agradecimentos, todas as pessoas que me ajudaram direta ou indiretamente merecem todos os agradecimentos possíveis e impossíveis. Para essas, os meus mais sinceros “obrigado”! Gostaria de agradecer imensamente a minha orientadora e mãe acadêmica, Marcia Vasques, que, ao longo de todos os anos de orientação, tornou-se uma grande amiga, a qual eu sei que posso contar em todos os momentos que ela sempre estará lá, seja para falar sobre videogames, para corrigir uma crase, ou para falar da vida. Muito obrigado por tudo! Agradeço bastante a minha mãe, Carla Silvia, por todos esses anos de confiança e encorajamento em tudo que eu desejo fazer. Você é uma grande inspiração para eu ser quem sou e sem ela nada disso seria possível. Obrigado, mãe! Castanha com Baunilha sempre! Aos meus familiares: meu primo, Danilo, um pingo de perfeição nesse mundo; minha avó, Ana, que sempre esteve ao meu lado; minha dinda, Alessandra, minha segunda mãe; meu dindo, Bruno, quem eu tenho como ídolo desde que me entendo por gente; meu pai, Edwin, que sempre me encoraja; meu irmão, que eu amo; meu tio Bezerra, Celly, Diógeno, Nelci, Neli, meu avô... Agradeço demais todos vocês! À minha namorada, Rebeca Nadine. Embora não consiga achar palavras suficientes para agradecer você, gostaria de dizer “obrigado” por toda sua paciência em me ouvir falar sem parar sobre o Egito, por me ajudar nos tempos difíceis e ter regozijado comigo nos bons... Muito obrigado por estar sempre ao me lado e me mostrando o melhor da vida! Aos meus amigos, Leonardo, Danny, Esther, Laís, Alaíde, Talita, Arthur, Liliane, Hannah, Erick, Alba... Obrigado por todos os momentos tranquilos (ou não)! À minha coorientadora, Maria Violeta Pereyra, por ter visto potencial nessa pesquisa e me auxiliado de tantas formas que não consigo achar palavras! Gostaria de agradecer imensamente a todos professores e funcionários que me auxiliaram em minha trajetória acadêmica, direta ou indiretamente! Por fim, agradeço à Capes pela bolsa e ao PPGH-UFRN por ter possibilitado o desenvolvimento dessa pesquisa. Que novos dias venham e que as instituições de ensino voltem a ser valorizadas pelo governo para, assim, fornecerem esperanças ao povo brasileiro! Life is very long… (T. S. Eliot – The Hollow Men) RESUMO Nakht, um escriba e astrônomo do deus Âmon, teve sua tumba construída em uma colina, chamada atualmente de Sheik el-Qurna, na cidade de Tebas, atual Luxor, entre os anos de 1401 e 1350 A.E.C., que a faz pertencer ao Reino Novo (c. 1550-1070 A.E.C.), mais especificamente à XVIII Dinastia (c. 1550-1307 A.E.C.), entre os reinados de Tutmés IV e Amenhotep III. Nossa intenção nessa dissertação é analisar a tumba de Nakht (TT 52), compreendendo o discurso funerário produzido pela elite tebana na XVIII Dinastia, assim como o período histórico ao qual ela está inserida. Para tanto, este trabalho está dividido em quatro partes, cada uma buscando interpretar esse espaço funerário do macro para o micro, a saber: construir a Paisagem tebana da XVIII Dinastia, na qual a tumba será analisada em conjunto com outras do mesmo tipo e temporalidade; examinar a estrutura da tumba e os objetos encontrados, elucidando os rituais efetuados em seu interior; inserir as imagens dispostas nela em um contexto espacial e analisá-las; e, por fim, compreender os textos em conjunto com as imagens. Para este fim, utilizaremos teorias tanto da própria Egiptologia como da Arqueologia e Antropologia, disciplinas que se relacionam com a História, como a Arqueologia Cognitiva, de Colin Renfrew, e o Ambiente Construído, de Amos Rapoport, com suporte da Teoria do Engajamento Material, de Lambros Malafouris, e da proposta metodológica de Valérie Angenot para análise de imagem e texto, propondo, então, um Sistema de Atividades Ritualísticas para a tumba de Nakht (TT 52). Palavras-chave: Egito Antigo; XVIII Dinastia; Costumes Funerários; Tumbas de Particulares; Tumba de Nakht (TT 52). ABSTRACT Nakht, a scribe and astronomer of the god Amon, had his tomb built on a hill, now called Sheik el- Qurna, in the city of Thebes, current Luxor, between 1401 and 1350 BCE, which makes it belong to the New Kingdom (c. 1550-1070 BCE), specifically the Eighteenth Dynasty (c. 1550-1307 BCE), between the reigns of Thutmose IV and Amenhotep III. Our intention in this dissertation is to analyze the tomb of Nakht (TT 52), understanding the funerary discourse produced by the Theban elite in the Eighteenth Dynasty, as well as the historical period to which he lived. Therefore,this work is divided into four parts, each seeking to interpret this funerary space from makros to mikros: build the Theban Landscape of the Eighteenth Dynasty, in which the tomb will be analyzed together with others of the same type and temporality; inspect the structure of the tomb and the objects found, explaining the rituals performed inside; insert the images in a spatial context and analyze them; and finally comprehend the texts together with the images. To this proposition, we will use theories of Egyptology itself in addition with Archaeology and Anthropology (disciplines that relate to History), such as Colin Renfrew's Cognitive Archaeology and Amos Rapoport's Built Environment, assisted by Lambros Malafouris’ Material Engagement Theory, and Valérie Angenot's methodological proposal for image and text analysis, thus proposing a System of Ritualistic Activities for Nakht's tomb (TT 52). Keywords: Ancient Egypt; Eighteenth Dynasty; Burial Costumes; Private Tombs; Tomb of Nakht (TT 52). LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1.1: Mapa simplificado de Tebas. ..................................................................................... 22 Figura 1.2: Vista longitudinal da margem ocidental de Tebas (Nilo-área agrícola-montanhas). 23 Figura 1.3: Mapa da Necrópole tebana – Vale dos Nobres. ......................................................... 24 Figura 1.4: Mapa da cidade de Tebas. .......................................................................................... 28 Figura 1.5: Templo de Karnak. .................................................................................................... 32 Figura 1.6: Nebamun vistoriando as produções das terras. .......................................................... 34 Figura 1.7: Categorias de pessoas que utilizam as terras dos templos na XX Dinastia (a partir do Papiro Wilbour). ............................................................................................................................ 36 Figura 1.8: Distribuição espacial dos templos funerários em Tebas. ........................................... 39 Figura 1.9: Plano de templo tripartido (Khonsu), Karnak............................................................ 42 Figura 1.10: Tebas durante o reinado de Amenhotep III. ............................................................ 45 Figura 1.11: Vias Processionais na margem ocidental de Tebas. ................................................ 50 Figura 1.12: Principais festivais e seus itinerários em Tebas. ...................................................... 55 Figura 1.13: Mapa da Paisagem da margem ocidental tebana da XVIII Dinastia. ...................... 66 Figura 1.14: Planta da TT 192. ..................................................................................................... 69 Figura 2.1: Capítulo 89 do Livro dos Mortos de Ani. .................................................................. 82 Figura 2.2: Planta da tumba de Nakht (TT 52). ........................................................................... 86 Figura 2.3: Plano longitudinal da tumba de Nakht (TT 52). ........................................................ 87 Figura 2.4: Fotografia retirada na frente da TT 52. ...................................................................... 88 Figura 2.5: Localização da TT 52 pelo Google Maps. ................................................................. 89 Figura 2.6: Vista da TT 52 pelo Google Maps. ............................................................................ 90 Figura 2.7: Divisão esquemática de uma tumba tebana de particular em três níveis horizontais. 93 Figura 2.8: Tumbas tebanas e suas tipologias de acordo com Kampp-Seyfried (2003). ............. 95 Figura 2.9: Aparência de uma tumba da XVIII Dinastia. ............................................................ 96 Figura 2.10: Reconstrução da fachada da TT 52. ......................................................................... 97 Figura 2.11: Caixão de Tamyt. ................................................................................................... 114 Figura 2.12: Descanso de cabeça octogonal............................................................................... 118 Figura 2.13: Jogo senet encontrado na tumba de Merymaat, em Ábidos. ................................. 121 Figura 2.14: Esboço do item 8 da listagem de Davies. .............................................................. 123 Figura 2.15: Esboço do item 9 (pernas da cadeira) da listagem de Davies. ............................... 123 Figura 2.16: Esboço do item 9 (partes laterais da cadeira) da listagem de Davies. ................... 124 Figura 2.17: Esboço do item 10 da listagem de Davies. ............................................................ 124 Figura 2.18: Esboço do item 11 da listagem de Davies. ............................................................ 125 Figura 2.19: Esboço do item 13 da listagem de Davies. ............................................................ 126 Figura 2.20: Esboço do item 14 da listagem de Davies. ............................................................ 127 Figura 2.21: Caixa de shabtis de Henetmehyt. .......................................................................... 128 Figura 2.22: Vaso de cerâmica amarela da tumba de Nakht. ..................................................... 130 Figura 2.23: Esboço do item 16 da listagem de Davies. ............................................................ 131 Figura 2.24: Esboço do item 17 da listagem de Davies. ............................................................ 132 Figura 2.25: Esboço do item 647 do catálogo de Petrie, Qurneh............................................... 134 Figura 2.26: Esboço do item 657 do catálogo de Petrie, Qurneh............................................... 134 Figura 2.27: Cone funerário de Nakht e de sua esposa Tawi. .................................................... 136 Figura 2.28: grampo de cabelo de madeira, datado do Reino Novo. ......................................... 139 Figura 2.29: Estojo de maquiagem e varas de madeira. ............................................................. 139 Figura 2.30: As três fotografias da estatueta de Nakht. ............................................................. 141 Figura 3.1: Planificação do plano decorativo da TT 52. ............................................................ 165 Figura 3.2: Visão da parede leste (saída da tumba) na projeção tridimensional da TT 52. ....... 168 Figura 3.3: Recorte da cena das oferendas em desenho (parede leste). ..................................... 168 Figura 3.4: Motivos iconográficos na parede leste (cena das oferendas funerárias) da TT 52. . 170 Figura 3.5: Destaque nas representações de Nakht e Tawi da cena de oferendas da TT 52. ..... 170 Figura 3.6: Destaque nas representações das mesas de oferendas da parede leste da TT 52. .... 172 Figura 3.7: Detalhe da tumba de Pedamenopet, TT 33. ............................................................. 174 Figura 3.8: Vetorialidade da cena de oferendas funerárias da TT 52. ....................................... 177 Figura 3.9: Desenho da cena agrícola na TT 52. ........................................................................ 179 Figura 3.10: Visão esquemática da paisagem do vale do Nilo................................................... 180 Figura 3.11: As estações egípcias comparadas com o calendário ocidental moderno. .............. 181 Figura 3.12: Detalhe dos homens trabalhado com enxadas na TT 52, cena agrícola. ............... 183 Figura 3.13: Detalhe dos homens semeando na TT 52, cena agrícola. ...................................... 185 Figura 3.14: Detalhe dos homens incorporando sementes ao solo por pisoteamento na TT 52. 186 Figura 3.15: Detalhe do uso de animaispara incorporar sementes ao solo arando na TT 52. ... 187 Figura 3.16: Detalhe do segundo registro da cena agrícola da TT 52. ....................................... 188 Figura 3.17: Destaque do terceiro registro da cena agrícola da TT 52. ..................................... 188 Figura 3.18: Instrumento utilizado para debulhar o grão no Egito Antigo, de madeira. ............ 190 Figura 3.19: Detalhe da cena agrícola da tumba de Nebamun (TT E2). .................................... 192 Figura 3.20: Vetorialidade da cena agrícola da TT 52. .............................................................. 193 Figura 3.21: Vinhetas do Capítulo 110 do LDM nos papiros de Nakht, Nebseny e Userhat. ... 195 Figura 3.22: Comparação dos motivos iconográficos do Capítulo 110 do LDM com as paredes sudeste e noroeste da TT 52. ....................................................................................................... 196 Figura 3.23: Parede noroeste da TT 52. ..................................................................................... 198 Figura 3.24: Participantes humanos da cena de caça e pesca da TT 52. .................................... 200 Figura 3.25: Cena de caça e pesca no pântano da tumba de Menna (TT 69). ............................ 201 Figura 3.26: Detalhe dos peixes entre os barcos representados na parede noroeste da TT 52. . 202 Figura 3.27: Detalhamento do corte dos Alopochen aegyptiaca na TT 52 e comparação com o fragmento da tumba-capela de Nebamun. ................................................................................... 204 Figura 3.28: Vinicultura e caça de pássaros da TT 52. .............................................................. 205 Figura 3.29: Vetorialidade da parede noroeste da TT 52. .......................................................... 207 Figura 3.30: Desenho da parede sudoeste da TT 52. ................................................................. 209 Figura 3.31: Reconstrução da parede sudoeste da TT 52 com base nas tumbas de Menna (TT 69) e Nebamun (TT E2). .................................................................................................................... 210 Figura 3.32: Detalhe do gato na parede sudoeste da TT 52. ...................................................... 217 Figura 3.33: Capítulo 17 do LDM de Hunefer. .......................................................................... 218 Figura 3.34: Projeção tridimensional da parede oeste da TT 52. ............................................... 219 Figura 3.35: Vetorialidade da parede oeste da TT 52. ............................................................... 219 Figura 3.36: Desenho da parede sul da TT 52. .......................................................................... 221 Figura 3.37: Vetorialidade da parede sul da TT 52. ................................................................... 225 Figura 3.38: Parede norte da TT 52............................................................................................ 227 Figura 3.39: Desenho da parede norte da TT 52. ....................................................................... 228 Figura 3.40: Vetorialidade da parede norte da TT 52. ............................................................... 230 Figura 3.41: Teto da TT 52. ....................................................................................................... 231 Figura 3.42: Visão de saída na projeção tridimensional da TT 52. ............................................ 233 Figura 4.1: Demarcação das inscrições da parede noroeste da TT 52. ....................................... 244 Figura 4.2: Ordem das inscrições analisadas. ............................................................................. 252 Figura 4.3: Nomenclatura dos nichos da porta-falsa. ................................................................. 259 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Tipos de solos das Vias Processionais ......................................................................... 48 Tabela 2: Tumbas de particulares de Tebas entre os reinados de Tutmés IV e Amenhotep III. .. 58 Tabela 3: Divisão esquemática de uma tumba tebana de particular em três níveis horizontais. .. 93 Tabela 4: Status social do membro da elite de acordo com os objetos encontrados na tumba. . 150 Tabela 5: Composições possíveis da TT 52 para wnw.tj “astrônomo”. ...................................... 272 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: Quantidade de tumbas construídas durante os reinados de Tutmés IV e Amenhotep III ....................................................................................................................................................... 64 Gráfico 2: Porcentagem de tumbas construídas durante os reinados de Tutmés IV e Amenhotep III ....................................................................................................................................................... 65 Gráfico 3: Tumbas tebanas construídas entre os reinados de Tutmés III e Amenhotep IV. ........ 67 Gráfico 4: Porcentagem do Grupo A (indivíduos com mais de um cargo) e do Grupo B (indivíduos com apenas um cargo). .................................................................................................................. 72 Gráfico 5: Cargos dos indivíduos proprietários das tumbas referentes à temporalidade de Tutmés IV e Amenhotep III........................................................................................................................ 73 Gráfico 6: Tipos de tumbas de particulares entre os reinados de Tutmés IV e Amenhotep III. .. 98 Gráfico 7: Categorias de personagens da cena agrícola e da parede noroeste da TT 52. ........... 208 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AJA: American Journal of Archaeology, Nova Iorque. ASAE: Annales du Service de Antiquités de l’Égypte, Institut Français d’Archéologie Orientale du Caire, Cairo. BCLE: Bulletin du Cercle lyonnais d’Égyptologie Victor Loret, Lyon. BFA: Bulletin of the Faculty of Arts. University of Cairo, Cairo. BIE: Bulletin de l’Institute égyptien, depois Bulletin de l’Institute d’Égypte, Cairo. BIFAO: Bulletin de l’Institut Français d’Archéologie Orientale, Cairo. BSEG: Bulletin de la Société d’Égyptologie, Société d’Egyptologie, Genève. BSFE: Bulletin de la Société Française d’Égyptologie, Société Française d’Égyptologie, Paris. CahKarn: Cahiers de Karnak. Centre franco-égyptien d’étude des temples de Karnak. CdE: Chronique d’Égypte. Fondation Égyptologique Reine Élisabeth, Bruxelas. CIREF: Centre d’information, de recherches et d’études francophones, Paris. DE: Discussions in Egyptology, A. Mibbi, Oxford. GM: Göttinger Miszellen. Universität Göttingen, Göttingen. IOS: Israel Oriental Studies. Faculty of Humanities, University of Tel-Aviv, Tel-Aviv. JAOS: Journal of the American Oriental Society, New Haven (Conn.). JARCE: Journal of the American Research Center in Egypt, American Research Center in Egypt, Nova Iorque. JEA: Journal of Egyptian Archaeology, Egyptian Exploration Society, Londres. JNES: Journal of Near Eastern Studies, University of Chicago, Chicago. JSSEA: Journal of the Society for the Study of Egyptian Antiquities, Toronto. JSTOR: Journal of the American Oriental Society, University of Michigan, Ann Arbor. Kêmi: Kêmi. Revue de philologie et d’archéologie égyptiennes et coptes, Paris. LÄ: Lexikon der Ägyptologie, Otto Harrassowitz, Wiesbaden. LDM: Livro dos Mortos. LingAeg: Lingua aegyptia. Journal of Egyptian Studies Semin. für Ägyptologische und Koptologische, Göttingen. MÄS: Münchner ägyptologische Studien, Münchner Universitätsschriften, Berlim, Munique. MDIK: Mitteilungen des Deutschen Archäologischen Instituts, Cairo. NSSEA: Newsletter of the Society for the Study of Egyptian Antiquities, The Society for the Studyof Egyptian Antiquities, Toronto. OLA: Orientalia lovaniensia analecta. Departamento de Orientalismo, Lovaina. OrAnt: Oriens antiquus. Rivista internazionalle del Centro per le Antichitá e la storia dell'ante del Vicino Oriente, Roma. RdE: Revue d’Égyptologie, Société Française d’Égyptologie, Paris, Lovaina. REgA: Revue de l’Égypte ancienne, Paris. Continuação da RevEg. Continuada pela RdE. RevEg: Revue égyptologique, Paris. Continuada pela REgA. RHR: Revue de l’Histoire des Religions, Paris RT: Recueil de travaux relatifs à la philologie et à l’archéologie égyptiennes et assyriennes, Paris. SAK: Studien zur Altägyptischen Kultur, Hamburgo. SAOC: Studies in Ancient Oriental Civilization, The Oriental Institute of the University of Chicago, Chicago. Serapis: American Journal of Egyptology, Chicago (Illinois). TC: Textos dos Caixões. TP: Textos das Pirâmides. Wb: Wörterbuch der Aegyptischen Sprache. ZÄS: Zeitschhrift für Ägyptische Sprache und Altertumskunde, Hinrichs’sche Buchhandlung /Akademie-Verlag, Leipzig, Berlim. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 1 CAPÍTULO 1: A NECRÓPOLE TEBANA ..................................................................... 11 1. CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM FUNERÁRIA TEBANA ....................................... 12 2. VIAS PROCESSIONAIS E GRANDES MONUMENTOS ......................................... 27 3. TUMBAS DE PARTICULARES ................................................................................. 56 CAPÍTULO 2: RITUAIS NA TUMBA DE NAKHT ...................................................... 78 1. A MORTE E A VIDA ................................................................................................... 78 2. A ESTRUTURA DA TUMBA ..................................................................................... 85 3. OS OBJETOS .............................................................................................................. 108 CAPÍTULO 3: O PLANO DECORATIVO DA TUMBA DE NAKHT ...................... 153 1. CONCEITUANDO A ARTE EGÍPCIA ..................................................................... 153 2. OFERENDAS PARA RÊ ............................................................................................ 167 3. CENAS AGRÍCOLAS ................................................................................................ 178 4. CAÇA E PESCA NO PÂNTANO, VINICULTURA E CAÇA DE PÁSSAROS ...... 197 5. BANQUETE FUNERÁRIO ........................................................................................ 209 6. MANTIMENTO PARA NAKHT ............................................................................... 220 7. RITOS FUNERÁRIOS ............................................................................................... 226 8. TETO DA TUMBA ..................................................................................................... 230 9. IMAGENS COMO GUIAS ......................................................................................... 232 CAPÍTULO 4: INSCRIÇÕES DA TUMBA DE NAKHT ............................................ 236 1. OFERENDAS PARA RÊ ............................................................................................ 238 2. CENAS AGRÍCOLAS ................................................................................................ 241 3. CAÇA E PESCA NO PÂNTANO, VINICULTURA E CAÇA DE PÁSSAROS ...... 243 4. BANQUETE FUNERÁRIO ........................................................................................ 249 5. MANTIMENTO PARA NAKHT ............................................................................... 251 6. RITOS FUNERÁRIOS ............................................................................................... 265 7. NAKHT E TAWI NAS INSCRIÇÕES ....................................................................... 271 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 283 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 288 GLOSSÁRIO ..................................................................................................................... 332 APÊNDICE A: MAPA DA NECRÓPOLE TEBANA .................................................. 341 ANEXO A: MAPA DO EGITO ANTIGO ..................................................................... 343 ANEXO B: MAPA DE TEBAS ....................................................................................... 344 ANEXO C: TEMPLO DE KARNAK ............................................................................. 345 ANEXO D: TEBAS NA XVIII DINASTIA (REINADO DE AMENHOTEP III) ...... 346 ANEXO E: CRONOLOGIA EGÍPCIA ANTIGA ......................................................... 347 ANEXO F: LISTA ORIGINAL DOS OBJETOS ENCONTRADOS NA TT 52........ 349 1 INTRODUÇÃO Em seguida, o sumo sacerdote de Âmon, rei dos deuses, Khonsuemhab, disse-lhe [ao akh Niutbusemekh]: “Faça-me um pedido concreto para que eu possa cumpri- lo por você, e eu vou fazê-lo para você. Além disso, terei cinco servidores e cinco servidores, no total dez, oferecendo libações de água e receberão um saco de trigo diariamente. Além disso, o superintendente de oferendas fará libações de água para você”. Então o espírito Niutbusemekh lhe disse: “De que adiantariam as ações que você pensou em fazer comigo? Uma árvore abandonada cresce ao sol? Não é um acaso estar abandonado ao ponto de você não conseguir penetrar na entrada? A pedra ao longo dos anos entra em colapso”. Assim, o rei Mentuhotep, v.p.s.1, sumo sacerdote de Âmon-Rê, rei dos deuses, três homens, cada um [...]. Ele de barco subiu ao templo sagrado do rei Mentuhotep, v.p.s. Eles entraram nela [a tumba] e limparam vinte e cinco côvados na passagem em Deir el-Bahari. Então eles desceram à margem do rio e chegaram ao sumo sacerdote de Âmon-Rê, rei dos deuses, Khonsuemhab, e o encontraram oficializando os ritos no templo de Âmon-Rê. Então ele lhes disse: “Então vocês encontraram um belo lugar para marcar o nome daquele espírito chamado Niutbusemekh para a eternidade por toda a eternidade?” Os três homens responderam de forma unânime: “Encontramos o belo lugar para fazer o nome do espírito durar lá”. Então eles se sentaram diante dele e passaram um dia feliz. O coração de Khonsuemhab se alegrou quando disseram: “Quando o sol apareceu no horizonte”. Então ele contatou Menkau, o superintendente do templo de Âmon e o informou sobre sua tarefa. Ele voltou ao anoitecer para dormir na cidade de Tebas. [...] O trecho acima pertence ao conto intitulado Khonsuemhab y el espíritu, traduzido na íntegra por Valeria Mayocchi e Andrea Zingarelli (2017, p. 273-275) para o espanhol (e, aqui, por nós, para o português) a partir de alguns óstracos que datam, provavelmente, do Reino Novo (c. 1550- 1070 A.E.C.), entre a XVIII (c. 1550-1307 A.E.C.) e XIX Dinastias (c. 1307-1196 A.E.C.). A 1 A abreviatura “v.p.s.” significa “vida, prosperidade e saúde” (“ankh, udja, seneb”, em egípcio antigo), encontrada nos textos geralmente como sinal de respeito, acompanhando as palavras “rei”, “senhor”, “Sua Majestade”, “palácio (do rei)”, entre outros (ARAÚJO, 2000, p. 426). 2 história em questão nos conta sobre um akh2 de nome Niutbusemekh. Este apareceu para o sumo sacerdote do templo de Âmon-Rê, Khonsuemhab, para reclamar sobre o estado de descuido que sua tumba se encontrava. O que se sucede é uma ampla discussão do que o sumo sacerdote promete, promessas que o espírito se queixa de que não seriam cumpridas. O desfecho do conto se dá quando o rei, Mentuhotep, conversa com o sumo sacerdote e os servos que iriam deixar oferendas para Niutbusemekh e todos confirmamque a tumba deste seria rememorada, fazendo com que tanto o espírito quanto Khonsuemhab restaurem a ordem cósmica egípcia. No Egito Antigo, encontramos uma grande quantidade de vestígios funerários, pois estão em áreas que foram melhor preservadas ou não ocupadas posteriormente, fazendo desse escopo documental algo frutífero para ser estudado, com, cada vez mais, novas descobertas e análises sobre essa antiga sociedade. Dessa forma, se entendermos que um mundo póstumo fazia parte das crenças egípcias e que o indivíduo deveria ter sua memória preservada na sociedade para que continuasse a existir nesse Além, compreenderemos que o local de sepultamento do egípcio fora um espaço sagrado de suma importância, que deveria ser preservado para a eternidade. Mesmo que curta, a história de Khonsuemhab e o espírito Niutbusemekh nos faz refletir sobre uma série de questionamentos: por que o espírito se revolta e se encontra com o sumo sacerdote de Âmon-Rê? Qual a função do sumo sacerdote nessa história? O que essa história representa e qual a sua importância para se entender essa Dissertação? A tumba possui, basicamente, a função de guardar o corpo do morto. No entanto, essa simples função, na cultura egípcia, é dotada de inúmeros simbolismos que podemos perceber desde a escolha do local de enterramento até os ritos funerários que eram ali efetuados. As necrópoles egípcias eram geralmente construídas na margem oeste do rio Nilo, associando a morte com o pôr do sol. No caso da cidade de Tebas, a margem ocidental era constituída em grande parte por sepultamentos, como os enterramentos reais no Vale dos Reis e os de particulares, membros da elite como funcionários do palácio, escribas, sacerdotes e artesãos em outras áreas, como Deir el- Medina, Sheik el-Qurna, el-Asasif e el-Khokha. 2 Nesta versão fora traduzido por “espírito”, mas que também pode aparecer em textos acadêmicos como “fantasma” ou “espectro”. No entanto, essas traduções são imprecisas, uma vez que o termo apresenta uma complexa crença egípcia que não é semelhante à ocidental. 3 A morte, por sua vez, é uma questão evidenciada em todas as culturas em todas as épocas. Contudo, o tratamento desse assunto por cada sociedade é o que pode especificar as variadas formas de conceber esse estado de “morte”, natural ao humano. A sociedade egípcia acreditava na ideia de que, ao morrer, o indivíduo passava por um processo de isolamento e, para viver no Além deveria ser reintegrado à sociedade por meio de rituais (ASSMANN, 2003a, p. 141). Tudo isso estava relacionado com as crenças egípcias sobre o corpo, que era dividido em partes (Ka, Ba, cadáver, sombra, coração, o Akh e o nome) no momento da morte e deveria ser recomposto para ser reintegrado à sociedade e assegurar a sua manutenção no Além, algo que deveria ocorrer na tumba por rituais apropriados (ASSMANN, 2003a, p. 141). O conto acima reflete toda uma época de grandes mudanças sociais, políticas e religiosas que fora o Reino Novo (c. 1550-1070 A.E.C.) do Egito Antigo, mais precisamente a XVIII Dinastia. Este fora um momento em que o soberano egípcio precisava se firmar como poderoso, uma vez que tinha passado por um estado de conflitos internos com povos estrangeiros (hicsos) pelo controle do Egito. Concomitantemente à expulsão dos hicsos, à tomada de poder por uma família egípcia e, também, grandes construções de monumentos por todo país comemorando isso, podemos perceber uma elite cada vez mais poderosa. Os textos funerários que outrora foram destinados apenas aos faraós (no Reino Antigo) nos Textos das Pirâmides e, no Reino Médio eram postos em caixões (Textos dos Caixões) destinados aos membros de uma elite restrita, no Reino Novo tornam-se cada vez mais “democráticos”. Naquele momento, uma grande parte da elite tem acesso aos ritos funerários e, mesmo que não sejam os mesmos que os TP ou TC3, o chamado Livro dos Mortos é composto por fórmulas que auxiliam o morto no Além e providenciam o suprimento necessário para o seu mantimento. Os dois personagens centrais do conto, como propõe Maria Martha Sarmiento (2017, p. 285) podem nos encaminhar para uma discussão mais profunda. Como fora dito, o sistema cognitivo egípcio é complexo e repleto de simbolismos. “Khonsuemhab” poderia parecer um nome comum que aparece entre os egípcios a partir do Reino Novo. Contudo, se analisarmos por uma perspectiva etimológica, o nome do sacerdote pode nos indicar uma relação com o deus Khonsu, o filho de Âmon, que, em alguns textos funerários aparece como aquele que auxilia o morto a chegar 3 A partir de agora, iremos utilizar as abreviações para esses textos. A lista de abreviações se encontra no início dessa dissertação. 4 no Além. Se pensarmos em “Niutbusemekh” podemos entender que se trata de um nome raro, composto por uma espécie de trocadilho. “Niut” (njwt) significa “cidade”, indicando, nesse caso, Tebas. Se invertermos e colocarmos “busemekhNiut” (bw-smx-njwt), formamos “Tebas não me esqueças”, o que indicaria uma forma de marcar uma necessidade de manter a memória do morto viva naquela sociedade (SARMIENTO, 2017, p. 288). Dessa forma, retornando aos questionamentos propostos para o conto de Khonsuemhab e o espírito, Niutbusemekh se revoltou com o estado de sua tumba pois, de acordo com a crença egípcia, ele estaria passando por um processo de esquecimento e precisava de um membro da elite que detivesse poder e conseguisse mudar sua situação e, no contexto do Reino Novo, o sumo sacerdote de Âmon-Rê tinha um status social de destaque e seria atendido (aqui também entra o fato de que o sumo sacerdote iria proferir rituais e oferendas para o morto, assegurando sua manutenção no Além). Sendo assim, essa história representa um medo egípcio antigo que sua identidade caísse no esquecimento e, portanto, sofresse as consequências disso no Além, assim como um final positivo, no qual o espírito consegue ser atendido e o sacerdote cumpre sua função. Se pensarmos nessa problemática, poderemos compreender melhor nosso objeto de pesquisa nesse trabalho: a tumba de Nakht (TT4 52). ... Com o objetivo principal de entender cada vez mais o conceito de morte egípcio, nossa dissertação está voltada para o estudo do espaço funerário de uma tumba egípcia de particular5 que data da XVIII Dinastia, Reino Novo. A tumba escolhida para nosso trabalho pertenceu ao escriba e astrônomo do deus Âmon, Nakht, que viveu entre os reinados de Tutmés IV e o seu sucessor, 4 “TT” é a abreviação dada para o termo Theban Tomb, nomenclatura comum para as tumbas tebanas. 5 São chamadas de “tumba de particular” aquelas estruturas funerárias feitas para membros da elite. Podemos perceber que, no Reino Novo, as tumbas de particulares formam uma categoria de sepultamento cada vez mais presente, algo que justifica o processo de “ampliação” de ritos funerários. 5 Amenhotep III (c. 1401-1353 A.E.C.), faraós que estabelecem uma ponte temporal entre os referidos anteriormente. Embora seja uma tumba muito famosa, cujos recortes das imagens da capela funerária aparecem em quase todo livro de divulgação sobre a arte egípcia, esse complexo funerário não fora amplamente explorado e analisado, de modo que podemos numerar os grandes trabalhos sobre essa tumba em poucas obras: um catálogo de 1917 do Metropolitan Museum de Nova Iorque, sob curadoria de Norman de Garis Davies; um livro, publicado em 1991 por Abdel Ghaffar Shedid e Matthias Seidel, que reitera o que Davies apresentou, com o adicional de imagens coloridas da tumba; um capítulo no livro de Sigrid Hodel-Hoenes, lançado em 1991, com explicações sobre o que algumas cenas da tumba representam; um artigo resultado de uma palestra e publicado em 1997, escrito por Dimitri Laboury; e um livro de divulgação escrito por Dietrich Wildung, publicado em 1998, que seleciona alguns recortes das imagens da tumbae os descreve. Além desses trabalhos específicos sobre a tumba, podemos destacar aqui um artigo da Valerie Angenot, de 2012, que demonstra como realizar um trabalho hermenêutico da arte egípcia, comparando a tumba de Nakht (TT 52) com outras mais antigas, apresentando as influências que os artesãos tiveram ao pintar essa tumba. Dos trabalhos citados anteriormente, são explorados pontos que consideramos chave para um entendimento aprofundado do sistema cognitivo egípcio, como a análise plurilateral que utilize tanto a localização geográfica da tumba em comparação com outras de sua temporalidade quanto a sua estrutura, as imagens e os textos presentes e os objetos encontrados. Além disso, a última atualização na tradução dos hieróglifos completos da tumba foi feita em 1917, na publicação de Davies. Nesse sentido, nossa intenção nessa dissertação é atualizar as análises da tumba de Nakht com as discussões atuais da Egiptologia, compreendendo o discurso funerário produzido pela elite tebana na XVIII Dinastia, assim como o período histórico ao qual ela está inserida. Para tanto, este trabalho está dividido em quatro partes, cada uma buscando interpretar esse espaço funerário do macro para o micro, iniciando na construção da Paisagem tebana da XVIII Dinastia, na qual a tumba será analisada em conjunto com outras do mesmo tipo e temporalidade, depois, examinaremos a estrutura, as imagens e, por fim, os textos da mesma. Para esse fim, utilizaremos teorias tanto da própria Egiptologia como da Arqueologia e Antropologia, disciplinas que se relacionam com a História. 6 O espaço funerário aqui proposto foi analisado usanco como teoria a Arqueologia Processual, mais necessariamente a Arqueologia Cognitiva de Colin Renfrew. Este autor defende que, como um primeiro passo concreto, é útil assumir que existe em cada mente humana uma perspectiva do mundo, uma estrutura interpretativa, um mapa cognitivo (RENFREW, 1994), algo que não seja restrito às relações espaciais. Se pensarmos nas possibilidades dessa perspectiva, entendemos que seres humanos não agem apenas em relação às impressões sensoriais, mas ao conhecimento existente do mundo, através do qual essas impressões são interpretadas e recebem significado (RENFREW; BAHN, 2016, p. 392). Dessa forma, podemos apresentar uma certa estrutura na qual um humano, acompanhado de seu próprio mapa cognitivo, depara-se com um determinado problema. Nesse momento, o indivíduo responde tanto às impressões sensoriais percebidas imediatamente quanto a esse mapa internalizado, que inclui uma memória do mundo no passado e previsões do mundo no futuro, gerando sua visão de mundo e a resposta para a problemática encontrada. Nesse sentido, perceberemos que comunidades de pessoas que vivem juntas e compartilham do mesmo cotidiano, falando o mesmo idioma, geralmente, compartilham a mesma visão de mundo (RENFREW; BAHN, 2016, p. 392). Portanto, podemos falar de um mapa cognitivo comum sem negar a individualidade de cada humano (ou grupo) existente nessa sociedade. No caso egípcio, mais necessariamente nas tumbas tebanas do Reino Novo, podemos analisar os diferentes tipos de fontes que possuímos na tumba de Nakht (localização geográfica, arquitetura, objetos, imagem e texto) a partir dessa perspectiva de Renfrew, respeitando as aplicações teóricas permitidas entre os autores. Sendo assim, ao organizarmos esse trabalho partindo de uma perspectiva geral (macro) para o mínimo (micro), podemos explorar esse sistema cognitivo egípcio, corroborando para o desenvolvimento desse mapa cognitivo e resposta de nossa problemática central: qual o discurso funerário desenvolvido e mantido pela elite tebana na XVIII Dinastia? A partir do conjunto de fontes disponíveis do nosso objeto de pesquisa, compreenderemos elas a partir de um Ambiente Construído. Para Amos Rapoport (1982), o ambiente não pode determinar completamente o comportamento humano, uma vez que uma atividade presente em um espaço pode variar. Entretanto, o conjunto dessas atividades, organizado pelo tempo e espaço em um sistema de atividades, pode nos informar sobre a sociedade que vivencia(va) aquele ambiente. Rapoport (1982) acredita que o ambiente se comunica com os participantes por meio de um 7 conjunto de pistas, que são destinadas a provocar emoções, interpretações, comportamentos e transações apropriadas, estabelecendo as situações e os contextos apropriados. Pode-se dizer, então, que o ambiente age como um agente mnemônico, lembrando às pessoas de um comportamento esperado delas. Os ambientes são, portanto, ligações e separações no espaço e no tempo que guiam as ações do participante (RAPOPORT, 1982, p. 81). Esse estudo da então chamada “Comunicação Não Verbal” do Ambiente Construído pode ser contextualizado, analisado e interpretado por três características do ambiente: os elementos fixos, os semifixos e os não fixos. Para identificar tais elementos, devemos entender como determinada sociedade age em um ambiente (RAPOPORT, 1982, p. 87); se pensarmos na antiga sociedade egípcia, podemos identificar a partir da tumba de Nakht. Os elementos fixos são aqueles que não mudam ou se modificam raramente ou de maneira lenta. Estes são organizados no espaço (geralmente com outros elementos) para comunicar um significado para o humano que o utiliza. Os semifixos são aqueles que podem mudar de lugar, como uma cadeira ou mesa. Eles podem e mudam facilmente (de forma rápida), o que torna a análise deles mais difícil, uma vez que pode haver mudanças de significados com a mudança de contexto. Por fim, os elementos não fixos, humanos, que formam o sujeito dos estudos de comunicação não verbal. Os três tipos de elementos podem ser evidenciados na TT 52, mesmo que de maneira implícita. As imagens e as inscrições (assim como a própria arquitetura da tumba) representam os elementos fixos, que estão no espaço para indicar aos visitantes (os elementos não fixos) as suas atividades. Ao realizar essas atividades (rituais), os elementos não fixos, de certa forma, produzem materiais (os elementos semifixos) que identificam o que fora realizado no interior da tumba. Tais elementos semifixos, encontrados na tumba de Nakht, são vasilhames de oferendas e fragmentos de mobília (DAVIES, 1917, Pr. XXIX), que nos auxiliam na compreensão dos componentes das atividades realizadas do interior da tumba. É possível, então, vincular as duas teorias de modo que obtenhamos um Sistema de Atividades Ritualísticas, de modo que entendamos o sistema cognitivo egípcio a partir desse espaço funerário, desse Ambiente Construído. Nosso objetivo principal do Capítulo 1: a necrópole tebana é de construir uma Paisagem funerária de Tebas da XVIII Dinastia. No entanto, devemos em um primeiro momento entender o contexto histórico em que o Egito estava inserido no período de Nakht. A partir disso poderemos refletir sobre as estruturas consideradas principais, os templos de Karnak e Luxor e os templos 8 funerários, assim como as diferentes tumbas de particulares (demonstrando suas particularidades e analisando os locais das construções), e, também, o que torna possível essas conexões, as Vias Processionais e os festivais nelas desempenhados. Temos, portanto, um tríplice foco: compreender que a Paisagem natural é pensada de maneira simbólica (BRADLEY, 1999) pelos próprios habitantes da região de Tebas da XVIII Dinastia; elencar os critérios utilizados para dotar culturalmente a Paisagem, entendo que isso resulta em um espaço adequado para o desenvolvimento de práticas rituais de devoção e aprovação de deuses e personagens divinizados e de culto à memória dos mortos membros da elite (PEREYRA et al, 2018); e, por fim, reconhecer a natureza discursiva que instrui os participantes do culto e outros observadores sobre a maneira esperada de usar a Paisagem, a partir do reconhecimento das funçõesdesempenhadas por cada obra arquitetônica e das trajetórias seguidas durante a circulação ritual pelos participantes nas procissões. No Capítulo 2: rituais na tumba de Nakht, focaremos em tratar sobre as crenças egípcias, voltando o olhar para a estrutura da tumba e os objetos nela encontrados. Dessa forma, tentaremos entender a religião egípcia no contexto da XVIII Dinastia, interpretando como a elite tebana construíra um discurso funerário, que designava uma função (ou funções) para suas tumbas. Compreenderemos como analisar esses dados a partir da Arqueologia da Religião, proposta por Renfrew (1994), e da Comunicação não-verbal em um Ambiente Construído, proposta por Rapoport (1982), iniciando o desenvolvimento do Sistema de Atividades Ritualísticas respaldadas tanto na estrutura da tumba quanto nos objetos encontrados nela. Com o Capítulo 3: o plano decorativo da tumba de Nakht, iremos continuar o desenvolvimento do que estamos chamando de sistema de atividades ritualísticas da tumba de Nakht. Explanaremos sobre a Cultura Visual egípcia, entrando em assuntos como a concepção de arte para os egípcios, a teoria imagética para essa sociedade e em como analisá-la em uma tumba como a de Nakht. A partir disso poderemos inferir problemáticas na complexidade desse espaço funerário, compreendido então pela intersecção da arquitetura, objetos e imagem. Um complexo funerário deveria possuir um espaço considerado público, de modo que os antigos egípcios (geralmente familiares) pudessem visitar a tumba e realizassem oferendas para manter o morto no Além (conforme vimos no conto de abertura dessa introdução). Dessa forma, o ideal era que existissem imagens que guiassem as atividades ritualísticas para manutenção da crença egípcia ali 9 presente, o que nos permite interpretar como Nakht e sua esposa Tawi são dispostos e vistos por esses visitantes. Sabemos que existia no Egito Antigo um sistema de escrita complexo que não deveria ser dissociado da imagem, uma vez que ambos são complementares. Sendo assim, no Capítulo 4: inscrições da tumba de Nakht exploraremos a Cultura Escrita egípcia, comparando imagem e texto nas tumbas de particulares. O texto compõe a última parte dessa dissertação, tanto por ser complexo quanto por necessitar de todas as outras partes para o entendimento pleno, uma vez que iremos analisar essas inscrições em uma tradução atualizada por nós (disponível no Corpus em hieróglifos, transcrita e traduzida para o português e espanhol). Pela prática da leitura não ter sido algo democrático para o período analisado, então já temos um indicativo de que os visitantes que fossem ler essas inscrições seriam uma parcela restrita da própria elite egípcia, fazendo-nos refletir sobre a utilidade dessas inscrições: seriam para o próprio morto? Ao compararmos essas inscrições com o LDM6, poderemos entender melhor esse discurso funerário egípcio e, enfim, construir o sistema de atividades ritualísticas para a tumba de Nakht. Intermediando todos esses quatro capítulos está o Corpus, nosso Volume II da dissertação. Podemos justificar a confecção de um Corpus documental como uma base do trabalho arqueológico (VASQUES, 2005, p. 35), uma vez que indica uma forma de organização metodológica do material da pesquisa. O Corpus apresenta um Título para a parte trabalhada, Material e Técnica, Dimensões, Localização atual, Período, Data, Dinastia, Referências bibliográficas, Inscrições (essa parte está subdividida em Hieróglifos, Transcrição e Tradução para o português -PT- e o espanhol -ES-), e, por fim, a Descrição do que fora trabalhado. Somente a partir dessa explanação é que podemos analisar os pormenores que a antiga sociedade egípcia entendia. Sendo assim, utilizaremos a semiótica e a hermenêutica para auxiliar a interpretar essa sociedade a partir da Arqueologia Cognitiva, uma vez que identificamos seus símbolos e os analisamos a partir de uma série de pressupostos e simbologias propriamente egípcios. Sendo assim, a ideia de construção de um Sistema de Atividades Ritualísticas da TT 52 irá nos auxiliar na compreensão do que fora o discurso funerário do período de Nakht. Com base nas 6 A partir de agora, iremos utilizar essa abreviação para Livro dos Mortos. A lista de abreviações se encontra no início dessa dissertação. 10 conjunturas arquitetônicas, dos objetos encontrados, imagéticas e textuais, interpretaremos o que fora esse espaço funerário. Dessa forma, como podemos analisar Nakht? Quem ele fora? Qual seu papel social na sociedade tebana da XVIII Dinastia? Conseguimos saber disso? E quanto à sua visão do Além? Seria sua própria visão de morte que encontramos em sua tumba? Como esse sistema cognitivo tebano é engendrado? E sobre sua esposa, Tawi? O que podemos encontrar dela na TT 52? Qual o papel feminino representado na tumba? O que podemos interpretar da sociedade egípcia a partir do material que possuímos na tumba de Nakht? Como o Sistema de Atividades Ritualísticas pode ser construído para essa tumba e o que isso auxilia em nossa pesquisa? 11 CAPÍTULO 1: A NECRÓPOLE TEBANA A tumba de Nakht, catalogada como Tumba Tebana de número 52, pertenceu ao funcionário do Templo de Âmon que ocupava o cargo de escriba e astrônomo desse deus. Embora esta tumba esteja em quase todo livro de divulgação da história do Egito Antigo, ela não fora amplamente analisada e revisada de acordo com as mais recentes descobertas dos egiptólogos. Este complexo funerário existe há mais de 3400 anos e podemos retirar diversas informações da sociedade que a construiu se pararmos e refletirmos sobre suas possibilidades. Ao todo, a tumba é considerada pequena se compararmos com as demais deste mesmo período. Apresenta um pequeno pátio de tamanho irregular, uma capela funerária de 4,8m por 1,5m, uma câmara interna de 2,2m por 2,5m e, por fim, uma câmara funerária de dimensões não regulares. Está localizada na região sul do atual sítio arqueológico de Sheik el-Qurna, na margem ocidental da atual Luxor, cidade ao sul do Egito. Uma tumba egípcia apresenta uma complexa visão de mundo, que devemos explanar o mais detalhadamente possível para que possamos analisá-la. Dessa forma, devemos entender suas questões culturais, sociais, econômicas e políticas. Ao escrever sobre os problemas atuais da Egiptologia, o egiptólogo Rune Nyord (2018) defende que necessitamos de atualizações em nossos campos de pesquisa sobre a religião. Dessa forma, precisamos entender que cooperações teóricas e metodológicas entre a Egiptologia e demais áreas do conhecimento, como a Antropologia (e, em nosso caso, também, a Arqueologia) devem ser encorajadas em nossas pesquisas, uma vez que o avanço das discussões nestas duas áreas podem ajudar a quebrar paradigmas tradicionais sobre o Além egípcio (NYORD, 2018), como o entendimento de que uma imagem em uma tumba pode representar tanto algo que estava sendo vivenciado naquela sociedade como um complexo sistema de crenças, que também estavam respaldadas na realidade deles. O trabalho que iremos desenvolver nessa dissertação será o de analisar esta tumba do escriba e astrônomo do deus Âmon, Nakht. Para tanto, devemos inserir tal complexo funerário em seu contexto histórico e espacial. Devemos, então, partir do macro para o micro, de modo que entendamos uma complexidade na formação de tal tumba, uma vez que, assim, podemos perceber melhor o contexto e, para este capítulo em específico, construir a Paisagem funerária tebana. Sendo assim, ao separarmos esta dissertação em quatro capítulos, analisaremos a tumba de Nakht e a 12 Necrópole tebana, a sua arquitetura e os rituais efetuados na mesma, os costumes funerários e a religião egípcia, assim como as conexões entre as cenas da tumba com os textos funerários, que permite identificarmos melhor o sistema cognitivo religioso-funerário egípcio. Dessa forma, nesteprimeiro capítulo, iremos tratar das questões relacionadas ao contexto temporal e espacial em que a TT 52 está inserida, demarcando sua Paisagem. Sendo assim, neste capítulo iremos atualizar as discussões dos egiptólogos sobre as tumbas tebanas de particulares da XVIII Dinastia, tomando como foco a tumba de Nakht (TT 52) e a temporalidade entre os reinados de Tutmés IV e Amenhotep III, uma vez que é a datação aproximada da construção da tumba. Neste capítulo em específico, como mencionado anteriormente, iremos tratar das questões relacionadas ao contexto espacial em que a TT 52 está inserida, demarcando sua Paisagem. Portanto, separamos este capítulo em outras três partes, a saber: as questões teóricas que iremos empregar nesta análise (Arqueologia Processual - Cognitiva e Paisagem); as Vias Processionais como uma tentativa de entender o porquê da tumba de Nakht ter sido construída naquele local (questionando, assim, se existiria um sistema cognitivo para tal feito); e o que havia ao redor da TT 52 (entendendo quais tumbas existiam na época, de modo que possamos indicar ou subentender o status social de Nakht). 1. CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM FUNERÁRIA TEBANA Tebas, foi uma das cidades mais importantes do Egito ao longo de toda sua história. Na Antiguidade, fora um local sagrado, cujo culto central ao deus Âmon concentrara grandes festivais e, portanto, uma significativa importância na religião egípcia. Como explicado anteriormente, nosso objetivo neste capítulo é analisar a tumba de Nakht (TT 52), localizada na cidade de Tebas e construída entre os reinados de Tutmés IV e Amenhotep III (1401-1353 A.E.C.), em comparação com as demais construções desta cidade, de modo que entendamos o seu significado na Paisagem funerária tebana. Para tanto, basear-nos-emos, primordialmente, nas possibilidades teóricas e metodológicas da Arqueologia Cognitiva, pertencente à vertente da Arqueologia Processual, e das teorias de Paisagem, que, para alguns autores, pode unir o melhor da Arqueologia Processual com a Pós-processual. Dessa forma, caberá a nós explicarmos tais teorias para que possamos compreender melhor a TT 52. 13 De acordo com o egiptólogo Kent Weeks (2008, p. 14), a inserção dos estudos arqueológicos na Egiptologia se deu ao longo do século XX, trazendo consigo a possibilidade de analisar melhor essa sociedade, baseando-se principalmente na Cultura Material deixada pelos egípcios, o que nos fornece uma base mais confiável para interpretarmos o seu cotidiano. O “mais confiável” que aqui expomos se refere ao fato de que algo produzido com intuito de ser utilizado no cotidiano, como uma cerâmica ou um objeto de culto, feito para ser útil naquele momento e, posteriormente, descartado. Em contrapartida, um objeto produzido com um propósito específico, como imagens do faraó em templos funerários massacrando seus inimigos, incide de uma subjetividade específica. Atualmente, sabemos que ambos os exemplos são passíveis de análise, se interpretados corretamente, baseados em uma teoria e metodologia própria. Entretanto, é interessante perceber que, com as novas possibilidades da Arqueologia, os egiptólogos conseguiram perceber melhor alguns pontos específicos dos egípcios antigos. Weeks defende que a egiptologia não é mais uma disciplina feita apenas de teólogos, filólogos e historiadores, que, até as décadas de 1960 e 19807, eram generalistas quando refletiam para a história do Egito Antigo (WEEKS, 2008, p. 14). Ao empregarem as análises arqueológicas, como, por exemplo, em ossos de animais, resquícios de plantas, amostras de pólen, argilas, ferramentas líticas, e, também, fragmentos de cestos, os egiptólogos podem extrair o máximo possível de informação sobre esta sociedade (WEEKS, 2008, p. 14-15). Sendo assim, se pensarmos em questões próprias da Arqueologia, podemos tornar complexas nossas análises para a tumba de Nakht e, também, atualizar as discussões acerca desta. Colin Renfrew afirma que a arte antiga e a escrita antiga, ambas ricas fontes de informação cognitiva, são estudadas há muito tempo por estudiosos, mas que, com muita frequência, as pesquisas sobre arte têm sido entendidas como um domínio do historiador da arte e os textos são parte da pesquisa do historiador (RENFREW; BAHN, 2016, p. 391). Desse modo, o problema que cerne o seu desenvolvimento é que a perspectiva arqueológica nesses trabalhos está ausente, o que impossibilita as análises mais completas sobre o sistema cognitivo da época. Renfrew argumenta ao longo de seu manual sobre as teorias, métodos e práticas arqueológicas sobre os alcances de sua linha teórica, chamada de Arqueologia Cognitiva 7 Essas décadas são marcadas, para a Arqueologia, com um forte início das linhas teóricas da Arqueologia Processual e Pós-processual, respectivamente. 14 (RENFREW; BAHN, 2016). O autor defende que o ceticismo dos primeiros arqueólogos da Arqueologia Processual e a empatia não estruturada dos primeiros da Pós-processual podem ser respondidos pelo desenvolvimento de procedimentos explícitos para analisar os conceitos das sociedades antigas e a maneira como elas pensavam (RENFREW; BAHN, 2016, p. 391). Portanto, se seguirmos essa linha proposta, podemos analisar como as pessoas descreveram e mediram seu mundo; como as pessoas planejavam monumentos e cidades, uma vez que o próprio layout das ruas revela aspectos do planejamento; quais bens materiais as pessoas mais valorizavam e talvez viam como símbolos de autoridade ou poder; podemos, também, investigar a maneira pela qual as pessoas conceberam o sobrenatural e como elas responderam a essas concepções em sua prática de culto (RENFREW; BAHN, 2016, p. 391). Nos dias atuais, geralmente são aceitas as ideias que entendem a distinção da espécie humana com outras formas de vida se dá pela nossa capacidade de usar símbolos. Toda forma de cognição, assim como todo discurso coerente são baseados em símbolos, pois as próprias palavras são símbolos, onde o som ou as letras escritas representam e, portanto, representam (ou simbolizam) um aspecto do mundo real. Geralmente, no entanto, o significado é atribuído a um símbolo em particular de maneira arbitrária: geralmente não há nada que indique que uma palavra específica ou um sinal específico deve representar um determinado objeto no mundo e não outro (RENFREW; BAHN, 2016, p. 391). Além disso, o significado atribuído a um símbolo é específico para uma tradição cultural específica. Ao nos depararmos com um relevo egípcio, situado em um templo, com a representação de um homem, maior do que os outros na imagem, com diversas pessoas, menores que ele, presas pelos cabelos em sua mão direita, apenas com pesquisas podemos inferir que essa imagem representa o faraó massacrando seus inimigos. Entretanto, as pessoas que viveram a época em que essa imagem estava sendo construída e, portanto, vivenciada diariamente, não precisavam fazer relações com outras imagens e estudá-las a fundo. O que Renfrew defende é que essas pessoas faziam parte de um sistema cognitivo e, ao olharem para a imagem, reconheciam quem era e como se portar diante desta. É interessante um exemplo que o autor utiliza sobre pessoas que falam idiomas diferentes: estes usam palavras diferentes para descrever a mesma coisa. Pensando nisso, um objeto ou ideia pode ser expresso simbolicamente de várias maneiras diferentes (RENFREW; BAHN, 2016, p. 391). 15 Renfrew aponta que, geralmente é impossível inferir o significado de um símbolo dentro de uma determinada cultura a partir da forma simbólica da imagem ou do objeto. Sendo assim, temos que ver como essa forma é usada e vê-la no contexto de outros símbolos. A Arqueologia Cognitiva deve, portanto, ter muito cuidado com contextos específicos de descoberta: é o conjunto que importa, não o objeto individual isoladamente. Conforme vamos adentramos em discussõesmais profundas sobre a tumba de Nakht, entendemos que este é um dos pontos cruciais para todos os capítulos aqui propostos: a tumba de Nakht existe em um espaço construído para abrigar os corpos de diversos membros da elite egípcia da XVIII Dinastia, a Necrópole Tebana; dentro dela, a sua arquitetura desempenha determinadas funções que podem ser entendidas a partir de ritos funerários (tema do segundo capítulo); nas paredes desta tumba, existem imagens e textos que devem ser analisados em conjunto com os objetos ali encontrados e, também, com a própria arquitetura e localização geográfica deste complexo funerário (temas do segundo, terceiro e quarto capítulos). Dessa forma, é importante aceitar que representações e objetos materiais (artefatos) não revelam diretamente seus significados para nós - certamente não na ausência de evidências escritas. É fundamental do método científico que seja o observador, o pesquisador, quem deve oferecer a interpretação, entendendo que pode haver várias interpretações alternativas e que elas devem ser avaliadas, se necessário umas contra as outras, por procedimentos explícitos de avaliação ou teste com novos dados (RENFREW; BAHN, 2016, p. 392). Esse é um dos princípios da Arqueologia Processual, conforme discutido acima. Alguns Arqueólogos Processuais, principalmente Binford, argumentaram que não é útil considerar o que as pessoas pensavam no passado, defendendo que são as ações e não os sistemas cognitivos das pessoas que encontram seu caminho, principalmente no registro material (RENFREW; BAHN, 2016, p. 392). E é nesse momento que Renfrew quebra com uma perspectiva que considera ultrapassada e inicia a Arqueologia Cognitiva. Dessa forma, se considerarmos que o que encontramos de antigas sociedades (ou até mesmo das contemporâneas) são, em parte, produtos de suas crenças e intenções humanas (que críticos, como Ian Hodder, não negariam), e que isso oferece potencialidades e problemas em seu estudo, podemos entender a sociedade egípcia a partir desse pressuposto, auxiliando para o desenvolvimento da própria Egiptologia ao fazê-lo e, portanto, das análises sobre a tumba de Nakht. Mas, como faremos isso? Qual metodologia para alcançarmos esse objetivo? 16 Renfrew (1994) assume que, como um primeiro passo concreto, é útil assumir que existe em cada mente humana uma perspectiva do mundo, uma estrutura interpretativa, um mapa cognitivo, uma ideia semelhante ao mapa mental que os geógrafos discutem, mas que não se restringe à representação de apenas relações espaciais. Isso é interessante se pensarmos em suas possibilidades. Os seres humanos não agem apenas em relação às impressões sensoriais, mas ao conhecimento existente do mundo, através do qual essas impressões são interpretadas e recebem significado (RENFREW; BAHN, 2016, p. 392). Esquema 1: Mapa cognitivo a partir da Arqueologia Cognitiva. Fonte: Adaptado de Renfrew e Bahn (2016, p. 392, fig. 10.2). No esquema acima, proposto por Renfrew, vemos um indivíduo humano acompanhado (em sua mente) por um mapa cognitivo pessoal. Sendo assim, esse humano, acompanhado de seu próprio mapa cognitivo (representado pelo quadrado), tem acesso a um determinado problema (apresentado diante seus olhos). O indivíduo responde tanto a impressões sensoriais percebidas imediatamente quanto a esse mapa internalizado, que inclui uma memória do mundo no passado (t-1) e previsões do mundo no futuro (t+1), gerando sua visão de mundo e a resposta. Se pensarmos 17 em uma comunidade de pessoas habitando juntas, podermos perceber que se elas compartilharem da mesma cultura e falarem o mesmo idioma, geralmente elas compartilham a mesma visão de mundo (RENFREW; BAHN, 2016, p. 392). Dessa forma, podemos falar de um mapa cognitivo comum sem negar a individualidade de cada humano (ou grupo) englobado por este mapa. Essa ideia oferece uma ampla capacidade de análise. Uma vez que temos disponíveis para tratar sobre a tumba de Nakht diversos tipos de fontes8, que devem ser exploradas em conjunto, devemos confrontá-las com outras fontes disponíveis. Por exemplo, neste capítulo em específico iremos comparar os diferentes tipos de tumbas de particulares, de modo que entendamos esse mapa cognitivo comum entre os membros da elite enterrados na Necrópole tebana da XVIII Dinastia. Entretanto, não devemos olhar apenas as tumbas e seus tipos de modo aleatório. Devemos entender que este espaço, quando analisado como um todo, fornece-nos dados importantes sobre essa sociedade. Dessa forma, precisamos buscar respostas para nossas inquietações nos estudos sobre Paisagem. A discussão sobre Paisagem é infinita para diversas áreas do conhecimento. Por exemplo, uma filósofa francesa, como Anne Cauquelin, pode se remeter à Paisagem como algo que está inteiramente submetida às convenções pictóricas e literárias, entendendo-a como algo que evoca uma natureza e, portanto, subjetiva (CAUQUELIN, 2007). Para nossa perspectiva, arqueológica, Kurt F. Anschuetz, Richard H. Wilshusen e Cherie L. Scheick escreveram, talvez, um dos artigos mais completos sobre as perspectivas que a Paisagem pode tomar na Arqueologia, tanto na linha Processual quanto na Pós-processual. Devemos, portanto, entender a partir deles os paradigmas da Paisagem e suas utilidades para a Arqueologia, uma vez que eles elencam quatro premissas que providenciam os fundamentos principais para este modelo (ANSCHUETZ; WILSHUSEN; SCHEICK, 2001, p. 160-161): 8 Em cada um dos capítulos, nossas fontes irão ser analisadas conforme o que nos proporciona a Arqueologia Cognitiva. A Paisagem funerária de Tebas no primeiro capítulo, tomando como fontes os tipos das tumbas construídas à época. A arquitetura da tumba de Nakht e os rituais nela desempenhados como fonte do segundo capítulo. Os textos, as imagens e os objetos funerários dispostos na tumba para analisar o conjunto proposto nos capítulos três e quatro. Em cada um deles, será retomada e complexificada essa discussão. 18 1. Paisagens não são sinônimos de ambientes naturais. As paisagens são sintéticas, com sistemas culturais estruturando e organizando as interações das pessoas com seus ambientes naturais; 2. Paisagens são mundos de produtos culturais. Através de suas atividades diárias, crenças e valores, as comunidades transformam espaços físicos em lugares significativos. Sendo assim, uma paisagem é uma construção do mundo que vemos e vivemos, identificado e modificado por cada pessoa pertencente a ele; 3. As paisagens são a arena para todas as atividades de uma comunidade. Assim, as paisagens não são apenas construções das populações humanas, mas também o meio em que essas populações sobrevivem e se sustentam; 4. Paisagens são construções dinâmicas, com cada comunidade e cada geração impondo seu próprio mapa cognitivo em um mundo antropogênico de morfologia, arranjo e significado coerente. Entendemos em cada um desses tópicos que as Paisagens podem e devem ser incorporadas (quando possível) ao trabalho do arqueólogo que pretende analisar algum espaço construído por aquela sociedade. Uma vez que as paisagens incorporam princípios organizadores fundamentais para a forma e estrutura das atividades das pessoas, elas servem como uma construção material que comunica informações (HUGILL; FOOTE, 1995, p. 20). Além disso, a paisagem, como um sistema para manipular símbolos significativos nas ações humanas e seus subprodutos materiais, ajuda a definir relacionamentos padronizados habituais entre informações variadas (ANSCHUETZ; WILSHUSEN; SCHEICK, 2001, p. 161). Nesse sentido, Emma Blake (2006, p. 235) afirma que o estudo da paisagem forneceu aos arqueólogos e geógrafos seu ponto de contato recente mais significativo. Blake (2006, p. 235) interpreta ainda que, com isso, os arqueólogos exploravam novas maneiras de conceituar a paisagem e problematizaro determinismo ambiental e as explicações funcionalistas procuravam os escritos geográficos como forma de construir um melhor embasamento teórico e analítico. Os arqueólogos que propuseram estes fundamentos ainda nos informam que os processos de mudança comportamental no espaço e ao longo do tempo necessariamente resultam em um cenário de constantes mudanças, permitindo-nos a análise da TT 52 a partir desse contexto espacial 19 e temporal. Nossa utilização da Paisagem é, portanto, usufruirmos do que esta proporciona sobre as redes culturais e históricas, fazendo-nos interpretar diversas variáveis espaciais e temporais na estrutura e na organização dos traços materiais (ANSCHUETZ; WILSHUSEN; SCHEICK, 2001, p. 162). Desse modo, aplicar uma perspectiva de Paisagem auxilia na construção de um entendimento mais completo acerca das relações sociais e econômicas, além do contexto histórico, ecológico e cognitivo nos quais os humanos interagiam com o ambiente de Tebas da XVIII Dinastia. Neste capítulo, utilizaremos diversas estruturas (como os templos funerários, as tumbas de particulares e as vias processionais que ligam essas construções) para construirmos a Paisagem de Tebas do período. Para tanto, precisamos entender que essas diferentes estruturas, quando analisadas em conjunto, existem e foram construídas dentro do que Amos Rapoport considera como Ambiente Construído. Este arquiteto e antropólogo passou por diversas formulações e reformulações em sua teoria, tendo como a mais utilizada (e, também, madura) por diversas áreas do conhecimento, como Arqueologia, História e Geografia, a que consta no livro O Significado do Ambiente Construído (RAPOPORT, 1982). Mesmo assim, não devemos descartar totalmente suas ideias iniciais, que auxiliaram na formação de sua teoria. Em um artigo publicado em 1974, Rapoport discute sobre o simbolismo no design do ambiente, o qual consiste na argumentação de que os símbolos, em uma determinada cultura, estavam fixados nesta e eram conhecidos e compartilhados tanto pelos seus desenvolvedores, quanto pelo público (RAPOPORT, 1974, p. 61). Dessa forma, as estruturas construídas em uma determinada sociedade, estão relacionadas com os valores desta cultura e, portanto, com seus símbolos, indicando que essas construções existem de modo que são percebidos pela população que as vivenciam e que exercem um certo simbolismo na paisagem dessa sociedade (RAPOPORT, 1974, p. 60). Se analisarmos em publicações posteriores sobre o assunto, essa ideia de Rapoport prevalece, mas não é largamente explicada como neste artigo. Entendemos, assim, que arquitetos e designers ambientais (como Rapoport designa aqueles que planejam o ambiente para construí- lo) não são apenas artistas do espaço, mas também do tempo. Então, Rapoport defende a centralidade do significado na cultura material e a relevância de estudos que abordem padrões específicos de cultura nos restos que as comunidades humanas deixam em terra. Sendo assim, concordamos que, embora gerações de pessoas possam habitar e modificar vários lugares dentro 20 de sua Paisagem comunitária de maneira diferente, os traços materiais residuais compartilham elementos de um padrão organizacional subjacente comum, desde que as tradições culturais fundamentais sejam perceptíveis ao analisarmos esses lugares (RAPOPORT, 1982, p. 17). Essa ideia de Rapoport pode ser desenvolvida a partir do Sistema de Informação Geográfica (SIG)9, mas também podemos utilizá-la para identificar certas particularidades de cada terreno analisado que devem ser expostas e analisadas, algo para levarmos além do que um simples padrão organizacional subjacente comum. Uma possibilidade de análise que utilizaremos aqui é a de Paisagem Ritual, que se baseia nos estudos da distribuição espacial das características ritualísticas, como prédios públicos, monumentos e praças (ANSCHUETZ; WILSHUSEN; SCHEICK, 2001, p. 178), por exemplo. Os estudos da Paisagem Ritual utilizam, assim, modelos espaciais cognitivos idealizados derivados de materiais etnográficos para procurar padrões de similaridade e dissimilaridade no passado. Esses padrões possivelmente se relacionam a mudanças no padrão profundo de diretrizes informadas por ideias que ajudam a condicionar a estrutura subjacente, mas não o conteúdo específico, do comportamento (ANSCHUETZ; WILSHUSEN; SCHEICK, 2001, p. 179). Sendo assim, a utilização da Paisagem Ritual é melhor se pensarmos no contexto do Egito Antigo e, também, das escolhas teóricas desta dissertação10. Sendo assim, uma vez que a cultura material codifica as informações de maneira padronizada, o uso de métodos indutivos pode decodificar observações arqueológicas para nos auxiliar a realizar inferências sobre os significados passados subjacentes às regularidades e desvios observados (RAPOPORT, 1982, p. 86). Ao combinar uma abordagem de Paisagem com a sistemática espacial e temporal desenvolvida pela Arqueologia Processual, é possível incorporar a escala dinâmica da análise de Paisagem com a análise espacial e temporal de escala atribuída de 9 A sigla em inglês, mais encontrada nos textos específicos de estudos em Paisagem Arqueológica, é GIS, que significa Geographical Information Systems. 10 Conforme trabalharemos melhor no segundo capítulo, Colin Renfrew possui sua própria ideia para Ritual, a qual exploraremos em mais detalhes doravante. Entretanto, de antemão já podemos entender que a diferença (ou atualização) consiste na inserção da Arqueologia Cognitiva, compreendendo que o Ritual é praticado por algum grupo de pessoas que interpretam de maneira semelhante por estarem inseridas em um mesmo contexto cultural. 21 padrões característicos da prática arqueológica, interpretada por Anschuetz, Wilshusen e Scheick (2001), como tradicional11. Tebas (em egípcio, Waset - wAst - ) fora uma cidade destaque no Egito Antigo tanto pela sua importância religiosa e administrativa quanto (e atrelado a isso) pela quantidade de achados arqueológicos. Essa cidade não era, de fato, a capital do Egito, mas representava, ao longo do Médio e do Reino Novo, um padrão de cidade que era seguido nas demais da antiga sociedade egípcia. Se pensarmos na cidade atual, Luxor, imaginamos que Tebas tinha toda uma estrutura voltada para os seus dois grandes templos (o de Luxor, ao sul, e o de Karnak, ao norte). Temos, portanto, na Figura 1.1 o mapa de Tebas, com esquemas determinando a circulação e as influências derivadas da localização desses dois templos com o resto da cidade. De fato, essa afirmação não está incorreta, mas devemos tentar reconstruir a cidade da época a partir dos vestígios arqueológicos para que possamos compreender todos os símbolos por trás dessas construções. 11 A utilização da palavra “tradicional”, nesse caso, é em decorrência da pouca (ou precária) incorporação da Arqueologia da Paisagem pelos arqueólogos até o momento da publicação do artigo de Anschuetz, Wilshusen e Scheick, algo que eles discutem no texto. Após 2001, podemos perceber que essa área da Arqueologia fora amplamente trabalhada, tornando-se, cada vez mais, presente nos trabalhos arqueológicos. 22 Figura 1.1: Mapa simplificado de Tebas. Fonte: Adaptado de Pereyra et al (2018, p. 46). Richard Bradley (1999, p. 33-34) argumenta que, embora os então chamados lugares naturais, como a montanha da margem ocidental de Tebas, não possam ser intitulados de “monumentos” porque não foram construídos pelo trabalho humano, eles ainda podem ter importância comparável na mente das pessoas. Para Bradley, a paisagem natural pode manter, ao longo do tempo, sua aparência, apesar de sua percepção e importância serem diferentes (BRADLEY, 1999). Isso entra em consonância com o que propõe Rapoport e Renfrew, identificando que a Paisagem resultante de toda interpretação e construção humana, que não se referem apenasà distribuição de artefatos e estruturas no espaço, ou ao uso de ambientes naturais, 23 mas também aludem a um processo de construção e reconstrução de significados, implica uma ação e reação do ambiente “natural”. Se observarmos na Figura 1.2, vemos uma fotografia recente que demonstra o contraste Nilo-margem ocidental-montanha na cidade de Tebas. Dessa forma, podemos nos questionar sobre a aplicação desses ideais para a margem ocidental de Tebas da XVIII Dinastia. Figura 1.2: Vista longitudinal da margem ocidental de Tebas (Nilo – área agrícola – montanhas). Fonte: Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/David- Ward/publication/50405292/figure/fig1/AS:277409002737664@1443150868259/The-Theban- Mountain-seen-from-the-East-Bank-near-Luxor-The-pyramidal-shape-of-the-El.png. Acesso em: 20 abr. 2021. Liliana Manzi é uma das pesquisadoras que mais possui textos que abrangem essa perspectiva teórica da Paisagem na necrópole tebana e, por isso, basearemos o nosso trabalho no dela, especificando-o para a tumba de Nakht (TT 52). Uma das propostas aqui é que, a partir da Paisagem, podemos entender as expressões de poder tanto do Estado, com os Festivais, por exemplo, quanto da elite tebana, por reclamar o direito de uma vida póstuma (principalmente a 24 partir da XVIII Dinastia). Dessa forma, aproximamo-nos das ideias que defendem a existência de redes simbólicas entre as tumbas e os templos de Tebas. Conforme será melhor exposto adiante, nesses ideais, os nodos principais seriam templos reais, os secundários, as tumbas de particulares, e as vias processionais conectando-os. A Necrópole tebana está dividida, comumente, em três partes: Vale das Rainhas, Vale dos Reis e Vale dos Nobres. Conforme vemos na Figura 1.3, este último possui oito sítios (Deir el- Bahari, Deir el-Medina, Dra Abu el-Naga, el-Assasif, el-Khokha, Qurnet Mura’i, el-Qurna e el- Tarif), os quais possuem diversas tumbas de particulares, que foram construídas em diferentes períodos históricos. No mapa a seguir podemos identificar esses setores da Necrópole tebana. Figura 1.3: Mapa da Necrópole tebana – Vale dos Nobres. Fonte: adaptado de Porter e Moss (1970, Pr. 1). 25 De acordo com Manzi (2010), um espaço é composto em uma paisagem quando esta possui uma atividade contínua entre a geomorfologia e a cultura que vivenciam este espaço; essas atividades geram sedimentos, que destroem ou realizam câmbios contextuais. Dessa maneira, a soma dessas transformações define uma Paisagem Arqueológica, na qual a distribuição de itens não é uma reflexão fiel e precisa de tudo o que aconteceu, mas somente através de sua análise é que podemos conceder inteligibilidade temporal e espacial para que as mudanças possam ser observadas e explicadas, assim como a resistência de certas manifestações do comportamento humano (MANZI, 2010). Desse modo, ao analisarmos a Necrópole tebana vemos que o conjunto de práticas mortuárias encontradas foram consideradas de natureza ritual (PEREYRA et al, 2017, p. 7). Todo o conjunto de achados arqueológicos nesse espaço favorecem a análise sobre a Paisagem funerária tebana. Esses rituais expressavam os usos sociais destinados à manutenção dos dispositivos que definiam as inclusões e exclusões hierárquicas, individuais ou parentais, dos membros da elite no acesso a diferentes segmentos do espaço, o que, no caso de Tebas, era da natureza. marcadamente cerimonial (PEREYRA et al, 2017, p. 8). Dessa forma, podemos entender que o ambiente (geomorfologia) e a sociedade (cultura) que vivenciava esse espaço fornecem sentido a este, gerando, assim, uma relação simbólica entre ambos, uma vez que todas as ações sociais consistem em práticas e representações, constituindo uma dimensão de sua materialidade que explica a formalização da primeira. Uma paisagem cultural ou antrópica é definida através da estruturação dos vários elementos que os indivíduos manipulam e depositam ao longo do tempo em determinados setores. Isso inclui o substrato geológico e os recursos naturais que seus habitantes selecionam dentro de uma gama de elementos representados e com os quais estabelecem interações cujo status social, características e o poder sobre determinado recurso são mediadas pelas prerrogativas desses status e pelos papéis que indivíduos se exercitam dentro de uma população ou sociedade específica (PEREYRA et al, 2017). Essa maneira de entender a Paisagem pode, por sua vez, adquirir outras denominações, dependendo de qual aspecto do comportamento humano é enfatizado. Assim, por exemplo, no caso da necrópole de Tebas, é possível falar de uma Paisagem ritual, sagrada, funerária ou mortuária. Podemos separar em três momentos como iremos reconhecer a Paisagem funerária tebana a partir do que fora proposto por Pereyra (et al 2017, p. 29-30). Em um primeiro momento, devemos reconhecer que a Paisagem natural é pensada de maneira simbólica pelos próprios habitantes da 26 região de Tebas da XVIII Dinastia. Em um segundo momento, devemos elencar os critérios usados para dotar culturalmente a Paisagem, resultando em um espaço adequado para o desenvolvimento de práticas rituais de devoção e aprovação de deuses e personagens divinizados e de culto à memória dos mortos membros da elite, que serviram como âncoras evocativas das representações mentais na ausência de celebrações rituais e onde o papel dos atores sociais variaria, dependendo dos cargos dos indivíduos envolvidos. E, finalmente, em um terceiro momento, passaremos a reconhecer a natureza discursiva que instrui os participantes e outros observadores sobre a maneira esperada de usar a paisagem, através do reconhecimento das funções desempenhadas por cada obra arquitetônica e das trajetórias seguidas durante a circulação ritual pelos participantes nas procissões. Como pode ser percebido ao longo da história do Egito Antigo, as intervenções realizadas pelos faraós, devido à modificação e/ou destruição intencional de certas características naturais ou arquitetônicas ou às novas associações que procuravam estabelecer entre elas, foram induzidas pelo uso contínuo da necrópole Tebana12. Podemos, portanto, entender o porquê de o comportamento humano ser considerado um importante papel como modelador de Paisagens, uma vez que alguns indivíduos, através da tomada de decisões e outros através da execução dessas diretrizes, atuam como agentes produtores, transformadores ou destruidores das características naturais da paisagem (PEREYRA et al, 2017). Nesta linha, é possível analisar a conformação da Paisagem funerária de Tebas a partir de uma perspectiva ocupacional, onde essa arquitetura funerária é responsável pela construção, remodelação ou usurpação e desmontagem de monumentos. Sendo assim, a partir de uma perspectiva mental, poderemos entender como as relações sociais concedem um significado simbólico a essa concessão, manutenção e reocupação das estruturas na margem ocidental tebana. No entanto, Pereyra (et al, 2017) nos previne que não devemos aceitar que as escolhas feitas são sempre racionais e que foram avaliadas (ou pelo menos fornecidas) pelos atores sociais, que agem individualmente, quando se sabe que, como no caso de Tebas, as decisões foram gerenciadas a partir de um poder político altamente centralizado, para o qual eles representam basicamente os 12 Essa questão é interessante, pois, se refletirmos que o ambiente e o humano estão em constante interação, podemos induzir que, as montanhas de Tebas, por exemplo, são locais que serviram como inspiração mística para dar origem à Senhora do Ocidente, um nome para Háthor, protetora dos mortos enterrados em Tebas. Esta, na iconografia das tumbas de particulares e do LDM (Capítulo 186), geralmente aparece como uma vaca saindo de uma montanha, em direção à tumba do morto, de modo a protegê-la (FAULKNER, 2015, Pr. 37-B). 27níveis mais altos da sociedade. Desse modo, vale a pena ressaltar o que Renfrew nos informa sobre a questão da cognição humana e como trabalhá-la (RENFREW, 2012). Devemos, portanto, entender que esses indivíduos, que construíram esses monumentos na margem ocidental de Tebas, fazem parte de uma sociedade, a egípcia, que tem um padrão tanto comportamental quanto cognitivo, expressado pelos seus resquícios arqueológicos. Se pensarmos na Paisagem funerária tebana, é possível enfatizar que, no contexto de um relevo com escassos contrastes, as características mais proeminentes na geomorfologia da área tebana são as colinas, que poderiam ter sido dotadas de associações ao mítico e, ao mesmo tempo, de modo a facilitar o contato visual com os templos funerários13 dos faraós, localizados na margem ocidental do Nilo, e os templos de Karnak e Luxor, na margem oriental, no âmbito da celebração de diferentes festividades e rituais. A distribuição de tumbas, por outro lado, poderia estar relacionada a estruturas consideradas “centrais” (os templos), a partir dos quais o processo de ocupação do espaço teria sido impulsionado, e, desse modo, estabeleceriam laços estreitos com e entre lugares que emanavam poder real (PEREYRA et al, 2017). Sendo assim, são considerados os eixos de circulação - estradas e vias processuais da necrópole - que teriam atuado como organizadores do espaço, canalizando e orientando a atenção dos participantes nas práticas rituais (PEREYRA et al, 2017, p. 30). Dessa forma, podemos entender tanto que a morte é uma das crenças centrais da antiga sociedade egípcia quanto que todos esses pontos são necessários para analisarmos a tumba de Nakht em um contexto mais amplo que ela por si só. 2. VIAS PROCESSIONAIS E GRANDES MONUMENTOS Conforme vimos até aqui, para construirmos a Paisagem funerária tebana precisamos entender suas características simbólicas, como foram desempenhadas (e facilitadas) as práticas rituais, e, então, reconhecer as funções das estruturas e como essas se comunicam. No mapa abaixo vemos Tebas com todas as suas estruturas. Entretanto, ao construir a Paisagem funerária tebana 13 Em egípcio, Templo de Milhões de Anos, era o lugar onde os rituais eram realizados em favor dos antigos faraós e para assegurar a manutenção do governante contemporâneo durante a sua vida e depois da morte. Algumas vezes é referido como “templos funerários” entre os egiptólogos. 28 devemos ter em mente que vamos situar temporalmente na XVIII Dinastia, entre os reinados de Tutmés IV e Amenhotep III, os faraós contemporâneos a Nakht. Figura 1.4: Mapa da cidade de Tebas14. Fonte: Adaptado de Brancaglion Jr., 1999. 14 Mapa disponível em tamanho maior no Anexo B (Cf. p. 344 desse volume). 29 Os hicsos tomaram o Egito dos faraós tebanos, encerrando o período que chamamos de Reino Médio e iniciando o Segundo Período Intermediário. O poder do Egito só foi retomado pelos próprios egípcios a partir da XVII Dinastia, que fora composta por membros da elite tebana que se identificava com os reis do Reino Médio. Dessa forma, a cidade de Tebas possui uma história que nos remete a tempos anteriores ao Reino Novo. Entretanto, construções, como as tumbas de particulares, podem ser observadas em quantidade significativa a partir do Reino Novo, quando existe um processo chamado por alguns egiptólogos de ampliação dos rituais funerários. Conforme Renfrew (2012), um humano interpreta determinado problema a partir de seu conhecimento de mundo e de sua projeção daquele evento, isso a partir do seu sistema cognitivo, que é construído pela sociedade em que está inserido. Sabemos, portanto, que uma sociedade complexa, como a do antigo Egito, possui diferentes tipos de status social e, assim, uma forma de conduta e moral oriunda dos mais altos níveis desse esquema. Essa relação, no Egito Antigo da XVIII Dinastia, pode ser observada a partir do poder que exercem os templos de Karnak e Luxor, guiados pelos seus sacerdotes. Para tanto, precisamos entender, mesmo que brevemente, como se organizava a sociedade egípcia a partir dessas estruturas de poder, os templos (priorizando o maior templo, o de Karnak)15. Remetendo-nos a Berry Kemp (2018), que entende a sociedade egípcia a partir da Arqueologia Processual, teremos uma análise mais social e interpretaremos que os diferentes níveis de status social gera uma ideologia. Por sua vez, essa ideologia precisa de arquitetura para sua expressão mais completa (KEMP, 2018, p. 248). Sendo assim, este autor defende a ideia de que a arquitetura egípcia serviu para dominar as multidões16 e, portanto, manter e regular o sistema social do Egito Antigo. Ao longo do Antigo e Médio Reino, de acordo com a documentação material que temos até os dias atuais, a arquitetura monumental na forma das pirâmides e seus templos foi mantida na periferia do mundo visível: à margem do deserto ocidental entre a entrada do Fayum e Abu Rawash, 15 Veremos isso nas páginas seguintes e retomaremos mais adiante, para tentarmos construir uma identidade para Nakht, observando e comparando com as posições sociais dos demais membros da elite tebana de sua temporalidade. 16 O autor entende que a sociedade egípcia não é estática e, portanto, ao fazer afirmativas como esta, ele situa o contexto histórico até o Reino Novo, uma vez que períodos posteriores realizam cada vez mais trocas culturais e estas modificam a estrutura dos templos, por exemplo (KEMP, 2018, p. 248). 30 ao norte de Gizé (KEMP, 2018, p. 248). Os templos locais ou santuários17, construídos em grande parte com tijolos de barro, foram dimensionados para se ajustarem às densas muralhas, construídas também com tijolos, das cidades e podiam ser quase invisíveis, como no caso do santuário Hekaib em Elefantina. Como instituição, o templo local era um complemento do cargo de chefe da comunidade local, de modo que o título de sacerdote principal (Primeiro Profeta de determinada divindade) era frequentemente mantido pelo “prefeito” local (KEMP, 2018, p. 248). No Reino Novo, a escala monumental e a preferência pela construção de pedra foram levadas para as cidades, o que modifica toda uma estrutura citadina, na qual o templo se torna o edifício central da cidade (ao menos em nosso caso, na cidade de Tebas). Para um entendimento mais completo de como, ao longo do Reino Novo, a sociedade egípcia desenvolveu, a partir dos templos, um forte sistema religioso, dois fatores particulares precisam ser apontados de acordo com o que Kemp defende (2018, p. 248-256). O primeiro surgiu do dualismo estrutural da adoração no templo, acomodando um aspecto oculto e um revelado. No Reino Novo podemos perceber uma grande atenção voltada para este último, a “imagem religiosa portátil”, da qual os mais familiares eram os santuários alojados em barcas. Entretanto, esse tipo de santuário não fora desenvolvido neste período, tendo, portanto, desde cedo, um importante papel simbólico e ritual. Uma vez que, nesse período, identificamos uma ampliação dos ritos, é plausível que tais práticas que tornam públicas e, portanto, dignas de adoração, imagens dos deuses, são cada vez mais incentivadas, como a barca do deus Âmon de Karnak, chamada Userhat-Amun, “Poderoso da proa é Âmon” (KEMP, 2018, p. 248), a qual temos uma versão portátil menor feita nesse período. Os locais de descanso para santuários em barcas, ou estações de passagem, têm um plano distinto: uma câmara oblonga com uma porta em cada extremidade e um pedestal quadrado central de pedra sobre o qual o santuário repousava (KEMP, 2018, p. 249), no quadrante oeste da Figura 1.5. De acordo com Kemp, a maioria dos templos do Reino Novo foi construída em torno do santuário da barca sagrada, e os planos de seu interior e os layouts de seus arredores sagrados exteriores começaram com a intenção de levar a barca para demais localidades, fazendocom que 17 Nesse caso, ainda não possuímos grandes estruturas das quais os egiptólogos costumam chamar de “templos monumentais”, e é possível que, no início, nem o templo de Karnak tenha sido um templo monumental, uma vez que fora aumentado (em construção) por diversos faraós ao longo do Reino Médio e Reino Novo. 31 os templos continuassem a conter imagens fixas de deuses (KEMP, 2018, p. 249). Sendo assim, a escala e o chamado “profissionalismo da religião” no templo do Reino Novo agora mantinham a população cada vez mais inserida e imersa nos rituais, substituindo parte do controle burocrático mais antigo por uma manipulação psicológica maior e mais evidente. Então, como as pessoas adoravam os festivais realizadas pelo Estado, seria correto utilizar a teoria de Renfrew sobre o sistema cognitivo ser moldado a partir de algo conhecido em conjunto. Para o segundo fator de desenvolvimento desse forte sistema religioso, devemos compreender que não era toda a sociedade egípcia que tinha acesso aos templos. Quanto mais interna a estrutura, mais restrito era o espaço e, portanto, mais elitista. Sendo assim, ao pensarmos na arquitetura externa dos templos, de modo a entender como as elites olhavam para o mundo exterior, um mundo que, na maioria das vezes, fora impedido de passar pelas portas do templo, estamos trabalhando com uma dicotomia na sociedade egípcia: os que tentam formar um conhecimento e os que o interpreta e modifica de acordo com sua realidade. As paredes de pedra com cenas pintadas com cores fortes e brilhantes em fundos brancos deslumbrantes não se elevavam diretamente das ruas ou espaços públicos (KEMP, 2018, p. 250). De acordo com Kemp, existia, entre o templo e o mundo exterior, um recinto cheio de prédios de serviço de tijolos e, talvez, santuários menores, todos cercados por uma parede maciça de tijolos de barro18. Se nos remetermos à arquitetura do templo e às cenas que ali estão dispostas (pensando, principalmente, no templo de Karnak), vemos que o portal dianteiro do templo exibia em toda a parede cenas gigantes do rei derrotando seus inimigos na presença dos deuses, o que nos faz analisar que isso seria proposital de cada rei que a fez. Assim, o templo apresentou à sua comunidade duas faces contrastantes: uma de poder temporal, a outra, nos dias dos Festivais, de libertação através da celebração comunitária (KEMP, 2018, p. 252). Na Figura 1.519, vemos a planta do templo de Karnak feita por Cabrol (2001, Pr. 2). O templo está dividido em quatro quadrantes, nomeados a partir de sua localização geográfica. O templo sofreu diversas mudanças ao longo da história do Egito, entretanto, a partir dos estudos arqueológicos, Cabrol (2001, Pr. 2) conseguiu planificar o templo de Karnak da XVIII Dinastia da 18 É interessante pensar que as escavações ao redor dos templos detectaram que esses, em períodos posteriores ao Reino Novo, serviram como pequenas cidades, abrigando tanto a população local como, também, bens preciosos dos governantes, o que fazia desse espaço propício para invasões de exércitos em períodos de guerra (KEMP, 2018, p. 252). 19 No Anexo C (Cf. p. 345 desse volume) nós conseguimos ver a imagem ampliada. 32 forma da imagem. Vemos, portanto, no eixo leste-oeste a maior edificação, o templo de Âmon, com um muro envolvendo-a e, também, aos templos e construções menores que o cerca (como o templo de Khonsu e o de Opet, mais ao sul, e o recinto da barca de Âmon, mais a oeste). No eixo norte-sul, temos, de certa forma, dois anexos, um com uma estrutura mais antiga (sul) que, na XVIII Dinastia, possuía uma função simbólica em festivais, e outro com uma capela central de Karnak (norte). Além dessas estruturas, podemos ver estradas conectando tanto os dois eixos quanto indicando o caminho ao Nilo (partindo do quadrante sul em direção a oeste) e ao templo de Luxor (ao sul). Figura 1.5: Templo de Karnak20. Fonte: Adaptado de Cabrol (2001, Pr. 2). Pensando nesses dois fatores, mesmo que explorados aqui de maneira superficial, podemos seguir os ideais de Kemp de que o Egito era um estado sacerdotal, com uma estrutura social que podemos determinar. Dessa forma, devemos considerar que a religião não pode ser desvinculada 20 Essa planta está disponível em tamanho maior no Anexo C (Cf. p. 345 desse volume). 33 das questões sociais, estando atrelada à política, economia e, portanto, à cultura egípcia. Entretanto, não iremos abordar com detalhes sobre a religião egípcia neste capítulo21. Nosso objetivo até então é entendermos como a ocupação do espaço tebano fora conduzido a partir desse laço construído entre os sacerdotes do deus Âmon e os governantes do Egito, indicando como a sociedade de Tebas vivenciava este espaço. Os templos (principalmente o de Karnak na XVIII Dinastia) exerciam um controle em diversas áreas por possuir, justamente, riquezas. Já citamos esse controle desempenhado a partir das cerimônias e rituais religiosos, que envolviam grande parte da população local. Entretanto, podemos destacar outras áreas, como a agrícola, uma vez que esses templos possuíam grande parte das terras cultiváveis da época, que poderiam ou não ser próximas do templo. Como exemplo, podemos destacar a tumba de Nebamun (TT E2), que está, atualmente, em fragmentos no Museu Britânico, mas que pertencia a este Escriba e Contador de Grãos do deus Âmon, que viveu entre os períodos de Amenhotep III e Akhenaton (um pouco posterior a Nakht) e localizava-se, provavelmente, em Dra Abu el-Naga, Tebas (USICK; PARKINSON, 2008). A partir de alguns fragmentos desta tumba, podemos perceber este servidor do templo de Âmon, que, supostamente, supervisionava as terras do deus, diante de uma riqueza exemplar (PARKINSON, 2009). A Figura 1.6, na qual Nebamun supervisiona as produções, apresenta tal fragmento. Nele, bois e gansos são contatos em abundância, indicando que, ou este servidor possuía grande poder, ou que o próprio templo possuía essa riqueza (ou as duas informações podem ser complementares). Seja como for, isso demonstra um poderio já bem estabelecido e concentrado nas mãos de sacerdotes do deus Âmon e, portanto, indicando claramente essas diferenças de status social e na forma de ocupação do espaço tebano próximo do final da XVIII Dinastia. 21 Tal discussão será explicitada no Capítulo 2 desta dissertação, ao adentrarmos nos rituais desempenhados na tumba de Nakht, de modo a entendermos como podemos analisá-los a partir da arquitetura dessa tumba. 34 Figura 1.6: Nebamun vistoriando as produções das terras. Fonte: Museu Britânico (EA 37976, EA 37978, EA 37979) 35 Entretanto, devemos ressaltar aqui que os estudos desta imagem não apresentam apenas essa interpretação. O fato de que ela estava disposta em uma tumba nos indica um vasto campo para pesquisa. Podemos, por exemplo, aplicar, mesmo que de uma maneira breve e sem detalhes, o que iremos discutir ao longo dos capítulos 3 e 4 desta dissertação. Uma vez inserido o contexto temporal do final do Reino Novo, e, portanto, pré-amarniano, analisamos, a partir dessa imagem, diferentes status sociais, o que representaria o que Nebamun (assim como a sociedade egípcia) pensava quando ela fora pintada. Como uma sociedade, de certa forma, reproduz algo que está difundido em sua visão de mundo, caso compararmos essa vistoria das produções com outras imagens e textos da época, encontraremos um padrão, o que reforça esse poderio dos sacerdotes do deus Âmon, ou daqueles que trabalharam em seu templo, nesse período. No entanto, essa imagem está inserida em um âmbito funerário, o que indica algo mais complexo que uma “simples” representação e questão de poder. Indica, portanto, que essa sociedade acreditava que sua função em vida teria uma continuidade no Além, algo que comprovaríamos a partir de estudos mais profundos das crenças egípciasacerca da vida póstuma. Sendo assim, essa imagem de Nebamun pode, sim, ser interpretada como uma demonstração do que os sacerdotes tinham e faziam em vida, mas, também, em como esse status poderia continuar no Além22. Podemos perceber que a sociedade egípcia possui uma estrutura social que pode ser determinada a partir, também, dessa imagem. Nebamun viveu em um período próximo de Akhenaton23, e, ao menos nessa imagem, indica um certo poderio do templo ao qual serve, que ele próprio vistoria, o que nos auxilia na defesa do que Kemp propõe: os sacerdotes do deus Âmon possuem grande poder no Reino Novo. Tomando como base outros documentos da época (ou em períodos anteriores e posteriores, também) podemos pensar em uma certa estrutura social padrão para o Egito Antigo do Reino Novo24, na qual o faraó ocupa a mais alta posição, os sacerdotes logo abaixo, seguidos de artesãos, escribas e, por último, os camponeses. Essa estrutura, mesmo que incompleta, aponta-nos a complexidade que expomos anteriormente enquanto falávamos do 22 Essas afirmações podem parecer um tanto imprecisas e preliminares. Porém, nos próximos capítulos, iremos abordar de maneira mais completa tais pontos de vistas, tendo como foco de análise a própria tumba de Nakht. 23 Patricia Usick e Richard Parkinson (2008, p. 5) ainda supõem que ele teria vivido no período amarniano. 24 A partir da tabela elaborada com as tumbas contemporâneas a de Nakht, essa estrutura é um tanto mais complexa, uma vez que cada cargo possui seus próprios subalternos e assim por diante, assim como diferentes tipos de sacerdotes e escribas. Além disso, existe, na sociedade egípcia, uma possibilidade de mudança de status social, o que complexifica ainda mais a análise. 36 simbolismo dos rituais desempenhados pelos templos. Tal complexidade pode ser evidenciada nessa ocupação do espaço tebano que aqui defendemos. Quando analisamos, por exemplo, o Papiro Wilbour, da XX Dinastia, e percebemos a quantidade de funcionários dos templos nessa época, podemos interpretar que a elite está bem consolidada e possui suas crenças definidas25. Podemos ver, na Figura 1.7, as distribuições de terras do templo cedidas para determinados grupos de pessoas: os donos de estábulos são os que mais as utilizam, com 198 pessoas. soldados, com 153; senhoras, 131; sacerdotes, 112; pequenos agricultores, 109; e pastores, com 102. Por fim, os mercenários estrangeiros (68) e os escribas (30), são os que menos utilizam as terras dos templos, de acordo com esse Papiro. Isso nos auxilia a moldar esse poderio dos templos. Mas por que isso seria importante? Figura 1.7: Categorias de pessoas que utilizam as terras dos templos na XX Dinastia (a partir do Papiro Wilbour). Fonte: Adaptado de Kemp (2018, fig. 93). 25 Embora seja um documento datado da XX Dinastia e, portanto, distante temporalmente de Nakht, defendemos a utilização desse papiro para este estudo pelo fato de ser um dos maiores exemplares que dispomos na Egiptologia para compreendermos a estrutura da sociedade egípcia. 37 Uma das formas que podemos desenvolver essa estrutura social é a partir do entendimento egípcio sobre a morte, que indicava um rito de passagem para uma vida póstuma, no Além (ASSMANN, 2003a). Entretanto, essa vida no Além existia, no Reino Novo, para membros da elite que construíram suas tumbas e tiveram acesso aos rituais funerários. Sabemos que tais ideais podem ser expandidos, por exemplo, para os familiares deste morto e, provavelmente, para seus trabalhadores (por meio dos shabtis, por exemplo). É comum que uma tumba contenha imagens tanto do proprietário quanto de sua esposa no Além, mas existem tumbas que possuem subdivisões arquitetônicas que possibilitaram o enterramento não só do casal dono da tumba e de seus filhos como, também, a família (podendo se estender até para os pais do morto). É, justamente, esse ponto que iremos desenvolver a partir de agora: a ocupação do espaço tebano por essa perspectiva funerária. Tumbas são necessárias e reivindicadas pelos membros da elite da XVIII Dinastia. Isso compõe e constrói a Paisagem funerária de Tebas. Se pensarmos apenas nas grandes construções, vemos na margem oriental os templos de Karnak e Luxor, enquanto na margem ocidental, os Templos de Milhões de Anos, as tumbas de particulares e as tumbas de reis e rainhas. As construções dessas tumbas são feitas por decisões oficiais do Estado, representado pelo próprio faraó. Tais decisões são divididas pelos egiptólogos entre duas categorias, a saber: político- administrativas e político-religiosas. Enquanto na primeira existe um processo de construção e reocupação dessas tumbas26, na segunda, isso está atrelado à arquitetura das tumbas (MANZI, 2010). Essas práticas constroem a Paisagem funerária tebana, reforçando a ideia de que existe uma rede simbólica visual a partir disso. As celebrações na margem ocidental de Tebas, desempenhadas principalmente pelo templo de Karnak, servem para reforçar o controle da população e, também, do desenvolvimento do espaço, assim como exercer e manter o seu poder social, político e religioso. 26 O processo de reocupação de monumentos no Egito Antigo é um tanto quanto complexo. Não está restrito às tumbas, o que significa que templos funerários de faraós também podem passar por esse processo. Entretanto, como nosso foco são as tumbas de particulares, deixaremos as demais discussões e daremos continuidade para a nossa. As tumbas são estruturas feitas para a eternidade; caso os rituais realizados em prol daquele morto que está na tumba deixem de ser feitos pelos seus familiares, que deveriam desempenhar essa função, o Estado pode conceder esta tumba para que outro morto (um secundário) possa usufruir dessa estrutura (MEKHITARIAN, 1985). 38 Sendo assim, ao entendermos de forma breve alguns pontos centrais desse processo de ocupação, manutenção e vivência do espaço tebano, podemos resgatar as questões já lançadas ao longo da primeira parte deste capítulo e, finalmente, começar a desenvolvê-las nas próximas páginas. Como as estruturas na margem ocidental de Tebas, como os templos funerários, podem influenciar nas construções das tumbas de particulares? As tumbas estão organizadas de forma tão aleatória? Mas será que estão organizadas? Em que momento essas tumbas mantêm comunicação com essas outras estruturas? Para quê? O que a tumba de Nakht representa em toda essa conjuntura? Ela pode nos auxiliar a entender tudo isso? Como? Os templos funerários reais possuem diversas funções e, portanto, uma complexidade própria que não nos cabe examinar os pormenores nesta dissertação. Entretanto, devemos compreender que estes eram feitos pelo e para o faraó, em prol de manter viva a memória de sua pessoa, de modo que esta mantenha uma vida no Além. Arthur Rodrigues Fabrício defende que este tipo de complexo de culto real era construído para que o faraó pudesse lutar contra o esquecimento, promover a manutenção da ordem e garanti-la por toda a eternidade (FABRÍCIO, 2016, p. 279). Uma vez que nossa preocupação é demonstrar como a tumba de Nakht se insere na Paisagem tebana da XVIII Dinastia, e que estes tipos de templos são interpretados como pontos nodais de Tebas, devemos explanar sobre como eles estão configurados e organizados, de modo que, posteriormente, demonstremos suas conexões com as tumbas de particulares a partir das Vias Processionais. Podemos analisar na Figura 1.8, na página seguinte, os diferentes templos desse tipo construídos na margem ocidental de Tebas. Nessa imagem aparecem todos os templos que temos acesso atualmente, identificados pelo nome daquele faraó representado. Se olharmos com atenção, vemos que eles estão, de certa forma, alinhados. Esse alinhamento pode ser fruto da área agrícola do Reino Novo. Na imagem atual, vemos (a parte mais escura, à direita) que a área agrícola atualrespeita a suposta linha, uma vez que, com a construção da Barragem de Assuã, essa área ao longo do Nilo pode ser controlada artificialmente, o que percebemos na imagem, pois à esquerda dessa parte agrícola, temos uma parte mais clara, que seria o início do deserto, bem determinada. Quando formos analisar as tumbas tebanas que foram construídas no período de Nakht, apresentaremos um mapa com os templos que tinham sido construídos até esse período, de modo a elaborarmos a Paisagem funerária tebana (Figura 1.12). 39 Figura 1.8: Distribuição espacial dos templos funerários em Tebas. Fonte: Manzi, 2015, p. 198. 40 Sabemos que o processo de ocupação e diferenciação da Paisagem tebana foi ativado a partir da seleção de locais para a colocação de monumentos reais, constituídos em residências de deuses e locais de celebração mítica e religiosa, atuando como centros organizadores do planejamento territorial e circulação humana e de mercadorias (MANZI, 2015). Sendo assim, e associando com o que sabemos das crenças egípcias, podemos defender que os túmulos eram locais de descanso dos mortos, locais onde as suas memórias eram honradas. A construção de Templos de Milhões de Anos em Tebas começou com o de Nebhepetre Mentuhotep II, em Deir el-Bahari, datada do Reino Médio, com a XI Dinastia, em uma área nunca usada para a realização de cultos funerários (MANZI; PEREYRA, 2010). Na XII Dinastia, Senusret III colocou várias estátuas naquele templo funerário, o que poderia ser explicado no respeito que professava ao seu antecessor, cujo nome era composto pelo do deus Montu, uma divindade também venerada por ele e protetor da própria Tebas (STRUDWICK; STRUDWICK, 1999, p. 77). Entretanto, conforme afirmamos anteriormente, a sociedade egípcia não era estática (KEMP, 2018). Dessa forma, os templos do Reino Novo estão relacionados à perpetuação do poder e da natureza do faraó como governante divino, atendendo a suas necessidades físicas e míticas (MANZI; PEREYRA, 2010), e podemos incorporar nessa interpretação a que Arthur R. Fabrício (2016) defende, de que esse poder seria perpetuado a partir da Memória Cultural egípcia. Sendo assim, entendemos que funções religiosas e econômicas foram desenvolvidas a partir deles (MANZI; PEREYRA, 2010). Mesmo que a renda que cada templo recebeu para sua construção tenha variado, podemos defender esse ponto de vista a partir das ofertas de alimentos para a divindade e ao faraó. A partir da XVIII Dinastia os faraós começaram a separar o local de perpetuação de sua memória com o que seu corpo repousava. Enquanto temos tumbas de particulares nas quais são separadas em três estruturas (pátio, câmaras internas e câmara funerária), na qual cada parte possuía uma função específica27, os reis da XVIII Dinastia separaram o túmulo (recipientes de suas múmias e de outros elementos do rito fúnebre) dos templos mortuários. A. J. Spencer (1982) interpreta essa separação como uma forma de proteger e esconder seu corpo dos saques às tumbas que aconteciam na Antiguidade. Podemos compreender que poderia ter sido, também, por causa dos saques. 27 Entraremos em mais detalhes no segundo capítulo, no qual analisaremos a tumba de Nakht a partir dessas diferentes estruturas. 41 Entretanto, uma ideia que entra em acordo com nossa abordagem teórica é a de que essa mudança pode ter sido ocasionada a partir das crenças egípcias e do simbolismo que as montanhas tebanas recebem (HARTWIG, 2004). Sendo assim, os faraós dividiram essas estruturas e deixaram seus complexos de cultos na margem ocidental tebana, para que fossem facilmente cultuados, e esconderam suas tumbas por trás (ou entre) das montanhas de Tebas, para que tivessem uma proteção natural e simbólica. Barry Kemp entende que esses templos funerários reais eram, na realidade, templos dedicados a uma forma específica do deus Âmon, com quem o rei se fundiu tanto na morte, por meio da presença de suas imagens em seus próprios santuários, e em vida durante suas visitas ao templo (KEMP, 2018). Dessa forma, cada um desses templos era, na verdade, um templo de Âmon, no qual a forma de um rei em particular havia se estabelecido. Isso é muito aparente na arquitetura dos templos melhor preservados da XIX Dinastia, como os de Seth I e Ramessés II, e o de Ramessés III, da XX Dinastia. Esses templos reservavam as câmaras centrais traseiras, a parte mais sagrada do templo, para o culto a Âmon, não apenas em uma imagem permanente, mas, o mais importante, em um santuário de barco portátil mantido dentro de uma sala com pilares com pedestal central (KEMP, 2018, p. 252). Para a XVIII Dinastia, apenas o templo de Hatshepsut preserva o suficiente de sua alvenaria e podemos reparar que, atrás do centro do terraço superior, um santuário talhado em rocha abrigava a imagem de Âmon. Um faraó que encomenda um determinado templo, naturalmente, tinha uma parte proeminente no culto do templo, na medida em que, a julgar pelos textos preservados em Medinet Habu, pensava-se que seu espírito se fundisse com o da forma local de Âmon (DODSON, 2010, p. 822). Os templos funerários também atendiam a outros aspectos das crenças egípcias. O antigo culto solar recebeu cada vez mais espaço, conforme podemos constatar na arquitetura desses templos (e, também, em tumbas de particulares - a partir do pátio, como dissemos anteriormente). No templo de Deir el-Bahari, por exemplo, existia uma plataforma de pedra alcançada por degraus, na qual hinos solares eram declamados (KEMP, 2018, p. 273). Vemos na Figura 1.9, na página seguinte, uma imagem longitudinal e planificada do templo de Khonsu (Karnak), para nos demonstrar como o plano básico dos templos era formado (seguindo uma ordem da esquerda para a direita da figura): a primeira estrutura era composta pelos portões, que representavam o nascer e o pôr do sol no horizonte montanhoso, em referência ao culto solar; em seguida, as salas com colunas, aludindo à vegetação que crescia quando as águas da enchente 42 recuavam; e, por fim, os santuários, que significavam a montanha original, em evocação do próprio ato da criação, e as paredes externas separavam a ordem alcançada nas águas do caos (JACOB; MANZI, 2013, p. 8). Sendo assim, sua arquitetura representava a conexão com a vida concedida por Rê, razão pela qual muitos templos estavam alinhados na direção Leste-Oeste, representando o caminho do sol ao longo do dia (STRUDWICK; STRUDWICK, 1999, p. 7). Figura 1.9: Plano de templo tripartido (Khonsu), Karnak. Fonte: Adaptado de Jacob e Manzi (2013). 43 Podemos afirmar então que as estruturas de circulação e os templos eram elementos dinâmicos da Paisagem, permitindo a circulação e expressando o compromisso simbólico entre hierarquias dentro da elite tebana (PEREYRA; MANZI, 2014). Desse modo, podemos entender esses monumentos como um processo perceptivo, cognitivo e discursivo, uma vez que tais construções tinham o objetivo de durar para a eternidade (MANZI, 2010, p. 653-654). Sendo assim, é interessante a interpretação de que a visualização alcançada por esses templos na Paisagem de Tebas, dependendo do tamanho e dos personagens aos quais foram dedicados, levou-os a continuar ocupados (mesmo após a necrópole ter sido abandonada como local de sepultamento e culto), de modo que suas construções continuassem em uso, mas com funções e finalidades diferentes (NICORA; MANZI; YOMAHA, 2015, p. 1195). Dessa forma, os complexos de cultos reais desempenhavam uma significativa função na margem ocidental de Tebas. Toda essa complexa simbologia refletia na escolha das construções das tumbas de particulares e, portanto, na construção da Paisagem funerária tebana da XVIII Dinastia, uma vez que ao longo deste capítulo estamos considerando todos os três tipos de estruturas: as tumbas de particulares, as Vias Processionais e os templos funerários.Se resgatarmos o que refletimos sobre Rapoport no início deste capítulo, entenderemos os monumentos egípcios como instrumentos simbólicos que representam a estrutura social egípcia nessa organização espacial (RAPOPORT, 1974). A partir disso, entenderemos que esses símbolos ditavam às pessoas seus comportamentos e o que se esperar da visão de mundo daquela cultura, assim como as suas hierarquias. Se analisarmos toda essa complexidade, extrairemos o que Renfrew chama de sistema cognitivo da sociedade egípcia, indicado por essa visão de mundo construída a partir dessa estrutura social, perceptível a partir dos monumentos. Já temos uma ampla ideia desses monumentos tidos como nodais, de como estão organizados na Paisagem funerária tebana e de como eles, de certa forma, interagem simbolicamente com os templos de Karnak e Luxor. Entretanto, algo que geralmente é deixado de lado nas análises é do como a população local pode se locomover entre esses. As experiências desenvolvidas por um indivíduo, se pensarmos em teóricos como Yi-Fu Tuan, devem ser elucidadas ao se analisar determinado objeto de pesquisa. Para este autor, uma experiência é categorizada como um termo que abrange as diferentes maneiras por intermédio das quais um indivíduo conhece e constrói a realidade (TUAN, 2013, p. 17). Tal experiência é, portanto, constituída de sentimento e pensamento, relacionados à memória e à intuição deste indivíduo 44 (TUAN, 2013, p. 19). Não chegaremos ao indivíduo egípcio propriamente dito nesta dissertação; contudo, podemos adaptar essa ideia e trabalhar mais com o social, em consonância aos teóricos aqui utilizados. Sendo assim, os caminhos percorridos pelos indivíduos devem ser problematizados ao analisar as conexões simbólicas entre os templos funerários, os templos de Luxor e Karnak e as tumbas de particulares, dando ênfase para esta última categoria. Um dos maiores trabalhos feitos entre os egiptólogos que trabalham com as Vias Processionais de Tebas é, certamente, o de Agnès Cabrol (2001). Em sua tese, ela divide os momentos de pesquisa em três a partir dos vestígios arqueológicos, a saber: os elementos que marcam o curso dos barcos de Procissão28, como o piso, as estátuas (incluindo as esfinges), a vegetação e as paredes adjacentes dos templos; as estruturas imobiliárias que pontuam as paradas do barco, como as “estações de descanso” e, também, outros edifícios com um destino mais específico; outros aspectos do funcionamento dos caminhos, entendendo como esses estão interligados a partir de um contexto (CABROL, 2001, p. 3). O estudo desses acontecimentos é seguido por um comentário geral, no qual são evocados os eventos cuja Via Processional é o contexto de atividades que se enquadram em três dimensões da sociedade egípcia: vida litúrgica, expressão do poder político e da realidade econômica e social (CABROL, 2001). Ao resgatarmos o que desenvolvemos sobre a Arqueologia da Paisagem, vemos que o trabalho Arqueológico de Cabrol nos indica a importância que essas Vias desempenhavam nesse período. Destacar esses três aspectos (litúrgico, político e econômico e social) nos demonstra a pluralidade de questões que podemos desenvolver aqui. Pensando na temporalidade de Nakht, os reinados de Tutmés IV e Amenhotep III, esses dois faraós realizaram grandes construções. Devemos, portanto, entender como era Tebas durante esse período. Quais monumentos estavam erguidos? Como era a distribuição espacial deles? A partir do trabalho minucioso de Cabrol, podemos responder tais questionamentos. Na Figura 1.10, podemos perceber que muitos dos templos funerários apresentados na Figura 1.4 não estavam construídos ainda nesse período. O mapa de Cabrol obedece a uma orientação norte-sul, de modo que a margem oriental de Tebas está à direita e a ocidental à esquerda. Na direita vemos o templo de Karnak (o maior e mais ao norte) e o templo de Luxor (menor e ao sul), conectados por uma estrada (chamada Via Processional Karnak-Luxor). Na margem ocidental, vemos em destaque os 28 As barcas sagradas que tratamos enquanto falávamos do templo de Karnak e de um de seus papeis na sociedade egípcia. 45 Templos de Milhões de Anos e a Via Processional de Deir el-Bahari (linha contínua em direção ao quarto templo se contarmos de da direita para a esquerda da margem ocidental), seguido da montanha de Tebas (depois dos templos). Essa imagem nos dá uma ideia de quais estruturas existiam no período de construção da TT 52 e quais as conexões simbólicas que seriam estabelecidas entre essas edificações. Figura 1.10: Tebas durante o reinado de Amenhotep III29. Fonte: Adaptado de Cabrol (2001, Pr. 5). Sendo assim, como podemos interpretar essas edificações e conectá-las ao período de Nakht? Se pensarmos na estrutura social e em como uma memória passa por um processo de esquecimento, seguindo teóricos como Paul Ricœur (2018) e Michael Pollak (1989), entendemos 29 Esse mapa está disponível no Anexo D (Cf. p. 346 desse volume), para melhor visualização. 46 que isso é lento e gradual. De acordo com Betsy Brian (2004), entre os faraós da XVIII Dinastia antes de Amenhotep III, podemos marcar como o início de uma estrutura social desse período o reinado de Hatshepsut (1473-1458 A.E.C.), de modo que possamos propor que, no período de Nakht, a memória de Hatshepsut ainda estava passando por um processo de esquecimento. Dessa forma, podemos construir uma rede simbólica de conexões entre os templos no período de Amenhotep III, utilizando os templos funerários de maior destaque para a época: Deir el-Bahari (Hatshepsut), Tutmés III, Amenhotep II e Tutmés IV. Uma vez que Amenhotep III ainda estaria vivo no período em que Nakht morrera, não inserimos o seu complexo de culto real, apenas o dos anteriores, mesmo que ele estivesse em construção e, provavelmente, fosse habitado. Podemos ver em algumas tumbas, como a de Nebamun (c. 1350 A.E.C.), o nome “Hatshepsut” ser utilizado pelas pessoas da elite (nesse caso, a esposa de Nebamun possuía esse nome). Diante disso, podemos tirar duas possíveis considerações: a primeira é de que esse nome podia ser comum para o período; e a segunda é de que a rainha ainda possuía uma certa memória viva entre os membros da elite nesse período do final da XVIII Dinastia. Tais considerações podem não se anular, permitindo com que as duas sejam verdadeiras. Sendo assim, necessitamos entender como esses templos se conectavam. A partir da Figura 1.11, com as Vias Processionais escaneadas por Manzi e Pereyra, e do trabalho de Cabrol em identificar os tipos de solo das Vias (Tabela 1), o que possibilita interpretar a circulação e importância dessa Via, podemos desenvolver essa ideia aqui proposta. Se nos remetermos às Figuras 1.5 e 1.8, podemos encontrar cada um dos pontos destacados nas subdivisões da Tabela 1. As Vias Processionais iniciam, geralmente, no templo de Âmon, em Karnak (na parte norte), dada a sua importância nesse período, que é dividido em partes, por causa de sua dimensão: Karnak-Norte, Karnak-Sul, Karnak-Leste e Karnak-Oeste As procissões geralmente saiam de algum ponto de Karnak (por exemplo, a Bela Festa do Vale, um festival que consistia na procissão da imagem de Âmon que saia do templo do deus Âmon, situado no eixo Leste-Oeste, e ia para o templo de Deir el-Bahari, onde encontrava a imagem da deusa Háthor) para a margem ocidental do Nilo (conforme a Figura 1.12 nos indicará), onde tomava outros rumos. Conforme podemos perceber na Figura 1.11, os dados obtidos por Manzi e Pereyra (2014) indicam uma pluralidade de rotas existentes na margem oeste de Tebas. Ao confrontarmos esse mapeamento com os dados dos solos de Cabrol (2001), entendemos que a questão do solo é importante para determinarmos o nível de utilização e, portanto, importância tal Via possuía. 47 Sendo assim, as dez Vias analisadas porCabrol e dispostas aqui na Tabela 1 nos demonstram as importâncias que cada uma possuía. Karnak, conforme esboçamos acima, tratava de um templo onde diversos faraós desempenhavam construções ao longo de seus reinados e, portanto, sempre acrescentavam algo em sua estrutura. Amenhotep III fora um dos faraós que mais construiu em Tebas e apresenta um certo destaque na tabela de Cabrol. Das dez Vias, seis estão localizadas na margem oriental de Tebas, a saber: Karnak-Norte, Karnak-Oeste, Karnak-Luxor, Estrada de Carros, Estrada do X Portão e Estrada De Mut ao Nilo. As outras quatro Vias estão na margem ocidental, cada uma referente ao um templo: Via Qurna-Seth I – cuja estrutura do templo data da temporalidade de Seth I, na XIX Dinastia, mas com uma estrada anterior; Via Deir el- Bahari, que passou por algumas mudanças de solo ao longo dos reinados desde a pavimentação de Hatshepsut; Via Ramesseum, cuja construção do templo data da XIX Dinastia, período dos Ramessidas; e, por fim, Via Medinet Habu, com a construção do templo datada no reinado de Ramessés III. Cada uma dessas Vias apresenta uma subdivisão, organizada de forma cronológica ou situacional. Por exemplo, na Via Processional de Karnak-Norte, podemos perceber, ao longo do reinado de Amenhotep III, que este iniciou processos de pavimentação em diversas etapas, que foram concluídos na XIX e XX Dinastia e mantidos nos períodos posteriores. Na Tabela 1 temos, então, as dez Vias Processuais mencionadas acima, com suas subdivisões (cronológica e situacional) e o tipo de solo que compõe a via (pavimentação, tijolos, de terra batida ou outro tipo, seguindo uma ordem do mais importante para o menos importante). Se a via fora pavimentada, indicaria que ela seria muito utilizada ou que possuía um alto valor simbólico. A via também podia apresentar dois ou mais tipos de solo (um sobre o outro ou em diferentes pontos da via), o que nos indica uma certa transição e consequente elevação da importância dela. Uma observação que Cabrol nos atenta é que um templo funerário não é pressuposto para construção de uma Via Processional, mas que, na análise, quando confrontamos essas duas documentações, podemos entender melhor como essa Via era vivenciada (CABROL, 2001, p. 773). Sendo assim, ao atentarmos para a Figura 1.11, os caminhos percorridos por essa sociedade nos indicam uma crença e uma organização social da cidade de Tebas. Na Figura 1.11 vemos a margem ocidental de Tebas no sentido norte-sul (vertical). As linhas contínuas representam as vias identificadas por Pereyra e Manzi (2014, p. 251) e a parte mais escura representa a montanha (a mudança de relevo no mapa). Essa imagem pode ser comparada com a Figura 1.4, Figura 1.8 e Figura 1.10 para melhor interpretação das vias com as estruturas. As vias identificadas por Cabrol 48 (2001) como importantes e representadas por Pereyra e Manzi (2014) foram desenhadas por nós no mapa do Apêndice A, mostrando as estruturas da XVIII Dinastia na margem ocidental de Tebas. Tabela 1: Tipos de solos das Vias Processionais30. Via Processional Subdivisões (cronológica - situação) Pavimentação Solo de tijolos Solo de terra batida Outro Karnak-Norte Amenhotep III Primeiro estágio da rampa Amenhotep III Primeiro estágio do solo norte Amenhotep III Segundo estágio da rampa Amenhotep III Terceiro estágio da rampa Amenhotep III Terceiro estágio do solo norte Ramessida Taharqa Ptolomaico (?) Pátio da sbh.t Estrada não datada da esfinge Karnak-Oeste Solo e (Reino Novo?) Solo d’ (Reino Novo) Solo d'' (Reino Novo /Terceiro Período Intermediário) Solo d 30 Todos os mapas das vias que aparecem em cada uma das subdivisões foram adaptados das Pranchas de Cabrol, cuja prancha referente ao período de Nakht está disponível no Anexo D (Cf. p. 346 desse volume). 49 Solo c (Ptolomaico) Solo b (Romano) Estrada de carros Estação do VII Portão Estação do VIII Portão Estação do X Portão Estrada do X Portão Entre o repositório da XVIII Dinastia e o X Portão Pátio da porta do santuário de Mut De Mut ao Nilo Karnak-Luxor Karnak-Luxor (Sul) Pátio do templo de Luxor Qurna-Seth I Deir el-Bahari Hatshepsut Tutmés III Montuhotep II Reino Médio Ramesseum Medinet Habu Do grande templo ao púlpito Fonte: Adaptado de Cabrol (2001, p. 157-158). 50 Figura 1.11: Vias Processionais na margem ocidental de Tebas. Fonte: Adaptado de Pereyra e Manzi (2014, p. 251). Mesmo com todos esses dados, os fatores que poderiam ser levados em conta para estabelecer essa análise são bastante distorcidos de acordo com Cabrol (2001, p. 161), uma vez que a maioria dos pavimentos de Karnak constitui o último estado de um solo que foi refeito repetidamente e são desconhecidas as camadas subjacentes, exceto no caso de Karnak-Norte e Karnak-Oeste, cujas trilhas foram escavadas em profundidade (CABROL, 2001, p. 161). Os únicos fatos, no entanto, menos dedutíveis é que a maioria dos revestimentos de superfície branca remonta ao reinado de Amenhotep III - e ao Reino Novo - e que os pavimentos de arenito parecem constituir um revestimento de predileção no Período Tardio (525-332 A.E.C.) (CABROL, 2001, p. 161). No entanto, Cabrol (2001, p. 161-162) analisa que, na Via Processional do templo de Montuhotep Nebhepetrê, a aparência pontual de tijolos estampados é única no contexto das estradas de Tebas, mas é uma peculiaridade das técnicas de construção, embora conhecidas no Reino Médio, ilustradas por vários paralelos, incluindo a pirâmide de Amenemhat III em Hawara ou a de Senusret III em Dashur. A autora, portanto, reconhece uma distinção de natureza técnica, assinaturas das 51 divisões dos espaços ou marcas de instalação dos tijolos em um determinado local, embora o reagrupamento das marcas não pareça obedecer a nenhuma regra lógica (CABROL, 2001, p. 162). Em outro ponto, a Figura 1.11 nos demonstra diversas estradas que foram detectadas pelo Sistema de Informação Geográfica (SIG), examinado por Manzi e Pereyra. Tais estradas, aparentemente, estão concentradas, praticamente, entre o Ramesseum e Deir el-Bahari. Isso pode indicar, mesmo de forma não conclusiva, que as tumbas construídas entre esses dois grandes templos estão, de certo modo, mais visíveis do que outras construídas, por exemplo, em Dra Abu el-Naga e Qurnet-Murai (Figura 1.3). Entretanto, conforme já mencionamos, isso depende de uma variante muito complexa, como os rituais que são efetuados em cada período e os faraós da temporalidade estudada. Em nosso caso, Nakht, enterrado no sítio de Sheik el-Qurna, está inserido nesse contexto de tumbas entre o Ramesseum e Deir el-Bahari. Podemos, portanto, visualizar no mapa da Figura 1.10 e comparar os dados obtidos pelo SIG, de Manzi e Pereyra, com os arqueológicos, de Cabrol, para entendermos melhor esse contexto. Diante isso, temos outro assunto ainda a tratar nesse tópico: os Festivais. Temos três tipos muito importantes, mas não únicos (lembrando que Tebas era uma cidade com um calendário festivo bem intenso), que acontecem no período de Nakht, a saber: o Festival Sed de Amenhotep III, o Festival Opet e a Bela Festa do Vale. Os sacerdotes do templo de Karnak influenciavam a sociedade egípcia de modo que as expressões religiosas podiam ser percebidas, também, nos resquícios materiais do Egito Antigo (ao menos entre os membros da elite). Dessa forma, o que se propõe aqui é que esses três festivais por serem desempenhados em Vias Processionais em Tebas, podem ter influenciado na escolha do local de construção da tumba dos membros da elite31. O Festival Sed, é, na verdade, uma cerimônia, um rito de passagem, no qual o faraó celebra o seu trigésimo anocomo governante do Egito. Os Festivais Sed aparecem como rituais elaborados no templo e incluíam procissões, oferendas e atos religiosos, como o levantamento cerimonial de um pilar djed, um símbolo fálico que representa a força “potência e duração do governo do faraó” (BERMAN, 2004), mas que também simboliza a coluna vertebral do deus Osíris. Mesmo que não passem pela margem ocidental de Tebas nesse cerimonial, seus templos funerários podiam apresentar inscrições comemorando tal feito, além de ser algo que, supostamente, era recordado 31 Observaremos ao longo da dissertação que uma crença egípcia é que, ao ter sua tumba visitada e os textos e imagens lidos, o morto recebe oferendas no Além. Sendo assim, a ideia de ter uma procissão passando em frente, com pessoas e o poder simbólico da divindade ali presente, à sua tumba é valorizada nessa sociedade. 52 entre os próprios egípcios, uma vez que trinta anos de reinado na antiguidade é um longuíssimo tempo, sendo improvável sua não divulgação. No caso de Amenhotep III, este teve três Festivais Sed (aos trinta, trinta e quatro e trinta e sete anos de reinado). Todos foram celebrados no Palácio de Malqata, na margem ocidental de Tebas32, chamado de Per-Hay em seu período, ou “A casa do júbilo”, que incluía um templo de Âmon e um corredor especialmente construído para esse festival (BERMAN, 2004, p. 15-16). Dessa forma, é interessante o que Berman analisa sobre o impacto desse festival nesse período, afirmando que a produção artística disso fora estupenda (BERMAN, 2004, p. 18), o que nos auxilia na defesa de que, mesmo que Nakht não tenha sua tumba construída após tal festividade (e é capaz que não), outras tumbas foram, e o local de suas construções, se próximas do templo funerário de Amenhotep III, podem nos indicar uma proximidade da elite local com esse faraó e, portanto, com o Festival. A procissão do Festival Opet, segundo festival da nossa lista, “levou o rei ao templo”, de acordo com Kemp (2018, p. 270-273), o que indica a necessidade de aproximação do rei com os sacerdotes de Âmon, por questões políticas, econômicas e religiosas. Sendo assim, o festival tinha início quando o faraó entrava no templo de Karnak e deixava a multidão do lado de fora. Ao entrar, os sacerdotes acompanhavam o governante até as câmaras internas do templo e, portanto, onde repousava a estátua do deus Âmon. Nesse recinto, rituais eram desempenhados e o rei e o deus eram associados, transformando-os em um só. Após esse momento, o faraó reaparece para a população e se mostra associado a Âmon. Kemp (2018, p. 270-273) afirma que seu reaparecimento em público ao ser transfigurado era o verdadeiro clímax, o momento de aplausos que implicava que o ritual funcionara e fora aceito de maneira positiva. Após esse primeiro momento, havia uma procissão até o templo de Luxor para outra aparição e, em seguida, continuavam o festival na margem ocidental de Tebas, em Medinet Habu. O templo de Luxor era, nas palavras de seu construtor original (Amenhotep III), seu local de justificação, no qual ele é rejuvenescido; o palácio do qual ele parte com alegria no momento de sua aparição, suas transformações visíveis a todos (KEMP, 2018, p. 272). O templo de Luxor proporcionou ao rei o cenário essencial para a interação entre os aspectos ocultos e revelados (ou 32 Este palácio pode ser observado na Figura 1.1 e 1.4, próximo a Medinet Habu, sendo a construção mais ao sul da margem ocidental no mapa. 53 privados e públicos, respectivamente) de uma divindade que outros templos faziam pelas imagens dos deuses (KEMP, 2018, p. 272). Dessa forma, esse festival anual centrava-se na presença do rei em pessoa. É interessante pensar que, em meados da XVIII Dinastia, os reis não estavam mais residindo em Tebas. Eles viveram a maior parte do tempo no norte do Egito, principalmente nos palácios de Mênfis. A participação real todos os anos no Festival Opet, portanto, passou a envolver um progresso estatal rio acima, que espalhou ainda mais a aclamação pública e se tornou uma instituição em si (KEMP, 2018, p. 272). Podemos, portanto, supor que, com a mudança de Tutmés IV para Tebas durante o seu reinado, conferiu mais importância a este festival. Isso é importante para nós pois nos auxilia, justamente, a entender que o período vivenciado por Nakht é palco para diversas mudanças no Egito, que culminam no período amarniano. Por fim, temos A Bela Festa do Vale. Em sua tese de doutorado, Antonio Brancaglion Jr. (1999), ao analisar certos elementos em cenas de banquetes presentes em tumbas de particulares do Reino Novo, descreve como seria o terceiro tipo de festival aqui referido. A Bela Festa do Vale era celebrada uma vez por ano, na primeira lua nova do segundo mês da estação Shemu (Smw), referente ao período em que o plantio já fora feito. A festa tinha início com uma oferenda ao deus Âmon no templo de Karnak. Em seguida, iniciava-se uma procissão que conduzia a imagem desse deus para as demais localidades de Tebas, transportando-a em sua barca, acompanhada pelo faraó e o sumo-sacerdote. A barca possuía um relicário para a estátua e, por sua vez, era posta em um barco cerimonial, que era guiado através do Nilo por um outro barco, este pertencente à família real. Ao chegar à margem ocidental da cidade de Tebas, a imagem era carregada em procissão pelo sacerdote, seguidos pelo faraó, as cantoras de Âmon e as sacerdotisas de Háthor. A procissão seguia em direção à necrópole tebana, atravessando os campos agrícolas e parando em pequenos santuários, feitos de pedra, dispostos ao longo do caminho, além de visitar os templos de milhões de anos dos faraós e as capelas funerárias de particulares. Em cada uma dessas paradas, grupos de dançarinos e cantores apresentavam-se diante do deus. Quando a procissão chegava ao templo de Deir el-Bahari, ponto culminante da Bela Festa do Vale, a estátua do deus Âmon se encontrava com a da deusa Háthor. O festival só continuava no dia seguinte, quando a imagem do deus fazia o caminho inverso: de Deir el-Bahari para o templo de Karnak. 54 Durante toda procissão em direção ao templo, os que acompanhavam o festival carregavam grandes buquês e alimentos, de forma a ofertar aos dois deuses e, também, aos mortos. Todo esse caminho possuía diversos pontos-chaves que, quando comparamos com o que conhecemos da cultura egípcia, entendemos o todo. A imagem do deus, ao atravessar, o rio Nilo da margem oriental, associada com a vida, para a ocidental, representando a morte, revitalizava esses espaços funerários. O encontro de Âmon com Háthor também não era aleatório. Háthor33 era uma divindade importante para a necrópole tebana. O encontro desses dois deuses reverberava em uma união dos vivos com os mortos. Sendo assim, A Bela Festa do Vale também indica a presença dos vivos perpetuando a memória dos mortos ao visitarem os seus templos funerários e capelas funerárias e ofertarem aos mortos. Os músicos e dançarinos nesse festival são cruciais para a procissão. Em todos esses momentos citados, eles cantavam e realizavam performances em prol dos deuses. Associada à deusa Háthor, a música servia, também, como revitalização. Na Figura 1.12 podemos observar essas procissões dos dois festivais aqui citados que envolviam alguma mudança de local; portanto, não estará presente o Festival Sed. Nesse mapa podemos notar o que falávamos sobre as Vias Processionais. Vale ressaltar que o Festival Opet modificou sua “forma de fazer” ao longo do Reino Novo. Em um primeiro momento, o percurso que levava ao templo de Luxor era feito por terra; posteriormente, o mesmo trajeto passou a ser feito pelo rio; e, em um terceiro período, a procissão era levada até o templo de Medinet Habu. Ramessés III, por exemplo, fez o festival durar setenta dias. Na imagem, vemos as linhas tracejadas com setas no final indicando os sentidosda A Bela Festa do Vale e do Festival Opet, ambos saindo de Karnak e culminando no templo de Deir el-Bahari e Medinet Habu, respectivamente. 33 Háthor é, talvez, uma das deusas de maior abrangência de características no Egito Antigo. Na XVIII Dinastia, a deusa estava associada com o mito de criação, tendo o título de “mão de Âmon”, como aquela que estimulava este deus para o orgasmo, criando, assim, o mundo (MESKELL, 2005, p. 62). Háthor tornou- se central para todos os aspectos das vidas das mulheres, personificando a sexualidade feminina e a maternidade, mesmo que estivesse associada também à sexualidade masculina (ROBINS, 1993). Contudo, não é apenas essa característica assumida por ela. A deusa aparece também como mãe ou esposa de Hórus (e, por isso, é associada como mãe ou esposa do rei), deusa do céu (nos Textos das Pirâmides - Fórmula 546), esposa ou filha e “olho” de Rê, vaca celeste, deusa das terras estrangeiras, deusa do Ocidente (também chamada de Senhora do sicômoro na região de Mênfis) e, o motivo aqui explanado, a deusa da música, prazer e felicidade (Htp) (WILKINSON, 2017, p. 143). 55 Figura 1.12: Principais festivais e seus itinerários em Tebas. Fonte: Adaptado de Kemp (2018, Fig. 97). 56 Podemos, portanto, concluir que as Vias Processionais e os Festivais auxiliam na construção da Paisagem tebana e nos possibilita melhor analisar as tumbas de particulares que a compõem, assim como os templos funerários e até os templos de Luxor e Karnak (como vimos agora como pontos centrais dos festivais). Dessa forma, o que nos resta nesse capítulo é entendermos como as tumbas do período de Nakht estão dispostas no espaço, algo que nos fará analisar a visibilidade de seu complexo funerário, assim como propor como a identidade de Nakht pode ser construída ao compararmos com as dos demais donos de tumbas. 3. TUMBAS DE PARTICULARES Até aqui, entendemos como a Arqueologia Cognitiva e a ideia de Paisagem podem nos ajudar, assim como discorremos sobre como os templos de Karnak e de Luxor, os templos funerários e as Vias Processionais funcionam e estruturam a sociedade egípcia. Agora, pretendemos analisar como a elite tebana concebia todo esse processo de poder. Sendo assim, a partir desse ponto, examinaremos com mais detalhes as tumbas do período de Nakht e, com isso, poderemos defender algumas considerações importantes, como, por exemplo, a identidade do dono da TT 52. Seria um escriba e astrônomo algo comum no Egito? Teria ele algum tipo de destaque social pelo seu status? O que pode indicar todo esse conjunto de dados que levantaremos ao longo desta terceira parte do capítulo? De início, já podemos explicar o levantamento de dados que fizemos e organizamos em forma de tabela. A Tabela 2, nas páginas seguintes, apresenta as tumbas que, de acordo com o catálogo de Porter e Moss (1970), foram construídas durante ou entre os reinados de Tutmés IV e Amenhotep III. Sendo assim, possuímos algumas tumbas que estão situadas temporalmente em períodos posteriores, como a TT 383, de Merymosi (Amenhotep III - Amenhotep IV), ou de períodos anteriores, como a TT 176, de [Amen]userhet (Amenhotep II - Tutmés IV), ou até mesmo o caso da TT 78, de Horemheb, que atravessa um longo período de tempo (Tutmés III - Amenhotep III). 57 Pensando em nosso foco neste capítulo, de indicar uma identidade para Nakht, baseando na comparação com as outras tumbas de sua temporalidade, a Tabela 2 foi organizada em sete categorias, a saber: 1. Nome do dono; 2. Cargo; 3. Outras informações; 4. Temporalidade; 5. Sítio arqueológico no qual fora construída; 6. Se a tumba fora reocupada; 7. Em caso de tumba reocupadas, quem fizera e qual seu cargo. Tais dados foram retirados dos catálogos de Porter e Moss (1970) e de Kento Zenihiro (2009) e da obra de Friederick Kampp (1996). Excluímos, propositalmente, tumbas que estão em fragmentos fora do Egito, como a de Nebamun, no Museu Britânico, e deixamos apenas as que estão no local de construção. Isso nos permite analisarmos dados mais precisos e interpretarmos melhor a sociedade egípcia, uma vez que, por exemplo, não há certeza nos dados da tumba de Nebamun, já que não houve uma grande preocupação em anotá-los e, se teve, foram perdidos nos diversos desvios das peças no percurso entre Tebas e o Museu Britânico (PARKINSON, 2009). As categorias sobre os cargos e outras informações são complementares e, para separarmos, levantamos o critério de importância do cargo, de quantas vezes ele aparece nos cones funerários ou nas tumbas34. 34 Zenihiro (2009) cataloga uma série de cones funerários (objetos encontrados nas tumbas nos quais são dispostas frases para o morto – geralmente o cargo dele, mas também podem aparecer fórmulas de oferendas para o morto no Além), a partir dessa série podemos contabilizar quantas vezes apareceram os nomes dos cargos dos donos das tumbas aqui analisadas. Além disso, o catálogo de Porter e Moss (1970), mesmo que um tanto antigo, apresenta um cargo principal e, quando aparecem, os demais cargos, que estão dispostos nas cenas das tumbas ou em estatuárias encontradas. Em alguns casos (como o da TT 295), um cargo (o de escriba nesse caso) estava no cone funerário e não na parede da tumba. 58 Tabela 2: Tumbas de particulares de Tebas entre os reinados de Tutmés IV e Amenhotep III. Número da tumba Nome do dono Cargo Outras informa- ções Tempo- ralidade Sítio arqueo- lógico Tumba reocupada Novo dono e cargo TT 8 Kha Chefe no Grande Palácio - Amenhotep II - Amenhotep III Deir el- Medina Não - TT 38 Djeserka- reseneb Escriba Contador de grãos das terras das divinas oferendas de Âmon Tutmés IV Sheik el- Qurna Não - TT 46 Raamosi Mordomo Supervisor dos celeiros do Alto e Baixo Egito Amenhotep III Sheik el- Qurna Não - TT 47 Userhet Supervisor do Harém Real - Amenhotep III El-Khôkha Não - TT 48 Amenem- het, Surero Mordomo Chefe / Escriba real À frente do rei / Supervisor do gado de Âmon Amenhotep III El-Khôkha Não - TT 52 Nakht Escriba Astrônomo de Âmon Tutmés IV - Amenhotep III Sheik el- Qurna Não - TT 54 Huy Escultor de Âmon - Tutmés IV - Amenhotep III Sheik el- Qurna Não - TT 55 Raamosi Vizir Nobre hereditário / Compa- nheiro único / Prefeito / Principal dos grandes / Governante da cidade Amenhotep IV Sheik el- Qurna Não - TT 57 Khaaemhet Mahu Escriba real Supervisor dos celeiros do Alto e Baixo Egito Amenhotep III Sheik el- Qurna Não - 59 TT 58 ? ? - Amenhotep III Sheik el- Qurna Sim Amenhotp: Superinten- dente dos profetas de Âmon / Amene- monet: escriba do templo de Ramsés - Amado como Âmon (XX Dinastia) TT 63 Sebkhotp Prefeito do Lago Meridional e do Lago Sobek - Tutmés IV Sheik el- Qurna Não - TT 64 Hekerneheh Tutor real35 Filho do kap Tutmés IV Sheik el- Qurna Não - TT 66 Hepu Vizir Governante da cidade Tutmés IV Sheik el- Qurna Não - TT 69 Menna Escriba Escriba dos campos do Senhor das duas terras do Alto e Baixo Egito Tutmés IV Sheik el- Qurna Não - TT 74 Thanuny Escriba do rei Escriba dos recrutas / Escriba da armada Tutmés IV Sheik el- Qurna Não - TT 75 Amenhotp- si-se Segundo profeta de Âmon - Tutmés IV Sheik el- Qurna Não - TT 76 Thenuna Portador de leques à direita do rei - Tutmés IV Sheik el- Qurna Não - TT 77 Ptahemhet Chefe do berçário Supervisor de obras no Templo de Âmon / Supervisor dos campos de Âmon / Supervisor dos duplos celeiros no Tutmés IV Sheik el- Qurna Sim Roy: superinten- dente de escultores do Senhor das duas terras 35 No catálogo de Porter e Moss (1970), esse cargo é traduzido para o inglês como “nurse”, que é traduzido para o português como “ama” entreos egiptólogos, um cargo importante na elite egípcia. No entanto, Zenihiro (2009) encontra um cone funerário que pertencia a essa tumba e traduziu como “tutor real”. Portanto, deixamos a tradução de Zenihiro, pelo fato da palavra “ama” ter o significado de “mulher que amamenta o filho de outra pessoa” e não possuir um substituto masculino que seja plausível para a temporalidade do Egito Antigo. 60 templo de Âmon / Supervisor dos agricultores arrendatá- rios de Âmon TT 78 Haremhab Escriba do Rei Escriba professor Tutmés IV Sheik el- Qurna Não - TT 89 Amenmosi Mordomo na cidade do sul - Amenhotep III Sheik el- Qurna Não - TT 90 Nebamun Porta- estandarte de (a barca sagrada chamada) ‘Amado de Âmon’ Supervisor das terras do deserto ao oeste de Tebas Tutmés IV - Amenhotep III Sheik el- Qurna Não - TT 91 ? Capitão das tropas […] Supervisor dos cavalos Tutmés IV - Amenhotep III Sheik el- Qurna Não - TT 102 Imhotep Escriba real Chefe do berçário Amenhotep III Sheik el- Qurna Não - TT 107 Nefersekher u Escriba real Mordomo dos bens de Amenhotep III ‘Rê é brilhante’ Amenhotep III Sheik el- Qurna Não - TT 108 Nebseny Primeiro profeta de Onúris - Tutmés IV Sheik el- Qurna Não - TT 116 ? Príncipe hereditário - Tutmés IV - Amenhotep III Sheik el- Qurna Não - TT 118 Amenmosi Portador de leques à direita do rei - Amenhotep III Sheik el- Qurna Não - TT 120 Anen, Mahu Segundo profeta de Âmon - Amenhotep III Sheik el- Qurna Não - TT 139 Pairi Sacerdote Waab Primeiro Filho Real na frente de Amon / Supervisor de camponeses de Amon Amenhotep III Sheik el- Qurna Não - TT 147 ? Chefe dos mestres de cerimônias (?) de Âmon - Tutmés IV Dra’ Abu el-Naga Não - 61 TT 151 Hety Escriba Contador de gado da esposa do deus de Âmon / Mordomo da esposa do deus Tutmés IV Dra’ Abu el-Naga Não - TT 161 Nakht Portador das ofertas florais de Âmon - Amenhotep III Dra’ Abu el-Naga Não - TT 165 Nehe- maaway Ourives Escultor de retratos Tutmés IV Dra’ Abu el-Naga Não - TT 175 ? ? - Tutmés IV El-Khôkha Não - TT 176 [Amen]user het Empregado limpo de mãos - Amenhotep II - Tutmés IV El-Khôkha Não - TT 181 Nebamun / Ipuky Escultor principal do Senhor das Duas Terras / Escultor do Senhor das Duas Terras - Amenhotep III - Amenhotep IV El-Khôkha Não - TT 192 Kharuef, Senaaa Mordomo da Grande Esposa Real Tiye - Amenhotep III - Amenhotep IV ‘Asâsif Não - TT 201 Rēa Primeiro arauto real - Tutmés IV - Amenhotep III El-Khôkha Não - TT 226 ? Escriba real Supervisor das amas reais Amenhotep III Sheik el- Qurna Não - TT 239 Penhet Governador de todas as Terras do Norte - Tutmés IV Dra’ Abu el-Naga Não - TT 249 Neferronpet Fornecedor (?) de vinho de tâmara - Tutmés IV Sheik el- Qurna Não - TT 253 Khnemmosi Escriba Contador de grãos (a) das terras de Âmon, (b) nas terras das divinas oferendas Amenhotep III El-Khôkha Não - 62 TT 257 Neferhotep Escriba Contador de grãos de Âmon Tutmés IV - Amenhotep III El-Khôkha Sim Mahu: Deputado na mansão de Usimare- setempenre (Ramesseu m) TT 258 Menkheper Chefe do berçário Escriba real da casa das crianças reais Tutmés IV El-Khôkha Não - TT 276 Amenemop et Supervisor do tesouro de ouro e prata Juiz / Superinten- dente do gabinete Tutmés IV Qurnet Mura’i Não - TT 294 Amenhotep Supervisor do celeiro de Âmon - Amenhotep III El-Khôkha Sim Roma: Sacerdote waab de Âmon (início do Ramessida) TT 295 Dhutmosi, Paroy Sacerdote sem na Boa Casa Embalsa- mador / Cabeça dos segredos no peito de Anubis / Escriba Tutmés IV - Amenhotep III El-Khôkha Não - TT 333 ? ? - Amenhotep III Dra’ Abu el-Naga Não - TT 334 ? Chefe de lavradores - Amenhotep III Dra’ Abu el-Naga Não - TT 383 Merymosi Vice-rei de Kush Filho de Amenhotep III Amenhotep III - Amenhotep IV Qurnet Mura’i Não - TT 402 ? ? - Tutmés IV Dra’ Abu el-Naga Não - A. 24 Simut Segundo profeta de Âmon Supervisor do tesouro de ouro e prata/Sela- dor de todos os contratos em Karnak Amenhotep III Dra’ Abu el-Naga Não - C. 1 Amenhotep Supervisor de carpinteiros de Âmon Camareiro Amenhotep III Sheik el- Qurna Não - C. 6 Ipy Supervisor de barcos de Âmon no Templo de Tutmés IV - Tutmés IV Sheik el- Qurna Não - 63 Fonte: dados obtidos a partir dos catálogos de Porter e Moss (1970), Kampp (1996) e Zenihiro (2009). Temos, ao todo, cinquenta e quatro tumbas construídas entre os reinados de Tutmés IV e Amenhotep III. Como já havíamos comentado, Renfrew (2012, p. 139-141) entende que uma sociedade apresenta um modo de pensar semelhante, que pode ser rastreado a partir dos vestígios materiais dessa sociedade. No caso da egípcia, esta possuía uma estreita relação com a religião. A religião egípcia, por sua vez, apresenta uma série de crenças funerárias analisadas pelos egiptólogos atuais a partir das visões de mundos encontradas nos textos, imagens, arquiteturas, próprias para este meio e que desempenham um importante papel na manutenção desta religião. Como uma das ideias centrais dessas crenças era, justamente, construir um local para que o seu corpo pudesse repousar para toda a eternidade, fazendo com que a pessoa continuasse a viver em um mundo póstumo, os egípcios, ao longo de seus anos, aperfeiçoaram essa crença, construindo tumbas, embalsamando seus mortos com técnicas que favorecessem a conservação do corpo, e, também, visitando as tumbas de seus familiares, de modo que esses permanecessem vivos no Além. Dessa forma, separamos essa terceira parte em três momentos. O primeiro irá explorar os dados das categorias da tabela, enquanto o segundo interpretará tais resultados e tentará construir as hierarquias desses membros da elite que foram enterrados nesse período. Por fim, o terceiro momento irá fechar o capítulo com as considerações construídas sobre as tumbas de particulares na Paisagem tebana da XVIII Dinastia e indicará nosso caminho para o resto da dissertação. A relação da sociedade egípcia com a religião pode ser percebida a partir dos dados que levantamos. Nossa preocupação com as tumbas reocupadas e, caso tenham sido, quem as reocupou, indica o que Mekhitarian (1985, p. 240-241) defende ao interpretar que essas tumbas podem passar por esse processo caso os rituais realizados em prol daquele morto que está na tumba deixem de ser feitos pelos seus familiares (por casos como, por exemplo, desaparecimento da linhagem, mudanças de local ou perda de nível do status social - algo mais complexo), que deveriam desempenhar essa função36. Sendo assim, descobrimos apenas quatro tumbas reocupadas do total 36 Caso retornássemos ao conto que abrimos nossa Introdução, podemos interpretar que esse processo poderia ser algo negativo para o morto e, conforme testemunhamos em nosso levantamento de dados, era algo que podia ser considerado “raro” (7,4% da nossa amostragem), mas possível. 64 de cinquenta e quatro tumbas. Dessas quatro, três datam do período ramessida e apenas uma data de Tutmés IV. Esta última, a TT 77, entra nesse levantamento de dados justamente por esse processo de reocupação. Quanto à escolha do local de sepultamento, algo que desenvolvemos desde o início deste capítulo, temos múltiplos focos, mas que se concentram no sítio arqueológico de Sheik el-Qurna, onde se encontra a tumba de Nakht. No Gráfico 1 podemos entender melhor como essas tumbas estavam distribuídas na necrópole tebana e, no Gráfico 2, a porcentagem desses valores obtidos no primeiro. Isso nos indica uma preferência pelo sítio arqueológicode Sheik el-Qurna nessa época. Gráfico 1: Quantidade de tumbas construídas durante os reinados de Tutmés IV e Amenhotep III em cada um dos sítios arqueológicos da necrópole tebana. Fonte: dados obtidos a partir da Tabela 2. 1 1 8 11 2 29 0 54 ‘A sâ sif D ei r el -M ed in a D ra ’ A bu e l- N ag a E l- K hô kh a Q ur ne t M ur a’ i Sh ei k el -Q ur naQ ua nt id ad e de tu m ba s co ns tr uí da s 65 Gráfico 2: Porcentagem de tumbas construídas durante os reinados de Tutmés IV e Amenhotep III em cada um dos sítios arqueológicos da necrópole tebana. Fonte: dados obtidos a partir da Tabela 2. Mas será que essa preferência pelo sítio arqueológico de Sheik el-Qurna nos indica, de fato, algum dado importante? Se analisarmos novamente todos os mapas trabalhados ao longo desse capítulo, sobrepuséssemos, refinarmos e excluirmos as construções que são posteriores ao período que estudamos, encontraremos algo como o mapa da Figura 1.13. Em tal mapa constam as tumbas de particulares, posicionadas de acordo com os mapas do catálogo de Porter e Moss (1970). O que podemos interpretar disso tudo é que a escolha do sítio arqueológico de Sheik el-Qurna não é aleatória. Podemos destacar dois fatores para isso. Na XVIII Dinastia, A Bela Festa do Vale passava por uma Via Processional próxima desse sítio, o que indicaria que o morto e sua tumba estariam sendo visitados e rememorados (a de Nakht está destacada em azul). O segundo é que dois dos templos mais importantes, Deir el-Bahari (marcado em vermelho) e o de Tutmés IV (circulado em verde), estão ligados por uma Via Processional que passa dentro desse sítio. 2% 2% 15% 21% 4% 56% ‘Asâsif Deir el-Medina Dra’ Abu el-Naga El-Khôkha Qurnet Mura’i Sheik el-Qurna 66 Figura 1.13: Mapa da Paisagem da margem ocidental tebana da XVIII Dinastia37. Fonte: Mapa construído por Pedro Hugo Canto Núñez (2020) a partir dos dados de Porter e Moss (1970), Pereyra e Manzi (2014, p. 251), Manzi (2015), Strudwick e Strudwick (1999), Pereyra et al (2017) e Kampp (1996). Quanto à temporalidade, temos oito categorias diferentes para quantificar em um gráfico (Gráfico 3), baseadas em períodos que as tumbas foram construídas, com a intercalação do reinado de Tutmés IV e Amenhotep III. Existe, entretanto, uma exceção que é a tumba de Raamosi (TT 55), datada do início do reinado de Amenhotep IV. Fizemos essa escolha pois, se analisarmos essa tumba, veremos que este vizir de Tebas possui uma tumba de grandes dimensões, com catorze paredes pintadas e trinta e dois pilares, além de possuir a TT 331 anexada em sua estrutura, uma tumba pertencente ao período ramessida. Tudo isso indica que Raamosi possuía um destaque social (tanto pelo cargo quanto pela estrutura da tumba). O interessante é que este indivíduo passara grande parte da sua vida durante o Egito do reinado de Amenhotep III, sendo assim, apresenta a 37 Esse mapa está disponível nos Apêndice A, para melhor visualização. 67 visão de mundo construída em comum desta temporalidade. O local que sua tumba está situada é, justamente, Sheik el-Qurna. Pode parecer um pouco inconclusivo neste momento da dissertação, entretanto, podemos notar um certo destaque social nesta tumba e deste sítio nesse período de Tutmés IV e Amenhotep III. Gráfico 3: Tumbas tebanas construídas entre os reinados de Tutmés III e Amenhotep IV. Fonte: dados obtidos a partir da Tabela 2. Se filtrarmos nossos dados para apenas as tumbas construídas no sítio de Sheik el-Qurna, veremos que dessas, doze foram construídas no período de Tutmés IV, dez no período de Amenhotep III e a de Raamosi no de Amenhotep IV. Isso corrobora com nossas ideias de que as tumbas construídas nesse sítio ao longo dessa temporalidade possuíam um certo destaque social. Conforme veremos no próximo subtópico deste capítulo, os diferentes status sociais dos donos das tumbas, quando comparados com o tamanho de suas tumbas e as cenas destas, podem nos ajudar a defender essa ideia. Por enquanto, atentando-nos aos gráficos produzidos até agora, podemos definir que Deir el-Medina e Qurnet Mura’i, assim como ‘Asâsîf, não são locais destacados por suas construções, se pensarmos em números de tumbas. A maioria delas possui um tipo de construção padrão desse 1 1 1 21 7 17 3 1 0 54 Tutmés III - Amenhotep III Amenhotep II - Tutmés IV Amenhotep II - Amenhotep III Tutmés IV Tutmés IV - Amenhotep III Amenhotep III Amenhotep III - Amenhotep IV Amenhotep IV Quantidade de tumbas construídas 68 período38, contudo, estas possuem, também, imagens que poderíamos utilizar para extrair o sistema cognitivo dessa sociedade, algo que trataremos nos capítulos 3 e 4. Algo que destacaríamos aqui é a tumba de ‘Asâsîf. A TT 192 não parece ser algo comum para esse período. Se analisarmos a Figura 1.14, veremos a planta da tumba (desenhada por Kampp), que pertence a um complexo funerário que abriga outras tumbas. De baixo para cima na imagem, a tumba apresenta um vestíbulo, um pórtico, um pátio, duas salas com colunas (o primeiro com colunas circulares e o segundo com colunas quadradas), na primeira sala há a entrada da câmara funerária e, no fim da segunda sala, uma capela funerária; quase todos os recintos são decorados. Kharuef (também chamado de Sena’a), proprietário deste complexo funerário, era mordomo da esposa real, Tiye, um cargo que não parece comum e que o liga diretamente com a família real. Não podemos assumir isso com base nessa pouca documentação que dispomos, mas podemos supor que ‘Asâsîf não seria um local para indivíduos com baixo status social. 38 Os tipos arquitetônicos das tumbas dessa temporalidade será trabalhado com mais detalhes no segundo capítulo. 69 Figura 1.14: Planta da TT 192. Fonte: Adaptado de Kampp (1996, p. 481). 70 As tumbas de Qurnet Mura’i merecem outro destaque aqui. Uma delas, a TT 276, pertence ao supervisor do tesouro de ouro e prata, juiz e supervisor do gabinete (?), Amenemopet, o qual, baseado em seus cargos, indicam um status elevado, mais próximos da família real. E a outra, TT 383, pertence a Merymosi, filho de Amenhotep III e vice-rei de Kush. Portanto, podemos supor que esse sítio, assim como ‘Asâsîf, não possui destaque quanto às construções de tumbas por se tratar de locais mais exclusivos, por assim dizer. A TT 8, de Kha, a única de Deir el-Medina nessa temporalidade, é uma tumba de pequenas proporções, com apenas três paredes decoradas. Seu cargo, no entanto, fora de chefe no grande palácio. Não sabemos o porquê de sua tumba ter pequenas proporções ou de ter sido enterrada neste sítio em especial, uma vez que não está próximo de nenhuma Via Processional ou templo importante. Não podemos, portanto, concluir nada no momento por falta de documentação. Por último, comentaremos sobre os sítios de Dra Abu el-Naga, el-Khokha e Sheik el-Qurna. As oito tumbas de Dra Abu el-Naga não parecem ter destaque, a não ser pela quantidade de construções desse tipo nesse local. Não há, nesse período, algum templo construído que possa indicar algo. A Via Processional principal é a que está por trás desse sítio, que leva a procissão de enterramento do faraó ao Vale dos Reis. Talvez essa seja a suposta justificativa, mesmo que esse caminho esteja em outro nível. Também poderíamos supor algum destaque a partir da proximidade do rio Nilo, mas nada conclusivo no momento. Os sítios de el-Khokha e Sheik el-Qurna parecem ser os mais fáceis de analisar. Ambos estão próximos e no meio de templos funerários importantes, como os de Amenhotep III, Tutmés IV e Deir el-Bahari. Ambos possuem diversas tumbas construídas nesse período. Ambos estão cortados por Vias Processionais importantes. Portanto, defendemos aqui que, devido a estes dados, ambos os sítios indicam, sim, um destaque do statussocial dos proprietários das tumbas ali construídas. Nakht possui sua tumba em Sheik el-Qurna e, assim, estaria dentro dessa elite. No entanto, podemos adentrar ainda mais nessas informações e tentar estabelecer algum padrão nisso, tendo em vista nossa coluna ainda não explorada (propositalmente) da Tabela 2: os cargos e “subcargos” de cada proprietário das tumbas dessa temporalidade. Ao analisarmos a organização dessas tumbas de particulares no espaço, levantamos diversas hipóteses sobre as intenções desta escolha. Seja por proximidade com os templos funerários, seja por status social mais elevado que os demais, esses membros da elite demonstram que o sistema cognitivo egípcio desse período é complexo. Podemos, portanto, iniciar nossa trajetória para 71 entender essa complexidade a partir desse entendimento dos diferentes status sociais e, também, propor uma organização para a elite tebana dessa temporalidade da XVIII Dinastia. No momento em que comentamos neste capítulo sobre as terras que os templos sedem para parte da população e, portanto, exerce poder sobre estes, expusemos uma pequena hierarquia que existia no Egito Antigo no período do Papiro Wilbour (XX Dinastia)39, na qual os sacerdotes dos templos, teoricamente, estavam no topo e os demais (donos de estábulos, senhoras, soldados, pequenos agricultores, pastores, mercenários estrangeiros, escribas) abaixo. Pode ser que essa cadeia hierárquica não seja bem definida no sentido de que escribas tenham menos poder que, por exemplo, donos de estábulos, por utilizarem menos terras que estes. Pelo contrário: o fato de os escribas possuírem menos necessidade de utilizar a terra que os donos de estábulos, uma vez que estes possuem, teoricamente, animais para pastarem, mas, mesmo assim, utilizam terras, pode indicar um certo destaque social. A egiptóloga Elizabeth Frood (2010, p. 476) explica que as sociedades complexas, como a egípcia, são articuladas por relações de poder e é crucial estudar como essas relações são criadas, mantidas, projetadas, legitimidades e reforçadas. No momento, tratamos do poder que os templos e seus funcionários exercem perante a população e, agora, tentaremos examinar como a hierarquia e destaque social determinam o acesso ao Além, tendo como base os cargos de cada morto nas tumbas de particulares, elencado na Tabela 2. John Baines (1990) defende que, para a sociedade egípcia, o poder não é apenas um significado de bem-estar, mas, sim, um estado privilegiado que concede acesso a conhecimentos restritos, como o literário, e controle de símbolos e formas estéticas. Dessa forma, podemos, a partir desses cargos, entender que a tumba de um escriba do templo é diferente de um escriba real, e que um profeta do deus Âmon poderia ter um poder diferenciado de um simples sacerdote. Ou, para o nosso propósito, o que Nakht, um escriba e astrônomo do deus Âmon, representava no meio disso tudo. Só o fato de possuir uma tumba na necrópole tebana já nos indica um alto nível de status social, mas será que podemos entender ainda mais essa complexa hierarquia? Entre as cinquenta e quatro tumbas que elencamos na Tabela 2, referentes ao reinado de Tutmés IV e Amenhotep III, quatro não possuem títulos visíveis (duas de Dra’ Abu el-Naga, uma de Sheik el-Qurna e outra de El-Khôkha), de modo que não podemos indicar uma hierarquia 39 Cf. p. 36 deste volume da dissertação. 72 baseada no cargo desses mortos. As cinquenta outras tumbas podem ser transpostas em números, indicando dois grupos: um daqueles que possuem um segundo (ou mais) cargo e outro com aqueles que possuem apenas um. O que isso nos possibilita é tentar entender melhor essa sociedade da XVIII Dinastia e construir essa hierarquia, de modo que possamos compreender melhor a identidade de Nakht. Gráfico 4: Porcentagem do Grupo A (indivíduos com mais de um cargo) e do Grupo B (indivíduos com apenas um cargo). Fonte: dados obtidos a partir da Tabela 2. Se analisarmos este gráfico, veremos que existe uma diferença de seis tumbas (8%) cujos proprietários não possuíam um segundo cargo ou terceiro cargo. Sendo assim, seria mais interessante expormos aqui todos os cargos, de modo que entendamos como estava subdividida essa sociedade. Dessa forma, o Gráfico 5, abaixo, apresenta-nos esses cargos, organizados em ordem alfabética. 56% 44% Grupo A Grupo B 73 Gráfico 5: Cargos dos indivíduos proprietários das tumbas referentes à temporalidade de Tutmés IV e Amenhotep III. Fonte: dados obtidos a partir da Tabela 2. 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Capitão das tropas […] Chefe de lavradores Chefe do berçário Chefe dos mestres de cerimônias (?) de Âmon Chefe no Grande Palácio Contador de grãos (a) das terras de Âmon, (b)… Empregado limpo de mãos Escriba [...] Escriba Real Escultor de Âmon Escultor principal do Senhor das Duas Terras /… Fornecedor (?) de vinho de tâmara Governador de todas as Terras do Norte Mordomo Mordomo Chefe Mordomo da Grande Esposa Real Tiye Mordomo na cidade do sul Ourives Portador das ofertas florais de Âmon Portador de leques à direita do rei Porta-estandarte de (a barca sagrada chamada… Prefeito do Lago Meridional e do Lago Sobek Primeiro arauto real Primeiro profeta de Onuris Príncipe hereditário Sacerdote Wab Segundo profeta de Âmon Supervisor de barcos de Âmon no Templo de… Supervisor de carpinteiros de Âmon Supervisor do celeiro de Âmon Supervisor do harém real Supervisor do tesouro de ouro e prata Supervisor dos celeiros do Alto e Baixo Egito Tutor real Vice-rei de Kush Vizir Cargo Principal Cargo Secundário/Terciário 74 Tendo em vista que alguns proprietários das tumbas possuem dois ou até três cargos secundários, conforme podemos observar na Tabela 2, priorizamos os cargos principais e excluímos aqueles cargos que assistem apenas um proprietário (como, por exemplo, o caso Raamosi, que possui “filho de Amenhotep III” como título secundário). Este gráfico nos auxilia a entender a complexidade da sociedade egípcia. Podemos ainda utilizar as abreviações como “sacerdote” ou “soldado”, mas devemos entender que tais denominações podem representar uma vasta subdivisão, como soldado das cidades ao sul, ou segundo profeta de Âmon. Além disso, temos o caso da TT 74, cujo proprietário apresenta três cargos diferentes para a função de escriba. Vemos como interessante a inserção desses títulos secundários em nossa tabela, uma vez que demonstra a vasta aplicabilidade da função de um escriba e que existia uma preocupação em dispor tanto nas paredes das tumbas quanto nos cones funerários esses títulos. Dessa forma, o que tais números nos indicam? Acima de tudo e o mais óbvio, indica que existe, de fato, uma preocupação em fazer esse status ser rememorado por aqueles que visitam as tumbas desses indivíduos, de modo que possa perpetuar no Além seu cargo em vida. Em segundo lugar, indica-nos uma complexa sociedade que possui diversos cargos para as mais diversas necessidades, e o estudo mais aprofundado desse quadro, como aponta Frood (2010), auxilia-nos a compreender a hierarquia egípcia, de modo a desenvolvermos uma escala para esta. Uma terceira consideração, mais preocupados com o caso de Nakht, é que este indivíduo possui uma função diferente (a de astrônomo) que não aparece outra vez entre essas tumbas. Entretanto, Nakht possui uma função comum entre os membros dessa elite: a de escriba. Sem fazer distinção entre os tipos (ou subtipos) de escribas, temos, ao todo, quinze dos cinquenta proprietários de tumbas que exerciam esse cargo (30%): seis durante o reinado de Tutmés IV, seis no de Amenhotep III e três no período entre estes dois reinados. Portanto, podemos deduzir que, por possuírem o maior número de tumbas construídas (se interpretarmos esses cargos como grupos), o grupo de escribas possuíam, de fato, um maior status social na hierarquia egípcia dessa temporalidade.Dessa forma, Nakht, inserido nesse grupo, se destaca por apresentar um cargo secundário intrigante e sem conclusões acerca. Poderia ser que a função não fosse valorizada e só Nakht conseguiu construir sua tumba ou que a função de astrônomo era tão complicada que só ele conseguiu destaque? Conforme veremos no final dessa dissertação, o astrônomo tinha uma importante função social, a de organizar o calendário, o que implica, por exemplo, na agricultura e na esfera religiosa. Seja como for, sua tumba fora construída, está localizada próxima a uma Via 75 Processional (conforme podemos reparar na Figura 1.13), é destacada por estar no topo de uma colina e possui muito mais assuntos para discutirmos ao longo dessa dissertação nos próximos capítulos. ... Ao longo desse capítulo exploramos uma das camadas que pretendemos analisar da tumba de Nakht: a mais externa. Partimos, portanto, do macro e estamos nos encaminhando para o micro. Ao tratarmos, a partir da Arqueologia, sobre o posicionamento que essa tumba se insere tanto geográfico quanto histórico, entendemos que esse complexo funerário apresenta características extremamente significativas para entendermos melhor sobre a sociedade egípcia. Nossa escolha da Arqueologia Processual para nos guiar teoricamente ao longo de toda a dissertação não poderia se justificar apenas por suas funcionalidades, mas, também, pela sua aplicabilidade e utilidade em conjunto com as demais teorias que utilizaremos doravante, como, por exemplo, a semiótica e a aplicabilidade da hermenêutica para esse trabalho. Para utilizarmos metodologicamente a Arqueologia Cognitiva, de Renfrew, deveríamos estabelecer e compreender um complexo sistema que encontramos nos resquícios dessa determinada sociedade. Se pudermos usufruir de diversos tipos de fontes (e, com a tumba de Nakht, podemos), será melhor para a análise dessa sociedade. Portanto, ao analisarmos o contexto histórico em que a tumba de Nakht está inserida, de acordo com a construção da Paisagem, entendemos uma parte desse processo que escolhemos seguir com a Arqueologia Cognitiva. Nesse sentido, vimos a morfologia de Tebas (o rio cortando a cidade em duas margens: as montanhas ao oeste e uma margem mais baixa à leste), as possíveis conexões simbólicas que os antigos egípcios fizeram com esses relevos, suas interseções e, por fim, tentamos configurar essa Paisagem. De modo complementar a este, reconhecemos a Paisagem funerária tebana a partir do que fora proposto por Pereyra (et al 2017, p. 29-30). Em um primeiro momento, compreendemos que a Paisagem natural é pensada de maneira simbólica pelos próprios habitantes da região de Tebas da XVIII Dinastia. Em um segundo momento, elencamos os critérios utilizados para dotar culturalmente a Paisagem, resultando em um espaço adequado para o desenvolvimento de práticas rituais de devoção e aprovação de deuses 76 e personagens divinizados e de culto à memória dos mortos membros da elite, que serviram como âncoras evocativas das representações mentais na ausência de celebrações rituais e onde o papel dos atores sociais variaria, dependendo dos cargos dos indivíduos envolvidos. E, em um terceiro momento, passamos a reconhecer a natureza discursiva que instrui os participantes e outros observadores sobre a maneira esperada de usar a paisagem, através do reconhecimento das funções desempenhadas por cada obra arquitetônica e das trajetórias seguidas durante a circulação ritual pelos participantes nas procissões. Relembramos constantemente que o trabalho em desenvolvimento ao longo de toda dissertação é o de analisar a tumba do escriba e astrônomo do deus Âmon, Nakht. Portanto, ao construirmos a Paisagem funerária de Tebas da XVIII Dinastia, refletimos sobre as estruturas consideradas principais, os templos de Karnak e Luxor e os templos funerários, assim como as diferentes tumbas de particulares (demonstrando suas particularidades e analisando os locais das construções), e, também, o que torna possível essas conexões, as Vias Processionais e os festivais nelas desempenhados. Propomos, ainda, possíveis interpretações sobre os dados levantados na Tabela 2, sobre as tumbas de particulares da temporalidade dos reinados de Tutmés IV e Amenhotep III. O fato de ter mais escribas construindo tumbas do que outros membros da elite nos indica o provável poder que esses membros possuíam, ou, também, as diferentes iniciativas para a escolha do local onde será construída a tumba daquele proprietário. Conforme vimos, as tumbas de Qurnet Mura’i, a TT 276 e a TT 383, ambas pertencentes ao supervisor do tesouro de ouro e prata, juiz e supervisor do gabinete (?), Amenemopet, e a Merymosi, filho de Amenhotep III e vice-rei de Kush, respectivamente, se encaixam no exemplo de que apenas estudando os pormenores conseguimos compor a Paisagem. Poderíamos nos aprofundar nessas cinquenta e quatro tumbas elencadas na Tabela 2 e determinarmos mais precisamente essa Paisagem. Entretanto, não é esse o nosso objetivo nesta dissertação. Desse modo, mesmo que não sejam conclusivos, podemos utilizar as interpretações dadas nesse capítulo para estudos posteriores. Sendo assim, iniciamos nosso entendimento sobre as estruturas sociais, econômicas e culturais próprias ao Egito do final da XVIII Dinastia. Refletimos sobre Arqueologia Cognitiva, Paisagem, Templos na margem ocidental e oriental de Tebas, as Vias Processionais e os Festivais da cidade e, por fim, as tumbas de particulares de Tebas. Todos estes pontos serão complementados conforme adentramos na TT 52. Para o próximo capítulo, exploraremos melhor essa tumba, 77 compreendendo sua função e qual interpretação os antigos egípcios deveriam ter do mesmo, analisando os rituais e as atividades desempenhadas neste espaço a partir da arquitetura e dos objetos encontrados na tumba de Nakht. 78 CAPÍTULO 2: RITUAIS NA TUMBA DE NAKHT Trataremos neste capítulo da estrutura da TT 52, comparando-a com outras de sua temporalidade, de modo que possamos compreender como se configurava uma tumba no período de Nakht e o porquê de ela obter a sua estrutura. Além disso, analisaremos os objetos encontrados na escavação de Norman de Garis Davies, conforme catálogo publicado em 1917. Dessa forma, argumentamos aqui que a compreensão desse espaço, a partir de sua estrutura e objetos, fornece- nos subsídio para elaborarmos um sistema de atividades ritualísticas, a fim de construirmos um sistema cognitivo egípcio nos moldes da Arqueologia Cognitiva de Colin Renfrew em conjunto com o Ambiente Construído de Amos Rapoport. Sendo assim, temos um tríplice foco nesse capítulo. Primeiro, analisaremos os conceitos funerários egípcios para melhor compreendermos do que vamos falar da arquitetura (segundo ponto) e dos objetos (terceiro), que estão separados em seis categorias: fragmentos de caixões, vasos, caixas, cones funerários, cosméticos/cabelo e estatueta de Nakht. 1. A MORTE E A VIDA Para os antigos egípcios, a morte não significa o fim, mas o início de uma jornada que aquele indivíduo iria percorrer para a vida eterna. De acordo com a literatura funerária, essa jornada difere em muitos aspectos, pode ser a partir do status da pessoa, como também da cidade em que ele viveu e da época. A visão de morte varia tanto entre os status sociais quanto entre os períodos, mas podemos utilizar essas diferenças para elucidarmos melhor a nossa interpretação daquela determinada visão analisada. Por exemplo, existe uma significante diferença entre o discurso funerário produzido para um faraó da XVIII Dinastia, com sua tumba construída em Tebas, para a tumba de um funcionário do templo de Âmon do mesmo período e da mesma cidade. Dessa forma, trataremos aqui sobre a visão funerária egípcia da XVIII Dinastia entre os membros da elite. 79 Para Assmann (2003a, p. 17), a morte significauma experiência, uma consciência da finitude da vida, que apresenta cenários para rituais funerários, em espaços como tumbas, permitindo uma comunicação dos vivos com os mortos. De acordo com Assmann, a visão egípcia de morte é muito diferente da nossa, uma vez que existe uma quantificação intrínseca à compreensão de vivo e morto (ASSMANN, 2003a, p. 32). Por exemplo, pode-se estar em um estado “meio morto”. Para tanto, os egípcios utilizavam de um artificio para que essa ligação do Egito terreno com o Além pudesse ser revitalizada: uma tumba (maHat ou mjHat em egípcio). Esta era um local de descanso do corpo do morto e da regeneração deste no Além. No entanto, como isso funcionava? Em textos como o Conto do Náufrago (para as traduções em português, CANHÃO, 2010, p. 69-88; ARAÚJO, 2000, p. 73-79) e a História de Sinuhe (CANHÃO, 2010, p. 89-98; ARAÚJO, 2000, p. 101-119)40 a necessidade de voltar para o Egito é presente e digna de menção, uma vez que um discurso é feito em prol desse retorno, poderíamos inferir que existia um vínculo com o medo de morrer no estrangeiro, uma vez que lá o indivíduo não teria uma tumba para que sua memória fosse perpetuada. Assmann comenta que, nesses textos, pensar na tumba significa pensar em sua terra natal e sua divindade local, fazendo com que a imagem da morte como retorno correspondesse ao sentimento de apego local, de enraizamento no campo, cujos centros são o templo e a necrópole (ASSMANN, 2003a, p. 273-276). Assmann, de certa forma, atualiza a interpretação de K. J. Seyfried (1995), que analisa a tumba como um símbolo de conectividade que percorre e integra diversas gerações, algo que iremos associar a uma estrutura cognitiva que pode ser estudada em Tebas desse período. Nesse sentido, palavras como Ka (kA ) ou Ba (bA ou ) serão extremamente utilizadas a partir desse ponto nessa dissertação e necessitam explicação, assim como demais conceitos funerários. Assmann (2003a, p. 74-75) defende que existia uma imagem de morte como um isolamento que procede da ideia de conectividade social, atrelada à vida. Algo que parece bem interessante para muitas sociedades que acreditam em um pós-vida é, justamente, a compreensão de que um indivíduo morto só tem acesso a esse Além a partir de ritos feitos no Egito terreno, alguns 40 Recomendamos, também, a tradução para o inglês da Miriam Lichtheim (1973, p. 211-214) para o Conto do Náufrago e, também da Lichtheim (1973, p. 222-236) para Sinuhe. 80 imediatamente após a morte e outros continuamente, para que aquele indivíduo permaneça existindo no mundo idealizado. Se repararmos e trouxermos a história que introduz essa dissertação, perceberemos as nuances dessa noção, uma vez que o morto precisava de rituais para que pudesse viver em harmonia no Além. Dessa maneira, Assmann (2003a, p. 141-145) divide em duas partes todo o processo do defunto em sua morte e vida no Além, uma esfera física, que deixara no Egito terreno, e outra social, que seria lembrada entre os seus descendentes e, portanto, garantiria sua vida no Além. O princípio da conectividade social revigorava e animava o humano ao vinculá-lo à comunidade dos homens, enquanto o princípio da conectividade física, que era ativado pelo sangue de seu corpo e pela magia - com seus textos e amuletos - como parte da mumificação, conectava os membros uns aos outros e animava o corpo (ASSMANN, 2003a, p. 80). De acordo com Assmann (2003a, p. 80), um humano é, intrinsecamente, uma pluralidade de componentes que devem ser combinados em uma unidade orgânica, e, extrinsecamente, parte de processos de socialização e integração nas constelações da vida social, tudo isso faz com que os humanos se tornem plenamente vivos como elemento da comunidade. No entanto, qual ou quais são esses elementos que compõem o humano? O Ka e o Ba fazem parte das duas esferas dicotômicas que iremos trazer aqui. Na primeira esfera (a social), temos o Ka, o nome (rn) e a múmia (saH) enquanto na outra (uma física) temos, junto ao Ba, o corpo (Dt), o cadáver (XAt), e a sombra (Swt). Na intersecção das duas esferas, temos o coração (ib) e, em uma categoria própria, o Akh (Ax) (ASSMANN, 2003a). Dessa forma, como podemos compreender que o morto pode possuir um ou vários elementos e, mesmo assim, todos existem em prol desse indivíduo de modo a assegurar sua existência no Além? Por serem parte da composição humana, não conseguimos discriminar cada elemento de forma singular pois eles funcionam em forma plural para garantir o Além do morto. Portanto, conforme Assmann defende, um caminho interessante para a explicação das esferas é comparar o Ba e o Ka. Enquanto o primeiro elemento (Ba) é aquele que se movimenta e viaja para fora da tumba, de modo que o morto visite o Egito terreno, o segundo (Ka) consiste naquele que indica o status do morto (perpetuando sua memória entre o Egito terreno) e recebe as oferendas feitas na tumba, assim como também recebe tudo que o Ba provém. Desse modo, dois pontos são 81 importantes de ressaltar: o tema da liberdade de movimento, presente no Ba, não é desempenhado no Ka, de modo que o Ka faz parte da esfera social do morto (ASSMANN, 2003a, p. 157). Um aspecto em comum aos dois é que ambos se reúnem para receber as oferendas junto ao morto, como demonstrado no Capítulo 89 do LDM: Ó tu que chegas, ó andarilho que habitas o teu pavilhão (divino), grande deus, faz que a minha alma venha para junto de mim, seja qual for o lugar em que ela esteja! Se tardam a trazer-me a minha alma, seja qual for o lugar em que ela esteja, então tu encontrarás o olho de Hórus dirigido contra ti, assim. Ó deuses que tirais a barca do senhor dos milhões de anos, que conduzis o céu à Duat, que afastais o céu inferior, que fazeis que as almas se aproximem das múmias, que as vossas mãos segurem os vossos cordames, que os vossos punhos prendam os vossos chuços e o inimigo, para que a barca jubile e o grande deus voe em paz, mas fazei que esta alma de N (que eu sou) suba para junto dos deuses sob as vossas nádegas, do horizonte oriental do céu, para ir até ao lugar onde ela (?) estivera ontem, em paz, em paz, no Ocidente! Que ela veja o seu corpo, que ela repouse sobre a sua múmia! (Assim), ela não perecerá, ela não será destruída, nunca (LOPES, 1991, p. 119-120). A partir disso, vemos a preocupação para que esses dois elementos (no caso, Lopes traduz Ba por “alma”) se unam. Sendo assim, o Ba circula livremente entre o Egito Terreno e o Além, enquanto o Ka parece estar associado com a instância da justificação, que restitui ao homem seu status social no Além. A vinheta que acompanha esse texto pode ser vista na Figura 2.1. Nela, o Ba está representado como um pássaro sobrevoando o caixão do morto, indicando-nos o momento em que o Ba encontra outros elementos do morto. Portanto, o Capítulo 89 demonstra que o Ba se separa e retorna ao seu corpo constantemente, sendo necessário isso para a perpetuação da vida; o Ba se separa e desfruta sua vida para retornar e compartilhar com o imóvel (Ka), enquanto o imóvel recebe as oferendas e nutre o móvel (Ba). 82 Figura 2.1: Capítulo 89 do Livro dos Mortos de Ani. Fonte: Museu Britânico (BM EA 10470,17). Além dessa, em outras fórmulas do LDM podemos encontrar outras uniões, como, por exemplo, a do cadáver e o seu Ba no Capítulo 169, quando é dito “o teu Ba no céu, o teu cadáver na terra” (Adaptado de LOPES, 1991, p. 236). De acordo com Assmann (2003a, p. 147), o culto funerário, de certa forma, aumenta um vínculo que o Ba possui com o seu cadáver a partir de uma terceira forma, a representação de culto do morto, de modo que ele esteja ao mesmo tempo presente no céu, na terra e no submundo. Esses rituais se aplicam, também, para o Ka e a múmia, da esfera social, uma vez que este rito é realizado durante o ritual de abertura da boca em frente à múmiaerguida no pátio do túmulo. Sendo assim, seguindo o exemplo do deus sol, por ser representado na 83 barca solar e englobar o trajeto solar, o morto consegue a reintegração de sua pessoa na forma da união do Ba e do cadáver (ASSMANN, 2003a, p. 149). A dissociação do Ba do cadáver e sua viagem ao céu e à terra é destinada a trazer os mortos para compartilhar a forma de existência do deus sol, que viaja para o céu, visível para todos na forma de disco solar e se põe à noite nos mundos exteriores onde, invisível, escondido, se une com os mortos (ASSMANN, 2003a, p. 149). O Ba deriva dessa união com o cadáver, gerando uma força de renovação que lhe permite voltar para o céu para um novo ciclo. Essa regeneração cíclica do Ba e do cadáver trabalham juntos e dependentes uns dos outros, eles são subordinados uns aos outros, inseparáveis. O nome (rn), pertencente à esfera social, consiste naquele elemento que mantém a memória do morto viva no Egito terreno, para, assim, assegurar o seu Além, por isso aparece diversas vezes na tumba e, para as tebanas, já são presentes no pátio por meio dos cones funerários, que são pequenos objetos com inscrições do dono da tumba e, em alguns casos, de sua esposa. Para o coração (ib), Assmann (2003a, p. 165) argumenta que é uma categoria de complexa compreensão, uma vez que é algo material e que não pode ser separado do corpo. De acordo com os egípcios antigos, compreende-se que a morte é a dissociação do coração com o morto e sua cura é apresentada como a união (ASSMANN, 2003a, p. 168). De acordo com Assmann (2003a, p. 168), o Ba faz com o coração algo semelhante ao que faz com o Ka, ele o encontra e se une, mesmo que a sua reconstituição dependesse de divindades como Nut e Anúbis, referentes ao trabalho de restituir essas partes do corpo. Sendo assim, o coração é o ponto de intersecção entre as duas esferas, com uma função definida a partir da integração do físico com o social, com fim de determinar a unidade do morto (ASSMANN, 2003a, p. 144). Por fim, temos o Akh (Ax), uma parte do morto transfigurada, existente para poder fazer referência ao Ka e ao Ba, recebendo as oferendas e passando-as ao morto. De acordo com Assmann (2000, p. 81-92), o Akh pode ser enquadrado em nenhuma das duas esferas, sendo algo que aparece quando invocado pela fórmula jn.t Ax, que significa “Trazer (fazer vir) o Ax”, mas que também existe em uma relação parental, uma vez que o elemento pode significar algo que beneficia alguém, como um pai ao seu filho e vice-versa (ASSMANN, 2000, p. 87). No Esquema 2, podemos compreender melhor essas esferas e como elas são interpretadas por Assmann (2003a). 84 Esquema 2: Elementos que compõem o morto e suas respectivas esferas. Fonte: adaptado de Assmann (2003a, p. 181). Sendo assim, como compreender esses elementos no espaço funerário da TT 52. Temos três estágios que eles podem aparecer: arquitetura, pintura e escrita. A imagem da morte é algo muito bem preservado e cognitivamente difundido nessa sociedade, algo que Assmann (2003a, p. 171) defende como uma necessidade de marcar a presença da ausência. Dessa forma, existe uma associação muito forte entre a imagem e o corpo do morto, uma vez que as palavras egípcias que designam o corpo do morto (Dt, XAt, saH) são as mesmas que imagem (estátua, imagem, forma...), alterando o determinativo da palavra de horizontal para vertical, respectivamente (ASSMANN, 2003a, p. 171). Dessa forma, podemos compreender um sentido cognitivo a partir dessa linguagem: se uma imagem pode ser associada a uma forma do morto, ela simboliza o próprio morto. Fazer, kA Nome (rn) Múmia (saH) bA Sombra (Swt) Corpo (Dt) Cadáver (HAt) ib Esfera social Esfera física AH Se relaciona com Se relaciona com 85 portanto, uma oferenda à estátua do morto (por vezes chamada de estátua Ka), significa fazer oferendas ao próprio morto; ou, em outro exemplo, os ritos utilizados em um shabti41 significam que esse objeto, essa imagem, será transformada em uma pessoa para realizar o que estiver escrito. 2. A ESTRUTURA DA TUMBA Aos 25°43’54.4”N e 32°36’36.0”E a tumba de Nakht (TT 52) pode ser encontrada. Ela está situada no atual sítio arqueológico de Sheik el-Qurna, a oeste do rio Nilo na cidade de Luxor, antiga Tebas, Egito. Esse espaço possui, como podemos observar na Figura 2.2, um pátio (A) (irregular), uma capela funerária (B) (aprox. 4,8m x 1,5m), um pequeno corredor posterior (aprox. 0,5m x 0,6m) que leva a uma câmara interna (C) (aprox. 2,2m x 2,5m), que contém um pequeno nicho (D) para uma estátua Ka (aprox. 0,5m x 0,4m). Abaixo desse recinto, há um fosso para a descida para a câmara funerária, que possui um plano irregular. Na Figura 2.3 temos essa tumba exposta em uma perspectiva longitudinal, na qual podemos ver os pontos supracitados e compreender melhor o tamanho desse espaço. 41 Os Shabtis, conforme iremos ver ainda nesse capítulo, são estatuetas que contêm uma fórmula para trabalhar para e no lugar do morto no Além. 86 Figura 2.2: Planta da tumba de Nakht (TT 52). Legenda: A (pátio); B (capela funerária – com seis paredes decoradas, numeradas do 1 ao 6); C (câmara interna); D (nicho para a estátua Ka). Fonte: adaptado de Laboury (1997, p. 50). 87 Figura 2.3: Plano longitudinal da tumba de Nakht (TT 52). Legenda: A (pátio); B (capela funerária); C (câmara interna); D (nicho para a estátua Ka); E (câmara funerária). Fonte: adaptado de Kampp (1996, p. 257) No ano de 1889, o Serviço de Antiguidades egípcio tomou conhecimento da tumba de Nakht a partir de relatos das descobertas dos habitantes da aldeia de Qurna e, no mesmo ano, a tumba passou por um processo de limpeza, com uma equipe chefiada por M. Grébaut (DAVIES, 1917, p. 36). Em 1894, foi publicado o quinto volume da Mission archéologique francaise au Caire, que conta, no terceiro fascículo, com um texto de G. Maspero, intitulado Le tombeau de Nakhti, a tumba 125 do plano de M. Eisenlohr (MASPERO, 1894, p. 469-485). Nesse texto, o autor faz um levantamento dos desenhos e dos hieróglifos da tumba, e, no final, diz que seria interessante se ela fosse estudada de forma aprofundada (MASPERO, 1894, p. 485). Entre 1907 e 1910, Norman de Garis Davies, enviado pelo Museu Metropolitano de Nova Iorque (Metropolitan Museum – MET), coordena o que fora o início da escavação da tumba de Nakht, intitulada a partir 88 de então como Theban Tomb 52, e que culmina em um catálogo lançado pelo próprio museu em 1917. Figura 2.4: Fotografia retirada na frente da TT 52. Fonte: Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/36/Tomb_of_Nakht_%28TT52%29_- _Entrance.jpg. Acesso em: 20 set. 2020. 89 Nos dias atuais, podemos encontrar fotografias retiradas da frente da TT 52, como na Figura 2.4, acima. Podemos ainda achar sua localização pelo Google Maps, como na Figura 2.5, sendo possível, então, saber qual seria a visão ao sair dela, conforme a Figura 2.6. Nas duas primeiras imagens vemos que sua fachada original não existe mais, sendo ela uma reconstrução reforçada para a visita turística. Quanto à Figura 2.6, percebemos que podemos visualizar a área agrícola de Luxor, às margens do Nilo, e, ao fundo, a Luxor moderna contrastada pelo templo de Karnak, conforme indicado pela seta vermelha na imagem. Isso nos possibilita compreender que o visitante da tumba de Nakht teria uma visão ampla de Tebas ao sair da tumba. Figura 2.5: Localização da TT 52 pelo Google Maps. Fonte: Google Maps. Acesso em: 20 set. 2020. 90 Figura 2.6: Vista da TT 52 pelo Google Maps. Fonte: Google Maps. Acesso em: 20 set. 2020. Em uma tumba egípcia podemos perceber a morte como um sentido de passagem, uma imagem que está impressa na arquitetura da mesma (ASSMANN, 2003a, p. 185), algo que os egípcios compreendiamcomo uma forma de reintegrar o morto na sociedade, fazendo da tumba um local de integração de gerações, conforme fora defendido no artigo de Seyfried (1995). Assmann (2003a, p. 282-320) defende que, na tumba egípcia, existiam duas funções que eram opostas e mutuamente exclusivas: “mistério”42 e “memória”. Por um lado, a tumba serviu como um sinal visível destinado a manter viva a lembrança do morto em memória da posteridade. Esta função da tumba exigia visibilidade e abertura. Por outro lado, a tumba deveria abrigar a múmia e, na medida do possível, mantê-la a salvo de qualquer interferência externa, um lugar escondido e 42 Acreditamos que seja importante destacar que, em outro livro, Assmann (1995) utiliza da palavra “mistério” e separa o seu significado aplicado ao Egito antigo com a aplicação da palavra entre os gregos antigos. Para a sociedade aqui estudada, a utilização da palavra “mistério” evidencia algo “secreto” no sentido de ser um conhecimento limitado entre os sacerdotes que realizam determinado ritual, algo que exige uma fala e um ato próprio desses sábios (ASSMANN, 1995, p. 17). 91 inacessível onde o falecido era protegido para sempre. Nesta tentativa arquitetônica de criar um espaço protetor para a múmia, Assmann (2003a, p. 283) argumenta que podemos perceber a expressão tangível da imagem da morte como mistério. Arquitetonicamente, a realização dessa separação existe em prol de dois aspectos, a saber: o aspecto solar, que simboliza renovação, e o aspecto associado ao deus Osíris, proteção, indicando uma ocultação absoluta (ASSMANN, 2003a, p. 283). Seguindo essa ideia, Assmann (2003b) compreende que podemos separar em cinco as funções de uma tumba: 1. Abrigar e ocultar o sarcófago com a múmia: esta função está relacionada com a noção de sagrado, uma vez que o que está inacessível está guardado e intocável; 2. Indicar o lugar de enterramento e mostrar o nome do defunto: associa-se com o conhecimento do eu e poder simbólico que esse possibilita; 3. Mnemônica ou de representação biográfica: a tumba era construída para ser visitada para a posteridade, já que a crença egípcia entende que o dono da tumba, para continuar sua vida no Além, deve ser relembrado no Egito terreno; 4. Prover uma interface: ou uma passagem (ponte), para que o morto possa transitar entre este e o outro mundo; 5. Prevenir o regresso do defunto ao mundo dos vivos: com o intuito de que este não perturbe os vivos, separando, assim, de seu mundo por meio do isolamento da câmara funerária. Se pensarmos que uma parte da tumba necessita de visibilidade (capela funerária) enquanto a outra é totalmente o oposto (câmara funerária), podemos supor que ambas as funções apresentadas são divergentes em certos pontos. A quarta e a quinta função estão associadas com o viés de simbolismo no projeto arquitetônico da tumba e das esferas físicas e social do morto. Sendo assim, tumba não é interpretada como um bloqueio entre os mundos dos vivos e dos mortos, mas, sim, como uma “interface”, que é o símbolo principal desse aspecto (ASSMANN, 2003b, p. 47). Existem diferenças nas concepções de tumbas dependendo do período. Para o Reino Novo, temos três tipos de nomenclaturas, demarcadas a partir do reinado de Akhenaton. Esse período, chamado de amarniano, intencionou uma reforma nas crenças religiosas e, portanto, artística (um dos pontos 92 mais perceptíveis). Essa tentativa, no entanto, não fora frutífera, de modo que temos documentos de Tebas que nos demonstram uma continuidade das práticas religiosas, mesmo que em baixa frequência. Ao fim do reinado de Akhenaton, percebemos que alguns ideais desse período perduraram entre os membros da elite. Ao compararmos as tumbas pré-amarnianas (como a TT 52) com as amarnianas (dentro da cidade de Amarna) e as pós-amarnianas (se restringirmos às tebanas), vemos uma grande diferença entre o primeiro tipo e o segundo (como, por exemplo, o faraó se torna um ponto central nas imagens das tumbas) e, para o terceiro, não há um resgate completo do primeiro tipo, sendo recorrente um motivo iconográfico do segundo tipo perdurar no terceiro (como citado, o rei aparece em algumas imagens da tumba pós-amarniana). A estrutura de uma tumba foi amplamente estudada por Friederike Kampp-Seyfried em sua Tese (1996)43. De acordo com a autora, podemos separar em três as partes de uma tumba, cada uma com uma função específica e uma forma arquitetônica (KAMPP-SEYFRIED, 2003). Se repararmos na Tabela 3 e utilizarmos da Figura 2.7, podemos identificar os diferentes níveis e suas funções. Na Tabela 3, possuíamos a nomenclatura da divisão feita pela autora, com sua função e a descrição de sua forma arquitetônica. Na Figura 2.7, vemos exemplos dessa divisão esquemática da tumba em desenhos, com o primeiro nível sendo o superior, categorizado como uma superestrutura em forma de capela, estatuetas ou formas piramidais (da esquerda para a direita na imagem); o segundo nível (médio) é composto por um pátio e uma câmara interna (respectivamente da esquerda para a direita), uma estrutura semelhante ao templo, conforme vimos no primeiro capítulo (Figura 1.9); por fim, o nível inferior, que é subterrâneo e pode ser direto de um poço (no desenho da direita) ou com corredores e antessalas (desenho da esquerda). 43 Na edição que temos dessa Tese, o nome utilizado pela autora é “Friederike Kampp”, justificando, assim, a aparição desse nome nas referências desta dissertação para essa obra. 93 Tabela 3: Divisão esquemática de uma tumba tebana de particular em três níveis horizontais. Divisão Função Forma arquitetônica Nível superior (A) Aspecto de culto solar, adoração solar Superestrutura em forma de uma capela, pirâmide, ou a fachada recuada com uma estátua do tipo stelophor Nível médio (B) Local de adoração e cultos cerimoniais (rituais), monumentos sociais para o proprietário da tumba Pátio e câmara interna, como vestíbulo, corredor e nichos Nível inferior (C) Aspecto do culto a Osíris, realização de paisagens para o Além, e local de descanso do corpo Complexo funerário subterrâneo com nichos e corredores, antessalas e câmaras marginais, além de uma câmara contendo o caixão Fonte: Kampp-Seyfried (2003, p. 8). Figura 2.7: Divisão esquemática de uma tumba tebana de particular em três níveis horizontais. Fonte: Kampp-Seyfried (2003, p. 8). 94 Para o nível médio, a autora divide as tipologias das tumbas de Tebas em dez categorias, conforme vemos na Figura 2.8. Nessa imagem percebemos a tipologia de cada tumba. O primeiro tipo é o mais simples, com apenas uma capela de culto. O tipo II possui um acréscimo de algum nicho para uma estátua, subdividido em duas categorias, a primeira (IIa) com a capela na horizontal e a segunda (IIb) na vertical. No terceiro tipo, um corredor faz a ligação do pátio com a capela, e, enquanto o IIIa não possui colunas na fachada da tumba, o IIIb as possui. O tipo IV é semelhante ao tipo III, com a diferença que o corredor é mais largo e categorizado como uma parte da capela funerária (ou um vestíbulo). Quanto ao tipo V, o qual a TT 52 se enquadra, existe uma capela funerária anterior a uma câmara interna, que pode ser separado em cinco categorias. A Va é composta apenas pela câmara horizontal antes de uma vertical, enquanto o Vb possui um nicho no final da tumba, o Vc possui duas câmaras anteriores, o Vd com duas câmaras horizontais intercaladas por uma vertical, e, por fim, a Ve possui duas câmaras com acesso pela primeira câmara anterior (com casos de compartilhamento da tumba nesse tipo). Os tipos VI, VII, VIII, IX e X são versões de colunas dos tipos anteriores. 95 Figura 2.8: Tumbas tebanas e suas tipologias de acordo com Kampp-Seyfried (2003). Fonte: adaptado de Kampp-Seyfried (2003, p. 4). Sobre os pátios, a autora sugere que essas tumbas escavadasem rochas teriam uma estrutura comum, com algumas poucas alterações. Na Figura 2.9, vemos o modelo base que Kampp-Seyfried (2003, p. 9) sugere. Vemos que o muro do pátio seria baixo na entrada e elevado de forma gradual até a parede da fachada, que teria frisos para os cones funerários e um recuo para estatuetas. As 96 mudanças são vistas nos elementos extras que compõem esse pátio, que, conforme vemos no desenho, podem possuir uma base e um poço. A partir disso, fizemos em conjunto com o professor Bruno Leonardo Canto Martins (DFTE/UFRN) uma reconstrução para a TT 52, cujo pátio não fora reconstruído na escavação e atualmente possui uma estrutura moderna (como vimos nas Figuras 2.4 e 2.5). Vemos essa reconstrução na Figura 2.10. Figura 2.9: Aparência de uma tumba da XVIII Dinastia. Fonte: Adaptado de Kampp-Seyfried (2003, p. 9). Frisos para os cones funerários Parede da fachada Recuo para estatuetas Muro do pátio Poço Base Rocha 97 Figura 2.10: Reconstrução da fachada da TT 52. Fonte: projeção feita em conjunto com o Prof. Dr. Bruno Leonardo Canto Martins (UFRN/DFTE) no programa SketchUp. Quanto à câmara interna. para o período de Nakht, Kampp-Seyfried mostra que nove das dez categorias de tumbas são presentes. No Gráfico 6, podemos ver quantas tumbas existem em cada categoria e, na Figura 2.8, o plano de cada uma dessas categorias e suas subdivisões. Vemos que a maioria das tumbas do período são do tipo V (21), justamente o qual a TT 52 se enquadra. Enquanto os tipos Va e Vb, conhecidos como a forma básica tebana tradicional, são relativamente equilibrados cronológica e regionalmente e podem ser documentados desde o início da XVIII Dinastia até o final do período Ramessida, o tipo Vc se limitou à XVIII dinastia, com um foco no reinado de Tutmés IV (KAMPP, 1996, p. 27). Isso é interessante a partir do momento que criamos um mapa cognitivo para essa região. O tipo Va e Vb, por serem mais comuns, poderiam apresentar um espaço mais prático para realizações de rituais. Conforme mencionamos anteriormente, o tipo Vb, o mesmo da tumba de Nakht (Figura 2.2) e de outras 14 tumbas dessa nossa seleção, difere da forma básica simples porque a parede frontal no corredor longitudinal é estendida para criar um alvo de culto na forma de um nicho ou uma capela com um nicho. 98 Gráfico 6: Tipos de tumbas de particulares entre os reinados de Tutmés IV e Amenhotep III. Fonte: Dados obtidos a partir de Kampp (1996). Se pensarmos, no momento, apenas nessa superestrutura, podemos compreender alguns ideais egípcios que Kampp-Seyfried reflete em sua Tese. A função desse nível é realçá-lo como um espaço de culto solar. Podemos perceber essa interação a partir da simbologia básica de ser um local que recebe a maior área de luz solar na tumba. Se prestarmos atenção na Figura 2.10, podemos ver que o pátio da tumba de Nakht não parece ser algo suntuoso. No entanto, Kampp-Seyfried explica três pontos nesses tipos de pátios da TT 52, um com paredes laterais e pátios abertos, com incidência de luz solar. A primeira questão é que a grande maioria das sepulturas rochosas de Tebas estão mais ou menos nas encostas das colinas das necrópoles. Devido apenas a esta localização na encosta, foram criados pátios que são abertos na encosta, ladeados por rocha. Essas paredes laterais perdem altura devido à formação do declive para o leste e, portanto, marcam naturalmente o limite frontal do pátio. Na maioria das sepulturas registradas, esta forma de pátio - modificada por algumas medidas de engenharia estrutural - pode ser considerada um caso normal (KAMPP, 1996, p. 59). A segunda explicação é que, em muitos pátios abertos (ou fechados) em uma encosta, as faces laterais das rochas ou partes delas foram parcialmente fechadas com tijolos e alongadas (KAMPP, 1996, p. 2 9 1 1 21 4 8 5 1 I II III IV V VI VII VIII X 99 62). Isso pode ser explicado a partir do terceiro ponto, que é referente às fachadas (com ou sem pórtico). Elas eram geralmente coroadas com uma parede acima das bordas da rocha, que inicialmente deveria ser avaliada como uma medida estrutural para proteger a fachada e o pátio da queda de detritos. Além dessa função protetora primária, a parede da fachada assumiu um carácter especial. O design - sobretudo na XVIII Dinastia - era um fato muito importante: servia para realçar todo o conjunto de tumbas e, ao mesmo tempo, podia assumir funções de superestrutura (KAMPP, 1996, p. 64). Concordamos com Maria Violeta Pereyra (et al, 2019, p. 25) ao considerar que uma tumba de particular deve ser analisada como um todo orgânico e dinâmico, compreendendo-o como um espaço de convergência entre a arquitetura, a imagem e o texto. Em nosso caso, basear-nos-emos na ideia de ritual para a Arqueologia Cognitiva. Roy Rappaport (1999) entende que uma experiência religiosa suporta uma doutrina religiosa e crenças, que direcionam a um ritual; este, por sua vez, induz a experiência religiosa e gera um ciclo (Esquema 2). Esse ciclo elaborado por Rappaport (1999), afirma Renfrew (RENFREW; BAHN, 2016, p. 413), pode originar imposições santificadas para uma ação, que gera um processo ecológico e social e culmina no ritual, uma parte que completa o ciclo. Ao inserirmos o Esquema 1 (Cf. p. 16 do Volume I) nessa equação, compreendemos que todo esse ciclo deriva de uma rede cognitiva mais ampla. Renfrew (1994), ao explicar sobre os aspectos do ritual sagrado, categoriza a crença religiosa como aquela que afirma a existência de alguma força ou poder transcendental, sobrenatural, ou de várias delas. Dessa forma, o objetivo do culto é, basicamente, trazer os humanos participantes, assim como aqueles a quem eles representam, a uma relação mais direta com essas realidades transcendentais (RENFREW, 1994, p. 47-48). 100 Esquema 3: Religião interpretada por Roy Rappaport. Fonte: adaptado de Renfrew e Bahn (2016, p. 413). Renfrew (1994, p. 51) argumenta que o ritual sagrado enquanto experiência religiosa pode ocorrer em um local especial (específico) - seja por sua posição natural, como uma caverna ou um bosque de árvores, ou especialmente construída para esse fim. Além disso, uma adoração requer um foco de atenção. No nosso caso, a tumba pode ser identificada por um local de culto em prol do morto. Por esse motivo, a maioria dos rituais sagrados é direcionada para um local sagrado específico, às vezes um altar, sejam feitas oferendas ou não nesse local. Muitos utilizam algum foco simbólico para atrair essa atenção, que pode tomar forma como um objeto natural ao qual se atribui significado ou uma imagem que representa a divindade, podendo também haver objetos específicos do culto, como o instrumento do Ritual de Abertura de Boca, no Egito Antigo. De modo que esses rituais fossem identificados pelos arqueólogos, Renfrew e Bahn (2016, p. 416-417) propuseram uma lista genérica com dezesseis critérios, separados em quatro partes44: 44 Traduzida por Pedro Hugo Canto Núñez (2020) para o português. Ritual Imposições santificadas para uma ação Processo ecológico e social Experiência religiosa Doutrina religiosa e crenças Ritual 101 A. Foco de atenção 1. O ritual pode acontecer em um local com associações naturais (uma caverna, árvores, o topo de uma montanha...); 2. De forma alternativa, o ritual pode tomar lugar em uma construção especial para funções sagradas (um templo ou uma igreja); 3. A estrutura e o equipamento usado para o ritual podem empregar um foco de atenção, refletido na arquitetura, utensílios especiais (altares, bancos...) e equipamentos móveis (lâmpadas, gongos e sinos, vasos ritualísticos, incensos, roupas...); 4. A área sagrada é provável ser rica em repertório simbólico. B. Zona periférica entre esse mundo e o Outro: 5. O ritual pode envolver tantoa exposição pública visível (e gastos) quanto os mistérios exclusivos escondidos, cuja prática será refletida na arquitetura; 6. Conceitos de limpeza e purificação podem ser refletidos em suas instalações (piscinas ou tanques de água) e manutenção da área sagrada. C. Presença da divindade 7. A associação com a(s) divindade(s) pode ser refletida no uso de uma imagem de culto, ou a representação da divindade em sua forma abstrata; 8. Os símbolos ritualísticos geralmente estarão relacionados, iconograficamente, com as divindades adoradas e suas associações míticas. O simbolismo animal (de animais reais ou míticos) pode estar presente com animais particulares relacionados às divindades ou aos poderes específicos; 9. Os símbolos ritualísticos podem estar relacionados com aqueles utilizados também em rituais funerários e em outros ritos de passagem. D. Participação e oferenda 10. Adoração envolverá oração e movimentos especiais (gestos de adoração), podendo estar refletidos na arte ou iconografia das decorações ou imagens; 11. O ritual pode empregar vários dispositivos para induzir a experiência religiosa (dança, música, drogas e a imposição da dor); 102 12. O sacrifício de animais ou humanos podem ser praticados; 13. Comida e bebida podem ser levadas e, possivelmente, consumidas como oferendas ou queimadas; 14. Outros materiais podem ser levados e ofertados (oferendas votivas). O ato de oferecer pode implicar a quebra e ocultação ou descarte; 15. Grande investimento de riqueza pode ser refletido tanto no equipamento utilizado quanto na oferenda feita; 16. Grande investimento de riqueza e recursos pode ser refletido na estrutura do lugar e em suas instalações. Sendo assim, um ritual enquanto experiência religiosa pode ocorrer em um local especial (específico) - seja por sua posição natural, como uma caverna ou um bosque de árvores ou em um lugar construído para esse fim. Por uma adoração requerer um foco especial, a maioria dos rituais é direcionada para um local específico. Podemos pensar no conjunto das paredes da tumba de Nakht, na qual os motivos iconográficos, de certa forma, são animados a partir da experiência religiosa, ativando o ciclo do Esquema 3. Como, então, podemos organizar esse espaço e o sistema cognitivo da TT 52? Para um monumento egípcio, especificamente uma tumba, podemos nos guiar a partir dos níveis que delimitam o discurso figurativo, proposto por Valérie Angenot (2010). A proposta de Valérie Angenot (2010), é que são oito as etapas de interpretação de uma construção egípcia, a saber: monumento, sala/câmara, parede, compartimento, registro, cena, figura e a subfigura. A autora defende que essas etapas de leitura, no entanto, constituem unidades dos sentidos isolados, cada uma assumindo uma função precisa dentro do microcosmo recriado pelo monumento e cada uma definida por sua própria estrutura (ANGENOT, 2010, p. 21). Reproduzimos abaixo essas etapas e a sua respectiva área interpretativa. 1. Monumento • Espaço, limite, texto (quadro psicológico) 2. Sala/câmara 103 • Parede, porta 3. Parede • Externa: elementos arquitetônicos (colunas e cornijas) • Interna: frisos 4. Compartimento • Linha fechada, coluna de texto, figura grande 5. Registro • Linha aberta 6. Cena • Um relatório cronológico, espacial ou paradigmático 7. Figura • Contorno da imagem (exceto o vegetal), quadriculado (invisível) 8. Subfigura • Contorno da imagem De acordo com Angenot (2010, p. 49), a capela do hipogeu egípcio do Reino Novo é orientada de leste (entrada) a oeste (fundo), de acordo com o curso do sol, do deus Rê em seu barco, que se levanta pela manhã no horizonte oriental e desaparece a oeste à noite para se regenerar. Dessa forma, este arranjo topográfico resulta no fato de que a cada manhã, a estrela do dia sobe na moldura da porta e vem batendo e seus raios incidem sobre duas paredes das tumbas, deixando o resto das câmaras na escuridão total. Estas seriam as primeiras paredes que um potencial visitante veria ao entrar na capela. Enquanto a decoração da tumba egípcia pode funcionar no vácuo e sem um espectador externo, algumas paredes são, no entanto, destinadas a ser vistas e entregar uma mensagem ao mundo exterior (ANGENOT, 2010, p. 49). Assim, a autora argumenta que essas duas partes das paredes acessíveis aos raios do sol forneciam ao visitante informações sobre o status social do dono do túmulo e suas relações com a instituição real (ANGENOT, 2010, p. 50). Poderíamos inserir a essa ideia a teoria de Amos Rapoport sobre o Ambiente Construído. Para Rapoport (1982, p. 13), as pessoas reagem ao ambiente em termos do significado que ele afeta na pessoa. Existe, portanto, uma forte conexão entre o ambiente e o seu significado, sua função, 104 para com o seu visitante, de modo que, conforme argumenta Rapoport (1994), aspectos do ambiente podem ser tão importantes para aqueles que efetuam atividades nele, que eles são condicionados a se comportarem de determinada maneira. Dessa forma, Rapoport (1976, p. 23) vê que, se um ambiente construído faz um sistema cognitivo visível, faz-se com que o humano entenda o mundo como significante a partir de suas distinções, classificações e definições de lugares, que, para o autor, são constituídos a partir da “noção de estar aqui ao invés de lá”. A partir disso, ao retomarmos às anotações de Renfrew (2014), podemos definir um ponto de encontro das duas teorias: um espaço determina uma ação para o humano a partir de uma rede cognitiva. Essa rede pode ser interpretada a partir das atividades ocorridas no ambiente, algo que Rapoport (1982, p. 18) defende que pode não estar sempre presente de forma explícita e, por isso, o faz refletir sobre a Comunicação Não-verbal, que pode ser contextualizada, analisada e interpretada por três características do ambiente: os elementos fixos (fixed-feature), os semifixos (semifixed-featured) e os não-fixos (nonfixed-feature). Para identificar tais elementos, a sociedade deve ser identificada e analisada em como o comportamento humano é feito no ambiente (Rapoport, 1982, p. 87). Os elementos fixos são aqueles que não mudam ou se modificam raramente ou de maneira lenta. Estes são organizados no espaço (geralmente com outros elementos) para comunicar um significado ao humano que o vivencia. Os semifixos são aqueles (objetos/coisas) que podem mudar de lugar, como uma cadeira ou mesa. Eles podem e mudam fácil e rapidamente, o que torna a análise deles mais difícil, uma vez que pode haver mudanças de significados com a mudança de contexto. Por fim, os elementos não fixos, humanos, que formam o sujeito dos estudos de Comunicação Não-verbal. No entanto, como podemos extrair um sentido cognitivo na tumba de Nakht? A partir da Teoria de Engajamento Material (TEM) de Lambros Malafouris (2013) podemos desenvolver melhor o problema, uma vez que ela nos proporciona uma forma de articular e trazer ao foco uma interação entre pessoas e as coisas por ser baseada em três fatores: a mente (ou a extensão mental, trabalho psicanalista), o signo ativo (a partir de uma perspectiva semiótica), e a agência material. Malafouris (2013, p. 17) argumenta que a tese central que une todos os diferentes níveis é que a relação entre cognição e cultura material não é de representação abstrata, ou alguma outra forma de ação à distância, mas, sim, de inseparabilidade ontológica (interna do ser). Isso significa que a compreensão da cognição humana está essencialmente interligada com o estudo das mediações 105 técnicas que constituem os nós centrais de uma mente humana materialmente estendida e distribuída, como podemos ver no esquema a seguir. Esquema 4: A visão de mundo representada. Fonte: adaptado de Malafouris (2013, p. 27). Utilizando o esquema de Malafouris e examinando-o em referência aos esquemas 1 e 4,podemos, agora, compreender um processo maior, o de como o discurso funerário foi circunscrito na tumba de Nakht. De acordo com Malafouris, podemos reconhecer a intenção cognitiva por trás de um material, interpretando a sociedade que o modelou a partir de uma esquematização um tanto simples de compreensão do processo. É interessante pensar nessa perspectiva de Malafouris e nos novos horizontes que a Arqueologia Cognitiva pode alcançar, pois, como defende o autor, somos habituados a estudar a Cultura Material como inerte e passiva (MALAFOURIS, 2018, p. 12). Seguindo a Teoria do Engajamento Material, podemos analisar essa Cultura Material como meios dinâmicos, perturbadores e mediacionais, cuja presença tem o potencial de alterar as relações entre os humanos e seus ambientes (MALAFOURIS, 2018, p. 12). Novos artefatos criam relações e 106 entendimentos do mundo. Utilizando o próprio exemplo do autor (MALAFOURIS, 2013, p. 175), ao lascar uma pedra, o humano o fizera refletindo através (through) da mesma, sobre a mesma e com a mesma, o que gerara o que Malafouris chama de “meta-cognição”, um pensamento sobre o pensamento. Isso gera uma marca no objeto, uma marca que será identificada como intenção. Atentando-nos ao Esquema 4, compreendemos que, no mundo, existem eventos X e Y, que serão interpretados e processados na mente do humano como X’ e Y’. Esse processo ocasionará um produto (E), realizado pelo seu corpo. Exportando esse modo de compreensão para a TT 52, podemos inferir uma série de questões relevantes para essa pesquisa. O Modelo 1 é resultado de uma pesquisa que foi desenvolvida em conjunto com o professor Bruno Leonardo Canto Martins do Departamento de Física Teórica e Experimental da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na qual projetamos a TT 52 tridimensionalmente no programa SketchUp para melhor visualizarmos todas problemáticas com base em Renfrew, Rapoport, Malafouris e Angenot. Modelo 1: Modelo da TT 52 feito no SketchUp. Fonte: construído em conjunto com o Prof. Dr. Bruno Leonardo Canto Martins (UFRN/DFTE) no programa SketchUp, com medidas baseadas em Kampp (1996), Laboury (1997), Davies (1917) e Porter e Moss (1980). 107 Para tornarmos possível a nossa projeção tridimensional da tumba de Nakht (TT 52), resolvemos utilizar o programa SketchUp, um dos mais comuns entre arquitetos e designers por ser um aplicativo não muito pesado e que contém diversos recursos criativos. O programa permite criar paredes, moldá-las para mostrar suas imperfeições, adicionar a informação do material utilizado nessa parede, criar objetos específicos e, também, tornar público o produto. Para tanto, utilizamos todos os desenhos, medições e fotografias feitos da tumba e que estavam disponíveis para serem utilizadas. Seguimos, portanto, um processo metódico. Em um primeiro momento, utilizamos as medições do catálogo feito por Norman de Garis Davies (1917) e da tese de Friederik Kampp-Seyfried (1996, p. 257-258) para projetarmos as paredes no espaço do aplicativo, iniciando com a camada superior (pátio, capela funerária, câmara interna e nicho da estátua Ka) para fazermos a camada inferior. Encontramos um problema ao projetarmos a câmara funerária: o terreno é irregular e as medidas computadas pelos dois egiptólogos acima não são exatas e correspondentes. Diante disso, resolvemos manter as medições correspondentes e ignorar as irregularidades, deixando a camada inferior com as paredes retas quanto ao eixo horizontal e respeitando as imperfeições do eixo vertical. Erguidas as paredes, tentamos resgatar os materiais que as compõem. Retiramos essas informações da tese de Fiederik Kampp (1996, p. 257-258) e do artigo de Dimitri Laboury (1997). Cada uma das colorações na projeção representa um material: os pedregulhos na parede sul do pátio, o arenito nas pilastras da entrada da tumba (provavelmente essas pilastras são construções do período moderno, para manterem uma porta e poderem fechar/guardar a tumba) e a rocha talhada em toda extensão da tumba (em cinza). As camadas desses diferentes materiais foram importadas de arquivos públicos de arquitetura depois de pesquisarmos quais são aquelas que mais se assemelham às egípcias. Feito isso, modelamos um bloco com 40 cm de altura, 20,7 cm de largura e 25,6 cm de profundidade. Nele inserimos as imagens da estátua Ka disponíveis no catálogo de Davies (1917) e no livro de Seidel e Shedid (1991). Esse bloco fora posicionado no nicho da estátua Ka. Para completar, utilizamos as imagens disponíveis pelo Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque para inserirmos nas seis paredes da capela funerária, calculando suas posições a partir da planificação feita por Laboury (1997, p. 76-77). 108 Compreendemos, assim, que a TT 52 possui um pátio aberto, que possibilita a incidência solar, com paredes laterais, as quais compõem a fachada da tumba, com um espaço disponível para os cones funerários. Em nosso modelo não pusemos um nicho para uma estatueta, uma vez que a estrutura da TT 52 pode ser enquadrada no tipo Vb e esse nicho aparece no nível médio da tumba, de modo a convergir para ela o olhar do visitante que entrasse no recinto. Sendo assim, interpretamos que existia um foco visual na estrutura da tumba que guiaria o visitante e o faria revitalizar o morto no Além. Embora não possamos reconstituir a câmara funerária da tumba, por ela possuir uma significativa falta de dados concretos quanto à medição, e por sabermos que nesse recinto não existem paredes decoradas, a nossa projeção serve para visualizar melhor, mesmo que remotamente, a TT 52 e, portanto, sugerir uma esquematização dos rituais efetuados no espaço. Contudo, ainda possuímos mais um ponto que podemos incorporar à nossa análise: os objetos encontrados na tumba e elencados por Davies (1917). 3. OS OBJETOS Conforme mencionamos anteriormente, entre 1907 e 1910, Norman de Garis Davies coordena a escavação da TT 52. Durante esse período, Davies descreve que o Serviço de Antiguidades não havia limpado o poço (e, portanto, nem a câmara funerária), cabendo a ele a descoberta dos objetos que acompanharam Nakht em seu enterro. De acordo com Davies (1917, p. 39-43), eles são45: 1. Fragmento da parte superior do caixão de um homem em madeira vermelha, com um rosto pintado. A peruca pintada de preto com listras amarelas. As sobrancelhas e os olhos foram embutidos com vidro colorido, provavelmente; 2. Fragmento da parte superior do caixão de uma mulher de um tipo semelhante ao anterior, em madeira comum. Os olhos foram pintados com tinta preta e sobrancelhas em azul; 45 A listagem a seguir fora traduzida e adaptada por nós, mas as páginas do catálogo referentes a ela estão disponibilizadas no Anexo F (Cf. p. 349-352 desse volume). Os apontamentos feitos nas próximas duas notas de rodapé são com base nos escritos de Davies para o objeto. 109 3. Fragmento semelhante aos anteriores, com o rosto pintado de amarelo e olhos e sobrancelhas como o item 2; 4. Pedaços de um caixão de tom preto com decoração em amarelo claro. Existe uma figura semelhante a uma deusa nele. Uma legenda percorreu uma coluna longitudinal na tampa é dedicada aos deuses funerários. O nome é ilegível; 5. Parte da haste de um descanso de cabeça octogonal, bem detalhado. O encaixe foi habilmente feito pelo uso de pinos bifurcados retirados de galhos; 6. Dois pedaços de um cetro (provavelmente colocado originalmente no caixão com o corpo); 7. Duas das quatro pernas e a barra de conexão de uma mesa pequena ou suporte de madeira. As pernas eram quadradas de 25 mm no encaixe e curvadas ligeiramente para fora. A mesa devia ter 48 cm de comprimento e tinha pouco menos de 30 cm de altura; 8. Três das quatro pernas, em formato de pata de leão, e um pedaço do assento de uma cadeira de madeira baixa, pintada de preto, 24 cm de altura na frente46;9. Um conjunto similar ao anterior, pintado de branco. Dois lados da moldura são perfurados com dezoito orifícios para tirar a corda ou tangas do assento, que era de cerca de 60 cm e levantado 26 cm do chão na frente; 10. Três pernas de uma cadeira mais rústica e um pouco mais alta, pintada de preto; 11. O trilho superior de uma cadeira, com cinco buracos, um largo no centro e dois menores de cada lado. Tem 37,5 cm de comprimento, e, sendo preto, talvez pertença ao item 8. 12. Um suporte de madeira para fortalecer uma junta de uma mesa ou da cadeira do item 11; 13. As laterais quebradas e a tampa de uma caixa de madeira de 40 cm de comprimento, pintada em preto e branco; 14. Partes das laterais, extremidades e tampa de uma ou duas caixas cerca de 35 cm por 19 cm, pintadas com faixas brancas no preto e um painel central em vermelho, sendo a tampa ligeiramente arqueada; 15. Um vaso fino (quebrado) de cerâmica amarela pintada com quatro fileiras de pétalas azuis entre linhas vermelhas compostas. Ele teria cerca de 30 cm de altura, sendo o fragmento real de 28 cm de comprimento e 8,25 cm de largura na boca; 16. Dois potes vermelhos grossos, de 12 e 19 cm de altura, com pescoço em forma de costela e faixas vermelhas escuras pintadas nas orelhas e no ombro; 46 As pernas traseiras são menores, de modo a dar uma inclinação confortável para o assento. 110 17. Um jarro de cerâmica vermelho com alça, decorado com uma linha preta dupla na junção do pescoço e ombro. Linhas duplas similares vão deste para o pé, com manchas pretas entre as linhas; 18. Três cones funerários inscritos com o nome e títulos de Nakht e sua esposa47; 19. Uma pequena vara de madeira para aplicar maquiagem nos olhos; 20. Um grampo de cabelo de madeira. O maior problema dessa lista de vinte itens é que, na época, foi feita foto apenas de uma pequena parte. Como podemos ler em alguns boletins do MET, parece que o interesse maior dessa escavação foi com as paredes da tumba: Pode ser verdade que a popularidade da tumba se deva tanto à sua acessibilidade e boa preservação quanto ao seu mérito intrínseco. Mas, por apresentar a arte mural e as cenas típicas do período sem qualquer deterioração séria de cor ou linha, ela merece publicação e estudo muito cuidadosos (THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART, 1917, p. 131)48 e com a estátua Ka de Nakht. Em contraste com esse trabalho infrutífero [sobre as tumbas de Userhêt, TT 51, e Thothemhab TT 45], algumas pequenas escavações realizadas com o mesmo propósito na tumba de Nakht tiveram uma recompensa descoberta, uma encantadora estatueta pintada do proprietário sendo encontrada deitada no enchimento do poço do cemitério, onde foi lançada de seu nicho na parede da câmara acima por aqueles que saquearam o túmulo nos tempos antigos. [...] Seu acabamento é excelente e se assemelha à decoração mural deste túmulo por ser inteiramente típico de um bom trabalho da época, ambas as lajes nas quais um 47 Dois deles estariam em posse de Davies, outro no Museu do Cairo, juntamente com um tijolo em forma de cunha de argila queimada estampado em três lados com a mesma impressão, que Davies acredita ser derivado da limpeza de M. Grébaut da tumba. 48 No original: It may be true that the popularity of the tomb has been due as much to its accessibility and good preservation as to its intrinsic merit. But by presenting the average mural art and the typical scenes of the period without any serious deterioration either in color or line, it deserves very careful publication and study (THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART, 1917, p. 131). 111 endereçamento ao deus-sol é recortado em hieróglifos incisos amarelos (DAVIES, 1915, p. 234-235)49 Sobre a estátua, Davies (1917, p. 36) comenta que ela foi destinada ao MET como objetos encontrados no inverno de 1914-15, no entanto, ela foi perdida por ocasião do envio para Nova Iorque, quando o navio foi afundado por um submarino no verão de 191550. O que nos resta dela são apenas as três fotografias retiradas na escavação, em diferentes perspectivas (Figura 40). Sobre os outros objetos, fora as imagens e informações que temos disponíveis no Corpus dessa dissertação, baseadas na listagem acima, não temos muitos dados sobre esses achados. No site do MET temos disponível o vaso número 15 na lista acima51 e um dos cones funerários do número 18, justamente um dos que estava em posse de Davies52. Não conseguimos rastrear os demais objetos. Poderíamos supor que estavam no mesmo navio da estátua? Ou eles foram para o Museu do Cairo53? Ou estão na reserva técnica do MET? Infelizmente, não temos (ou não encontramos até o momento de fechamento da escrita dessa dissertação) um boletim para responder essa dúvida. Portanto, precisaremos trabalhar com os dados da lista acima. A TEM54 de Malafouris e os elementos fixos e semi-fixos de Rapoport podem nos guiar na classificação de cada um dos elementos encontrados na tumba. Conforme afirmamos, não possuímos as fotografias ou uma certeza da localização atual de todos os elementos encontrados por Davies. Por isso, trabalharemos em cima da listagem feita dos vinte achados, utilizando, sempre 49 No original: In contrast with this unfruitful labor some slight excavations entered on with the same purpose in the tomb of Nakht had an unlocked-for reward, a charming painted statuette of the owner being found lying in the filling of the burial shaft, where it had been thrown from its niche in the wall of the chamber above by those who plundered the tomb in ancient times. [...] Its workmanship is excellent and resembles the mural decoration of this tomb in being thoroughly typical of good work of the period both slab on which an address to the sun-god is cut in yellow incised hieroglyphs (DAVIES, 1915, p. 234-235). 50 Seidel e Shedid (1991, p. 19) comentam que esse submarino era alemão, vinculando o caso com o contexto da Primeira Guerra Mundial. 51 De acordo com o site do museu, o objeto foi comprado em Luxor em 1915. 52 Esse objeto teria sido doado em 1930 ao MET pelo próprio Davies. 53 Assim como o cone funerário do número 18, que o Davies afirma ter encaminhado ao Museu do Cairo, poderíamos supor que os demais objetos também foram. 54 A sigla em inglês da Teoria do Engajamento Material (Material Engagement Theory) é “MET”, mesmo conjunto que utilizamos para o Museu Metropolitano de Nova Iorque. Portanto, optamos pela sigla de nossa tradução em português e a utilizaremos a partir desse ponto da dissertação. 112 que pudermos, das imagens disponíveis deles e, quando não for possível, basear-nos-emos na descrição de Davies (1917, p. 39-43). Fragmentos de caixões Os itens 1 ao 4 (Cf. p. 109-110) nos indicam que Davies encontrou, pelo menos, três caixões distintos. O primeiro documentado seria um fragmento da parte superior do caixão de um homem, muito provável que seja o de Nakht, em madeira vermelha e uma pintura de um rosto, com peruca pintada de preto com listras amarelas. Davies supõe que as sobrancelhas e os olhos seriam de vidro colorido, embutido na madeira. Caso isso fosse considerado, teríamos um tipo de caixão de particular que seria destacado justamente pela inserção do trabalho com vidro, uma vez que Paul Nicholson, ao explicar sobre esse tipo de trabalho, defende que tanto o vidro quanto a faiança eram tratadas como pedras preciosas artificiais (NICHOLSON, 2000, p. 195). O segundo ponto indica que fora encontrado outro fragmento da parte superior do caixão de uma mulher, provavelmente Tawi, do mesmo tipo do de Nakht; porém, com os olhos pintados em preto e as sobrancelhas em azul. O terceiro fragmento também pertence à parte superior do caixão, como os dois anteriores; no entanto, sem muitas informações a não ser que o rosto é amarelo e a pintura dos olhos e sobrancelhas como o segundo. Por fim, o quarto ponto é do corpo de um caixão de fundo amareloclaro e decoração preta, provavelmente para remeter aos papiros. Nesse fragmento, Davies (1917, p. 39) alega que existe uma figura semelhante a uma deusa e uma legenda em coluna longitudinal na tampa, e dedicatórias aos deuses associados à questão funerária nas bordas laterais. O nome do morto é ilegível de acordo com Davies. John Taylor (1989, p. 30-34) afirma que a maioria dos achados da XVIII Dinastia indicam que o morto possuía um caixão, que podia ser de dois tipos (um decorado com listras e outro com inscrições que remetiam aos costumes funerários do Reino Médio) e uma máscara funerária, de modo que não havia muita distinção entre os gêneros dos donos ou de que um proprietário possuía diversos caixões ou máscaras funerárias. Dessa forma, a título de comparação, poderíamos trazer a tampa do caixão de Tamyt (Figura 2.11), encontrada em Tebas e produzida na mesma 113 temporalidade que a tumba de Nakht (c. 1400 A.E.C.). Trata-se de um caixão antropomórfico de madeira pintada, no rosto, os olhos e sobrancelhas são pintados com betume, de acordo com Margaret Serpico (2010, p. 460); a peruca é semelhante à descrição de Davies sobre o caixão de Nakht, pintada de preto com listras amarelas, além de um colar representado no peito e, abaixo dele, um abutre pintado com as asas abertas, simbolizando Nut, com inscrições indicando o papel da deusa em proteger o morto. Além disso, existem representações de Anúbis e os Quatro Filhos de Hórus, assim como inscrições funerárias. O curador dessa peça afirma que a família de Tamyt, provavelmente, não estaria entre as mais ricas de Tebas, tanto pelo material quanto pelo fato de que seu nome foi alocado posteriormente à construção do caixão, o que indica que este não foi feito especificamente para ela55. 55 As informações do caixão de Tamyt estão disponíveis em: https://www.britishmuseum.org/collection/object/Y_EA6661. Acesso em: 16 jan. 2021. 114 Figura 2.11: Caixão de Tamyt. Fonte: Museu Britânico (EA 6661). A partir do caixão de Tamyt podemos inferir algumas comparações com os encontrados na TT 52. A primeira que levantaremos aqui é a peruca. A associação do morto com a divindade solar é algo que podemos perceber na literatura funerária desde os Textos das Pirâmides. No Livro da 115 Vaca do Céu, que narra um mito de destruição da humanidade e a ascensão de Rê aos céus (limitado às costas de Nut), podemos ver na abertura do conto a descrição de que à medida que Rê iria envelhecendo, seus ossos se tornariam prata, sua carne, ouro, e seu cabelo, lápis-lazúli (LICHTHEIM, 1976, p. 198). A associação do morto com Rê em relação a essa questão de ossos serem prata, a carne ser ouro e o cabelo ser lápis-lazúli na cultura material é bem nítida na máscara do Tutankhamon, com o rosto em ouro e a peruca em ouro e lápis-lazúli. No caixão de Tamyt percebemos que esse discurso funerário não é algo apenas pertencente à realeza, podendo ser real a possibilidade de associação do rosto da morta ser pintada em amarelo, representando ouro. Sabemos, a partir da descrição de Davies, que o rosto do terceiro fragmento é amarelo, talvez a mesma associação, e que as sobrancelhas do rosto do segundo e terceiro fragmentos são azuis, referência aos cabelos de lápis-lazúli. De acordo com Nicholson (2012, p. 22), a técnica de pintura de vidro já era conhecida no Reino Novo, um período em que era muito comum o uso do vidro de azul cobalto escuro, cor que se assemelha ao lápis-lazúli. Dessa forma, poderíamos supor que o vidro que estaria na sobrancelha do primeiro fragmento documentado por Davies seria, de fato, um vidro de coloração azul cobalto escuro. Uma segunda comparação que podemos fazer é sobre o quarto fragmento documentado por Davies. O autor indica que estaria representada uma figura semelhante a uma deusa. É comum ver representações de Isis e Néftis protegendo o morto. No entanto, como Davies (1917, p. 40) utiliza a expressão no singular (A goddess stands), devemos pensar em uma divindade que proteja o morto “sozinha”. De acordo com Nils Billing (2002, p. 17), um dos papéis da deusa Nut, uma divindade comum nessa literatura funerária, é o de proteger o morto como uma mãe. Billing (2002, p. 17) argumenta que, desde os TP, Nut aparece protegendo o morto como um abutre a partir do trocadilho da palavra nri, que significa “proteger”, com nrt, “abutre”, e mwt, “mãe”56. O discurso funerário presente no caixão de Tamyt é que Nut aparece como abutre protegendo a morta. Dessa forma, não seria totalmente errado supor que seria essa a representação que comenta Davies para o quarto fragmento. A terceira comparação plausível seria a especulação sobre quem seriam os deuses funerários presentes no quarto fragmento. Davies descreve-os como gods of burial (DAVIES, 1917, p. 40). 56 Como iremos ver ao tratarmos da inscrição da estatueta de Nakht, a deusa Mut (mwt) aparece efetuando esse papel materno para Rê no hino solar. 116 Em um primeiro momento, acreditamos que não tenha muita diferença com o nosso conhecimento atual sobre quem podem ser esses deuses que Davies faz referência, uma vez que podemos visualizar em um livro do período, como o de E.A. Wallis Budge, intitulado Egyptian ideas of the future life, lançado em 1900, o título de gods of burial utilizado para deuses como Osíris, Anúbis, Isis e Néftis, por exemplo, algo que atualmente pode ser utilizado, mas que exige uma maior complexidade. Não acreditamos que ele tenha se referenciado pelos Quatro Filhos de Hórus nesse momento, como são as inscrições do caixão de Tamyt, uma vez que ele os chama de the four genii of burial (DAVIES, 1917, p. 49). Portanto, provavelmente as divindades presentes no fragmento seriam como as descritas por Budge (1900), embora não possamos descartar totalmente a opção de serem, de fato, os Quatro Filhos de Hórus nos fragmentos encontrados. Por fim, é interessante pensar sobre quem seria o outro fragmento de caixão feminino, uma vez que o mais lógico de indagar é que o primeiro (masculino) seria de Nakht e algum dos outros dois seria de Tawi. O outro feminino seria o da filha do casal? Seria uma das filhas representadas na cena de caça e pesca no pântano (Parede Noroeste da Capela da TT 52), mas o nome dela não aparece nas inscrições. Não temos conclusão para esse dilema, mas, se considerarmos o que Kathlyn M. Cooney afirma, compreendemos que, na XXI Dinastia, é comum encontrar vestígios de caixão com cenas e inscrições que servem de suprimento para o morto caso não haja decoração, estatuária ou estrutura apropriada na tumba do/para o morto, de modo que o papel de prover o Além e mantê-lo nesse espaço deriva da decoração dos caixões (COONEY, 2011, p. 20). De acordo com a autora, essa prática tem início no Reino Médio com os TC e que vai se estabelecendo no Reino Novo, mas que, com o processo de abertura do acesso ao espaço funerário, se consolida no final desse período (com a XXI Dinastia). Se a prática não pode ser descartada por completo no início do Reino Novo, poderíamos então supor que esse terceiro caixão seria, de fato, pertencente a alguém próximo a Nakht e Tawi, com o mais provável ser um vínculo de uma geração de diferença (mãe ou filha) e que essa pessoa estaria assegurando sua vida no Além a partir das inscrições contidas no caixão. Devemos inserir uma consideração aqui ao item 6 da lista de Davies: dois pedaços de um cetro. Davies (1917, p. 40) indaga sobre o cetro, dizendo que ele, provavelmente estaria junto à múmia e, portanto, dentro do caixão. De forma geral, esses objetos possuem um significado atrelado ao de poder para essa sociedade (WILKINSON, 1992, p. 181-183). O tipo de cetro na 117 tumba de Nakht, de acordo com Davies, seria um simples, para auxiliar a andar, algo que também fora encontrado em outras tumbas (SMITH, 1992, p. 209). É claro quedevemos considerar o fato de que, se Davies encontrou apenas fragmentos desses documentos, é muito provável que a tumba fora vítima de ladrões de tumbas. Não temos comprovações disso, mas, como podemos atestar nos papiros elencados por T. Eric Peet (1930), o roubo de tumbas e templos era comum na Antiguidade, tornando algo um tanto impossível de se rastrear. Dessa maneira, acreditamos que devemos considerar as decisões tomadas na análise desses primeiros quatro fragmentos são apenas sugestões e que não podem ser conclusivas. Mobília Abordaremos os itens 5, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 da listagem de Davies (Cf. p. 109-110). O item 5 seria uma parte da haste de um descanso de cabeça octogonal, que Davies adjetiva como bem detalhado, descrevendo que fora habilmente feito pelo uso de pinos bifurcados retirado de galhos. Infelizmente, não temos a foto do objeto, mas, na Figura 2.12, podemos ver um exemplo de descanso de cabeça do mesmo tipo do encontrado na TT 52, um que possui oito superfícies planas (por isso, o nome octogonal). De acordo com Jan Summers Duffy (2016, p. 230), esses objetos fazem parte de uma conjuntura de mobílias interessantes de serem analisadas pois indicam que eles eram considerados essenciais para a vida cotidiana e, por isso, seriam considerados necessários no Além. De acordo com D’Auria, Lacovara e Roehrig, esse objeto, em um primeiro momento, tinha um significado prático: servir de apoio para a cabeça do morto. Depois (e aqui os autores não indicam o período), eles serviam como amuletos (D’AURIA; LACOVARA; ROEHRIG, 1988, p. 225). 118 Figura 2.12: Descanso de cabeça octogonal. Fonte: Museu do Brooklin (14650). Acreditamos que o objeto tenha um sentido mais complexo quando inserimos o discurso funerário do período. No Capítulo 166 do LDM, intitulado como a fórmula para o descanso de cabeça, temos uma sequência um tanto interessante: Os menut acordam-te, tu que estavas adormecido, N.: eles acordam-te no horizonte. Levanta-te! [...] Tu és Hórus, o filho de Hathor [sic], o Incandescente (filho do) Incandescente, aquele a quem foi restituída (a sua) cabeça depois de ter sido cortada; a cabeça não te será roubada, a tua cabeça não te será roubada, nunca mais (LOPES, 1991, p. 247). 119 Existe, portanto, uma preocupação com a cabeça e, principalmente, de que ela não seja roubada ou cortada, também presente no Capítulo 43 do LDM: Que ele diga: Eu sou o grande, filho do grande, o incandescente, filho do incandescente, a quem foi restituída a cabeça depois de ter sido cortada. Não retirarão a cabeça a Osíris, não me retirarão a minha cabeça. Eu estou reconstituído, eu estou rejuvenescido, eu estou revigorado, eu sou Osíris, senhor da eternidade (LOPES, 1991, p. 247). Duffy (2016, p. 230) argumenta existe uma certa preocupação entre os egípcios sobre o ato de dormir, uma vez que são comuns textos dizendo “durma bem” e que simbolizam uma proteção contra superstições e perigos durante o sono, tanto é que, de acordo com o autor, podemos encontrar a divindade Bés57 representada em alguns exemplares. Além disso, é interessante o trocadilho na língua egípcia na palavra para descanso de cabeça (wrs) com a palavra rs, o que significa “sonho” (DUFFY, 2016, p. 230). Para Duffy (2016), o significado religioso e a necessidade de “levantar a cabeça mais alto” tornaram-se importantes enquanto dormiam e até mesmo após a morte, já que, para uma cerimônia funerária, a cabeça do morto era levantada ou apoiada em um descanso de cabeça no caixão ou sarcófago. Stuart Tyson Smith (1992), ao expor a pesquisa que realizou em tumbas que foram encontradas intactas e datadas da XVII e XVIII Dinastia, em Tebas, indicou que a maioria dessas tumbas (incluindo as menos ricas), apresentavam ao menos um descanso de cabeça (SMITH, 1992, p. 205). É interessante esse dado ser levantado por Smith, uma vez que percebemos que, em cemitérios que não fazem parte das grandes cidades do Egito no Reino Novo, como o de Sidmant, na área do Fayum, estudado por Koichiro Wada (2007), não apresentam um número muito grande de descansos de cabeça e, como afirma Wada (2007, p. 372), não parecem ser comuns à essa parte da sociedade, mesmo que haja muitas mobílias encontradas nessa região para o período. 57 Uma divindade de baixa estatura, com traços leoninos (juba, rabo, patas), que era utilizado como amuleto para proteger crianças e mulheres no parto. 120 Talvez seja importante ressaltar que, os descansos de cabeça eram utilizados tanto por homens quanto por mulheres, explicável a partir da variação de tamanho e design. A altura do objeto em si pode não ter sido importante, mas dependia do comprimento do pescoço que segurava, seja homem, mulher ou criança. De acordo com Duffy (2016, p. 231), o descanso de pescoço tinha, em média, 15 cm de altura. Dessa forma, não podemos concluir que o item 5 da listagem de Davies seja, de fato, de Nakht ou de Tawi, mas compreendemos que era algo comum nessa região de Tebas e que poderia simbolizar tanto uma necessidade cotidiana que seria transposta no Além (o morto precisa dormir no Além), quanto uma forma de proteger a cabeça de roubos ou cortes. O sétimo item da lista seria uma mesa. Davies alega que encontrou duas das quatro pernas da mesa e a barra de conexão entre elas. As pernas eram quadradas, com 25 mm no encaixe da barra, além de serem ligeiramente curvadas para fora. De acordo com Davies, essa mesa deveria ter 48 cm de comprimento e pouco menos de 30 cm de altura. As mesas, nesse contexto funerário, podem representar dois papéis bem interessantes. O primeiro é o de mesa de oferendas. No Além, o morto necessita receber certas oferendas no Egito terreno para que permaneça vivo nesse espaço. O seu Ba viaja pelo Egito terreno de dia para retornar à tumba e se reencontrar com suas outras partes, assim como o seu Ka recebe oferendas derivadas de visitantes da tumba. Ambas as esferas efetuam atos em prol do morto para que essas oferendas cheguem ao seu destino. O segundo papel está atrelado com o jogo, por ter sido o local que apoiava o tabuleiro. O jogo mais famoso para o período de Nakht é o Senet58, que, inclusive, aparece no Capítulo 17 do LDM: Fórmulas para elevação e transfiguração, para sair da necrópole, por estar próximo de Osíris, e estar contente com a comida de Wennefer, saindo de dia, tomando qualquer forma desejada para ser tomada, jogando o senet, estando no pavilhão, uma alma viva, o Osiris N entre os reverenciados diante da grande Enéada59, que está no Oeste, depois que ele atracar. Isso é bom para quem faz isso na Terra. As palavras se passam, em conclusão (BOOK OF THE DEAD, 2002). 58 Este era um jogo de tabuleiro que, como podemos ver na Figura 2.13, consistia em três fileiras de casas com dez espaços. O jogo possuía o objetivo de atravessar o peão para o outro lado do tabuleiro, provavelmente um simbolismo para o Além. 59 Grupo de nove deuses egípcios, psDt ( ) em egípcio antigo. 121 Existem exemplares do jogo em diversos períodos do Egito antigo. Na Figura 2.13, podemos ver um modelo encontrado em uma tumba em Ábidos, feito de faiança, na mesma temporalidade de Nakht. É interessante constatar que o contexto de achado desses tabuleiros é, geralmente, funerário; além disso, snit, a palavra em egípcio para o jogo, pode ser compreendida também por “passagem” ou “sobrepassar”, sni, (GARDINER, 1993, p. 180). Isso nos permite indagar que cada uma das trinta casas deveria representar uma questão do Além, uma dificuldade que será perpassada pelo morto e, com respaldo no Capítulo 17, é algo interessante para o morto. Figura 2.13: Jogo senet encontrado na tumba de Merymaat, em Ábidos. Fonte: Metropolitan Museum (01.4.1a). 122 Os pontos do 8 ao 12 são fragmentos de cadeira e possuímos alguns desses fotografados por Davies. No Corpus dessadissertação podemos encontrar os detalhes desses objetos, bem como a fotografia (Cf. p. 48-49 do Volume II). Uma cadeira, em contextos de banquetes funerários, por exemplo, indica o status social daquela pessoa. As cadeiras com pernas representando patas de animais são as mais comuns entre os exemplares encontrados em tumbas tebanas da XVIII Dinastia e, de acordo com os dados levantados por Smith (1992, p. 205), nas tumbas intactas podemos identificar que essas cadeiras aparecem em quase todas as tumbas, tornando-se um elemento essencial para essas tumbas do Reino Novo. Entre os achados na TT 52 temos a probabilidade de que os fragmentos descritos por Davies pertencessem a três cadeiras distintas. No item 8 é descrito três das quatro pernas de uma cadeira, com um pedaço do assento. Essa cadeira seria baixa e pintada de preto. A Figura 2.14 nos traz o esboço do objeto60. O item 9 é composto por pernas de uma cadeira baixa de madeira pintada de branco (Figura 2.15)61 e as partes laterais de uma cadeira baixa de madeira pintada de branco (Figura 2.16)62. No item 10, Davies comenta que encontrou três pernas de uma cadeira mais rústica que as demais e um pouco mais alta também, pintada de preto. No entanto, na fotografia temos apenas duas dessas três pernas, esboçadas na Figura 2.1763. O item 11 documenta o trilho superior de um encosto da cadeira, com três furos, que serviam para sustentar as colunas verticais, uma larga no centro e dois menores de cada lado (Figura 2.18)64. Por fim, o item 12 (não fotografado) indica a existência de um suporte de madeira para fortalecer uma junta de mesa ou da cadeira do item 11. 60 No Corpus ela pode ser encontrada como o item 12 da fotografia (Cf. p. 49 do Volume II). 61 No Corpus elas podem ser encontradas como os itens 10 e 11 da fotografia (Cf. p. 49 do Volume II). 62 No Corpus elas podem ser encontradas como os itens 5 e 7 da fotografia (Cf. p. 49 do Volume II). 63 No Corpus elas podem ser encontradas como os itens 8 e 9 da fotografia (Cf. p. 49 do Volume II). 64 No Corpus ela pode ser encontrada como o item 6 da fotografia (Cf. p. 49 do Volume II). 123 Figura 2.14: Esboço do item 8 da listagem de Davies. Fonte: Desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020) com base na fotografia de Davies (1917, Pr. XXIX). Figura 2.15: Esboço do item 9 (pernas da cadeira) da listagem de Davies. Fonte: Desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020) com base na fotografia de Davies (1917, Pr. XXIX). 124 Figura 2.16: Esboço do item 9 (partes laterais da cadeira) da listagem de Davies. Fonte: Desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020) com base na fotografia de Davies (1917, Pr. XXIX). Figura 2.17: Esboço do item 10 da listagem de Davies. Fonte: Desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020) com base na fotografia de Davies (1917, Pr. XXIX). 125 Figura 2.18: Esboço do item 11 da listagem de Davies. Fonte: Desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020) com base na fotografia de Davies (1917, Pr. XXIX). É muito provável que a existência dessas três cadeiras tenha como referência os três caixões da tumba. Isso pode nos indicar que, de fato, os três caixões eram da TT 52, assim como essas três cadeiras parecem pertencer a cada um dos mortos. Talvez possamos determinar, com base nas descrições de Davies, a cadeira de cada membro. Uma vez que temos três cadeiras com patas de leão representadas, sendo duas pintadas de preto e outra de branco, podemos supor que a branca seja de Nakht e as duas outras de Tawi e da outra mulher enterrada com eles. Além disso, as partes laterais, também brancas, fariam parte da cadeira de Nakht. Não podemos concluir nada sobre o item 11, uma vez que nos faltam informações para isso. No entanto, isso já basta para compreendermos que, ao menos uma das três cadeiras, possuía um encosto, o que é possível se estender para as outras duas esse padrão, já que é comum que bancos encontrados em outras tumbas não tenham tantos detalhes em suas pernas. Podemos inferir ainda que a cadeira considerada mais rústica por Davies pertenceria à outra mulher, seguindo a lógica de que Tawi efetua um papel fundamental em acompanhar Nakht ao Além nas imagens disponíveis na tumba e, portanto, seria mais importante que essa terceira pessoa. Por fim, não podemos determinar muito a respeito do item 12, a não ser que, se enterraram esses equipamentos funerários (seja a mesa ou as próprias cadeiras), é provável que houvesse a preocupação de criar um objeto que pudesse suportar algo pesado. Se inferirmos que este item pertencesse a uma das cadeiras, suporíamos que um desses mortos seria gordo, determinando-o como alguém com condições financeiras de ser bem alimentado, possuindo um status mais elevado nessa sociedade, talvez Nakht? 126 Caixas Davies elenca, nos itens 13 e 14 (Cf. p. 109-110), o que provavelmente são duas caixas distintas65. A primeira é descrita como as laterais quebradas e a tampa de uma caixa de madeira de 40 cm (total pressuposto por Davies) de comprimento, pintada de preto e branco (Figura 2.19), enquanto a segunda é descrita como as partes das laterais (Figura 2.20), extremidades e tampa de uma ou duas caixas com 35 cm por 19 cm, pintadas com faixas brancas no preto e um painel central em vermelho, sendo a tampa ligeiramente arqueada. Não temos essa tampa ligeiramente arqueada ou mais fotos sobre a primeira caixa. Davies (1917, p. 41), entretanto, comenta que caixas semelhantes foram encontradas em outras tumbas e que estas eram, provavelmente, destinadas a guardar os shabtis. Figura 2.19: Esboço do item 13 da listagem de Davies. Fonte: Desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020) com base na fotografia de Davies (1917, Pr. XXIX). 65 No Corpus elas podem ser encontradas como os itens 1, 2, 3 e 4 da fotografia (Cf. p. 49 do Volume II). 127 Figura 2.20: Esboço do item 14 da listagem de Davies. Fonte: Desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020) com base na fotografia de Davies (1917, Pr. XXIX). Os shabtis são pequenas estatuetas de trabalhadores feitas de materiais diversos, que tinham como função substituir o morto no Além. De acordo com Henk Milde (2012, p. 2), durante o Reino Novo, a palavra Sbty é encontrada para designar essas pequenas estatuetas, provavelmente é uma derivação do verbo Sbj, que significa “substituir”. Jean-Luc Bovot (2003, p. 53-55) defende que essas estatuetas podem realizar trabalhos braçais para o morto no Além. Temos alguns Capítulos do LDM que indicam que o morto precisa efetuar esse tipo de trabalho, como o Capítulo 110, analisado por nós outrora (VASQUES; CANTO NÚÑEZ, 2018), mas que demonstra um espaço específico do Além66. Se compararmos com uma caixa de shabtis (Figura 2.21) encontrada em Tebas na XIX Dinastia, vemos que a tampa da caixa é, de fato, arqueada, e que as laterais são retas. Na imagem, vemos uma caixa com uma cena de oferendas de uma mulher (Henutmehyt) para Anúbis e Osíris, vemos ainda oito shabtis, dos quais quatro estão dentro da caixa e os outros fora, uma disposição do museu. Embora não tenhamos, na Figura 2.19 e Figura 2.20, alguma representação como no exemplo, acreditamos que as partes da caixa encontradas por Davies seja parte de um exemplar semelhante, uma vez que, de acordo com Smith (1992, p. 199-200), essas caixas fazem parte do cortejo funerário, mas o achado delas não é constante. Sendo assim, não podemos concluir se essa 66 Entraremos em mais detalhes sobre esse espaço no Capítulo 3, quando trataremos sobre a representação do Capítulo 110 do LDM nas cenas da TT 52. 128 caixa seria de Nakht ou de Tawi, por ser um objeto que pode ser encontrado para ambos os gêneros e não haver nenhuma inscrição indicando o proprietário. Figura 2.21: Caixa de shabtis de Henetmehyt. Fonte: Museu Britânico (EA 41549). 129 Vasos Os itens 15, 16 e17 (Cf. p. 109-110) são destinados à descrição de vasos. Sendo um dos únicos itens que encontramos nos museus, o vaso do item 15, disponível no acervo do MET, pode ser visto na Figura 2.22 Ele é um vaso de cerâmica amarela pintada, fino, que foi encontrado quebrado por Davies e foi restaurado recentemente pelo museu. Em sua pintura, podemos ver quatro fileiras de pétalas azuis entre linhas vermelhas compostas. Os vasos que compõem o item 16, de acordo com a descrição de Davies, são vermelhos, grossos, com 12 e 19 cm de altura, com pescoço em forma de costela e faixas vermelhas escuras pintadas nos ombros. Temos, na Figura 2.23, o esboço da versão desse vaso de 19 cm de altura, conforme presente na fotografia presente no catálogo de Davies (1917, Pr. XXIX). Por fim, o item 17 descreve um jarro de cerâmica vermelha com alça, decorado com uma linha preta dupla na junção do pescoço com o ombro (esboçado na Figura 2.24). Linhas duplas pretas semelhantes aos da alça continuam do ombro até o pé do jarro, com manchas pretas entre as linhas. 130 Figura 2.22: Vaso de cerâmica amarela da tumba de Nakht. Fonte: Metropolitan Museum (15.10.171). 131 Figura 2.23: Esboço do item 16 da listagem de Davies. Fonte: Desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020) com base na fotografia de Davies (1917, Pr. XXIX). 132 Figura 2.24: Esboço do item 17 da listagem de Davies. Fonte: Desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020) com base na fotografia de Davies (1917, Pr. XXIX). Mencionamos as etapas de escavação da tumba e que Davies não sabe ao certo se os objetos encontrados na TT 52 foram relocados no poço desde o século XVIII ou se fora algo mais antigo, assim como nós não podemos alegar que Davies tinha a preocupação de arqueólogos atuais em escavar. Sendo assim, Pamela Rose (2003), ao estudar as cerâmicas encontradas em tumbas do Reino Novo, informa-nos que, dada uma certa falta de interesse em vasos e objetos do tipo nos séculos XVIII e XIX, a limpeza de tumbas pelo roubo ou escavação em prol do “museu 133 beneficiado”, apenas teriam realocado esses materiais e não descartados. Desse modo, podemos demarcar que a cerâmica encontrada em uma tumba geralmente fora parte dos objetos funerários daquele morto (ROSE, 2003, p. 202). De acordo com a catalogação de Rose (2003, p. 206), o primeiro vaso, da Figura 2.3, pertence ao tipo siltware jar. Esse tipo de vaso pode ser encontrado na XVIII Dinastia, em grupos da alta elite (principalmente a tebana), incluindo enterros reais nesse grupo. Em tumbas reais, nas quais temos a melhor preservação desses objetos, Rose (2003, p. 207) alega rastrear que, no Vale dos Reis, esse tipo de vaso pode ser encontrado com materiais para embalsamento, enquanto em outras áreas pode assumir o papel de conter líquidos para oferendas, como é o caso atestado por Yvan Koenig (1988, p. 126), com um exemplar na QV 32 que estava lacrado e continha cerveja. É provável que esse exemplar estivesse com algum líquido de oferendas. Em Qurneh, catálogo de vasos de Flinders Petrie (1909, Pr. XL), podemos encontrar que os tipos dos itens 16 e 17 são, respectivamente, o 647 (Figura 2.25) e 657 (Figura 2.26). O que Davies comenta (1917, p. 41) sobre o item 16 é que esse tipo de jarro é encontrado no período pré- dinástico e comum no Reino Médio, retornando a aparecer na segunda metade da XVIII Dinastia, servindo como depósito de água. Quanto ao item 17, Davies, em uma publicação de uma escavação anterior à de Nakht, encontra um jarro semelhante a esse, datando esse tipo, em conjunto com Petrie, do período de Tutmés III (DAVIES, 1913, p. 6-7). Provavelmente, a sua aplicação seria em contextos de oferendas. 134 Figura 2.25: Esboço do item 647 do catálogo de Petrie, Qurneh. Fonte: Desenho feito por Rebeca Nadine de Araújo Paiva e Pedro Hugo Canto Núñez (2020) com base no modelo de Petrie (1909, Pr. XL, 647). Figura 2.26: Esboço do item 657 do catálogo de Petrie, Qurneh. Fonte: Desenho feito por Rebeca Nadine de Araújo Paiva e Pedro Hugo Canto Núñez (2020) com base no modelo de Petrie (1909, Pr. XL, 657). 135 Cones funerários Como item 18 (Cf. p. 109-110), Davies faz o levantamento de três cones funerários pertencentes a Nakht e a sua esposa, Tawi. A única foto que temos de algum deles é o da Figura 2.27, que fora doado ao museu por Davies. Os demais, não sabemos. O que podemos verificar é que os cones funerários são objetos encontrados em grande maioria na margem ocidental de Tebas, nos quais estão escritos os títulos dos donos das tumbas. Como vimos no modelo de Kampp- Seyfried, Figura 2.9, esses objetos estariam dispostos nos frisos da entrada da tumba, de modo que o visitante pudesse lê-los. Lise Manniche (1987, p. 16) interpreta o formato da base em círculo para fazer associação com o disco solar. Com isso, é possível que compreendamos sua localização ser, originalmente, no pátio da tumba, para que pudesse fazer parte do culto solar. É interessante o que Manniche (1987) observa: mesmo que existam cones com menções a pessoas que desempenharam funções fora de Tebas, todos esses foram enterrados em Tebas, com os seus respectivos cones funerários. Isso nos indica, além da necessidade de ser enterrado no Egito (como mencionado anteriormente sobre o Conto do Náufrago, por exemplo), existe algo especial sobre os cones funerários e as suas funções para a região de Tebas. 136 Figura 2.27: Cone funerário de Nakht e de sua esposa Tawi. Fonte: Metropolitan Museum (30.6.85). Kento Zenihiro (2009), ao catalogar o que parecem ser todos os cones funerários existentes em museus, traz informações pertinentes sobre esses objetos. De acordo com Zenihiro (2009, p. 137 21), parece que os cones funerários têm origem no reinado de Tutmés II e expandem o número de exemplares na segunda metade da XVIII Dinastia, sendo identificados até o período ramessida. A seguir, vemos a nossa transcrição com base no desenho que Davies fez de um dos cones funerários que estava em sua posse (DAVIES, 1917, p. 42). Podemos traduzir isso da seguinte maneira: imAXy xr wsir Os venerados ante Osiris, wnwt n imn sS nxt o astrônomo de Âmon (e) escriba Nakht (e) snt.f Smayt n imn tAwi sua esposa, a cantora de Âmon, Tawi. Como veremos no Capítulo 4, esse cone funerário e a sua leitura nos auxiliam tanto na restauração de algumas colunas dos hieróglifos da TT 52 quanto a compreender um pouco mais 138 sobre Nakht e Tawi. No momento, podemos entender três questões: os dois trabalhavam para o templo de Âmon, ele como astrônomo e ela como cantora; ambos frequentavam, teoricamente, o mesmo espaço; e, por fim, Nakht possuía um título secundário que fora transcrito no cone, o de escriba, enquanto os títulos secundários de Tawi aparecem apenas nos hieróglifos da tumba. Por que Nakht possuía um segundo título que seria considerado importante para colocar no cone funerário? A função de astrônomo está atrelada à de escriba? O que significava ser um astrônomo? E quanto à cantora? Qual o papel de Tawi? Voltaremos a esses questionamentos no Capítulo 4, quando teremos um leque mais amplo de aparições dos títulos dos dois, mas, quanto à Tawi, a omissão de seu segundo título senhora da casa (nb.t-pr), provavelmente foi por falta de espaço para o escriba, uma vez que até o título de cantora (Smayt) está em sua forma diminuta. Cosméticos e cabelo Como últimos pontos da lista, temos, no item 19, uma pequena vara de madeira para aplicar maquiagem nos olhos, e, no 20, um grampo de madeira para prender o cabelo (Cf. p. 109-110). Não possuímos fotografia de ambos os objetos, mas podemos fazer certas inferências e interpretações diante dessas informações. A título de adicionar informação, o Museu Britânico possui um grampo de madeira para prender cabelo datado do ReinoNovo (Figura 2.28). O MET possui um dos mais bem preservados estojos de maquiagem e varas de madeira (Figura 38), encontrados em Tebas e datado da primeira metade da XVIII Dinastia. 139 Figura 2.28: grampo de cabelo de madeira, datado do Reino Novo. Fonte: Museu Britânico (EA 2694). Figura 2.29: Estojo de maquiagem e varas de madeira. Fonte: Metropolitan Museum (26.7.1447). 140 Falaremos primeiro sobre o primeiro item da listagem (comparando-o com o da Figura 2.29). De acordo com Carolyn Graves-Brown (2010, p. 112), tanto homens quanto mulheres usavam maquiagem no Egito Antigo, mas, no caso da iconografia, podemos rastrear muitos casos de mulheres aplicando a maquiagem umas nas outras. Para a autora, com base no Papiro Erótico de Turim, isso simboliza que a aplicação da maquiagem, ou o próprio uso do cosmético, pode ser associado a questões sexuais (GRAVES-BROWN, 2010, p. 112), algo que, conforme iremos trabalhar no terceiro capítulo, pode aparecer em cenas de banquetes. Não sabemos, portanto, para quem estaria destinado esse objeto. Seria para Nakht? Tawi? Ou os dois poderiam usufruir de maquiagem no Além? Quanto ao segundo objeto, Amy Joann Fletcher, em sua tese (1995), escreve sobre o cabelo no Egito antigo. Para a autora, o cabelo possui uma ampla simbologia para essa sociedade, que pode ser tanto um adorno que a pessoa possui afeto, quanto a algo bem prático, como a aplicabilidade em rituais, por exemplo (FLETCHER, 1995, p. 35-99). Sabemos a partir do vestígio material que diversas perucas foram encontradas ao longo de toda a história do Egito. Fletcher indica que elas seriam tão comuns para os antigos egípcios que fica difícil para analisarmos na iconografia quando e onde eles utilizavam perucas ou os cabelos verdadeiros (FLETCHER, 1995, p. 13). A autora então sugere que, comumente, as pessoas que participam de festivais ou estão em cerimônias mais práticas fariam uso da peruca, caso pudessem pagar para a confecção da mesma (FLETCHER, 1995, p. 13-14). Além disso, o uso de materiais como o grampo de madeira presente na tumba de Nakht, precede a existência de uma peruca ou de trabalhos e cuidados com o cabelo natural, sendo comumente visto na iconografia associado às mulheres (FLETCHER, 2002). Como não temos indicação de uma peruca entre os achados de Davies na TT 52, podemos apenas supor que existia, mas não sabemos como esse grampo seria usado por Tawi. 141 Estatueta de Nakht Ao abrirmos esse capítulo, falamos sobre a estatueta que fora encontrada na TT 52. Na Figura 2.30, temos as três fotografias disponíveis do objeto, a primeira visualizada de frente, a segunda em um ângulo de 45º e a terceira de perfil. De acordo com Assmann (1983, p. XVI), os tipos dessa estatueta, classificados como stelophor, baseados em uma conjuntura religiosa que une as concepções de estátua, estela e porta falsa. A estátua possui uma função de ser o Ka do morto e receber as oferendas destinadas a ele. A estela possui uma função de apresentação identitária do morto, de modo que o leitor pronuncie seu nome e mantenha-o vivo no Além. Seria interessante mencionarmos algo que Heinrich Schafer associa a essas estelas, indicando que elas podem simbolizar a abóboda do céu (SCHÄFER, 2002, p. 235). Se considerarmos essa perspectiva, podemos incorporar nessa leitura essa associação com Nut e, portanto, um simbolismo protecional para a estela. Por fim, a porta-falsa efetua um simbolismo atrelado à transmissão do mundo terreno (das oferendas ou dos dizeres da estela) para o morto no Além. Figura 2.30: As três fotografias da estatueta de Nakht. Fonte: Seidel e Shedid (1991, p. 18) e Davies (1917, Pr. XXVIII). 142 De acordo com Kampp-Seyfried (1996), o tipo de tumba Vb, que é a da TT 52, serve para guiar o visitante em direção ao nicho no final da tumba, nicho este que seria onde estava essa estatueta. Se observarmos o texto da estela, vemos uma construção baseada no que Assmann (1983, p. XII) categoriza como os três níveis intrínsecos ao fenômeno histórico dos hinos solares: um pragmático, um redacional (baseado no local de produção) e um discursivo. Vamos, portanto, explorar o texto da estela. Abaixo, veremos a transcrição dos hieróglifos e, em seguida, separaremos nossa leitura em três momentos: a leitura da luneta, a introdução ao hino e o hino propriamente dito. 143 Para a luneta67, temos dois olhos wdjat (em egípcio, wDAt) que englobam um Sn e um vaso iab, formando a fórmula wDAt Snw iab. Não temos um consenso entre as traduções dessas fórmulas nas lunetas, mas defendemos aqui que elas devem ser lidas e interpretadas de acordo com os hieróglifos que aparecem. E não encontramos uma fórmula específica que traduza essas três palavras juntas, de modo que deveremos traduzir palavra por palavra, analisando suas simbologias. De acordo com Richard Wilkinson (1992, p. 43), para os olhos nesse tipo (que indicam o hieróglifo D10 - - da lista de Gardiner68), o olho direito representa o olho de Rê e, o esquerdo, o de Hórus, ambos simbolizando amuletos protetores. O shen (Sn), como podemos ver no Worterbuch der Aegyptischen Sprache (IV, 488-493), pode assumir significado de eternidade, de algo que irá durar eternamente, enquanto, para o vaso, temos ele aparecendo como determinativo da palavra iab (WB, I, 40), significando um recipiente para água ou incenso, com ideia de serem libações. Isso nos auxilia a reduzir a nossa procura pelo Sn nessa fórmula. No Wb (IV, 493) encontramos a possibilidade do shen (Sn) ser reunido com qbHw, que significa “libação”. Ao juntarmos as três palavras, poderíamos traduzir algo como “Proteção à libação eterna”. A introdução ao hino é composta pelas linhas 1 e 2: dwA ra xft wbn.f r xprt Htp.f m Adoração a Rê quando ele se eleva, para que chegue a ocultar-se anx in wnwt(j) n [imn] sS nxt mAa-Hrw vivendo, pelo astrônomo de [Âmon], o escriba Nakht, justificado. As expressões wbn, “elevar”, e xprt Htp.f, “chegar a ocultar-se”, nessa introdução ao hino nos indicam diferentes tempos, momentos, na vida do sol. A primeira está se referindo ao nascer do sol, e a segunda, ao pôr do sol. Se virmos os hinos solares traduzidos por Assmann em Sonnenhymnen in Thebanischen Grabern (1983), percebemos que essas introduções comumente 67 Derivado da palavra em francês “lunette” é a decoração no topo da estela que, nesse caso, é um texto com quatro signos. 68 O egiptólogo Alan Gardiner publica, em 1927, uma lista que normatiza os hieróglifos, de modo que seja mais fácil e universal a conversão do signo, algo utilizado até hoje. 144 fazem referência a esses dois estágios do sol. É importante ressaltar que podemos compreender uma crença egípcia nessa ordem. O sol nasce a leste e se põe a oeste, isso é entendido a partir da simples observação. Mas, o fato de existir o m anx, “vivendo”, logo após a segunda expressão destacada, poderia simbolizar que a crença egípcia explicita que Rê não morre ao se pôr e que vai reaparecer no horizonte quando terminar sua trajetória no Além. A aparição da expressão in, “pelo”, antes dos títulos e nome de Nakht indica a necessidade em demarcar que quem faz a adoração ali expressa é o morto, dono da estatueta. Dessa forma, o leitor está mantendo o seu nome vivo e, portanto, a divindade solar irá receber a oferta (nesse caso a adoração) do morto, assim como o morto receberá a leitura de seu nome do leitor do texto, um sistema de trocas complexo, mas prático. Precisamos reconstituir o nome de Âmon após a palavra “astrônomo”. Fizemos isso com base no cone funerário de Nakht, que demonstra o seu título completo, que dava certo no espaço disponível para isso. Nesse momento, não entraremos no porquê o nome de Âmon sofrera esse corte, por ser um tanto complexo que devemos considerar todos os hieróglifos da tumba e compará-los com osde outra do mesmo período para concluirmos isso. No entanto, o que alguns egiptólogos (WILKINSON, 2003, p. 174-175; MALEK, 2009) argumentam é que, no período de Akhenaton, houve uma certa iconoclastia para com o nome do deus Âmon. Para encerrarmos a parte do nome de Nakht, existe a expressão, mAa-Hrw, “justificado”, que identifica o morto como aceito pelo tribunal de Osíris e vive no Além. O hino está nas linhas 3 a 8: inD Hr.k ra m wbn.k itm m Saúdo a ti, Rê, quando te levantas, e Atum-Rê em xtp.k nfr Haj.k psD.k Hr-psD mwt.k xaj.ti teu descanso. Tu apareceres (em glória), e tu brilhas sobre o brilho de tua mãe, aparecida (em glória), m nsw [psDt] ky nwt nyny n Hr.k Hpt como outro rei [da Enéada divina]. Nut te saúda (e) abraça mAat r tr.wi nmi.k Hrt ib.k Maat nos dois tempos. Percorreu tu o firmamento, e te Awi mr nxA.wi xpr m Htp.w sbi xr regozijas, o lago das Duas Facas está em paz (porque) a serpente rebelde está caída, awi.f qAsw Hsq n dm.t Tzw.f as suas mãos estão atadas e uma faca cortou suas vértebras. 145 Assmann (1995, p. 42) afirma que os hinos solares, que apresentam as três fases do sol (manhã, tarde e noite), sob a forma de “transfiguração” ou “interpretação sacramental”, referem-se a um evento, enquanto o elogio na forma de um “nome” refere-se a uma essência ou identidade. Por “interpretação sacramental” Assmann (1995, p. 42) compreende que deveríamos correlacionar os níveis semânticos: o nível de “atos de culto” (do mundo humano) e o nível de “significado mítico” (associado ao mundo divino). Dessa forma, os diferentes níveis semânticos correlacionados por hinos solares, em sua função original como “transfiguração” da jornada solar seriam, com base em Assmann (1995, p. 42-45): (1) o nível cósmico dos eventos resumidos no conceito “jornada solar”, (2) o nível real e (3) o nível de crença funerária. Podemos, portanto, separar as três fases do sol no esquema a seguir: Esquema 5: Fases do sol em hinos solares. Fonte: esquema baseado em Assmann (1995, p. 44). Primeiras horas do dia •Aparição •Recepção Meio do dia •Ato do deus: passagem e vitória •Resposta ao ato Noite •Ato do deus: se pôr, jornada noturna •Recepção 146 Em nosso hino, temos cinco partes que aparecem marcações temporais do sol. O primeiro é demarcado pelo verbo wbn.k, “te levantas”, logo na primeira linha do hino (linha 3 da estela). O ato de indicar o sol se levantando como Rê simboliza, justamente, a divindade aparecer no horizonte para o início da manhã. A expressão xtp.k nfr, “teu descanso”, marca o segundo momento temporal do sol nesse hino, indicando quando o sol se põe. Se pusermos as duas expressões em um mesmo marco cognitivo, poderíamos supor que, nesse texto, o escriba estivera reproduzindo a crença cíclica de que o sol dorme e acorda. A palavra xtp, nesse contexto, sozinha pode ser traduzida por “poente” ou “ocultar”, conforme traduzimos quando ela apareceu na introdução da estela. No entanto, wbn possui um significado claro de “levantar”, necessitando do complemento pronominal. Como ambas as palavras pertencem à mesma frase, optamos por traduzi-las de tal maneira. O terceiro marco temporal pode ser encontrado na expressão Haj.k psD.k Hr-psD, “Tu apareceres (em glória), e tu brilhas sobre o brilho”. O verbo Haj, “aparecer”, indica o seu aparecimento no horizonte (o nascer do sol), enquanto a sua continuação pode indicar a passagem do sol pelo Egito terreno, uma vez que o ato de brilhar (psD) seria inerente ao sol da manhã (nesse caso, respeitando a demarcação temporal normatizada por Assmann, o meio do dia). Algo que poderíamos compreender melhor aqui é o fato do sol “brilhar sobre o brilho de sua mãe, aparecida em glória” (psD.k Hr-psD mwt.k xaj.ti), na quarta linha da estela. Esse ato de brilhar sobre algo, em contextos funerários, faz referência com o aparecer para os mortos, revitalizando-os e, assim, mantendo-os vivos no Além. Além disso, comentamos anteriormente o papel de Nut, como abutre, associado à proteção, à maternidade. A palavra mwt, aqui traduzida por “mãe”, quando acompanhada do determinativo divino apropriado, pode ser compreendida como a deusa Mut, que, no Reino Novo, faz parte da tríade de Tebas (em conjunto com Âmon e Khonsu), efetuando um papel materno. Portanto, é interessante que, caso isso seja um trocadilho, indica que a deusa Mut, esposa de Âmon, possui um brilho que protege Tebas. O que podemos chamar de quarto marco temporal é dado pela frase nwt nyny n Hr.k Hpt mAat r tr.wi, “Nut te saúda (e) abraça Maat nos dois tempos”. Na primeira parte, a intenção dos hieróglifos pode simbolizar Nut recebendo Rê como abóboda do céu, indicando o momento do surgimento do sol no horizonte. A segunda parte dessa frase, na qual Maat aparece abraçada por Rê nos dois tempos, pode nos sugerir uma questão interessante. De acordo com Assmann (2016, p. 8), os 147 egípcios antigos tinham duas formas de compreender o tempo. O primeiro, chamado de neheh, categoriza-se como um tempo sagrado cíclico, considerado um eterno retorno ao igual, reproduzido a partir dos movimentos dos astros, determinado pelo sol. Em egípcio, esse tempo se associa com o conceito de “transformação”, simbolizado pelo escaravelho, que também representa saúde e salvação. Por isso, o neheh possui características de tempo cíclico, por significar uma existência contínua. Em nosso caso, o nascer e pôr do sol representa esse tempo, uma vez que é algo contínuo e se acredita na eternidade do movimento. O segundo tempo, de acordo com Assmann (2016, p. 7-8), o djet simboliza o contrário do tempo cíclico, porém, não como uma linha e, sim, como o espaço. Dessa forma, djet não instaura uma linha diacrônica, também não consta em uma sucessão sequencial de pontos no tempo, além de não se articular no futuro e no passado, não sendo um lugar de história (ASSMANN, 2016, p. 8). Sendo assim, esse tipo temporal se associa com os conceitos de “permanência” e “duração”, tendo como símbolos uma múmia, assim como Osíris. Assmann (2016, p. 8) defende que o djet é o espaço sagrado de duração, o que ascendeu a existência e é o sentido perfeito, preservado de forma definitiva, sem alteração alguma. Se compreendermos que “os dois tempos” no texto da estela estão associados ao neheh e ao djet, podemos interpretar a expressão como se o deus sol (assim como Maat, presente nesses dois espaços para receber a divindade) pudesse fazer parte dos dois momentos, um de transformação (como percebemos na estela) e outro de permanência (simbolizando sua eterna duração). Por fim, o último momento é representado pelo ato do deus. Nas frases nmi.k Hrt ib.k Awi mr nxA.wi xpr m Htp.w sbi xr awi.f qAsw Hsq n dm.t Tzw.f, traduzida por “percorreste tu o firmamento, e te regozijas, o lago das Duas Facas está em paz (porque) a serpente rebelde está caída, as tuas mãos foram atadas e uma faca cortou suas vértebras”, podemos identificar o tempo e o espaço em que Rê se encontra no texto. Na primeira parte, Rê aparece como se tivesse percorrido o firmamento, indicando uma ação passada, na qual Rê já realizou sua jornada no Egito terreno e está adentrando a Duat, portanto, noite no Egito terreno e na marcação temporal. Esse ato, quando complementado pela expressão subsequente, indica que seu coração se encanta com isso (ib.k Awi, traduzido por “te regozijas” possui o sentido semântico de que o coração daquela pessoa se encanta com determinado ato que fora mencionado antes no texto). O lago das Duas Facas (mr nxA.wi), representa um espaço na Duat que, de acordo com Winfried Barta (1981, p. 88), aparece nos TP como “Canal Necha”, 148 com um curso d’água sinuoso. Barta (1981, p. 88) indica que nas fórmulas 340c-d, 343a-b, 1084a- b e 1704a, dos TP, esse lago das duas facas está localizado nos Campos de Junco, e, na fórmula 1162b-c, dos TP, o mesmo lago está associado à Ascensãodo Céu para o leste. Como essa marcação espacial foi feita por Barta no TP, devemos compreender as alterações feitas no discurso religioso dessa sociedade até a temporalidade de Nakht. Abas Bayoummi (1940), que, ao analisar os Campos de Juncos e os Campos de Oferendas, assim como suas diferenças, interpreta que, nos TP, o Campo de Juncos era um lugar de purificação do faraó (a camada social que teria acesso às fórmulas funerárias), enquanto no Reino Novo, o mesmo Campo tornou-se um lugar cultivável e de labor no LDM. Essa mudança também ocorreu na localização dele. De acordo com Bayoummi (1940), o Campo nos TP era situado no céu, na orientação Sudeste, e, com o LDM, passou a ser na Duat, também no Sudeste. Sendo assim, o lago das duas facas estaria situado no Campo de Juncos, que, por sua vez, seria um espaço no Sudeste da Duat. Por fim, o ato efetuado pelo deus: a morte da serpente rebelde. A recepção desse ato pode ser entendida pela paz que se instaurou no lago das duas facas, indicada pela expressão xpr m Htp.w, “estar em paz”, um momento que, por ser indicado como uma ação no presente, significa algo que, no momento da leitura do texto, acontece e é positivo, em contraste com a serpente que caiu. É interessante a construção da narrativa na frase seguinte, uma vez que é necessário dizer que as mãos da serpente (algo simbólico, pois serpente não possui mãos na natureza) estão atadas e que a faca cortou as suas vértebras (também simbólico). De acordo com John Baines (2007), as palavras possuem poder e, nesse caso, ao ler o texto da estela na estatueta de Nakht, a supremacia de Rê vence o seu desafio e, assim, instaura a ordem perante a possibilidade do caos (representado pela serpente). ... Vimos os objetos encontrados por Davies na TT 52. Alguns tivemos a oportunidade de comprovar o achado a partir das fotografias, enquanto os outros foram baseados na descrição do 149 objeto fornecida por Davies (1917, p. 39-42). Porém, como podemos compreender todos esses objetos no espaço funerário de Nakht? Sugerimos a separação desses objetos nas duas estruturas: • Superior o Estatueta o Cones funerários (18) o Potes vermelhos (16) • Inferior o Fragmentos de caixões (1 a 4) o Cetro (6) o Fragmento da mesa (7) o Partes das cadeiras (5, 8 a 12) o Fragmentos das caixas (13 e 14) o Vaso de cerâmica do MET (15) o Jarro de cerâmica vermelho (17) o Pincel de maquiagem (19) o Grampo de cabelo (20) Como atesta Kampp (1996), os cones funerários são alocados nos lintéis da porta da tumba ou na fachada e, portanto, no pátio. O tipo Vb, de acordo com Kampp (1996), da TT 52, possui uma estrutura em T, com as paredes decoradas no primeiro recinto e o nicho para a estatueta no segundo. Quanto aos vasos vermelhos, acreditamos que eles não foram enterrados junto aos equipamentos funerários de Nakht. Isso se dá pelo fato de não possuírem (ao menos no modelo fotografado por Davies) um padrão estético do nível, presente nos outros, que são bem modelados e finalizados com pinturas. Dessa forma, sugerimos que tratassem de vasos para oferendas feitas na tumba por visitantes (familiares ou não), que depositariam água (como é o uso comum para esses vasos, conforme mencionamos), um dos elementos essenciais para a vida, em prol do morto. 150 Os demais materiais encontrados seriam, de fato, equipamentos funerários e acompanhariam o morto (no caso Nakht, Tawi e a terceira pessoa) no Além. Smith (1992), após analisar os objetos das tumbas intactas, elabora uma tabela para designar o nível da camada social que um membro da elite pertencera, com base em seu equipamento funerário. Traduzimo-la Tabela 4. Se fizermos uma espécie de conferência de dados, e tomássemos como verdadeiras as informações que Davies nos dá sobre os achados, compreenderíamos que Nakht teria um papel de destaque, pertencendo à alta elite. Isso porque, no primeiro fragmento de caixão encontrado, Davies alega que os olhos e as sobrancelhas seriam de vidro, pois existia o espaço para isso e não fora pintado, apenas inserido o vidro, o que já enquadra Nakht nessa alta elite por possuir condições econômicas de pagar por um trabalho em vidro. Além disso, foram encontrados múltiplos caixões na TT 52, justificando seu status como alto. Por enquanto, não fecharemos esse assunto do status social de Nakht, ou de seus títulos como astrônomo e escriba, isso é algo que veremos quando analisarmos as imagens (Capítulo 3) e textos (Capítulo 4) da TT 52. Tabela 4: Status social do membro da elite de acordo com os objetos encontrados na tumba. Nível Objetos para a tumba Objetos para o cotidiano Todos os grupos Caixão Joias Caixas e cestos Conjunto de toalete Objetos adicionais para o status médio Shabtis Estátua Buquês e guirlandas Amuletos/Escaravelho Vasos Canopos Equipamento profissional Servos Sandálias Roupas Cadeira / assento Cama Oferendas de comidas Objetos adicionais para o status médio-alto Papiros Jogos Máscara funerária Vasos de rocha e metais Linho Outros móveis Objetos adicionais para o status alto Vários caixões Comida mumificada (realeza apenas) Estatuária especial (?) Cama de Osíris (?) Trabalhos em vidro (diversos) Fonte: Tabela traduzida por Pedro Hugo Canto Núñez (2020) de Smith (1992, p. 219). 151 Esquema 6: Os dois segmentos para a tumba de Nakht (TT 52). Fonte: elaborado por Pedro Hugo Canto Núñez (2020) com base na teoria de Staal (1979) e as adaptações feitas por Payne (2004) e Hays (2013). Primeiro Segmento: Aproximando-se da tumba Visualização do pátio Entrada da tumba Visualização dos cones funerários Passagem para a capela funerária Visualização da estátua (stelophor) de Nakht ao fundo Passagem para a câmara interna Contemplação da estátua (stelophor) de Nakht e leitura da mesma Realização de oferendas Segundo Segmento: Saindo da tumba Passagem para a capela funerária Visualização da saída ao fundo Saída da tumba Visualização do pátio Vista para o Nilo e a margem oriental de Tebas (vista do templo de Luxor e Karnak?) 152 No momento, podemos fechar nossas ideias sobre a arquitetura da tumba em conjunto com os objetos encontrados, e, como expomos, trabalharemos nisso a partir de um sistema ritualístico. Para Harold M. Hays (2013), é necessário analisar a estrutura do ritual, compreendendo e lendo as ações humanas no espaço a partir de um modelo de ritual de passagem e utilizando a perspectiva da sintaxe ritualística69. Por fim, propomos, no Esquema 6 (acima), algo que iremos dar continuidade no final de cada capítulo subsequente, incrementando nossa proposta de sistema ritualístico para a TT 52. Nesse esquema, apresentamos dois segmentos da sintaxe ritualística, a primeira realizar-se- ia ao adentrar a tumba, na qual o pátio é a primeira parte da estrutura da tumba, local de incipiência solar e, portanto, adoração às divindades solares. Ao visualizar e ler os cones funerários, o visitante revitalizava o morto no Além, a partir da complexa crença na esfera social do morto, com o pronunciamento de seu nome. Na passagem para a capela funerária, as decorações são lidas e interpretadas; porém, isso será nosso trabalho para o terceiro capítulo. O foco da leitura do ambiente é ao fundo da tumba, conforme vimos na tipologia da tumba (tipo Vb), guiando a visão do visitante para a estatueta de Nakht. Portanto, a passagem para a câmara interna marca o início da contemplação da estatueta e a leitura dela, assim como a realização de oferendas, cumprindo o papel ritualístico de revitalizar o morto no Além. Para o segundo segmento, a saída da tumba, por ser uma tumba pequena, o visitante fazia o caminho inverso do primeiro segmento, sem muita diferença de interpretação. Conforme veremos no terceiro capítulo, devido a variação de angulação da capela funerária em relação aos corredoresque a conectam ao pátio e à câmara interna, a visão do visitante pode ser guiada. Ao sair da tumba, podia ser visto o Nilo e a margem oriental de Tebas, com os templos de Luxor e Karnak ao fundo. Assim, no próximo capítulo analisaremos o plano decorativo da TT 52, compreendendo a crença egípcia do caráter mágico nessas imagens. Dessa forma, o Capítulo 3 nos auxiliará no desenvolvimento do sistema cognitivo ritualístico da tumba de Nakht, com base no discurso funerário da XVIII Dinastia. 69 É interessante mencionar aqui o trabalho feito por Richard Payne (2004) sobre a aplicabilidade e constante atualização da teoria de F. Staal (1989) para a questão cognitiva, algo que podemos utilizar para justificar nossa escolha. 153 CAPÍTULO 3: O PLANO DECORATIVO DA TUMBA DE NAKHT Partiremos, nesse capítulo, para a análise do plano decorativo da TT 52. Conforme Angenot (2011), leremos os compartimentos, os registros, as cenas, as figuras e as subfiguras nesse e no próximo capítulo, enfatizando as imagens. Ao analisarmos essas figuras presentes nas tumbas tebanas, devemos levar em consideração os cânones da arte egípcia, as convenções que regem o seu estilo e o seu padrão de representação. Os egípcios acreditavam no sentido mágico das imagens, sendo representado, por vezes, aquilo que seria um objeto de desejo, como é o caso, por exemplo, das mesas com oferendas de comidas e bebidas, dedicadas aos mortos. 1. CONCEITUANDO A ARTE EGÍPCIA Para os antigos egípcios, a arte não pode ser aplicada no sentido moderno do termo. Não havia artistas e, sim, artesãos que não assinavam as suas obras e trabalham em conjunto nas oficinas70. A arte tinha uma função essencialmente mágica, por isso, existia a preocupação de se representar o todo da figura, considerada como sendo melhor visualizada de perfil. A imagem poderia, portanto, se tornar “viva” pelo poder da magia. A pintura forneceria, então, uma ideia de que ela é agrupada em composições retangulares, constituindo, assim, harmoniosamente, padrões que devem ser respeitados. John Baines (2007, p. 3) defende que não podemos distinguir a arte da escrita no Egito antigo, algo que compreendemos de forma unificada desde os primórdios do surgimento da escrita nesse local. Dessa forma, adotaremos a aplicabilidade e os alcances dos estudos que a “cultura escrita” e a “cultura visual” possuem na Egiptologia a partir de John Baines (2007). Para esse autor, os tópicos focalizados em torno de textos literários que os egiptólogos abordaram sob o título 70 As pesquisas sobre isso ainda estão em desenvolvimento. Por exemplo, em abril de 2021 foi publicado (BLAKEMORE, 2021; FABRICIUS, 2021; WOODWARD, 2021) a descoberta de uma vila do período de Amenhotep III na margem ocidental de Tebas que pode nos auxiliar futuramente em informações sobre os trabalhadores de Tebas. 154 “cultura escrita”, referem-se às sociedades que constituem a forma social em que a escrita é encontrada de forma principal, enquanto os problemas de representação pictórica, terminológica e classificatória daqueles resquícios materiais que são abordados sob o título “cultura visual”, são comuns a um leque mais amplo de sociedades (BAINES, 2007, p. 29). Em contraste, a discussão sobre o que é “arte”, e como ela se relaciona com seu contexto social e intelectual, tende a ser vista no Ocidente de acordo com uma perspectiva eurocêntrica, excessivamente evolucionária, na qual se diz que as instituições relevantes foram transformadas por ideias estéticas, que se desenvolveram especialmente desde o século XVIII, uma vez que foram características das sociedades modernas e pós-modernas (BAINES, 2007, p. 29). Para Baines (2007, p. 29-30), as classificações humanas não são limitadas pela linguagem, de modo que a ausência de terminologia em uma sociedade é apenas um guia muito parcial das instituições dessa sociedade e, portanto, também argumento contra abordagens logocêntricas indevidas. Sendo assim, o autor argumenta que a aplicabilidade do termo “arte” para o Egito antigo, no sentido amplo das motivações, atividades e produtos estéticos, é do humano universal e pode ser utilizado como termo para pesquisa nessa sociedade, sem descartar todo o avanço acadêmico trazido à área egiptológica pela discussão teórica da cultura visual (BAINES, 2007, p. 30). Um exemplo que podemos expor aqui é, justamente, o trabalho de Brian Leigh Molyneaux (1997), que analisa um efetivo reforço de poder e ideologia oriundos das imagens. Para este autor, as imagens que são construídas por uma determinada sociedade possuem um poder implícito, uma vez que as imagens existem em um contexto extratextual, circunscritas no próprio espaço (MOLYNEAUX, 1997, p. 4). Sendo assim, as imagens podem ser criadas visando a qualidade estética, mas tendem a ser “representações” de ideias, ou “ilustrações” de objetos ou “reconstruções” de eventos. Torna-se interessante para o nosso estudo quando Molyneaux (1997, p. 5-6) interpreta o artista de uma determinada obra não como um autômato social, que simplesmente reproduz uma imagem que já está na mente, mas o primeiro espectador, que trabalha baseando-se em algo que podemos chamar de sistema cognitivo, com as mãos e os olhos no ambiente de informações que representam uma imagem. No entanto, antes de adentrarmos de forma mais profunda sobre toda essa teorização da imagem para a TT 52, devemos ter uma noção sobre os cânones da arte egípcia. 155 O início da composição de um desenho egípcio se dá a partir de uma orientação de espaço, de modo a deixar toda a pintura com um caráter ortogonal. Alinham-se, portanto, os bastões de forma vertical e calculam a horizontalidade dos ombros e da parte inferior dos saiotes e das ações dos personagens da cena. Dessa forma, o ato de pintar seria dividido em etapas entre os artesãos responsáveis por aquele plano decorativo. Em um primeiro momento, a superfície era preparada, deixando-a plana e, depois, era traçada uma grade quadriculada71, o próximo era fazer um esquema do desenho, sendo seguido pela sua pintura e, depois, uma correção nos desenhos (MALEK, 2011). O objeto nessas pinturas pode ser visto ao mesmo tempo de frente, de perfil e de três quartos, tudo seguindo uma lógica bem clara. Ao ser representado, uma pessoa tem seu olho e seu tronco figurados segundo uma visão frontal, este último mostrando a força dos movimentos e a sua musculatura. A visão lateral do desenho de uma pessoa era feita de modo que a cabeça, as pernas (sempre com o pé esquerdo à frente, dando uma ideia de movimento para quem visualiza a imagem e impedindo a supressão de uma perna), os pés e os braços aparecessem todos na imagem. E a sua face está, geralmente, representada de perfil. Nas imagens masculinas, o umbigo era utilizado como uma forma de tornar mais clara a ligação do tronco com as pernas e, nas femininas, um seio era representado sobre o tórax, de perfil. A mesma ideia usada para as pessoas era utilizada em paisagens. A cena combina uma vista de plano superior com uma visão frontal. Nas cenas de jardins, por exemplo, temos um lago visto de cima (plano superior), sua fauna e flora são representadas de perfil (visão frontal), assim como as árvores ao seu redor e as construções que possam ser ilustradas (casas ou vinhedos). Sendo assim fornecida uma melhor compreensão do espaço. Um outro princípio egípcio encontrado em sua arte é a da variação de tamanho de uma pessoa, um ponto que indica o destaque social. É indicado, assim, uma ordem de poder, pondo em evidência quem fosse mais importante. Por exemplo, nas cenas das tumbas, o casal, sempre está representado maior que os seus servos. Um dos padrões de decoro ressaltado por Heinrich Schäfer, um dos primeiros egiptólogos a postular os fundamentos da arte egípcia, e que é utilizado até os 71 A grade quadriculada para se basear na escala de tamanhomuda ao longo da história do Egito Antigo. Ela fica mais comprimida a partir do Reino Novo, fazendo com que o desenho fique mais detalhado. Um corpo humano de um membro da elite, era repartido em 18 quadrados no Reino Médio e passa a ser repartido em 21 quadrados no fim do Terceiro Período Intermediário (ROBINS, 2015, p. 141-142). 156 dias atuais é o termo “isocefalia”, que ressalta a ideia de que se as cabeças e troncos das pessoas ocupassem a mesma linha horizontal, estas teriam o mesmo nível social, como é o caso de um rei que esteja representado diante de alguma divindade (SCHÄFER, 2002, p. 14-18). A escala de tamanho interfere nas relações sociais que as pessoas possuem, sendo provável que essa ideia tenha surgido a partir de que o personagem em destaque seria mais forte que os outros, convertendo-se até demonstrar que quem estivesse em destaque seria um símbolo de poder e importância, devido ao indicativo de força (SCHÄFER, 2002, p. 230-234). Em alguns casos, como aponta Richard Wilkinson (2003, p. 45), a razão para a alteração dos tamanhos de certos objetos ou figuras pode ser apenas mitológico, pois, de acordo com as crenças egípcias, o mundo dos mortos teria dimensões descomunais e estaria repleto de criaturas com tamanhos gigantescos. Outra hipótese também relacionada ao tamanho de determinada imagem é o ato de fazer a menor parecer insignificante ou indefesa, por exemplo, o caso da representação do deus Seth como um pequeno hipopótamo sendo atacado pelo rei e por outros deuses, no templo ptolomaico de Edfu. As figuras estavam organizadas em faixas horizontais, os registros. Para Schäfer (2002), os registros seriam uma forma de organizar o espaço, mostrando o todo que os egípcios buscavam, fazendo com que a cena estivesse clara e com seu significado completo, de forma para auxiliar a magia por trás da pintura. Dessa forma, a utilização do espaço para a pintura de uma imagem não buscava apenas ilustrar o local, mas, sim, estaria repleto de significado e crenças sobre o que estava representado. Com esse levantamento de alguns cânones da arte egípcia, podemos compreender o que Baines (2007, p. 301) sugere sobre a arte egípcia. Para o autor, a arte para essa sociedade precisa ser vista como um produto, criado para um determinado propósito, que exibe uma ordem e organização estética que vai além do seu valor funcional. Essa definição pode incorporar ritos e performances que podem ser analisadas a partir de um sistema social que engloba a sociedade egípcia (BAINES, 2007, p. 301). Entretanto, como podemos perceber esse sistema na TT 52? Conforme mencionamos, o Egito, no início do Reino Novo, vivera um período de reafirmação do poder dos faraós egípcios. Esse momento concedeu uma grande importância para a cidade de Tebas, uma vez que os faraós descendiam daqueles que reinavam no final do Reino Médio e, por sua vez, eram tebanos. Sendo assim, conquistas e expedições eram feitas em nome de 157 Âmon e, no período de Nakht, podemos perceber que os sacerdotes de Tebas possuem uma certa relevância, de modo que grandes festivais e cerimônias (que discutimos no Capítulo 1) eram realizadas em Tebas. Conforme Kemp (1989, p. 188) afirma, nesse período inicial do Reino Novo, percebemos que as imagens religiosas, como, por exemplo, as portáteis, tornaram-se mais comuns, sugerindo que o culto estava se transformando para se adequar a um público e, portanto, um espetáculo político, à medida que o Estado substituía alguns dos antigos controles burocráticos por uma manipulação psicológica maior e mais aberta. Dessa forma, David O’Connor (1983, p. 40-42) compreende que a crescente visibilidade desses objetos ideológicos sugere que o rei e o estado ajustaram ativamente sua produção ideológica em resposta às mudanças no clima político. Isso é interessante para nós pois, para compreendermos como o discurso funerário da TT 52 fora criado com base no sistema cognitivo do período em que Nakht vivera, devemos analisar como que os egiptólogos percebem as nuanças existentes no âmbito oficial da arte egípcia. Conforme aponta Baines (2007, p. 207), é possível encontrar evidências de fugas dos cânones artísticos egípcios, algo que Schäfer (2002, p. 36-68) já apontava em seus princípios. Mesmo assim, não é algo que seja extremamente avesso ao estilo predominantemente egípcio (BAINES, 2007, p. 207). De acordo com Gay Robins (2015, p. 12), consiste em um resultado da natureza duradoura da arte egípcia que pode ser percebido desde o Reino Antigo até o período romano. Essa “natureza duradoura”, que comenta Robins, não indica que seja algo imutável, tanto é que, como podemos perceber a partir de Baines (1989; 2007), Kemp (1989) e O’Connor (1983), existe uma forte ligação das mudanças políticas com as alterações sofridas na arte, um exemplo disso é o período amarniano. Se compararmos as tumbas de particulares pré e pós-amarnianas, vemos que, antes de Akhenaton, o centro da tumba era, de fato, o próprio dono da tumba e, por vezes, sua esposa. Nas tumbas de Amarna, percebemos que elas possuem como centro da imagem a família real, associada ao deus Áton. Nas tumbas tebanas pós-amarnianas, vemos um aumento em imagens do faraó desempenhando alguma função (o motivo iconográfico mais comum é de festivais). Sendo assim, compreendemos que o caráter mágico da arte egípcia pode ser alterado de acordo com as influências políticas do período (já que não podemos analisar separadamente cada uma das esferas sociais egípcias), e que, conforme visto anteriormente, o culto solar ao deus Âmon 158 tinha grande poder no período de Nakht. Portanto, como iremos proceder na nossa interpretação do plano decorativo da TT 52? A semiótica, proposta por Roland Tefnin (1997, p. 7) parece ser um bom caminho a ser seguido. Tefnin entende que existe uma interação entre imagem, texto e espaço como vetores de relações a partir da seguinte estrutura: • Relação da imagem e do texto (a escrita como imagem, a imagem como escrita); • Relação da imagem e do espaço (quando o espaço funciona plenamente como signo. Exemplo: o vazio luminoso da porta "recebendo" a recitação de um hino ao sol); • Relação do texto e do espaço (frisos e molduras); • Relação da junção de texto, imagem e espaço de uma tumba com o espaço cósmico (orientações geograficamente simbólicas, possíveis distorções intencionais). Assim, a semiologia de Tefnin (1997), seguindo a análise estrutural, trouxe uma nova maneira de conceber o significado de um edifício, um modo global de apreensão que transcende as divisões tradicionais entre os filólogos, arqueólogos, historiadores da arte, algo que revela o caráter mágico egípcio, expresso em termos de redes, ramificações, constelações, tramas diversas. Se utilizarmos essa perspectiva metodológica para a nossa análise, precisamos considerar as atualizações que ela sofreu. Uma discípula e continuadora de Tefnin, Valérie Angenot em um capítulo publicado em 2015, expõe os alcances que a semiótica e a hermenêutica podem ter quando utilizadas (em conjunto) para analisar a imagem egípcia. Angenot (2014, p. 102) justifica que não podemos tratar, de maneira teórica-metodológica, a leitura da arte egípcia com o auxílio de uma gramática, como defendia Philippe Derchain (1962). A autora está inclinada mais para utilizar o termo “código” do que “gramática”, uma vez que o processo de carregar um significado depende de uma camada de regras que podem ser 159 compreendidas em uma imagem. Dessa forma, Angenot (2014, p. 102-104) elenca seis princípios que podem ser observados nessa escolha teórica: • Univalência o Em sistemas puramente semióticos, um sinal deve ter apenas um significado claro e simples e não ser ambivalente. Há algumas raras exceções a esse princípio. Alguns sinais podem de fato assumir dois significados, desde que isso seja feito em um objetivode “economia de meios” e, na medida em que os dois significados não interferem no mesmo nível de comunicação (por exemplo, significado do signo + padrão de leitura). • Taxonomia o A taxonomia (ou classificação) está estritamente ligada ao pensamento semiótico. A semiótica se apoia em classes determinadas pela taxonomia, que constituem a base do sistema determinativo na estrutura tripla da escrita hieróglifo egípcia (ideogramas, fonogramas e determinativos). Os egípcios escolheram o hieróglifo que representa o pato para significar a ideia geral de “pássaro”, o que não exclui as demais categorias, mas firma uma norma. Isso também pode ser encontrado em outros níveis da representação. Por exemplo, em uma série de posições corporais destinadas a retratar um ritual ou performance, os egípcios selecionaram um gesto que representava todo o ritual (chamado de sinédoque = “parte para o todo”), de modo que ficava melhor transmitir o significado, o gesto e/ou atitude tinha que ser o mais típico da ação significada. • Legibilidade o Legibilidade significa adotar o ponto de vista que tornará um sinal o mais legível e compreensível possível, excluindo outras interpretações (indevidas). A legibilidade funciona junto com a normalidade e a esquematização. Por exemplo, a cabeça foi usada no sistema hieróglifo para significar tanto /cabeça/ e /face/. Mas os egípcios 160 usaram a representação frontal para o rosto e o perfil para a cabeça porque cada sinal era mais legível e representativo em seu respectivo significado. Em nome dos princípios de tipicidade e legibilidade, os egípcios misturaram diferentes pontos de vista em uma e a mesma imagem. Por exemplo, um ser humano é retratado com uma cabeça de perfil, mas um olho é frontal por ser mais legível que um olho na visão de perfil. • Esquematização e densidade o Uma das condições de univalência é o uso de um conjunto de sinais recorrentes, que são diretamente reconhecíveis e despojados de quaisquer detalhes perturbados, estranhos ou não essenciais. O grau de detalhes e precisão usados em uma representação é chamado de “densidade”. Em certa medida, enquanto o objeto permanecer identificável, a esquematização aumenta o desempenho e a legibilidade do objeto. No entanto, o grau de esquema variou com o tempo, como já mencionado. Dessa forma, apesar de algumas tendências miméticas, os sinais semióticos relativos à imagem egípcia permaneceram identificáveis ao longo do tempo. A falta de movimento e variação também diz respeito ao princípio da esquematização. • Funcionalidade o A funcionalidade supera a semelhança em representações semióticas. Uma imagem pode ser representada de uma forma convencional ou não, de modo que sua função seja preservada, mesmo que haja divergência semântica na sua esquematização. • Durabilidade o De acordo com Angenot (2014, p. 104), a autoridade faraônica entendeu bem que a sobrevivência de seu sistema semiótico (e, portanto, seu sistema de comunicação e propaganda) dependia de sua estabilidade e durabilidade. Para um código funcionar, ele tem que durar no tempo, juntamente com razões filosóficas e religiosas. 161 Tudo isso gira em torno de alguns outros pontos da semiótica para o Egito Antigo, como o significante (a representação material de alguma coisa ou conceito), o significado (o objeto mental ou material que é compreendido a partir de uma descrição material determinada), ícone (uma similaridade topológica com o objeto – o significante é semelhante ao significado), símbolo (aqueles que possuem uma base convencional com o objeto) e os índices (aqueles signos cuja presença implica a ocorrência de algum outro evento ou objeto). Desse modo, temos o que Angenot (2014, p. 107-108) compreende por relações sintagmáticas (em uma linha horizontal - arranjos de termos) e paradigmáticas (em uma linha vertical - variação de termos). Podemos ver em Tefnin (1991, p. 9-12) esse esquema projetado na iconografia de tumbas tebanas de particulares, que possui o morto (N) como o sujeito das iconografias (e textos) das tumbas, efetuando uma determinada ação, que basicamente são quatro (ver, receber, ofertar e contar), sobre um objeto. No Esquema 7 vemos essa projeção em três quadros de níveis sintagmáticos (sujeito-ação-objeto) e os seus sentidos paradigmáticos para as tumbas tebanas de particulares, de acordo com Tefnin (1991. 9-12). Esquema 7: Eixos sintagmáticos e paradigmáticos em uma tumba tebana de particular. Fonte: adaptado de Tefnin (1991). Sujeito • N Ação • Ver • Receber • Ofertar • Contar Objeto • O Campo de Junco ... • As oferendas ... • Carne e cerveja ... • 10 côvados de ... 162 Além de Tefnin, podemos nos respaldar em certos momentos dessas análises no processo cognitivo da língua egípcia apontado por Pascal Vernus (2018). Para este autor, os hieróglifos podem apresentar traços de praticidade em sua composição, de modo que o signo de uma corda, por exemplo, formará parte de uma palavra para poder fazer o leitor compreender que aquilo escrito é referente ao objeto, assim como a palavra “gato” é escrita pelo hieróglifo do gato (VERNUS, 2018, p. 47-48). Isso entra de acordo com a ideia de Tefnin (1997, p. 7) sobre a relação intrínseca que imagem e texto possuem. Dessa forma, podemos utilizar esses trocadilhos da escrita egípcia para analisarmos tanto a questão imagética quanto escrita da TT 52. Angenot, ao expor toda essa perspectiva teórica-metodológica que pode e é utilizada para o Egito antigo, elenca alguns problemas atuais que não podemos resolver apenas com a semiótica. Podemos utilizar como exemplo a análise de algumas cenas agrícolas em tumbas tebanas de particulares, que outrora foram interpretadas por “cenas do cotidiano”, e que hoje são analisadas a partir de um significado mais profundo, interpretando-as como cenas do Além. Portanto, de acordo com Angenot, fica evidente a necessidade de trabalharmos com a hermenêutica para estudarmos o Egito antigo. Entre os ideais dessa linha teórica, a autora destaca (ANGENOT, 2014, p. 109-114): • Kheperu: o Uma das características da sociedade egípcia seria a analogia. Todas as instâncias divinas, todos os fenômenos transcendentes, são revelados ao conhecimento humano por meio de muitos nomes, muitas formas, muitas manifestações (kheperu). Todo fenômeno imanente é, portanto, provável que evoque um transcendente e vice- versa, assim como objetos com características análogas, formas ou até mesmo nomes similares dentro do mesmo “reino” também podem se referir uns aos outros. • Restrições e tabus: o Todas as sociedades emitiram restrições culturais e privilégios que impedem parte da sociedade de dizer abertamente ou retratar diferentes tipos de coisas. Os mistérios do reino divino só eram conhecidos pelo rei e alguns sacerdotes iniciados. No início da história do Egito, apenas a realeza parecia assumir um papel ativo no processo 163 cósmico, vivendo no Além e associando-se com divindades como Rê. Com o tempo, no entanto, as prerrogativas reais foram introduzidas na iconografia da elite em um processo de ampliação desse Além. Nessa ideia podemos encontrar alguns motivos iconográficos que parecem pertencer a apenas uma esfera social específica. A ausência desses podem ser referenciados como restrições ou tabus da sociedade para uma esfera social. • Economia e edificação: o O princípio da economia consiste em transmitir, com uma única e marcante imagem, a mais completa matriz de significado, bem como os muitos aspectos e camadas que um conceito englobava. Isso correspondia nos formulários de escrita a “um agregado de raciocínio discursivo e disposto detalhado”. Por exemplo, havia muitos requisitos necessários para a vida no Além, que devem ser invocados a partir dos rituais (conforme vimos no Capítulo 2). • Überderterminierung (muitos significados):o Überdeterminierung (aqui traduzido pela expressão “muitos significados”) é um termo emprestado da psicanálise. Foi usado pela primeira vez por Freud para fazer um relato da forma como os sonhos foram elaborados pela mente humana em múltiplas camadas determinadas por múltiplos fatores. Nesse sentido, os sonhos foram construídos pelo acúmulo de múltiplas causas de diferentes naturezas (como traumas antigos, resíduos da época, desejos latentes, entre outros), que combinam para entregar um motivo comum. Com a abordagem hermenêutica é possível averiguar que os antigos egípcios compreendiam nas imagens questões mais profundas, algo que podemos identificar a partir de diversas comparações, encontrando o caráter polivalente de cada motivo iconográfico. • Polivalência: o Como uma consequência da Überdeterminierung, a polivalência seria o fato de apresentar pelo menos um significado literal ao valor facial e um significado derivado ou oculto. Nos dispositivos semióticos, os signos são usados para 164 transmitir significados derivados por meio de associações e regras específicas, assim como a linguagem (sistema semiótico) é usada para transmitir insinuações (mecanismo hermenêutico). Metodologicamente, Angenot (2014, p. 116) argumenta que, uma vez que a norma, a anomalia e o contextos de um motivo iconográfico forem definidos, a interpretação deve ser feita considerando todos e quaisquer elementos, produzindo uma variedade de contextos possíveis para a análise. Sendo assim, Angenot (2014) propõe que a aplicabilidade da hermenêutica pode produzir cada vez mais questões para compreendermos o Egito antigo, e, como um meio para chegarmos à essa compreensão, o uso da semiótica e de seus sistemas interpretativos seriam úteis, criando, assim, uma extensa rede de níveis interpretativos e contextuais. Além da Angenot e de suas demonstrações de aplicabilidade da união da semiótica com a hermenêutica (ANGENOT 2012; 2011; 2010; 2007; 2005; 2003; 2002; 1996), podemos basear nossas análises das imagens da TT 52 também em Hays (2013; 2010), que, conforme mencionamos no Capítulo 2, trabalha sob uma perspectiva da sintaxe ritualística e demonstra a possibilidade de interpretarmos o direcionamento da leitura da imagem. Dessa maneira, continuaremos nosso capítulo avaliando cada motivo iconográfico presente na TT 52, identificando cada signo, compreendendo-o em um contexto e propondo uma forma de leitura que os antigos egípcios fariam. A função mágica de uma tumba, em quesito arquitetônico, seria, basicamente, o de prover um Além para o morto eternamente. Para a imagem e texto, esse caráter também pode ser percebido, porém, podemos inserir aqui o fator de que a tumba possui um local para a interação dos visitantes para com o morto, a estrutura superior. Na TT 52, os espaços de interação estão dispostos em A, B e C das Figuras 2.2 e 2.3 (Cf. p. 87 e 88). Em B, na chamada capela funerária, as paredes estão decoradas, como podemos ver na planificação (Figura 3.1) do plano decorativo desse espaço. Podemos, portanto, separar essas seis paredes em sete motivos iconográficos diferentes que, de certa forma, se complementam e assumem o papel mágico de manter Nakht e 165 Tawi no Além72. Para facilitar a compreensão, colocamo-los em diferentes cores na Figura 3.1, a saber: oferendas para Rê (em marrom), cenas agrícolas (em verde escuro), mantimentos para Nakht (em azul escuro), banquete funerário (em roxo), caça e pesca no pântano, vinicultura e caça de pássaros (em rosa) e, por fim, ritos funerários (em verde claro). Figura 3.1: Planificação do plano decorativo da TT 52. Fonte: adaptado de Laboury (1997, p. 76-77). Melinda Hartwig (2004, p. 39), ao explorar sobre a função de uma imagem em uma tumba tebana privada, explica que, no antigo Egito, o sagrado e o invisível se manifestavam a partir das imagens. Para isso, os símbolos representavam e comunicavam as ideias, crenças e atitudes sobre 72 Não sabemos de quem seria o terceiro caixão visto no Capítulo 2, mas, como suponhamos que poderia ser de alguma filha do casal, ela poderia aparecer na cena de caça e pesca no pântano e, mesmo que não possamos fechar essa ideia no momento, é um questionamento para a sua análise. 166 a natureza da vida e a realidade que estavam circunscritas na sociedade (HARTWIG, 2004, p. 39). Podemos, portanto, trazer aqui a reflexão de Rapoport (1982) sobre o que seriam os elementos de um ambiente. Dessa forma, a imagem faria parte dos elementos fixos desse espaço funerário, indicando de maneira eterna (como seria o ideal de acordo com a crença egípcia) para o morto os seus mantimentos para o Além. Hartwig (2004, p. 40-41) explica que, para ocorrer essa indicação, o local que estavam essas imagens precisavam ser comemoradas a partir de um contato com algum visitante da tumba. Não nos cabe entrar em detalhes sobre o que seria essa memória comemorativa; no entanto, devemos explicá-la, mesmo que de maneira superficial. Para Assmann (1988, p. 51-52), esse tipo de memória vem da presença dos mortos em um momento atual, sendo um espaço da comemoração que abrange o passado e o presente, mortos e vivos, em um horizonte comum. Dessa forma, Assmann (1988, p. 51-52) argumenta que, se os mortos são comemorados, são porque possuem um poder presente; se não têm poder atual, são esquecidos e não existem mais, de modo que o passado exista apenas como duração atual, enquanto o presente exista apenas como um passado contínuo. Sendo assim, essa comemoração é o que mantêm os mortos, por meio da magia circunscrita no espaço, regozijando o Além. É interessante a reflexão feita recentemente por Betsy M. Bryan (2009, p. 27), que compreende essa memória também como expressa pelo próprio morto. A lógica desse posicionamento de Bryan é eficaz pois, ao construir sua tumba, o membro da elite expusera sua compreensão de mundo. Nesse ato, podemos perceber uma escolha de imagens e textos que vão refletir essa compreensão. Se atentarmos para o Esquema 7 e as ações descritas em uma tumba pelo morto, compreendemos que os verbos “ver”, “receber”, “ofertar” e “contar” são ações feitas pelo morto em um ciclo eterno. De acordo com Bryan (2009, p. 27), essa projeção pode ser uma metáfora para a sua própria memória imaginada de sua vida desejada. Se atentarmos ao Ritual de Abertura de Boca, por exemplo, compreendemos que, a partir de um ritual, a estátua do morto era revitalizada, de modo que palavras pudessem ser pronunciadas. As palavras exprimem um poder mágico que, nesse caso, são uma forma de manter o morto. Portanto, ao “ver”, “receber”, “ofertar” e “contar”, o morto pronuncia e torna realidade essas ações em sua tumba. Dessa forma, a função dessas cenas nas tumbas egípcias tinha como objetivo, além de propagar a identidade social do morto, de impactar os visitantes do espaço, a fim de que eles apreciassem as imagens e 167 rememorassem o morto. Esse ato apresenta a ideia de que, além das propriedades mágicas e comemorativas dos textos e das imagens, a iconografia das tumbas tebanas reafirma uma preocupação dos egípcios em valorizar sua vida no Egito terreno e em prol de assegurar a do Além, demonstrando, assim, as concepções ideológicas e religiosas que permeavam o momento vivenciado na região de Tebas. 2. OFERENDAS PARA RÊ Os alimentos são necessários para a manutenção da vida de todo ser vivo. Ao se tratar de uma sociedade, entendemos que os alimentos possuem um significado cultural que é intrínseco ao cotidiano desse determinado povo. Para os antigos egípcios, a alimentação é vista como algo necessário e que pode ser escasso, se considerarmos a posição geográfica dessa sociedade e a irregularidade do rio Nilo quanto às suas cheias (ZINGARELLI, 2011, p. 85). Portanto, ao vermos iconografias ou textos evidenciando um motivo alimentício, tendemos a imaginar que issoera algo importante para os que produziram o documento. No LDM existem diversas fórmulas que provém água e alimentos para o morto e, portanto, também são presentes essas cenas em paredes de tumbas de particulares do Reino Novo. A tumba de Nakht (TT 52) apresenta essa cena de adoração com muitos alimentos na entrada do espaço que seria vista ao sair da tumba, como nos mostra as Figuras 3.2 e 3.3. Como podemos analisar essa cena? As imagens coloridas referentes às paredes aqui trabalhadas podem ser encontradas no Corpus (Cf. p. 3; 38 do Volume II). 168 Figura 3.2: Visão da parede leste (saída da tumba) na projeção tridimensional da TT 52. Fonte: projeção feita em colaboração com o Prof. Dr. Bruno Leonardo Canto Martins (DFTE/UFRN) no SketchUp. Figura 3.3: Recorte da cena das oferendas em desenho (parede leste). Fonte: adaptado de Laboury (1997, p. 52). 169 A cena é espelhada, na qual Nakht e Tawi aparecem diante de uma mesa de oferendas. Na parede sudeste, vemos cinco personagens (o casal e três servos), enquanto na parede nordeste são treze personagens (o casal e onze servos). As mesas de oferendas estão separadas em três partes, com uma esteira verde marcando essa separação: na primeira parte, quatro vasos com lótus acima deles; na segunda, alimentos e, na terceira, um boi fora representado com servos o cortando (sudeste) e já cortado (nordeste). Em ambas as imagens, Nakht aparece com um vaso em suas mãos, despejando algo na mesa de oferendas e Tawi aparece com dois instrumentos, um menit e um sistro. Na parede nordeste, os onze servos aparecem à esquerda do casal, em três registros, com oferendas em direção à mesa. Dessa forma, podemos separar a parede leste em motivos iconográficos, como podemos ver na Figura 3.473. Em uma observação rápida podemos constar que houve, de fato, uma preocupação em organizar esses desenhos nas duas paredes de modo que eles possam ser espelhados e da mesma altura. Temos, portanto, o casal, as mesas de oferendas, boi(s) em dois estágios (sendo cortado e já cortado), lótus e os vasos, e os servos com as oferendas. Essa composição imagética aparece, geralmente, com uma divindade após a mesa de oferendas, algo inexistente em nossa parede. Sendo assim, existe algo ou alguém, ausente na iconografia, que seria aquele receptor das oferendas. Como, então, podemos lidar com essa ausência? De acordo com Angenot (2014), essa ausência pode ser encontrada seguindo uma perspectiva hermenêutica. Sendo assim, começaremos por compreender cada motivo iconográfico e, depois, interpretá-lo em um contexto. 73 Por enquanto, não trabalharemos com a inserção dos hieróglifos na cena, pois isso exige uma maior complexidade, por isso destinamos isso ao Capítulo 4. 170 Figura 3.4: Motivos iconográficos na parede leste (cena das oferendas funerárias) da TT 52. Fonte: esquema elaborado por Pedro Hugo Canto Núñez (2020), baseado no desenho de Laboury (1997, p. 52). Figura 3.5: Destaque nas representações de Nakht e Tawi da cena de oferendas da TT 52. Fonte: desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020), com base em Davies (1917, Pr. XII; XVIII). 171 As figuras em destaque nas imagens são Nakht e Tawi. Na Figura 3.5 temos o recorte de suas silhuetas para podermos compreender melhor os símbolos presentes neles. Nakht aparece em um gesto correspondente ao signo hieroglífico A30 ( ), que, de acordo com Wilkinson (p. 29), em pinturas ou estatuetas, esse gesto é comumente visto diante divindades ou reis como um sinal de respeito e adoração. Existe uma diferença entre as duas representações de Nakht: a da esquerda nos mostra um Nakht com barbicha, que simboliza um certo poder que ele tivera, um maior status social. Não existe um problema em sua inexistência na representação da esquerda, uma vez que na cena de caça e pesca, onde existe mais um espelhamento de cena, o Nakht da direita aparece com barbicha, enquanto o da esquerda não. O colar, do tipo wesekh, e os braceletes são de contas. Os colares de acordo com Alan Schulman (1988, p. 1-6) eram concedidos pelo rei aos seus funcionários na cerimônia do “Ouro de Honra” durante o Novo Reino. Schulman (1988, p. 1-6) interpreta que essa cerimônia, atestada em alguns textos do Reino Novo, seria comum, baseando- se na quantidade de resquício material e iconográfico que temos desses colares. O saiote de Nakht possui uma certa diferenciação dos saiotes dos servos, indicando um status social mais elevado que os demais. O vaso em sua mão trata-se, provavelmente do hieróglifo W1 ( ), que aparece como determinativo de mDt, unguento. Podemos atestar essa referência a partir do líquido que é representado saindo do vaso para a mesa de oferendas. Quanto à Tawi, ela está com uma mão em frente ao peito e outra para baixo. Nas mãos perto ao peito, ela porta um colar menit (mnjt), correspondente ao hieróglifo S18 ( ), um colar de cabeça pesada com uma peça frontal em crescente e um contrapeso preso na parte traseira. Nas outras mãos, é representado um sistro (sSSt), signo hieroglífico Y8 ( ), um objeto com hastes de metal colocadas em um aro, que suportavam pequenos discos de metal ou quadrados que produziam um som característico de tilintar quando o instrumento era sacudido. Tanto o colar quanto o sistro, podem ter funcionado como uma espécie de instrumento de percussão em certos contextos religiosos. Ambos estavam associados à deusa Háthor. Wilkinson (1992, p. 173) afirma que o menit parece ter funcionado como um meio pelo qual o poder da deusa era transmitido, de modo que muitas representações mostram essa divindade oferecendo o menit ao rei. Dessa maneira, Wilkinson (1992, p. 173;213) acredita que tanto o menit quanto o sistro eram associados a ideias de vida, potência, fertilidade, nascimento e renovação. Além disso, podemos constatar que Tawi fora representada portando do colar shebyu, que, de acordo com Peter Brand (2006), eram, assim 172 como o de Nakht, entregues aos funcionários na cerimônia de “Ouro de Honra”. Em sua cabeça, Tawi está representada com uma tiara de lótus, a Nymphaea cerulea, indicada no hieróglifo M9 ( ). Essa flor, nesse contexto, pode ser interpretada como adorno, mas é mais provável que haja uma associação ao deus Nefertem, referência ao sol, perfume, e renascimento. Por fim, seu vestido apresenta uma diferença entre as duas imagens. Enquanto a da direita aparece com um seio para fora, a Tawi da esquerda tem seus seios cobertos pelo vestido. Isso pode ser associado ao tipo de representação feminina, ambos os tipos são comuns na iconografia egípcia do período; por exemplo, a Deusa do Sicômoro que aparece na parede sul da tumba possui um vestido que cobre os seios, mas, mesmo assim, o mamilo da deusa aparece no desenho. Figura 3.6: Destaque nas representações das mesas de oferendas da parede leste da TT 52. Fonte: desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020), com base em Davies (1917, Pr. XII; XVIII). 173 Quanto às mesas de oferendas, na Figura 3.6 vemos os seus destaques. Na primeira esteira, os vasos com lótus são referentes, respectivamente, aos hieróglifos W1 ( ) e M9 ( ). Nas segundas esteiras possuimos uma miscelânia de alimentos. Uvas e figos, conforme comprova Mary Anne Murray (2009, p. 612-614), são achados comuns e aparecem em tumbas. Existiam muitos tipos diferentes de pães no Egito Antigo; nessas mesas de oferendas podemos ver quatro tipos diferentes (redondos, ovais com extremidades pontiagudas, ovais com extremidades arredondadas e uma base maior, e retangulares). De acordo com Salima Ikram (2009, p. 669), carne, seja ela bovina, avícola ou pisciana, era disponibilizada pelo palácio para uma parte da população egípcia uma ou duas vezes na semana. Ikram (2009, p. 669) afirma que as pessoas mais pobres podiam obter suas carnes a partir da caça e da pesca, enquanto os membros da elite, alémde poder consumir a partir de criações de porcos, cabras e ovelhas, podiam ainda comprar dos templos quando estes possuissem um extra74. Sendo assim, a aparição desses alimentos nessa esteira faz parte desse sistema alimentar que podemos encontrar nos resquícios arqueológicos. Na terceira esteira temos duas representações de bois sendo ofertados. Salima Ikram (2009, p. 657) expõe, com base nos relevos da tumba de Ptahhotep, em Saqqara, que o sacerdote wab (wab) costumava examinar o animal quanto à pureza e saúde, testando seu sangue e suas entranhas. Depois que a garganta era cortada, o sangue era drenado do corpo pela pata dianteira do animal, forçando o sangue a fluir das veias e artérias do pescoço cortado. Isso ajuda a explicar o porquê da pata dianteira ser um determinativo de força e de ser cortada como uma oferenda aos deuses, sendo um componente vital, um artifício usado para esvaziar o sangue do corpo, evitando assim a deterioração da carne. Além disso, é interessante que aparecem em cenas do Ritual de Abertura de Boca da XXV e XXVI Dinastia o corte do boi e, em seguida, o uso da pata dianteira como utensílio para o ritual pelo sacerdote (WILKINSON, 1992, p. 74-75)75, conforme atestamos na Figura 3.7. 74 Essa discussão de “sobras de carne em templos” aparece no Papiro Bulaq II e é comentada por T. Eric Peet (1934), ao estudar uma unidade de valor nesse papiro. 75 Na parede norte da TT 52, veremos que partes do boi são ofertadas a Nakht e Tawi, logo abaixo do que seria a representação do Ritual de Abertura de Boca. 174 Figura 3.7: Detalhe da tumba de Pedamenopet, TT 33. Fonte: adaptado de Dümichen (1885, Pr. VII). Por fim, temos os servos que estão dispostos na extrema esquerda da cena, divididos nos três registros. Os alimentos como uvas, pães e figos levados são referêntes à oferta para a mesa de oferendas, um motivo comum, conforme supracitado. Os papiros presentes, que referenciam os hieróglifos M15 ( ) e M16 ( ), simbolizam a vida e prosperidade nessas oferendas. O khepesh, do hieróglifo F 24 ( ), como explicamos acima, possui um significado associado ao poder conferido nessa oferta. É interessante destacar aqui os patos que aparecem no terceiro registro, uma vez que eles possuem uma semelhança no código visual com os inimigos do rei sendo massacrados. Por isso, Wilkinson (1992, p. 95) compreende que os patos nessas cenas possuem dois significados distintos (mas que se complementam): o de supressão do mal (e, portanto, a manutenção da ordem) e o da fertilidade e renascimento (por causa, provavelmente, da manutenção da ordem). Os antílopes que aparecem nos três registros nos evocam uma série de problemáticas. No primeiro e no terceiro, tratam-se de um Oryx dammah ou Oryx beisa, por causa do tipo do rabo e da barriga76, que, de acordo com Åsa Strandberg (2009, p. 12) eram chamados no Egito antigo de mA HD (“vendo branco”). Esse tipo de órix aparece no Capítulo 112 do LDM, que trata sobre a reconstrução do olho de Hórus por Rê: [...] Aconteceu que Rê disse a Hórus: “Deixe-me ver seu olho já que isso aconteceu com ele”. Ele olhou para ele e disse: “Olhe para aquele ponto preto com a mão 76 A pintura da parede não foi finalizada, faltando alguns detalhes perceptíveis. Por este fator, não podemos considerar a coloração, mesmo que branca, como um fator argumentativo. 175 cobrindo o olho que está lá”. Hórus olhou para aquele ponto e disse: “Eis que estou vendo completamente branco”. E foi assim que o órix surgiu (FAULKNER, 2015, p. 128)77. Dessa forma, compreendemos um complexo sistema de crenças existentes em apenas um signo. No segundo registro temos a Gazella dorcas, que, de acordo com Strandberg (2009, p. 9), é a mais comum na arte egípcia. No entanto, Strandberg (2009, p. 101-104) argumenta que existia, nessas cenas, uma referência com a caça no deserto e, se presente esse tipo de gazela em uma cena de oferendas funerárias, seria um indicativo de alto status social do dono da tumba78. Hermann Junker (1938, p. 69) nos mostra que essas gazelas eram, comumente, guiadas pelos chifres, de modo que, com esse argumento, Jacques Vandier (1969, p. 187-190) defende que essas gazelas aparecem na iconografia como animais domésticos quando jovens para, depois do período de engorda, serem sacrificadas nessas cenas de oferendas79. A primeira aparição de oferendas funerárias, de acordo com Assmann (2000, p. 81), fora de motivos iconográficos, nas tumbas da V Dinastia. Este autor defende que a função de uma oferenda é dada já no Texto das Pirâmides, na Fórmula 373. Há uma separação desse texto em quatro partes. Em um primeiro momento, o morto se prepara e estabelece um contato, em seguida, apresenta as oferendas, que serão interpretadas em sua sacralidade no terceiro momento e, por fim, serão postas em favor desse morto (ASSMANN, 2000, p. 82). A fórmula em questão é a seguinte: Oho, o que está fazendo? Oho, o que está fazendo? Levante-se, Ó Rei; receber sua cabeça, coletar seus ossos, reunir seus membros, jogar fora a terra de sua carne, receber seu pão que não cresce humorado e sua cerveja que não cresce azedo, e ficar nas portas que mantêm fora os plebeus. Hnty-mnwt.f sai até você e agarra sua mão, ele te leva para o céu, para seu pai Geb. Ele está alegre em conhecê-lo, ele coloca as mãos em você, ele te beija e te acaricia, ele te coloca na cabeça dos espíritos, as Estrelas. Aqueles cujos assentos estão escondidos te adoram, os Grandes cuidam de você, os Observadores esperam por você. A cevada é 77 No original: [...] It so happened that Re said to Horus: “Let me see your eye since this has happened to it”. He looked at it and said: “Look at that black stroke with your hand covering up the sound eye which is there”. Horus looked at that stroke and said: “Behold, I am seeing it as altogether white”. And that is how the oryx came into being (FAULKNER, 2015, p. 128). 78 Temos, como exemplo do período de Nakht, Menna (TT 69) e Nebamun (TT E2), que possuem, em cenas de oferendas, a Gazella dorcas. 79 Essas cenas de sacrifícios possuem semelhanças com o corte da pata dianteira do boi, como vimos nas Figuras 46 e 47, mas, de acordo com Vandier (1969, p. 189), são mais raras. 176 relada para você, o trigo é colhido para você, e isso é feito em seus festivais mensais, oferenda disso é feita em seus festivais semestrais, sendo o que foi ordenado a ser feito por você por seu pai Geb. Levante-se, Ó Rei, pois você não morreu! (FAULKNER, 2007, p. 123-124)80. Assmann (2003b) defende que a adoração do morto (não pertencente à realeza) aos deuses é um tema que está totalmente ausente da decoração das tumbas de particulares dos Reinos Antigo e do Médio, sendo inédito no Reino Novo. Isso pode ser resultado da aproximação do faraó com os sacerdotes de Âmon para a retomada do poder dos egípcios da XVII Dinastia de seu território durante o Segundo Período Intermediário. Assmann (2003b) indica que, nas tumbas pré- amarnianas, a localização da adoração do morto aos deuses está restrita à parte acima das portas das tumbas, que pode também incluir alguma porta-falsa, como o objetivo para o qual a procissão é dirigida. Ao observarmos apenas a iconografia e compreendendo-a no espaço, vemos que existe um esquema pragmático da leitura dessa cena, obedecendo a mesma sequência que Assmann (2000, p. 82) comenta: um contato estabelecido pelo morto, as oferendas apresentadas, interpretadas no nascer do sol, ausente na iconografia e inserida no espaço, e, depois, o morto que as recebe. Para construirmos uma ordem de leitura, podemos nos basear no artigo de Tefnin (1993) sobre a leitura da imagem a partir da ótica egípcia e da atualização dessa visão, a partir da perspectiva de Angenot (1996) sobre a vetorialidade das imagens em tumbas privadas no Reino Novo. Na Figura 3.8, vemos a vetorialidade da cena, na qual temos como motivoiconográfico principal o casal, em seguida o que está no seu campo de visão, a esteira central e, em seguida, a terceira esteira, por ser o segundo maior componente e, depois, a primeira. Na parede da esquerda ainda temos os três registros de servos com as oferendas. 80 No original: “Oho! Oho! Raise yourself, O King; receive your head, collect your bones, gather your limbs together, throw off the earth from your flesh, receive your bread which does not grow moodily and your beer which does not grow sour, and stand at the doors which keep out the plebs. Hnty-mnwt.f comes out to you and grasps your hand, he takes you to the sky, to your father Geb. He is joyful at meeting you, he sets his hands on you, he kisses you and caresses you, he sets you at the head of the spirits, the Imperishable Stars. Those whose seats are hidden worship you, the Great Ones care for you, the Watchers wait upon you. Barley is threshed for you, emmer is reaped for you, and offering thereof is made at your monthly festivals, offering thereof is made at your half-monthly festivals, being what was commanded to be done for you by your father Geb. Rise up, O King, for you have not died!” (FAULKNER, 2007, p. 123-124). 177 Figura 3.8: Vetorialidade da cena de oferendas funerárias da TT 52. Fonte: esquema elaborado por Pedro Hugo Canto Núñez (2020). Sendo assim, compreendemos que existe um sistema cognitivo exposto nessa cena a partir da junção da iconografia com o espaço ao qual ela está circunscrita. Nessa cena, Nakht realiza uma cena de adoração com sua esposa apoiando, acompanhando o ritual a partir de seus instrumentos. Pelo ato da musicalidade, podemos afirmar que Tawi também possui um papel importante nessa imagem. Aquele que recebe a oferenda e adoração está ausente da imagem. No entanto, nessa ausência podemos constar que existe um espaço físico que divide as duas paredes. Esse espaço é, justamente, a porta de saída/entrada da tumba, para o Leste. Por uma questão natural, o sol, ao nascer no leste, ilumina o interior da TT 52. Nesse momento, o ausente se faz presente. Portanto, o deus solar existe na cena a partir da organização espacial. É interessante pensar no sistema cognitivo induzido para essa produção. Vimos no Esquema 4 (Cf. p. 105) que, diante de um problema X e Y, o cérebro humano os processa e retorna ao mundo um produto E. Em nosso caso, usando dessa lógica de Malafouris (2013), compreendemos melhor como os antigos egípcios engendraram essa cena de oferendas da TT 52, na qual os problemas seriam a organização espacial em conjunto com as crenças egípcias, deixando-nos a cena estudada aqui como o produto dessa fórmula. Se pensarmos na recepção desse quadro e observarmos o Esquema 1 (Cf. p. 16 do Volume I), compreendemos que aquele egípcio visitante da tumba iria compreender essa imagem a partir da sua visão de mundo, interpretando que por Nakht estar em uma posição de adoração e Tawi com o sistro e o menit, ambos estariam, então, em um ritual. Isso, 178 em uma visão de saída da tumba, indicaria que o sol, pelos seus raios, estaria recebendo essas oferendas do ritual. Dessa forma, o ambiente fora construído de modo que aqueles visitantes (elemento não-fixo) visualizasse os elementos fixos (as paredes) e os elementos semi-fixos (as imagens), interpretando-os dessa forma, baseando-se no complexo sistema de identificação visual que exploramos acima. Mesmo que não fosse feita a leitura detalhada e todo esse complexo sistema fosse posto em prática pelos descendentes de Nakht e Tawi, a ideia central era lida, a adoração e oferendas às divindades solares, de modo que essas fossem retornadas ao casal no Além, conforme a crença egípcia. 3. CENAS AGRÍCOLAS Por muito tempo, as cenas agrícolas que aparecem em tumbas de particulares (que são motivos iconográficos um tanto comuns) foram lidas como cenas do cotidiano que eram desejadas para o Além, como, por exemplo, nos textos de Davies (1911; 1913; 1915; 1917; 1975) e Cyril Aldred (1996). Em textos recentes podemos ver uma interpretação mais complexa que essa. Janice Kamrin (1999, p. 72), ao estudar a tumba de Khnumhotep, compreende que essas imagens indicam que o morto teria, magicamente, suprimento de grão para a eternidade em suas refeições e oferendas. É interessante ainda uma sutil diferença que apresentam Dimitri Laboury (1998, p. 131- 148) e Jan Assmann (2003b, p. 51) quanto ao entendimento dessas cenas; enquanto o primeiro argumenta que o significado da ação representada existe como um ponto de contato entre o mundo terreno e o Além, no qual o observador existe dentro da composição em prol do morto, o segundo interpreta que a decoração da tumba serve como um diálogo entre o morto e o vivo a partir da comemoração da identidade do morto e a preservação dos seus títulos e status sociais. A partir disso, torna-se atraente a defesa de Melinda Hartwig (2004, p. 50), que argumenta a análise dessas cenas por meio de uma compreensão da função da tumba, como um veículo de regeneração do morto no Além e um monumento comemorativo, combinando as perspectivas de Laboury (1998) e Assmann (2003b). 179 Figura 3.9: Desenho da cena agrícola na TT 52. Fonte: desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020), com base em Davies (1917, Pr. XVIII). Na Figura 3.2 podemos ver, na parede Sudeste, a cena agrícola da TT 52 em nossa projeção tridimensional. Na Figura 3.9 temos o desenho dessa cena. São, portanto, três registros com 33 personagens humanos ao todo. Em uma leitura de cima pra baixo, da esquerda para a direita, temos, no primeiro registro, 12 personagens, sendo um Nakht, que está sentado à direita da cena, sob um recinto, e os demais estão organizados em dois sub-registros: o primeiro, com 8 personagens debulhando grãos e o segundo com 3 separando grãos. O segundo registro apresenta 8 personagens, dos quais 2 estão colhendo linho, 3 estão arrumando o trigo em uma cesta, e os outros 3 estão colhendo o trigo. No último registro, Nakht aparece sentado de forma semelhante ao primeiro registro, também à direita da cena. À esquerda da cena, vemos um personagem bebendo algo de um odre sob uma árvore, enquanto os outros 11 personagens estão trabalhando no campo em diversas funções: a lavra, a gradagem, a semeadura e o pisoteamento do solo. 180 Essa cena é, tipicamente, uma cena agrícola. Como defende Kamrin (1999, p. 5), a área agrícola no Egito antigo estendia-se até o deserto (conforme a Figura 3.10), e, por isso, essa questão alimentícia estava no centro das questões dessa sociedade. Os egípcios dividiam seu ano de 360 dias em três, que, comparando com o nosso moderno, como vemos na Figura 3.11, apresenta semelhanças. Durante o Akhet, as terras ficavam encharcadas de água e do adubo fértil carregado pelo Nilo, categorizando-se como um período de trabalho mais intenso e um maior controle do solo para o plantio. A estação seguinte é a Peret, que seria o preparo da terra, utilizando arados e enxadas para quebrar o solo, um trabalho que, por vezes, podia ser desempenhado com a ajuda de animais bovinos. Após esse preparo, as sementes eram enterradas, trabalho que também podia ser feito com a ajuda de animais. A última estação é a Shemu, a colheita, quando todos os sinais da água da inundação desapareciam. Nesse sentido, temos o Esquema 8, adaptado do estudo de Mary Anne Murray (2000), que analisa a produção de cereais em evidências artísticas, textuais, arqueológicas, arqueobotânicas, etnográficas e ecológicas. Figura 3.10: Visão esquemática da paisagem do vale do Nilo. Fonte: adaptado de Kamrin (1999, p. 5). 181 Figura 3.11: As estações egípcias comparadas com o calendário ocidental moderno. Fonte: adaptado de Kamrin (1999, p. 6). 182 Esquema 8: Fluxograma de produção de cereais pré-armazenamento e estágios de processamento. Fonte: adaptado de Murray (2009a,p. 506). Lavra cria um solo fino para semear Gradagem nivela o solo, quebra torrões de sujeira Semeadura de Transmissão dispersa sementes no solo Pisoteamento ou Arado incorpora sementes no solo Capinagem remove ervas daninhas do grão Colheita remove as sementes do campo Corte baixo na palha Debulhamento separa os espinhos da palha Pisoteamento Peneirar remove sementes leves de ervas daninhas e palha leve Peneiramento grosso a médio remove sementes grandes de ervas daninhas, cabeças de sementes, nós e bases de colmo de palha e espigas não debulhadas Estoque de grãos Enxada Arado Ancinho Feixe de madeira Malho Enxada Desenraizamento Corte apenas nas espigas Bater Passar o trenó 183 A partir desse fluxograma de Murray, podemos compreender melhor a cena da TT 52. Seguindo, portanto, uma lógica cronológica necessária para esses processos, interpretamos que, em uma rápida leitura, a ordem de compreensão dessa cena seria de baixo para cima. Temos nesse primeiro registro (o de baixo), portanto, três homens manuseando enxadas, preparando o solo (etapa: lavra). Na Figura 3.12 temos um destaque desses três personagens. Se prestarmos atenção no homem da esquerda, vemos ele trabalhando em um espaço que, no desenho colorido, tem uma distinção de três cores, uma parte é azul, representando a água, outra é um marrom claro, indicando o solo mexido, e outro um marrom mais escuro, indicando tanto a diferença dos registros quanto o espaço do solo que ele se encontra. O que se torna interessante nesse caso é que dois desses homens (os da esquerda) tem uma aparência jovial, enquanto o outro homem, por ser calvo, parece mais velho. Além disso, a enxada utilizada por eles apresenta uma diferença: enquanto os de aparência jovial possuem uma enxada simples, que representa o signo hieroglífico U8 ( ), o calvo fora representado com um mais complexo, do hieróglifo U6 ( ). Os significados dos hieróglifos são os mesmos, “enxada”, “cultivar”, mas essa distinção tecnológica, junto com a nossa interpretação da idade, pode nos determinar que o homem da esquerda possuía uma maior experiência por ser mais velho. Figura 3.12: Detalhe dos homens trabalhado com enxadas na TT 52, cena agrícola. Fonte: desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020), com base em Davies (1917, Pr. XVIII). 184 No trabalho de gradagem, vemos o trabalho do homem careca do sub-registro superior, que está com um machado (hieróglifo T7a - ) tirando uma árvore e, portanto, limpando o solo para a semeadura. Na semeadura, temos três personagens que efetuam esse trabalho, detalhados na Figura 3.13. Todos os três parecem estar próximos a trabalhadores que efetuam outras tarefas que complementam com as suas. O primeiro está no sub-registro superior, próximo àqueles dois trabalhadores com enxada simples que comentamos anteriormente. Ele está vestido com um saiote e possui cabelo. Ele segura a cesta de sementes com a mão esquerda e as joga no solo com a mão direita, depois do trabalho com a enxada dos outros dois trabalhadores. O segundo está com o mesmo tipo de saiote que o anterior e na mesma posição, mas é careca. Enquanto o terceiro, além de ser careca, não possui vestimenta alguma. Este último joga as sementes ao solo com a mão direita mais próxima dele se compararmos com os outros dois. Ele está logo após os trabalhadores que utilizam dos animais para arar a terra. Nesse caso, a falta de cabelo no segundo camponês pode não ser um fator de distinção social, visto que todos são trabalhadores em uma cena agrícola (se fosse em uma cena de banquete, por exemplo, na qual é composta por membros da elite, teríamos que distinguí-los). O fator de diferença aqui está no terceiro personagem. Existem muitos trabalhos que comentam sobre representações de crianças e seus simbolismos (DODSON, 1990; FISHER, 2001; ROBINS, 1983; ROBINS, 1987; ROMANO, 1991; XEKALAKI, 2007), no entanto, a maioria é voltado para príncipes e princesas e suas relações para com a realeza desde a infância. Entretanto, e aqui Schäfer (2002, p. 147) nos é útil, compreendemos que a maioria das representações de pessoas nuas são, de fato, crianças. É provável que nosso terceiro personagem seja uma criança e que vemos, no conjunto ao qual possivelmente ele pertence, três estágios da vida de camponeses, quando criança, adulto e velho (respectivamente), conforme veremos na etapa seguinte. 185 Figura 3.13: Detalhe dos homens semeando na TT 52, cena agrícola. Fonte: desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020), com base em Davies (1917, Pr. XVIII). Possuímos dois tipos do trabalho de incorporar as sementes no solo: o pisoteamento e o arado. Para o pisoteamento, Figura 3.14, temos dois homens representados da mesma forma (mesmo tipo de cabelo, vestimenta e intrumento de trabalho) e pertencem ao conjunto do homem careca da etapa anterior. O que torna interessante aqui é o fato do grupo de artesãos que pintaram essa cena fizeram uma distinção do solo, assim como o trabalho com a enxada que comentamos anteriormente. Dessa forma, os dois trabalhadores incorporam as sementes jogadas pelo homem careca com o auxílio de um instrumento semelhante a um martelo. Murray (2009a, p. 519) afirma, com base nos estudos de A. Lloyd (1976, p. 75-76) e na pesquisa de Y. Harpur (1987) sobre a iconografia de tumbas do Reino Antigo, que existia uma diferença de aplicabilidade dessas duas técnicas baseada no nível do solo. De acordo com Lloyd (1976, p. 77), o solo do Delta, desde o Reino Antigo até o Período Tardio (século V A.E.C.), era bastante irrigado e extenso, de modo que o uso da técnica do pisoteamento não era eficaz, sendo necessário o uso de animais para arar a terra. Isso pode ser confirmado por Harpur (1987, p. 163), quando ele argumenta que as representações de camponeses pisoteando os campos agrícolas nas tumbas são escassos no Baixo Egito, sendo mais comum em tumbas do Alto Egito. Para Murray (2009a, p. 519), enquanto o Baixo Egito utiliza muito trabalho animal para incorporar as sementes no solo, os camponeses do Alto Egito utilizam do pisoteamento para esse fim. 186 Figura 3.14: Detalhe dos homens incorporando sementes ao solo por pisoteamento na TT 52. Fonte: desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020), com base em Davies (1917, Pr. XVIII). Apesar dessa distinção, o trabalho com animais também pode ser visto na TT 52. Na Figura 3.15 podemos ver que os quatro bois aparecem como animais de trabalho, limpando o solo com um arado, hieróglifo U13 ( ), próprio para esses animais, e guiados por dois homens, ambos com, pelo menos uma mão no instrumento. A criança que mencionamos na etapa anterior aparece na extremidade da esquerda. Aqui percebemos algo semelhante ao caso do trabalho com a enxada: um homem calvo e, ainda, corcunda. Esse homem, por essas duas características, pode, de fato, ser mais velho quando comparado ao outro. No entanto, o homem da esquerda possui um açoite, hieróglifo S45 ( ). O interessante sobre esse instrumento é que ele possui dois significados divergentes. De acordo com Alan Gardiner (1993, p. 93), esse açoite, chamado de nxAxA, era, provavelmente, um instrumento usado por pastores. No entanto, podemos encontrar textos que defendem um caráter mais ritualístico desse objeto, como o de Percy Newberry (1929), que argumenta uma existência do nxAxA em iconografias divinas e em sacerdotes nos festivais. É bem provável que aqui seja pressuposto o seu teor prático, bater no animal, pois o personagem que segura esse objeto está representado em uma cena agrícola e não recebe um destaque na imagem. 187 Figura 3.15: Detalhe do uso de animais para incorporar sementes ao solo arando na TT 52. Fonte: desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020), com base em Davies (1917, Pr. XVIII). No segundo registro da cena, detalhado naFigura 3.16, seguindo a ordem de baixo para cima, temos a continuidade dos processos do fluxograma. Nesse registro, temos uma ordem cronológica seguindo da direita para a esquerda, para o trabalho da colheita. Primeiro, três homens, dois carecas e um com cabelo, fazem o corte no trigo com o auxílio de uma foice. Esse corte fora apenas nas espigas, conforme vemos na sequência, quando aparece uma mulher de saiote colhendo espigas e colocando em cestas e dois homens com as espigas em uma cesta. O grupo de artesãos representou o tipo de corte feito pelos homens com as foices por trás dos dois homens fechando o cesto. As duas mulheres na extrema esquerda são, de certa forma, emblemáticas. Laboury (2017), ao nos demonstrar como diversas cenas agrícolas que aparecem no Novo Reino se assemelham, indica que mulheres nessas cenas são comuns. Por trás delas está representado uma parte de água (pode ser que elas estivessem dentro da própria água), talvez o rio Nilo. As duas trabalham na colheita do linho, um material de difícil artesanato e, portanto, de alto nível social (HEGEMAN, 2006, p. 14). Sendo assim, esse material também estaria disponível para Nakht e Tawi no Além. 188 Figura 3.16: Detalhe do segundo registro da cena agrícola da TT 52. Fonte desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020), com base em Davies (1917, Pr. XVIII). Figura 3.17: Destaque do terceiro registro da cena agrícola da TT 52. Fonte: desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020), com base em Davies (1917, Pr. XVIII). 189 No terceiro registro, Figura 3.17, vemos dois homens separando os grãos no primeiro sub- registro (de baixo para cima) e um supervisionando, enquanto, no segundo sub-registro, vemos oito personagens realizando o debulhamento desses grãos com um instrumento que, conforme vemos na Figura 3.18, temos um exemplar bem preservado no Museu Britânico. Conforme supracitamos, no primeiro sub-registro, o homem que está em posição de ordem, que é assimilado ao hieróglifo A26 ( ), possui um destaque de status social dos outros dois. Além disso, o grupo de artesãos desenhou os grãos em um determinativo espacial associado ao hieróglifo N26 ( ), que, de acordo com Gardiner (1993, p. 68), representa uma montanha coberta de areia além das áreas irrigadas. Talvez, esse artifício fosse apenas para indicar a separação dos grãos em duas partes. No sub-registro superior, os camponeses possuem uma touca branca. O que torna interessante essa cena do debulhamento é a descrição espacial que o grupo de artesãos designou nesse conjunto. Existe uma diferença de coloração (amarronzada) entre esse conjunto e o resto da parede (branca), o que pode nos indicar que seria um local fechado (talvez o celeiro?). Além disso, entre os trabalhadores, vemos dois símbolos que parecem não ser associados à cena, o hieróglifo N12 ( ) e o W79 ( ). Provavelmente, o vaso poderia servir como recipiente de alguns grãos. O N12, no entanto, é o hieróglifo que representa a lua crescente. Sendo assim, temos uma indicação espacial (eles estariam em um recinto fechado) e temporal (seria em uma noite de lua crescente). A justificativa para tal escolha iconográfica não é clara, no entanto, é provável que seja uma referência à divindade lunar, Khonsu ou Renenutet. Khonsu, uma divindade que faz parte da tríade tebana, possui, como coroa, uma representação da lua cheia em cima de uma lua crescente (WILKINSON, 2017, p. 114), que, conforme demonstra Helen Jacquet-Gordon (2003, p. 8-9) em sua tese, ao analisar os grafites do templo de Khonsu, faz parte de uma iconografia comum entre os habitantes de Tebas que tinham acesso ao templo. De acordo com o levantamento de Jacquet- Gordon (2003, p. 19; 31), o motivo iconográfico de uma lua crescente aparece quatro vezes entre os grafites, duas desenhado conforme a iconografia do deus, uma apenas o hieróglifo N12 e outra acompanhada de um boi. A autora argumenta que a aparição e a disseminação da imagem do deus pode ser devido a algum festival que a sua estátua aparecera (JACQUET-GORDON, 2003, p. 19). Quanto a Renenutet, no texto de J. Broekhuis (1971) podemos encontrar algumas respostas. A deusa Renenutet é, comumente, associada à plantação e, também, à maternidade, aparecendo nos TP como aquela que acompanhava o egípcio desde seu nascimento até a sua morte (WILKINSON, 190 2017, p. 225-226). Broekhuis (1971) defende que o seu aspecto materno é encontrado mais nos TP, enquanto sua conexão com a colheita é presente no Reino Novo. Provavelmente, a deusa estaria presente na cena agrícola da TT 52 por seu simbolismo e associação com esse motivo iconográfico. Conforme demonstra Broekhuis (1971, p. 25), em uma estela encontrada em Tebas na XIX Dinastia, a deusa aparece em conjunto com uma divindade lunar e, de acordo com as listas dos festivais que a deusa aparece, entre as temporalidades de Amenhotep I e Amenhotep III, existem grandes oferendas de grãos feitas à deusa nesses festivais, que ocorreram em períodos noturnos no final da Shemu, celebrando o período fértil e como provisão para o novo ciclo (BROEKHNUIS, 1971, p. 63). Dessa forma, tanto Khonsu quanto Renenutet podem ser inseridas como justificativas para os muitos significados que a aparição do N12 possui nessa cena. Entretanto, por ser presente grandes festivais no período de Amenhotep I e Amenhotep III e, portanto, o período em que Nakht vivera, podemos inferir que seria, de fato, uma referência à Renenutet, esperando que o ciclo agrícola representado na TT 52 seja repetido no Além, de modo que Nakht e Tawi possuam esses mantimentos eternamente. Figura 3.18: Instrumento utilizado para debulhar o grão no Egito Antigo, de madeira. Fonte: Museu Britânico (EA 18206). 191 Além do motivo iconográfico central da cena agrícola, podemos destacar dois personagens que não comentamos: Nakht em seu pavilhão (que aparece como destaque em dois registros) e um homem bebendo água de um odre no primeiro registro da cena. Nakht aparece da mesma forma em ambas as representações, sentado em uma cadeira, como no hieróglifo A50 ( ), mas com a forma de A21 ( ), com um bastão e um pano nas mãos. Ambas as formas hieroglíficas indicam que essa pessoa é algum membro da elite, honrosa. Além disso, Nakht está sob uma estrutura que é assimilada ao O22 ( ), um pavilhão aberto apoiado sobre um poste. O formato da coluna é uma junção de um papiro com lótus e a coloração é esverdeada, de modo que podemos supor que seja um simbolismo para garantir vida e prosperidade para Nakht no Além. Quanto ao homem bebendo água, esta parece ser uma cena do cotidiano comum, na qual um trabalhador está descansando, conforme aparece, por exemplo, nas imagens da tumba de Nebamun (TT E2), Figura 3.19. Entretanto, se inserirmos uma noção espacial de onde essa imagem está inserida, podemos interpretar de uma outra forma. Uma árvore, hieróglifo M1 ( ), assim como a água, N35 ( ), possuem uma intrínseca associação com “vida”. Conforme vimos na primeira cena aqui trabalhada, a extremidade da esquerda dessa cena finda na porta da tumba, de modo que, ao nascer, o sol ilumina esse lado e recebe as oferendas que são feitas para ele. O homem bebendo água sob a árvore poderia, portanto, possuir uma simbologia mais complexa que apenas uma cena do cotidiano, sendo, assim, uma forma de dizer que a vida sempre será concedida a Nakht. 192 Figura 3.19: Detalhe da cena agrícola da tumba de Nebamun (TT E2). Fonte: Museu Britânico (EA 37982) Por fim, na Figura 3.20 vemos a vetorialidade da cena agrícola da TT 52. Seguimos a defesa de Angenot (1996), por seguir uma ordem cronológica quando possível, pois, teóricamente, seria a sequência egípcia para a estrutura da imagem. Na cena aqui trabalhada, vemos uma organização de baixo para cima, na qual reconstruimos de acordo com o fluxograma proposto por Murray (2009a, p. 506).193 Figura 3.20: Vetorialidade da cena agrícola da TT 52. Fonte: esquema elaborado por Pedro Hugo Canto Núñez (2020). Ainda não entramos, entretanto, na problemática central dessa cena. Seria ela apenas uma cena cotidiana? Ela teria alguma relação com o Além? A interpretação de Harwig (2004, p. 50) é a mais atraente entre as demais elencadas no início da análise dessa cena. Concordamos ainda que Kamrin (1999) apresenta argumentos que podem contribuir com a nossa pesquisa. Ao compreendermos que, assim como a cena das oferendas, o ato da inserção dessa cena agrícola no plano decorativo da TT 52 possui uma dupla característica de ofertar e receber, podemos engendrar uma perspectiva mais ampla e vincular, de fato, a ideia de que essa imagem serve tanto para o morto quanto para os vivos, uma ideia que concordamos com Molyneaux (1997). Como, então, inserir essa imagem em um sistema cognitivo desse período de Nakht? 194 Sabemos que o LDM pode aparecer tanto em papiro quanto em paredes de tumba, com uma significativa diferença que é, justamente, a revitalização das imagens pelos vivos quando no segundo suporte. Essa cena agrícola e a da parede noroeste aparecem com os motivos iconográficos próprios do que chamamos de Capítulo 110 do LDM. Na Figura 3.21 separamos três exemplares desse capítulo em papiros da XVIII Dinastia. Não nos compete analisar esses papiros, mas, sim, compará-los com a nossa imagem da TT 52. Conforme percebemos, trata-se de uma vinheta dividida em registros, no qual o morto trabalha em um campo e, neste, apresenta um contato com o divino. O primeiro pertenceu a um Nakht que, assim como o Nakht da TT 52, vivera na mesma temporalidade e fora enterrado em Tebas. O segundo pertenceu a Nebseny, encontrado em uma tumba de Mênfis, que fora datado da temporalidade de Tutmés IV (mesma de Nakht). Quanto ao terceiro, pertenceu a Userhat, encontrado em Tebas e datado da mesma temporalidade que os outros dois. Não podemos concluir com apenas essa perspectiva um tanto superficial, no entanto, a visão de mundo quanto à crença no Além parece fazer parte de um mesmo sistema cognitivo que existe tanto no Alto (Tebas) quanto no Baixo Egito (Mênfis). Seja como for, nas três vinhetas vemos que esse espaço é bem delimitado por uma água que fecha o quadrado e, também, divide os registros. Essa água, nos papiros de Nakht e Userhat fora colorida de azul, enquanto no de Nebseny é preenchida com o hieróglifo que determina “água”, o N35 ( ). O morto realizando oferendas a divindades é comum aos três papiros, assim como uma imagem de um barco de remos com uma escada (que representa uma ligação entre o mundo terreno e o Além), o morto sob um barco e trabalhando em campos agrícolas. Existem, portanto, nessas vinhetas do Capítulo 110, motivos iconográficos em comum com a cena agrícola da TT 52 e, também, da parede noroeste da tumba, de modo que, na Figura 3.22, vemos os seus destaques. 195 Figura 3.21: Vinhetas do Capítulo 110 do LDM nos papiros de Nakht, Nebseny e Userhat. Fonte: Museu Britânico (Nakht - BM EA 10471,13) (Nebseny BM EA 9900,18) (Userhat BM EA 10009,3) 196 Figura 3.22: Comparação dos motivos iconográficos do Capítulo 110 do LDM com as paredes sudeste e noroeste da TT 52. Fonte: esquema elaborado por Pedro Hugo Canto Núñez (2020) com as imagens da TT 52 e dos papiros do Museu Britânico (EA 10471,13; EA 9900,18; EA 10009,3). Não trabalharemos com o texto desse capítulo, sendo isso algo examinado no Capítulo 4. No entanto, alguns apontamentos devem ser feitos aqui para que possamos prosseguir com nossa análise. O espaço que está representado é referente ao Campo de Juncos e Campo de Oferendas. Os dois campos, de acordo com Abas Bayoumi (1940), existiam na crença egípcia desde os TP, algo que já comentamos no Capítulo 2. No LDM, a compreensão espacial desses Campos não é tão clara quanto nos TP, talvez pelo próprio espaço disponível para a escrita no papiro ser menor que o espaço da parede (BAYOUMI, 1940, p. 70). Bayoumi (1940, p. 96) argumenta que, nos TP, o Campo de Juncos tinha um caráter de purificar o faraó, algo que foi ressignificado no LDM, de modo que esse espaço seria transformado em um lugar de trabalho no campo. Em contrapartida, o Campo de Oferendas seria, no LDM, um local de residência e regozijo, ao mesmo tempo que serviria, também, para a agricultura e, no Período Tardio, para purificação (BAYOUMI, 1940, p. 96-97). Dessa forma, o morto no LDM trabalha e reside tanto no Campo de Juncos quanto no 197 Campo de Oferendas (BAYOUMI, 1940, p. 96). Sendo assim, veremos a seguir a parede noroeste, de modo que possamos compreender melhor esse espaço no Além. 4. CAÇA E PESCA NO PÂNTANO, VINICULTURA E CAÇA DE PÁSSAROS Como se fosse uma sequência da cena anterior, a parede noroeste conta com três motivos iconográficos que possuem referência ao Campo de Oferendas e ao Campo de Juncos. Assim como a cena anterior, diferentes perspectivas foram formuladas sobre a cena da caça e pesca no pântano. Por exemplo, Phillipe Derchain (1975, p. 67-68), ao dissertar sobre cenas de casais (fazendo uso de perucas), afirma que existe uma certa sexualidade expressa na cena de caça e pesca no pântano, algo que seria defendido, também, por Lise Manniche (1999, p. 104-106) ao escrever sobre a lótus e a sua simbologia no Egito Antigo. Por outro lado, Laboury (1997, p. 73) e Angenot (2012, p. 57) interpretam que nessas cenas os pântanos e os peixes são considerados inimigos que o morto deve enfrentar no Além. Além deles, Claudio Barocas (1990, p. 9) argumenta, que, nessa cena, o morto se provava digno de assegurar a alimentação de sua família e, portanto, digno de adoração daqueles que vissem essa imagem. Talvez essa cena apresente, de certa forma, um elemento que justifique e confirme cada visão aqui elencada e, mesmo que sejam, aparentemente, três perspectivas diferentes, todas podem ser complementares. 198 Figura 3.23: Parede noroeste da TT 52. Fonte: desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020), com base em Davies (1917, Pr. XXII). Na Figura 3.23 vemos o desenho da cena completa na TT 5281. A cena toda é composta por 33 personagens, entre homens e mulheres, e é separada em dois grandes registros. No primeiro registro estão 14 dos personagens. Em uma leitura da direita para a esquerda temos uma cena espelhada, na qual Nakht aparece maior que os demais personagens, com uma criança a sua frente (mulher para a representação da direita e homem para a da esquerda), uma mulher abaixo (em ambas as representações) e Tawi atrás (também em ambas as imagens). Três servos parecem acompanhar a família, um à direita e dois à esquerda. Um outro servo fora representado colocando alimentos em uma mesa de oferendas que é destinada para as figuras de Nakht e Tawi, que aparecem sentado em um sofá à esquerda da cena. No segundo registro, Nakht e Tawi foram 81 Para a imagem colorida, Cf. p. 24 do Volume II. 199 representados de forma semelhante ao primeiro registro, e os outros 17 personagens aparecem à direita, em dois sub-registros: no primeiro, da direita para a esquerda, temos 2 colhendo uvas, 4 pisoteando-as enquanto 1 colhe o líquido e o armazena em ânforas, e 2 colocando oferendas na mesa diante do casal; no segundo, da direita para a esquerda, temos 4 caçando aves em uma rede, 1 depenando e outro quebrando o pescoço das aves, e 2 colocando oferendas na mesa diante do casal. Começaremos pelos observadores dos dois registros, que parecem estar desconectados da cena. Esse conjunto está associado ao signo hieroglífico A502 ( ), no qual o casal aparece sentado em um sofá com pernas representando uma pata de leão. Se virmos a explicação de Gardiner (1993, p. 19) sobre o hieróglifo A50 ( ), que representa um homem sentado (sem a esposa) em uma cadeira, vemos que ele determina alguém que é membroda elite. Além disso, Gardiner (1993, p. 19-20) afirma que, na XVIII Dinastia, é comum a substituição desse signo pelo A51 ( ), que funciona como determinativo de jmyw-HAt, que significa “anciões” ou “aqueles de tempos passados”, indicando que já estariam mortos. Além dele, Pierre Grandet e Bernard Mathieu (2003, p. 673) comentam que o determinativo A50 pode, de fato, apresentar como variante o A51, além de determinar um “morto venerável”. De modo semelhante à cena agrícola, porém com a presença de Tawi, eles estão dispostos de modo a observar o que está diante deles e receber, por meio das mesas de oferendas diante deles, aquilo que está sendo produzido. Em ambas as representações do casal, Nakht dispõe de uma flor de lótus voltada para eles. Conforme vimos, a lótus simboliza vida conferida para alguém, geralmente para o morto. Poderíamos, então, supor que, tanto nessa cena quanto na anterior, Nakht e Tawi estão presentes como aqueles mortos que estão recebendo de forma ativa essas oferendas, explicitando uma ligação do mundo terreno com o Além, uma vez que toda a parede são cenas do LDM e, de certo modo, são espaços do Além representados no terreno que necessitam desse Egito terreno para continuarem a existir na Duat. Dessa forma, eles não estão desconectados das cenas da parede, mas, sim, são os principais participantes delas, aqueles que observam e recebem magicamente essas provisões representadas no terreno para o Além. A cena de caça e pesca no pântano é repleta de signos que possuem muitos significados e apontam toda uma profundidade das crenças egípcias, por isso, separamos os personagens humanos na Figura 3.24. A começar pelo maior e, portanto, mais importante personagem da cena, Nakht. A 200 representação de Nakht na esquerda aparece como no hieróglifo A59 ( ), com um braço levantado e um bastão na mão, o mesmo signo das cenas do faraó massacrando seus inimigos (portando uma maça na mão e os cabelos dos inimigos agrupados na outra). Em sua mão esquerda ele aparece segurando um pássaro pelas patas, indicando o seu papel de caçador. O Nakht da direita aparece na mesma pose, contudo, se fizermos uma comparação com outras tumbas, como na tumba de Menna (TT 69), que é da mesma temporalidade da TT 52, vemos que o Menna da direita está com uma vara fincada no peixe entre os barcos, Figura 3.25. Com isso, podemos pressupor que Nakht estaria efetuando a mesma ação, pois, teoricamente, a intenção da cena seria a mesma: matar o peixe. Figura 3.24: Participantes humanos da cena de caça e pesca da TT 52. Fonte: desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020), com base em Davies (1917, Pr. XXII). 201 Figura 3.25: Cena de caça e pesca no pântano da tumba de Menna (TT 69). Fonte: disponível em https://www.osirisnet.net/popupImage.php?img=/tombes/nobles/menna69/photo/menna_c2_nort hwall_marsh_01_bg.jpg&lang=en&sw=1920&sh=1080. Acesso em: 28 fev. 2021. De acordo com Douglas J. Brewer e Renée F. Friedman (1989, p. 21-48), existiam dez maneiras de pesca de peixes no Egito Antigo, indicadas tanto nos resquícios arqueológicos quanto na iconografia. Os autores (1989, p. 22-23) argumentam que os arpões, como o que Menna possui em sua representação da direita da Figura 3.24, e que Nakht indicaria e que, talvez, não foi desenhado, funcionam mais como um objeto simbólico do que, de fato, uma pescaria voltada para alimentação (sendo essa a função de redes de pescas, por exemplo). Esses arpões podem ser vistos em cenas de caça a crocodilos e hipopótamos, que, conforme vemos desde a IV Dinastia na tumba de Mereruka (BREWER; FRIEDMAN, 1989), por exemplo, até no período romano, com imagens de Hórus arpoando o deus Seth como crocodilo (VASQUES, 2020, p. 43), indicando um complexo sistema cognitivo que perdura por mais de dois mil anos. Mas então que peixes são esses e porque eles fazem parte desse motivo iconográfico? Se observarmos a tipologia dos peixes no detalhamento da imagem (Figura 3.26), percebemos que o peixe da esquerda pertence à espécie Lates niloticus, um peixe que mede cerca de 40cm (BREWER; FRIEDMAN, 1989, p. 74). O peixe da direita, uma Tilapia galilaea, de acordo com as marcas na calda, pode medir cerca de 40 cm. O 202 primeiro era associado com o renascimento, assim como com a deusa Neith, que se transformou em um Lates para navegar nas águas primordiais de Nun, enquanto a Tilapia era associada com Háthor e representava a fertilidade e o renascimento por causa da sua característica de incubação bocal (HARTWIG, 2004, p. 105), na qual eles usam suas bochechas como abrigo para as ovas (BREWER; FRIEDMAN, 1989, p. 76). Por sua coloração avermelhada, a Tilapia era associada com divindades solares, como Háthor, e, como os antigos egípcios acreditavam em sua autoprodução, ela era comumente associada ao deus Atum (LÄ, p. 232-233). Figura 3.26: Detalhe dos peixes entre os barcos representados na parede noroeste da TT 52. Fonte: adaptado de Seidel e Shedid (1991, p. 58). 203 Dessa forma, Hartwig (2004, p. 105) argumenta que, ao ser representado arpoando esses dois peixes, o morto estaria tomando, de forma mágica, para si o ciclo de criação e renascimento implícito no simbolismo desses dois peixes, de modo a reconstituir isso no Além, de modo que os filhos do dono da tumba aparecerem em seus pés reafirma esse ciclo. A própria autora ainda continua sua análise desses motivos iconográficos utilizando como exemplo essa cena da TT 52, afirmando que o fato de o filho de Nakht segurar um bastão em formato de cobra (semelhante ao que Nakht porta) na representação da direita e a sua filha mais velha segurar uma flor de lótus em ambas as representações, são símbolos de criação e renascimento (HARTWIG, 2004, p. 105). Se observarmos na mão direita da Tawi da representação da direita, vemos um pequeno pato. Esse pato, aparentemente, significaria um animal doméstico, uma vez que faz parte de uma cena familiar e está junto à mulher, um conjunto iconográfico comum em cenas de banquetes, por exemplo. E, de fato, pode ser isso. Entretanto, se considerarmos a cena completa e a polivalência desse signo, devemos compreendê-lo como o hieróglifo G48A ( ), uma vez que a mão de Tawi está no formato de um ninho para o pato. Derivações desse signo aparecem em outras partes da parede, três na cena de caça e pesca, acima e entre os papiros, e outras quatro nas mesas de oferendas. De acordo com Wilkinson (1992, p. 97), o pato ou o ovo em um ninho simboliza o próprio começo dos tempos, a origem do mundo, e, portanto, contribuindo para os simbolismos elucidados anteriormente, de regeneração no Além. Duas imagens, na proa dos barcos, aparentemente, foram apagadas propositalmente da cena. Se acompanharmos o detalhamento desse corte e a comparação com a cena de caça e pesca de Nebamun na Figura 3.27, vemos que, provavelmente, tratava-se de um Alopochen aegyptiaca. Esse tipo de ganso, conforme Wilkinson (2017, p. 95), é associado ao deus Âmon, provavelmente em decorrência dele com a criação primordial do mundo. A iconoclastia de Akhenaton (ROBINS, 2015; MALEK, 2011) que mencionamos no Capítulo 2, pode nos ser útil para compreender esse apagamento. Parkinson (2009), ao examinar o fragmento da tumba de Nebamun, acredita que esse signo do deus Âmon tenha passado despercebido quando o nome de Âmon fora apagado da tumba, pois, como vemos na TT 52, esse seria um signo comum ao sistema cognitivo da elite egípcia da XVIII Dinastia. 204 Figura 3.27: Detalhamento do corte dos Alopochen aegyptiaca na TT 52 e comparação com o fragmento da tumba-capela de Nebamun. Fonte: esquema elaborado por Pedro Hugo Canto Núñez (2020), utilizando a imagem de Seidel e Shedid (1991, p. 58) e do Museu Britânico (EA 37977) No segundo registro, temos dois sub-registros, o primeiro com uma produção de vinho e o segundo com caça e trato de pássaros.Conforme apresenta Angenot (2012), esse registro da TT 52 apresenta uma semelhança muito grande com a imagem da tumba de Wah (TT 22), mordomo real cuja tumba data de Tutmés III. De acordo com a autora, isso demonstra uma intenção da elite de fazer fixar a ideia de que tanto a vinicultura quanto essa caça de aves estão interligadas (2012, p. 58). Na Figura 3.28 vemos os dois sub-registros do segundo registro da parede noroeste da TT 52, de modo que possamos os visualizar melhor. 205 Figura 3.28: Vinicultura e caça de pássaros da TT 52. Fonte: desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020), com base em Davies (1917, Pr. XXII). Murray (2009b) indica que o vinho é uma bebida elitista que está intrínseca no antigo cotidiano egípcio, de modo que o processo de fabricação era primordialmente apenas do rei e de membros de sua família. Entretanto, no Reino Novo, 42 tumbas de particulares apresentam uma sequência da produção de vinho (LERSTRUP apud MURRAY, 2009b, p. 578). Isso é relevante, pois o deus que está presente no simbolismo de vinhos é, justamente, Shesmu, que aparece de duas formas completamente diferentes nos textos. Conforme frisa Mark Ciccarello (1976, p. 46-48), essa divindade pode aparecer, no LDM, tanto como negativo, no Capítulo 153 (ele aparece como um pescador de mortos, ao qual N deve escapar), quanto em algo positivo, no Capítulo 170 (quando ele provém alimentos – aves – para N). Angenot (2012, p. 57) acredita que o ato de pisotear as uvas serve como uma associação ao ato de esmagar os inimigos, com respaldo nessa divindade. Essa 206 última perspectiva faz sentido se, conforme a autora defende, visualizarmos em conjunto com a caça de pássaros, que também seria uma forma de controlar o caos e os inimigos (ANGENOT, 2012, p. 57), uma vez que os pássaros livres em um pântano podem simbolizar o caos e “espíritos malignos”, conforme sugere Wilkinson (1992, p. 95) e a rede os capturando pode, de fato, ser esse controle que defende Angenot. Podemos utilizar essa interpretação também no primeiro registro, quando Nakht aparece caçando os pássaros. Sendo assim, ao interpretarmos essa parede em conjunto com a cena agrícola, compreendemos que existe uma certa continuidade das duas. A cena de caça e pesca no pântano não representa apenas um local de regozijo, mas, também, um trabalho fundamental que é a manutenção da ordem, de Maat, algo que existe em textos funerários reais, como o Livro do Amduat, e está presente também no LDM. Portanto, a leitura das vinhetas do Capítulo 110 nos demonstra essa dupla função do Campo de Juncos e Campo das Oferendas, algo que será aprofundado quando virmos os textos dessa cena. Por fim, temos, na Figura 3.29, a vetorialidade da leitura da parede noroeste, na qual determinamos o trabalho e o destino dessa provisão, utilizando a metodologia de Angenot (1999), de modo que a família caçando e pescando são representados na imagem de modo que o leitor as revitalize e seja perpassado ao casal, morto, na esquerda, e, da mesma forma, a vinicultura e a caça de pássaros também seja lida pelo antigo egípcio que visitasse a tumba e revitalizadas para o casal, morto, na esquerda. 207 Figura 3.29: Vetorialidade da parede noroeste da TT 52. Fonte: esquema feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020). Por fim, podemos ver no Gráfico 7 o número de personagens que aparecem tanto na parede noroeste quanto na cena agrícola de Nakht. Percebemos, então, que são 53 representações de servos que trabalham a favor de Nakht e Tawi. Nas vinhetas do Capítulo 110 que trabalhamos, vimos que o morto está representado diversas vezes trabalhando diretamente no campo, enquanto nas pinturas de Nakht, ele aparece trabalhando apenas na caça e pesca, mantendo a ordem. Isso nos deixa um questionamento: seria possível enviar servos para trabalhar nas terras agrícolas do Além? Se pensarmos nos shabtis que vimos no segundo capítulo, a resposta é sim. O Capítulo 6 do LDM consiste em uma fórmula para fazer com que o shabti trabalhe em vez do morto na Duat: 208 Ó chauabti de N., se eu for chamado, se eu for designado para fazer todos os trabalhos que são feitos habitualmente no reino dos mortos, pois bem! Esse cargo te será infligido, lá, no além. Toma tu o meu lugar em todos os momentos, para cultivar os campos, para irrigar as margens, para transportar a areia do Oriente para o Ocidente. “Eis-me aqui!”, dirás tu (LOPES, 1991, p. 21-22) As partes “para cultivar os campos” e “para irrigar as margens” da fórmula nos permitem interpretar que o morto, ao trabalhar no Campo de Juncos e no Campo das Oferendas, pode invocar o shabti e este assumir seu papel como trabalhador. Mesmo que tenhamos discutido sobre a probabilidade de Nakht e Tawi terem sido enterrados com shabtis físicos, algo que nos leva inferir é que esses 53 trabalhadores, por estarem representados nas paredes da tumba, magicamente serviriam como shabtis no Além, mesmo que não existam os físicos. Gráfico 7: Categorias de personagens da cena agrícola e da parede noroeste da TT 52. Fonte: gráfico elaborado por Pedro Hugo Canto Núñez (2020). 6; 9% 4; 6% 4; 6% 53; 79% Personagens Nakht Tawi Filhos do casal Servos 209 5. BANQUETE FUNERÁRIO Um outro espaço de conexão do morto com os vivos é a cena da parede sudoeste, o banquete funerário. De acordo com Hartwig (2004, p. 98), o imagético multivalente das cenas de banquete mistura temas de sexualidade e renascimento com os aspectos da Bela Festa do Vale, o banquete funerário, e outras oferendas alimentícias em comemoração ao morto na tumba. Na Figura 3.30 vemos o desenho da parede sudoeste da TT 5282, que apresenta uma cena de banquete incompleta por causa do deterioramento da parede, provavelmente em consequência do tempo, uma vez que, no boletim de escavação da primeira limpeza da tumba, por G. Maspero (1894, p. 484), podemos ler que ele encontrara a parede dessa forma. Figura 3.30: Desenho da parede sudoeste da TT 52. Fonte: desenho feito por Pedro Hugo Canto Núñez (2020), com base em Davies (1917, Pr. XV). 82 Para a imagem colorida, Cf. p. 20 do Volume II. 210 Ao todo, são apresentados 26 personagens humanos. A cena é dividida em dois registros, com uma possibilidade de subdivisão de registro para o superior, conforme vemos em nossa tentativa de reconstrução da parede na Figura 3.31. No registro superior podemos perceber duas figuras masculinas em pé fazendo, provavelmente, oferendas para o casal (à direita). Em seguida estariam mulheres convidadas. Possivelmente haveria uma mesa de oferendas e, em seguida três mulheres sentadas com uma serva, em pé, entre a primeira e a segunda mulher. Na parte que podemos ver do registro superior, da direita para a esquerda, apresenta um harpista e 7 mulheres, sendo 6 sentadas e a outra em pé. No registro inferior, temos, da direita para a esquerda, o casal sentado em um sofá (com um gato abaixo da mulher), um homem colocando oferendas na mesa diante do casal, três musicistas e, de forma subdividida, 3 homens e 3 mulheres. Figura 3.31: Reconstrução da parede sudoeste da TT 52 com base nas tumbas de Menna (TT 69) e Nebamun (TT E2). Fonte: reconstrução feita por Pedro Hugo Canto Núñez (2020), com base em Davies (1917, Pr. XV) e Brancaglion Jr. (1999, Pr. LXXX-LXXXII). 211 Mesmo que não tenhamos as silhuetas de Nakht e Tawi completas na imagem, podemos ver que eles estão na mesma posição de suas representações na parede noroeste (Figura 3.23), com o hieróglifo A502 ( ), no qual o casal aparece sentado em um sofá com pernas representando uma pata de leão. Podemos trazer para essa análise a discussão que levantamos sobre a origem esse hieróglifo e os argumentos que utilizamos para a afirmação de que essa seria a representação do casal morto recebendo os alimentos. Se virmos os demais personagens dessa cena, vemos que aquelesque estão sentados (nove), percebemos que cinco desses estão com flores de lótus voltadas para eles mesmos, enquanto os outros quatro não temos certeza, mas podemos supor que estivessem na mesma posição. As explicações aqui nos levariam a supor que esses participantes estariam, assim como o casal, mortos e essa cena seria representada no Além. Poderíamos afirmar que o simbolismo intrínseco à essa representação da parede sudoeste teria o mesmo caráter mágico da outra parede. Dessa maneira, suporíamos que o casal recebe as oferendas feitas no banquete enquanto mortos, levando-as para o Além, e que os demais participantes os prestigiassem como convidados nesse banquete também no Além. Assim, não descartaríamos a possibilidade dessa cena ocorrer tanto no Egito terreno quanto na Duat. Entretanto, devemos levar algumas questões em consideração. Lise Manniche (1971; 1976; 1978; 1999; 2000; 2009) defende que existe um certo erotismo nessas cenas de banquete. Seus argumentos são pautados na aparição de figos, mandrágoras, flores de lótus e unguentos (e, portanto, perfumes) nessas cenas. Para a autora (MANNICHE, 1987a, p. 39-42), os vestidos muito bem decorados e as perucas utilizadas pelas mulheres, com unguentos representados acima de suas cabeças, indicavam, além de seu status na elite tebana, um erotismo intrínseco à essas cenas. Manniche (1987b, p. 22-27) argumenta que imagens que mostram as mulheres oferecendo figos e mandrágoras para outras mulheres (como a que temos na TT 52, no primeiro registro da parede sudoeste) seria um indicativo de homossexualidade entre elas. Além disso, Manniche (1999, p. 100-102) discute os muitos significados da mandrágora (Mandragora officinarum) nessas cenas, afirmando que, baseado em poemas de amor, os antigos egípcios assemelhavam os seus formatos com os seios femininos, e que, conforme estudos modernos do fruto, são alucinógenos e soporíferos. O perfume, de acordo com a autora (MANNICHE, 2009, p. 5), seria algo que auxiliaria o erotismo nessas cenas, de modo que os cones acima das cabeças dos participantes das cenas de banquetes seriam um instrumento artístico para evidenciar o perfume, algo que seria invisível. 212 Antônio Brancaglion Jr., ao expor seus estudos sobre as cenas de banquetes do Reino Novo em sua tese de doutorado, argumenta que essas cenas em tumbas apresentam dois níveis de interpretação: o primeiro seria o estabelecimento do status do dono da tumba e a sua participação nas festividades da necrópole, servindo como um meio para comemorar a vida no Egito terreno e proclamar sua distinção social no Além; enquanto o segundo seria que os elementos da cena estariam associados, principalmente, ao culto a Háthor, com a finalidade de garantir os meios necessários para que o morto renasça no Além (BRANCAGLION JR., 1999, p. 255). A inserção desse nível de compreensão entre os egípcios de Háthor presente nessas cenas pode nos ser útil e nos traz outra perspectiva para a cena de banquete, pois, como Hartwig (2004, p. 98-103) comenta, podemos interpretar em conjunto com os festivais ocorridos na margem ocidental de Tebas no período de Nakht. Entretanto, como podemos compreender Háthor? Uma das deusas mais importantes do Egito Antigo, é possível que Háthor apareça na crença egípcia desde os primórdios dessa sociedade, embora a sua presença seja mais significativa a partir do Médio Império e o Texto dos Caixões (ROBERTS, 1997). Háthor é, talvez, uma das deusas de maior abrangência de características no Egito Antigo. Na XVIII Dinastia, a deusa estava associada com o mito de criação, tendo o título de “mão de Âmon”, como aquela que estimulava este deus para o orgasmo, criando, assim, o mundo (MESKELL, 2005, p. 62). Pode ser também associada com a destruição da humanidade, no Conto da Vaca Celeste, quando fora mandada ao Egito terreno como uma leoa por Rê. Apesar dessas características dicotômicas, a deusa aparece também como mãe ou esposa de Hórus (e, por isso, é associada como mãe ou esposa do rei), deusa do céu (no Texto das Pirâmides - Fórmula 546), esposa ou filha e “olho” de Rê, vaca celeste, deusa das terras estrangeiras, deusa do Ocidente (também chamada de Senhora do Sicômoro na região de Mênfis) e, o motivo aqui explanado, a deusa da música, prazer e felicidade (Htp) (WILKINSON, 2017, p. 143). Embora intimamente relacionada ao aspecto de Háthor como uma deusa da fertilidade, sexualidade e amor, seu papel como provedor de prazer e felicidade poderia, também, estar associado concomitante ao primeiro. De maneira similar, enquanto a relação de Háthor com a música era por forma de rituais, como o uso de seu sistro, ela também estava presente no uso da música para fins de festividade popular. Háthor também era associada com bebidas alcoólicas, que eram parte de A Bela Festa do Vale. Sendo assim, a imagem da deusa é frequentemente encontrada 213 em vasos feitos para conter vinho e cerveja. Háthor era assim conhecida como a amante da embriaguez, da canção e da mirra. Alguns egiptólogos (WILKINSON, 2017, p. 143) associam que seja esse último o motivo de tamanho reconhecimento e popularidade da deusa durante todo o Egito Antigo. Brancaglion Jr. (1999, p. 260-261) nos apresenta o itinerário de A Bela Festa do Vale, que era celebrada uma vez por ano, na primeira lua nova do segundo mês da Shemu, referente ao período em que o plantio já fora feito. A festa tinha início com uma oferenda ao deus Âmon no templo de Karnak. Em seguida, iniciava-se uma procissão que conduzia a imagem desse deus para as demais localidades de Tebas, transportando-a em sua barca, acompanhada pelo faraó e o sumo- sacerdote. A barca possuía um relicário para a estátua e, por sua vez, era posta em um barco cerimonial, que era guiado através do Nilo por um outro barco, este pertencente à família real. Ao chegar à margem ocidental da cidade de Tebas, a imagem era carregada em procissão pelo sacerdote, seguidos pelo faraó, as cantoras de Âmon e as sacerdotisas de Háthor. A procissão seguia em direção à necrópole tebana, atravessando os campos agrícolas e parando em pequenos santuários, feitos de pedra, dispostos ao longo do caminho, além de visitar os Templos de Milhões de Anos dos faraós e as capelas funerárias de particulares. Em cada uma dessas paradas, grupos de dançarinos e cantores apresentavam-se diante do deus. Quando a procissão chegava ao templo de Deir el-Bahari, ponto culminante da Bela Festa do Vale, a estátua do deus Âmon se encontrava com a da deusa Háthor. O festival só continuava no dia seguinte, quando a imagem do deus fazia o caminho inverso: de Deir el-Bahari para o templo de Karnak. Durante toda procissão em direção ao templo, os que acompanhavam o festival carregavam grandes buquês e alimentos, de forma a ofertar aos dois deuses e, também, aos mortos (BRANCAGLION JR., 1999, p. 260-261). Todo esse caminho possui diversos pontos que são cruciais para que, quando comparamos com o que conhecemos da cultura egípcia, entendamos o todo. A imagem do deus, ao atravessar o rio Nilo da margem oriental, associada com a vida, para a ocidental, representando a morte, revitaliza esses espaços funerários. O encontro de Âmon com Háthor também não é aleatório. Háthor é uma divindade importante para a Necrópole Tebana. O encontro desses dois deuses reverbera em uma união dos vivos com os mortos. Sendo assim, A Bela Festa do Vale também indica a presença dos vivos perpetuando a memória dos mortos ao visitarem os seus Templos de Milhões de Anos e capelas funerárias e ofertarem aos mortos. Os músicos e dançarinos nesse 214 festival são cruciais para a procissão. Em todos esses momentos citados, eles cantam e realizam performances em prol dos deuses. Associada à deusa Háthor, a música serve, também, como revitalização. Ao entendermos o significado da deusa ao associarmos a mesma com a música, o prazer e