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ExperiAnciaTrAígicaConceito-Duesberg-2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS 
 
 
 
 
 
 
 
 
FRANK DÜESBERG 
 
Experiência trágica: 
do conceito ao experimento. 
 
 
 
 
 
 
 
 
NATAL/RN 
2018 
 
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE 
CENTRO DE CIÊNCIAS, HUMANAS, LETRAS E ARTES 
DEPARTAMENTO DE ARTES 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS - PPGArC 
 
 
 
 
Frank Düesberg 
 
 
 
 
Experiência trágica: do conceito ao experimento. 
 
 
 
 
Orientador: Prof. Drª. Naira Neide Ciotti 
 
 
 
 
 
 
NATAL - RN 
2018 
Düesberg, Frank.
 Experiência trágica : do conceito ao experimento / Frank
Düesberg. - 2018.
 100 f.: il.
 Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande
do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Natal, 2018.
 Orientadora: Prof.ª Dr.ª Naira Neide Ciotti.
 1. Performance (Arte). 2. Tragédia. 3. Teatro. 4. Lehmann,
Hans-Thies, 1944. 5. Müller, Heiner, 1929-1995. I. Ciotti, Naira
Neide. II. Título.
RN/UF/BS-DEART CDU 792.21
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART
Elaborado por Ively Barros Almeida - CRB-15/482
Frank Düesberg 
 
 
 
Experiência trágica: do conceito ao experimento. 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentado ao Programa de 
Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade 
Federal do Rio Grande do Norte como pré-requisito 
para a obtenção do título de mestre. 
 
Orientador: Prof. Dr.ª Naira Neide Ciotti 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
NATAL - RN 
2018 
 
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO 
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE 
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS 
 
 
 
FOLHA DE APRESENTAÇÃO 
 
 
A Defesa de Dissertação do trabalho intitulado “Experiência trágica: do conceito ao 
experimento.” de autoria do discente Frank Düesberg, contou com a participação da 
seguinte Banca Examinadora: 
 
 
 
 
___________________________________________ 
Profª. Drª. Naira Neide Ciotti 
(Presidente – PPGArC/UFRN) 
 
__________________________________________ 
Prof. Dr. Hélio Junior Rocha de Lima 
(Membro Externo à Instituição – UERN) 
 
 
____________________________________________ 
Profª. Drª. Lara Rodrigues Machado 
(Membro Interno - PPGArC/UFRN) 
 
 
________________________________ 
Frank Duesberg 
 (Discente) 
 
 
 
 
Natal, 22 de março de 2018. 
AGRADECIMENTOS 
 
 
Com tantas experiências trágicas na cabeça, fico feliz de estar vivo! 
Agradeço às minhas filhas lindonas, espectaculares, fantásticas por serem o que são! 
Agradeço à Maésia, minha companheira para todas as horas e criadora artística! 
Agradeço à Naira, minha querida orientadora! 
Agradeço à Lara, querida professora que transforma dança em felicidade! 
Agradeço à Eduardo, mestre do pensamento! 
Agradeço aos colegas, divertimo-nos! 
Agradeço a todos os outros que tiveram suas respectivas parcelas, inclusive aquele 
bibliotecário da Universidade de Miami que autorizou o acesso, para encontrar - que grande 
felicidade - a obra completa de Heiner Müller em alemão! 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Resumo 
 
Esta pesquisa indaga a possibilidade de uma experiência trágica de um espectador ou do autor 
no teatro contemporâneo. O objetivo é questionar a possibilidade da concentração do trágico, 
por exemplo, em um gesto performático. Hans-Thies Lehmann, no seu livro ‘Tragödie und 
dramatisches Theater’ (2014), reflete sobre a experiência trágica, que envolve vários aspectos, 
como a estetização de um acontecimento trágico, a cisão dessa estetização e uma reflexão. 
Foram criados e pesquisados múltiplas reescritas, experimentos e fragmentos reunidos sob o 
nome de ‘Estrada V’, baseados principalmente na obra ‘A Estrada de Volokolamsk’, de 
Heiner Müller e nas experiências do presente autor. O foco ficou nas reflexões e práticas em 
relação ao público e da possibilidade de uma experiência trágica vir a ocorrer. Constatou-se 
que no mundo moderno, a mística do excesso não precisa ser mais grandiosa, porém exige-se 
uma aumentada atenção com o comum. O teatro da tragédia contemporâneo é um local de 
conscientização intensa de perda, onde o sujeito é confrontado com a dissolução inevitável do 
ser e com uma experiência da própria finitude. Neste contexto, o trágico no teatro 
contemporâneo investiga o sujeito fragmentado do mundo atual, tocando na antiga e sempre 
renovada experiência do excesso. O destino fundamental do caráter trágico é seu desejo de 
investigação por uma verdade maior, em um mundo onde não há certezas e postulados 
irrefutáveis. Foi verificado que na arte performática a criação do trágico nasce do afeto, 
estabelecendo uma conexão específica entre o performador e o receptor, permitindo o 
surgimento de uma experiência trágica. 
 
 
Palavras chave: Performance. Experiência trágica. Teatro contemporâneo. Hans-Thies 
Lehmann. Heiner Müller. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Abstract 
 
This research investigates the possibility of a tragic experience of a spectator or the author in 
contemporary theater. The objective is to question the possibility of the concentration of 
tragic, for example, in a performance gesture. Hans-Thies Lehmann, in his book 'Tragödie 
und dramatisches Theater' (2014), reflects on the tragic experience, which involves several 
aspects, such as the aestheticization of a tragic event, the breakup of this aesthetization and a 
reflection. Multiple re-writings, experiments and fragments were collected and researched 
organized under the name of 'Estrada V', based mainly on Heiner Müller's 'The Road of 
Volokolamsk' and the experiences of the present author. The focus was on reflections and 
practices of the relationship between stage and the public and the possibility of a tragic 
experience to occur. It has been found that in the modern world, the mystique of excess need 
not be grand, but an increased attention to the common is demanded. The theater of 
contemporary tragedy is a place of intense awareness of loss, where the subject is confronted 
with the inevitable dissolution of being and with an experience of one's own finitude. In this 
context, the tragic in contemporary theater investigates the fragmented subject of the present 
world, touching on the old and always renewed experience of excess. The fundamental 
destiny of the tragic character is its desire to investigate for a greater truth in a world where 
there are no certainties and irrefutable postulates. It was verified that in performance art the 
creation of the tragic arises from affection, establishing a specific connection between the 
performer and the receiver, allowing the emergence of a tragic experience. 
 
 
Keywords: Tragic experience. Contemporary theater. Hans-Thies Lehmann. Heiner Müller. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO: 
Introdução 1 
Experiência trágica: uma aproximação 5 
A possibilidade de uma experiência trágica 6 
O trágico teatral 10 
A tragédia teatral no mundo contemporâneo 13 
Tragédia sem o formato dramático 14 
O trágico teatral como jogo 19 
A tragédia e a morte 20 
O trágico e o sujeito 21 
Experiência trágica como experiência limiar 24 
Pré-requisitos para uma experiência trágica 26A experiência trágica na situação teatral 31 
Experiência trágica e o estético 38 
Teatro como jogo 42 
Incorporação teatral 47 
O processo de percepção no teatro pós-dramático 49 
O espectador no jogo teatral 52 
Efeito da tragédia 53 
‘Anagnórise’ no teatro contemporâneo 54 
Heiner Müller e o trágico 56 
Teatro para uma outra realidade 57 
Teatro ‘criminoso’ 58 
A relação cena - público em Müller 59 
Experiência teatral para Müller 60 
Relação com o público 61 
Renúncia ao público 62 
Caminhos para os experimentos da ‘Estrada V’ 63 
Estrada V - Parte I 76 
Momentos da construção 84 
Registros comentados do processo 86 
Considerações finais 96 
REFERÊNCIAS 100 
 
 
 
Introdução 
 
Ser alemão, ainda hoje, tem algo de trágico. As guerras e, principalmente, o nazismo 1
deixaram um peso sobre toda uma nação, que não pode ser pensada sem alguma ligação com 
o trágico. Isso também diz respeito a mim. Sinto uma responsabilidade maior, algum tipo de 
culpa por ter nascido alemão. Meu avô paterno foi membro do Partido Nacional Socialista. 
Ele não gostava de falar sobre essa época, foi prisioneiro de guerra até algum tempo após o 
fim da segunda guerra mundial, mas foi absolvido e liberado pela justiça dos aliados. Quero 
mostrar com isso que o trágico não é algo longínquo, nem de mim e muito menos dos alemães 
em geral. Um prova disso é o noticiário alemão, onde diariamente se publica algum fato 
relacionado à época do nazismo, mesmo que já se tenham passado mais de setenta anos desde 
a sua derrota. 
 
A tragédia teatral possibilita uma aproximação do sujeito a esses momentos limiares 
através das suas características específicas, e ela é objetivo da pesquisa por ser condição para 
uma experiência trágica de um espectador. Escolhi Hans-Thies Lehmann como autor 2
principal, por ele lidar com estas questões e pensar sobre os critérios necessários para uma 
experiência trágica poder acontecer. 
 
Lehmann é um dos mais importantes teóricos do teatro contemporâneo e da estética 
teatral. Ele participou da criação do curso de ‘Angewandte Theaterwissenschaften’ na 3
Justus-Liebig-Universität em Gießen e foi professor de Estudos Teatrais da Universidade 
1 Segue um extrato de MANN, Thomas. Doutor Fausto.São Paulo: Companhia das Letras, 2015, 
p.205: “Sim, nós somos um povo totalmente diferente, de alma poderosamente trágica, e estamos em 
oposição à sobriedade da lógica habitual. Nosso amor pertence ao destino, a qualquer destino, seja 
ele o que for, ainda que nos traga o ocaso que abrase o céu com o rubor de um crepúsculo dos 
deuses!” 
2 Nascido em 22 de setembro de 1944 em Ehringshausen/Alemanha 
3 Ciência Teatral Aplicada - Tradução F. D. 
https://www.uni-giessen.de/studium/studienangebot/bachelor/atw Acessado em 24/02/1018 
1 
Goethe, em Frankfurt am Main, além de ser membro da Academia das Artes da Alemanha. 
Lehmann, como teórico, tem uma aproximação muito profunda à prática do teatro 
contemporâneo, discutindo o limite entre o que é e o que não é arte e analisando o trágico 
neste contexto. Seu livro ‘Teatro Pós-Dramático’ foi amplamente discutido no mundo inteiro 4
e me beneficiei com muitos aspectos novos durante minha formação teatral. 
 
Quando fui à Berlim, no verão de 2014, eu perdi por poucos dias o lançamento do 
livro ‘Tragödie und dramatisches Theater’ de Hans-Thies Lehmann (2014) publicado na 5
Editora Alexander Verlag . Consegui no escritório da Editora o áudio da apresentação do livro 
e assim pude acompanhar o Prof. Lehmann apresentando e discutindo seu livro e explicando, 
entre outras questões, o seu entendimento da experiência trágica de um espectador, usando 
como exemplo um extrato de ‘Wolokolamsker Chaussee ’ de Heiner Müller (1987). 6
 
Heiner Müller (1929-1995) é considerado um dos mais importantes dramaturgos da 
língua alemã da segunda metade do século XX e comparado em sua importância a Bertolt 
Brecht. Heiner Müller nasceu na antiga Alemanha Oriental (RDA), fator importante para sua 
obra, como ele mesmo destacava, pelo motivo da diferença de liberdade de expressão entre as 
duas Alemanhas, Oriental e Ocidental. Em um primeiro momento parece estranho ele ter 
escolhido viver e trabalhar no lado Oriental da Alemanha, onde reinava uma censura rígida, 
porém ele justificava esta atitude pela importância política dada a cada palavra em uma 
sociedade vigiada, arriscando-se constantemente e sendo censurado quase o tempo todo, 
podendo sofrer consequências graves, inclusive encarceramento. Assim, Heiner Müller preferiu 
a pressão maior das experiências em uma ambiente totalitário, conhecendo a democracia como 
turista, mas a ditadura como experiência corporal. (KALB, 1998, p.7) 
 
Heiner Müller foi censurado durante muitos anos, o governo tirou-o de postos 
importantes e de destaque do mundo literário e artístico, mas nunca foi encarcerado, 
provavelmente por ter alcançado fama internacional e destaque artístico mundial, além de não 
ter demonstrado interesse em fugir da RDA, acontecimento comum entre os artistas da 
Alemanha Oriental. Não obstante, várias de suas obras só foram apresentadas na RDA com 
4 LEHMANN,Hans-Thies.Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007 
5 Tragédia e teatro dramático - Tradução Frank Düesberg (F.D.) 
6 A estrada de Volokolamsk - Tradução F.D 
2 
muitos anos de atraso ou até somente depois da queda do muro de Berlim e da reunificação da 
Alemanha em 1990, significando censuras de algumas obras durante mais de 20 anos. 
 
A maioria de sua produção foi lançada ou estreada em outros países, principalmente na 
Alemanha Ocidental e, quase sempre, na sua ausência. Todavia, de acordo com Kalb (1998, 
p.8), Heiner Müller fazia questão de continuar residindo e trabalhando na RDA, por considerar 
a opressão determinante para seu trabalho artístico, argumentando que, quanto mais o Estado se 
faz presente, de mais material um dramaturgo dispõe. 
 
Heiner Müller foi um artista bastante produtivo, escreveu mais de vinte dramas, uma 
dúzia de peças radiofônicas, além de poesias, prosas, ensaios e palestras, algumas obras de artes 
visuais e ainda escreveu sua autobiografia. Como forma de comunicação e para divulgar suas 
ideias e opiniões, ele usava debates, entrevistas e diálogos, meios midiáticos apreciados na 
Alemanha e um dos moldes preferidos de Heiner Müller. (KOUDELA, 2003, p.29-30) Ainda 
trabalhou como diretor de teatro, dramaturgo e diretor artístico em grandes teatros, inclusive o 
‘Berliner Ensemble’, um dos palcos mais importantes da Alemanha, que tinha sido fundado por 
Brecht. Em muitas das suas atividades foi laureado, inclusive com o Prêmio Büchner (1986), 
Kleist (1991) e o Prêmio Europeu de Teatro (1993). Suas obras teatrais, sendo constantemente 
apresentadas, continuam atrativas até hoje, seus livros e textos são encontrados nas livrarias e 
bibliotecas e sempre há lançamentos de novas interpretações das suas obras. 
 
Com o livro de Lehmann na mão e Heiner Müller na cabeça voltei ao Brasil. Resolvi 
encenar Heiner Müller e especificamente a primeira parte da Estrada de Volokolamsk: 
Russische Eröffnung . Apesar de já existir uma tradução deste texto para o português 7
(MÜLLER, 1993), resolvi fazeruma versão própria com o intuito de me aproximar mais ao 
texto. A partir deste texto, empregando o método da reescrita , muito utilizado por Heiner 8
Müller, escrevi o texto e o roteiro para a minha encenação intitulada ‘1941’. Nos preparativos 
para a mesma, comecei a aprofundar os estudos sobre a experiência trágica. Esta pesquisa fez 
7 Abertura Russa Tradução F.D. 
8 Reescrita entenda-se neste contexto com a elaboração de um texto baseado em um outro já 
existente. Heiner Müller escreveu desta forma somente de Shakespeare: Hamlet, Macbeth, Anatomia 
Tito Fall of Rome, um comentário de Shakespeare e Medea. 
3 
parte do meu Trabalho de Conclusão de Curso e, em seguida, serviu como base para o projeto 
de pesquisa do presente mestrado. 
 
O livro ‘Tragödie und dramatisches Theater’ de Hans-Thies Lehmann mostrou uma 9
grande relevância para a pesquisa por levantar uma série de questões importantes. Considerei 
de grande importância o papel do trágico na história do teatro, a relação drama e tragédia e, 
principalmente, as considerações sobre a experiência trágica do espectador, por aperceber-me 
que este processo estava intimamente ligado com as escolhas tomadas na minha vida. 
 
Na minha ida para Berlim em Julho de 2016, comecei a pesquisar material específico 
para a elaboração do presente trabalho. Busquei material em várias bibliotecas e locais sobre a 
experiência trágica além do que eu já tinha de Lehmann, ademais de autores e artigos sobre a 
relação de Heiner Müller com o público. A respeito de Heiner Müller, consegui a edição 
completa de sua obra , com o acervo integral do seu trabalho, somando mais de 8000 10
páginas. Grande parte deste material foi fichado e trabalhado durante a pesquisa. 
 
Parte da presente pesquisa são dois textos que escrevi para os experimentos da 
‘Estrada V’, ambos elaborados no início de 2017 pelo método da reescrita, inspirando-me no 
método usado por Heiner Müller em ‘A Estrada de Volokolamsk’, o qual foi baseado no texto 
com o título homônimo ‘Die Wolokolamsker Chaussee’ de Alexander Bek . A ‘Parte 1’ desta 11
escrita ficcionaliza a revolta no presídio de Alcaçuz em Pium/RN em 2016. Ela foi construído 
com base no texto ‘Wolokolamsker Chaussee - Russische Eröffnung’ (MÜLLER, 1987) que 12
eu traduzi em 2015 e da qual consta um extrato abaixo. A ‘Parte 2’ se baseia no livro ‘A 
‘Wolokolamsker Chaussee IV - Kentauren (MÜLLER, 1987) para questionar a situação 
política e social no Brasil do início de 2017. 
 
Entendo estes textos e os experimentos da ‘Estrada V’ como fragmentos que fazem 
parte de um contexto maior. Acredito que estas experiências compõem uma imagem maior, 
porém de forma alguma são conclusivas. Não existe um produto final, uma encenação 
9 Tragédia e teatro dramático - Tradução (F.D.) 
10 MÜLLER, Heiner. Band 1-10, Herausgegeben von Frank Hörnigk, Berlin: Suhrkamp Verlag, 2008. 
11 BEK, Aleksandr A., Die Wolokolamsker Chaussee, Wien, Globus-Verlag, 1947 
12 A Estrada de Volokolamsk I - Abertura Russa. Tradução F.D. 
4 
terminada ou um processo encerrado, porém, o que talvez seja mais importante, tem uma série 
de experiências intensas e vivenciadas no espírito desta pesquisa. 
 
A situação do mundo é trágica, mas parece que essa tragicidade não causa efeito quase 
nenhum. Assim, o impulso inicial e contínuo dessa pesquisa é um olhar sobre a possibilidade 
de uma experiência trágica causar algum efeito no pensamento das pessoas. Considerando um 
possível impacto deste trabalho no mundo, a vontade de desistência é imensa, porém, desde 
minha leitura de Erich Fromm ‘Haben oder Sein’ no final da minha adolescência, acredito 13
que temos que seguir impulsos que acreditamos serem importantes e verdadeiros, nem que a 
importância se resume somente a nós mesmos. 
 
As perspectivas de Lehmann sobre a experiência trágica são de um possível ponto de 
vista de um espectador hipotético. Para me aproximar dessas ponderações eu apontei algumas 
das minhas experiências vividas, tanto em um contexto especificamente teatral, como alguns 
outros um pouco mais distantes, porém intimamente ligados à experiência trágica. O motivo 
principal para tal aproximação é o fato da experiência trágica ser algo totalmente pessoal e na 
sua essência intransferível. Assim, nesta pesquisa revisitei alguns momentos contundentes da 
minha vida para verificar a possibilidade de aplicar e discutir as cogitações de Lehmann em 
casos específicos. 
 
Experiência trágica: uma aproximação 
O que vem a ser uma experiência trágica e quais são as premissas para que um 
espectador a possa vivenciar? A pesquisa debruça-se primordialmente sobre essas duas 
questões e, logo de início, devo alertar que não lhes pude dar resposta inteira e conclusiva. Tal 
dificuldade explica-se pelas características intrínsecas da experiência trágica, por consistir, 
consoante a vivência de um espectador, em algo que se entrelaça e entremeia com uma 
estrutura individual distinta e previamente forjada por percepções, vivências, experiências 
pessoais e subjetividades únicas a cada um dos espectadores. 
 
13 FROMM, Erich. Ter ou ser. São Paulo, Editora GEN, 1987 
5 
Essas estruturas, que vêm à tona no instante exato em que a experiência trágica ocorre 
separadamente em cada indivíduo, são únicas e específicas para cada um dos espectadores que 
as experimenta. Isso por si só já aponta para a dificuldade com que se depara o pesquisador ao 
tentar capturar a experiência trágica a partir de uma visão mais acadêmica. Não obstante o 
desafio, me aproximei na pesquisa de certa conceitualização sobre o tema e, como meio para 
atingi-la, recorri à alguns autores que, combinados às minhas próprias experiências, me 
permitiram analisar até que ponto se faz possível consolidar, ao menos alguns critérios, que 
possam, porventura, serem generalizados em favor de uma visão mais ampla do fenômeno. 
Foi trabalhado um construto teórico, que facilita a compreensão desse fenômeno, buscando 
preceitos fomentadores para que uma experiência trágica possa vir a ocorrer. 
 
A possibilidade de uma experiência trágica 
Em alemão existem dois termos para experiência, ‘ Erlebnis’ e ‘ Erfahrung’ mas não 
existem duas traduções equivalentes em português. ‘ Erlebnis’ se refere a uma experiência 
imediata, vivida na qualidade de realidade específica, ao ato de experimentar algo, percebido 14
através dos sentidos, aproximando-se ao termo vivência. Já ‘ Erfahrung’ se constitui como 
uma experiência adquirida, que traz algum tipo de conhecimento e representa uma ou mais 
experiências imediatas acrescidas de uma reflexão a respeito . (CARNEIRO, 2013, p.60) 15
Nesta pesquisa refiro-me ao segundo termo, já que, de acordo com minha compreensão da 
experiência trágica como um momento fundamental da vida, a reflexão configura-se com um 
critério essencial, como será demonstrado mais adiante. 
Muitos autores refletiram sobre a experiência, acerca da qual todavia não há 
unanimidade de uma conceituação. Observa-se que há duas grandes vertentes de concepções, 
uma que foca mais na experiência vivida, defendida pelo empirismo e outra que ressaltamais 
a reflexão ativa sobre uma experiência passada, representada pelo racionalismo. 
Nomeadamente nesta pesquisa não estou falando da experiência em geral, porém da 
experiência trágica de um espectador em um contexto teatral. Todas as reflexões sobre 
14 Neste trabalho eu entendo o conceito de ‘realidade’ ou ‘real’ em um sentido mais amplo, que inclui 
o imaginário.Ver: CHAVES, Wilson Camilo: CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO CONCEITO DE 
REAL EM LACAN. http://www.scielo.br/pdf/pe/v14n1/a06v14n1.pdf Acesso em 08/02/018 
15 Jeanne Marie Gagnebin na tradução de ‘ Erfahrung’ acrescenta o aspecto de coletividade. Ver 
prefácio para BENJAMIN, Walter, Obras Escolhidas Volume I. São Paulo: Brasiliense, 2012 
6 
estética, o trágico e a experiência trágica em si, são feitas a partir do ponto de vista de um 
espectador. Isso é possível em pontos de vista objetivos, porém, quando se trata de um caso 
específico, de uma experiência trágica de um espectador, e onde suas subjetividades são 
condição sine qua non , refiro-me às minhas próprias. 
 
É importante ressaltar, que a experiência analisada na pesquisa não é algo que o 
espectador possa buscar ou criar deliberadamente, é algo que ocorre a ele em um contexto 
teatral. É um acontecimento raro e subjetivo, que confronta o sujeito com ele mesmo e com o 
mundo ao seu redor. É o acometimento de algo intensamente estranho, que leva a uma reflexão, 
a busca por uma ‘resposta’, uma absorção pensante. Alimentado por uma experiência imediata, 
o espectador cria conexões com conhecimentos, vivências e sensações passadas e é atravessado 
por relações, muitas vezes, inesperadas, conduzindo a uma reflexão sobre si ou o mundo. 
 
Um exemplo é a performance ‘Dilma’ de Naira Ciotti , elaborada nos experimentos 16
para a ‘Estrada V’. Eu tinha pedido para cada um dos performadores trazer um relato ou um 
experiência trágica para trabalhar uma cena individual. Naira tinha trazido o momento do 
impeachment de Dilma Rousseff, captado por um fotógrafo da Folha de São Paulo. Discutimos 
a cena e elaboramos o seguinte roteiro: 
 
Naira se encontra no fundo do palco, agacha e grita “Dilma” com um tom de desespero 
e no volume máximo da voz. Ela levanta e anda alguns passos de olhos fechados e insegura, 
levantando as mãos como uma sonâmbula e, como em um pesadelo, tenta afastar algo 
assustador com as mãos. O corpo oscila pelo caminhar instável com as mãos buscando apoio ao 
redor do corpo, mas não acha nada a não ser o vazio e não consegue se livrar da insegurança e 
do desconforto. Após mais alguns passos ela desaba e fica de joelhos, começando a balançar o 
corpo como que jogada e empurrada por uma intempérie. Na frente dela um jornal. Ela pega um 
lápis de giz preto rabiscando grosseiramente enquanto começa a descrever seu desenho: 
 
“Folha de São Paulo, Abril de 2016. Uma foto na capa. 
Dilma em uma blazer amarelo, calça preta, o braço esquerdo levemente jogado ao 
longo do corpo. Infantil. O outro braço começa a se erguer, protegendo a cabeça da 
16 Drª Naira Neide Ciotti, Professora de Teatro do Departamento de Artes, Professora performer e 
orientadora desta dissertação. 
7 
presidenta do seu algoz. Ela dobra o cotovelo. Ela faz um gesto triste de adeus, que faz 
pesar seu corpo para um lado. Na manchete, Impeachment de Dilma sai hoje.” 
 
Naira pega e segura o jornal na sua frente escondendo o rosto. Começa a rir, depois 
gargalhar até que o riso se transforma quase em um grito de desespero. 
 
A meu ver, esta cena consegue evocar um imenso desespero de um indivíduo que sente 
que o mundo todo está conspirando contra ele e cujo trabalho de anos está sendo destruído em 
um instante. Isso me remete à força destruidora da natureza e à fragilidade do ser humano em 
um mundo que não é dele, mas que ele tem a pretensão de controlar, porém que restará sempre 
indominável, principalmente, se considerar o fator tempo. É importante ressaltar, que eu não fui 
buscar esta reflexão nesta performance, a cena que me remeteu à solidão e à fraqueza do ser 
humano e me levou às ponderações de como eu me sinto diante de forças maiores. Já tive essa 
sensação olhando o céu em algum lugar do Sertão em noite de lua nova, viajando de moto e 
acampando em algum leito seco de um rio . 17
 
 
Um outro momento marcante foi durante uma caminhada solitária na ilha sul da Nova 
Zelândia, longe da civilização e imerso em uma natureza exuberante. Senti a tragicidade de ser 
17 h�ps://www.flickr.com/photos/tombh/14137504265 
8 
o único espectador de um palco grandioso. Vivenciei uma mescla de opressão com júbilo, uma 
intensificação do momento, que levou a um esvaziamento dos valores adquiridos, igualando a 
minha importância a de um grão de areia. 18
 
 
 
O mundo não está à frente do sujeito como um objeto que pode ser observado e 
analisado de forma neutra. De acordo com Lehmann (2014, p.146), estamos inseridos nele 
como seres dinâmicos, com nossos corpos, sensações e pensamentos, em estruturas voláteis, 
atravessadas por milhares de conexões, conscientes e inconscientes e com a tarefa impossível 
de lidar com a totalidade destas relações. Vivenciamos na experiência trágica uma permanência 
do imaginário emocionalmente carregado, sempre com um elemento surpresa, distanciamento, 
reflexão ou de ‘ insight ’ momentâneo. Mesmo em um sujeito, a experiência é constantemente 19
quebrada, fragmentada e não pode ser inteiramente fixada ou conceituada. É a conjugação de 
uma dimensão individual com uma coletiva, do passado histórico geral com o pessoal, onde 
intercorrem fusões do consciente com o inconsciente, influenciadas de forma oscilante por 
nossas escolhas. 
 
Apesar de tudo isso, não se deve elevar a experiência trágica a um evento totalmente 
incompreensível ou a uma dimensão do estranho, que escapa por inteiro a uma conceituação. 
No entanto, também não se pode reduzir a experiência a um fato cognitivo objetivo e 
inteligível, em que não há mais necessidade de reflexão a respeito. Há requisitos e vivências 
que caracterizam e influenciam uma experiência trágica e estes precisam ser destrinchados para 
18 https://www.finetoursnewzealand.co.nz/scenic-drives-south-island-new-zealand-blog182 
19 Literalmente: ‘olhar para dentro de si’ 
9 
formarem um conjunto que deixam este fenômeno mais averiguado e para que se possa , ‘quod 
sid demonstrandum’ , tentar reproduzir as condições para a experiência trágica acontecer 20
recorrentemente. 
 
O trágico teatral 
Em alemão existem duas palavras para tragédia, a ‘ Tragödie’ e o ‘ Trauerspiel’ . 21
‘Trauerspiel’ significa literalmente ‘ jogo da tristeza’ . Este ‘ jogo da tristeza’ deve ser entendido 
como uma prática de lidar com a perda, trazendo a morte para o presente, através de um ritual, 
uma invocação ou por uma exposição. Tragédia, entendida assim, não é representação, não 
oferece uma imagem do mundo, nem sua descrição, ela é exceção, um encantamento do mundo 
para tentar aliviar ou ajudar a enfrentar a finitude da vida. 
 
Para o espectador o trágico teatral pode representar uma experiência queinclui uma 
articulação estética, sem ser um fenômeno da realidade, que pode ser descrito como um modo 
artístico de reconhecimento do mundo, porém sem denotar uma caracterização do ser humano, 
nem um modo de se colocar perante a sociedade. Este trágico transcende um simples fenômeno 
estético ou um processo do pensamento, exprimindo também um afeto, o qual não pode ser 
reduzido somente a um processo filosófico de reconhecimento ou de reflexão. 
 
A meu ver, trata-se de um catalisador que age sobre diversos níveis, um impulso sem 
direção definida, que se metamorfoseia em uma experiência trágica consoante às idiossincrasias 
específicas em cada sujeito. Em suma, o mesmo impulso pode significar uma forte emoção para 
um dado indivíduo, enquanto passa completamente despercebido por outro. A performance da 
despedida de Dilma poderia me conduzir a questionar profundamente a minha própria razão de 
existir, ao passo de apresentar-se inócuo a outro. Imprescindível para tal acontecimento é o 
afeto, apesar da multiplicidade das formas de afetação dos sujeitos. 
 
Esse afeto se dá pela conexão com o depreendido e pela configuração de contaminação 
relacionada aos valores e pensamentos dos indivíduos e vinculado às respectivas associações 
20 O que deve ser demonstrado. Tradução F.D. 
21 Tragédia 
10 
com o mundo. Diferente de magnânimos momentos de encenações trágicas do passado como as 
tragédias gregas, no mundo moderno, a mística do excesso não precisa ser grandiosa, não há 
uma busca pelos excessos heroicos de outrora, mas exige-se uma aumentada atenção com o 
comum, como, por exemplo, através de um exame minucioso das subjetividades do homem 
moderno ou das microrrelações sociais. Assim, um simples gesto de despedida pode ganhar um 
sentido mais amplo. 
 
De acordo com Lehmann (2014, p. 603), Aristóteles entendia a tragédia como um 
ataque agressivo contra o público, para cumprir a função de gerar emoções, terror e piedade, 
ocasionando uma ‘ catarse’ incitando uma purificação, alimentado pelo intuito de tirar o 
espectador da sua posição confortável de mero observador e fazê-lo participar ativamente das 
questões relevantes para a ‘polis’. Esse pensamento pode ser expresso pelo seguinte 
enunciado: sem quebra de tabu não há arte que afete, sem riscos ou violações de preceitos 
provavelmente só se produz entretenimento. 
 
A meu ver, reality shows como por exemplo Big Brother Brasil , não trabalham com a 
verdade da recorrência da opressão, porém com uma exploração de sensualidades superficiais, 
com o prazer do sofrimento alheio e com a impostura de emoções mercenárias. Na minha 
opinião, um teatro de qualidade não pode ser inofensivo, ele deve perscrutar pontos 
vulneráveis ou angustiantes e, amiúde, é preciso trabalhar com o que é moralmente 
indefensável, com o intuito de tirar o público da zona de conforto. 
 
Infelizmente me parece que na sociedade atual prevalece um espectador buscando 
apenas entretenimento e diversão, lotando cinemas para assistir ‘blockbusters’ americanos, ao 
mesmo tempo, esvaziando os teatros. Esses espectadores representam um público buscando 
uma ‘cultura’ que quer esquecer o mundo como ele realmente é, a catástrofe constante, o 
sofrimento generalizado, a mentira e a hipocrisia. Já o teatro da tragédia e do excesso corre o 
risco de tocar em algo que seja lancinante, vergonhoso, assustador ou que incomode, algo que 
foi esquecido, escondido, negado ou que tenha desaparecido da superfície da consciência e 
por isso não atrai um público que busca entorpecimento. 
 
11 
Mesmo se vivemos em uma sociedade do discurso e das mídias, onde todos os tipos de 
quebras de tabus superficiais são o dia a dia da comunicação em rede, ainda existem muitos 
tabus. A arte trágica anda em uma linha tênue entre um verdadeiro questionamento da 
compreensibilidade cultural e uma provocação da moda. A tragicidade representa um risco 
concreto de ultrapassar uma fronteira. Ela é memória da ‘ hybris’ , do desejo de transcender o 22
limite, que faz parte da tentativa humana de auto definição. 
 
Conforme Lehmann (2014, p.172), existe uma conexão entre a formação do sujeito e a 
linguagem clássica das tragédias. O verso das tragédias tende a ser duro e afiado, criando, 
propositalmente, um isolamento e distanciamento do herói, alienado em sua peleja solitária, 
cercado por destruição e desolação. Essa linguagem da antiguidade não refletia apenas uma 
convenção retórica, ela fazia parte da manutenção do distanciamento e correspondia 
diretamente à experiência trágica. A exposição da presença física do herói na tragédia clássica 
era destacada pela solitária exibição do seu corpo no proscênio, visivelmente separado do coro 
e do público. Isolado, com sua voz saindo por trás de uma máscara, inserido no imenso espaço 
do ‘ theatron’ abaixo do céu aberto. Esta exibição do corpo do ator do herói no espaço vazio, 
objeto dos olhares e da atenção acarretava seu julgamento, primeiro pelo coro e, em seguida, 
pela pólis inteira, e, em conformidade com o pensamento da época, até dos deuses. 
 
O indivíduo do Ocidente nascido no período clássico, assim a argumentação de 
Lehmann prossegue, tomava consciência de sua individuação e realidade específica, exatamente 
no momento em que ele escolhia assumir este lugar de elevação no palco da vida. O sujeito 
compreende neste instante específico, que o desejo de elevação causa isolamento e solidão, em 
razão da escrutinação implacável pelos outros, justamente por sua posição elevada. Diferente do 
herói da tragédia grega, onde o mesmo comparece perante a polis sabendo de antemão, que será 
condenado ao sofrimento e à morte. 
 
O traço do inescapável de quem se expõe e cuja decorrência é notória, é o fundamento 
do teatro trágico. Isto compreende o paradoxo de que estas figuras chamam o destino sobre si 
mesmas, causando a ruína pela ambiguidade da ação autônoma, porém, de alguma forma, 
imposta para eles. Novamente trata-se de uma linha tênue entre o inevitável e o lógico. A partir 
22 Do grego: o que passa da medida, descomedido. 
12 
do momento em que o destino se torna moralmente correto ou histórico, a experiência trágica 
deixa de existir e a tragédia se transforma em uma lição moral, religiosa ou histórica, perdendo 
seu efeito renovador. 
 
A tragédia teatral no mundo contemporâneo 
Em tempos incertos de conflitos inescrutáveis ao redor do mundo, onde assistimos e 
vivemos de forma impotente as crises e catástrofes cada vez mais diversas, a fé anti-trágica do 
poder da razão, de resolver de forma pacífica os problemas encontrados em todos os níveis e 
lugares, está se esgotando. A meu ver, fica cada vez mais difícil idealizar soluções ou pessoas 
específicas que possam resolver as inúmeras questões do mundo contemporâneo e faz pouco 
sentido fantasiar com heróis éticos os quais, com uma cura miraculosa, resolvem as questões 
que a humanidade enfrenta atualmente, principalmente se o cenário político, social e 
econômico denuncia uma outra realidade.Já não convém mais a falsa estilização dos 
poderosos, que se tornou ridícula diante da anonimidade dos processos económicos, 
geoestratégicos e sociais que pesam na vida das pessoas. A TV oferece aos observadores 
passivos um triste espetáculo de um mundo falido e nada mais acontece, a não ser a sensação 
de desamparo que aumenta junto com a sensação de impotência. 
 
Por isso a tragédia teatral mantém sua relevância até hoje, já que no teatro da tragédia 
pode-se apresentar um retrato desiludido do sofrimento e do fracasso, sem buscar emoções 
‘baratas’ pelo uso de utopias ou estilizações, que representam apenas um apaziguamento ou 
uma falsa ilusão. Pela compaixão com a fraqueza humana, pela conscientização da 
inadequação, da convivência com o terror, medo e o abalo dos ideais culturais, a tragédia tem 
uma ação anti-ideológica (LEHMANN, 2014, p.595). Essa qualidade pode provocar um 
antídoto à ideologização rasa da realidade com o qual a consciência tenta superar seu 
desamparo. Assim, o teatro da tragédia pode ir além de um posicionamento político, ele pode 
ganhar sentido pelo desencantamento dos mitos consoladores da possibilidade de viver em 
harmonia neste mundo, e no melhor caso convidar as pessoas a refletirem sobre seus destinos. 
 
De acordo com Lehmann, no teatro contemporâneo os excessos trágicos podem se 
manifestar tanto por distúrbios agudos como por uma frugalidade silenciosa, levando a uma 
13 
acentuação das incertezas e um auto-questionamento do teatro. Lehmann chama este teatro do 
‘entre’ (LEHMANN, 2014, p.598), por criar uma tensão, um desejo de ver mais, sabendo da 
impossibilidade de ver ‘tudo’. A situação teatral reflete o momento da conscientização trágica 
do desejo. O aparecimento de algo que nunca aparecerá, uma cisão trágica intermitente que 
fratura o modelo da possibilidade de apresentação. A tragédia teatral desafia o pensamento 
retilíneo e simplista, mostrando que um comportamento ético e nascido da razão, pode levar 
ao fracasso. 
 
Uma constelação pode aparecer, por exemplo, em um conflito onde dois partidos têm 
um direito normativo fundado. Cada um dos lados se sente amparado pelo direito absoluto, 
causando uma cegueira que torna o próprio direito como único, podendo prevalecer destarte 
apenas se tiver negando o outro. A tragicidade desta incompatibilidade pode aparecer a um 
público que observa esta constelação de outra perspectiva, idealmente neutra, por não estar 
defendendo a princípio nenhum dos pontos de vista. A distância do espectador é necessária 
para a compreensão do trágico, porque na vida real esta separação é inexistente. No fracasso 
existencial, a dor infinita do próprio erro é irremediável e destrói qualquer distância para o 
jogo teatral. Através do olhar estético, o sentido de unidade de uma tragédia é possibilitado e, 
pelo atravessamento de uma experiência trágica, pode-se chegar, a um auto-conhecimento. 
 
Tragédia sem o formato dramático 
Lehmann dedica uma grande parte do seu livro à análise da tragédia em um contexto 
dramático. (Lehmann, 2014 p.236-488) A experiência trágica exige a presença do trágico, 
porém quando se discute a tragédia teatral, o mais comum é se referir ao trágico em um 
contexto dramático, muitas vezes enquadrado em uma narrativa com início, meio e fim. Para 
que aconteça uma experiência trágica no teatro contemporâneo, a tragédia teatral precisa ser 
desvencilhada da identificação com o formato dramático. 
 
Mais de dois mil anos após os parâmetros teatrais aristotélicos, a tragédia teatral 
contemporânea pode se caracterizar por uma opacidade e ausência de transparência, resistente 
a uma ampla penetração perceptiva e a uma maior racionalização. O teatro contemporâneo 
não se singulariza pelo drama, mas se evidencia muito mais por ações corporais e cênicas, 
14 
acontecimentos auditivos e visuais em um espaço e tempo específico, com um processo 
material que implica uma deslocada afetação do espectador. Nos últimos 30 anos foram 
criados uma multiplicidade de abordagens, adaptações e atualizações da tragédia teatral. O 
motivo trágico pode se realizar no teatro contemporâneo tensionando as convenções 
tradicionais e as auto-confirmações culturais. Não se trata de desconsiderar ou eliminar o 
dramático por inteiro, mas de oferecer uma outra abordagem. e levar ao público um outro 
repertório cinestésico e mímico ou de criar uma atenção distinta, por exemplo, pelo uso de 
uma linguagem desnaturalizada através das linguagens corporais e gestuais. 
 
Assim, o caminho para uma experiência trágica no teatro contemporâneo resulta em 
uma formulação do excesso trágico e uma reflexão virulenta do momento. Encontrei 
elucidações a respeito em alguns textos de Heiner Müller (Heiner, Gespräche 1, 2008a, p.442) 
onde ele constata, por exemplo, que é difícil existirem textos teatrais que já venham com a 
cena predefinida. Cada vez mais os autores e diretores querem fomentar a participação ativa 
dos espectadores na construção de cenas, criando mundos imaginários individuais, através de 
um questionamento afetivo inesperado do quadro teatral. 
 
Para Heiner Müller, querer levar uma história pronta para o público, querer ‘explicar’ 
ou construir pontes tratava-se de um engano, pois espectador deveria ser levado para um 
espaço próprio de arte e de imaginação, criando sua realidade única, mantendo-se contra a 
realidade externa com uma existência própria. Como diretor, Heiner Müller pedia para os 
atores ‘separarem’ o texto das ações, em outras palavras, não representarem o texto com o 
corpo, fugir das ligações óbvias entre o texto falado e a respectiva corporeidade. Com isso, ele 
buscava incomodar o público, tirá-lo da zona de conforto e das convenções sem dar espaço 
para uma reflexão dominada pelo racional. Através desta separação, Müller buscava uma 
atenção aumentada, dificultando a posição de um mero observador sem envolvimento. 
 
A encenação pode afirmar um ponto de vista em um momento e afirmar o contrário 
logo em seguida, desdizendo o que foi dito um minuto antes. Desta forma, a encenação cria 
uma dificuldade específica com o intuito de oferecer ao público a oportunidade de assumir um 
ponto de vista próprio. Heiner Müller queria que o espectador se sentisse como estivesse 
sendo julgado em um tribunal. (MÜLLER, Heiner, Gespräche 1, 2008a, p.443) Heiner Müller 
15 
pôs isso em prática na encenação de HAMLET-MASCHINE com a estreia no dia 24 de março 
de 1990 no Deutsches Theater em Berlim. A encenação tinha uma duração de quase oito 23
horas iniciando com o texto a seguir: 
 
Eu era Hamlet. Estava parado à beira-mar e falava BLA-BLA com a ressaca. Atrás 
de mim, as ruínas da Europa. Os sinos anunciavam os funerais nacionais: assassino e 
viúva um casal: em passo solene atrás do caixão do nobre cadáver os conselheiros, 
choramingando em luto mal pago. QUEM É O CADÁVER DO CARRO FÚNEBRE 
/ POR QUEM TANTO SE CHORA E TANTO SE GRITA / O CADÁVER É DE 
UM GRANDE / HOMEM QUE DAVA ESMOLAS, nas fileiras da população,obra 
de sua política. ERA UM HOMEM QUE APENAS TOMAVA TUDO DE TODOS. 24
 
Numerosas associações são possíveis a partir deste texto, além das referências mais 
óbvias ao Hamlet de Shakespeare , a obra trata de guerras e ditaduras, dos gêneros e da 25
morte, remetendo-me especificamente à Kafka , quando aparece o inevitável, na descrição de 26
algo indescritível, escondido no fundo da alma humana, mas sempre presente pela ameaça 
suprimida. Esta criação possibilita abundantes interpretações, abrangendo muito ‘material’ e 27
uma apresentação das poucas linhas deste composição teatral transforma-se destarte em algo 
exigente para o público. Uma ‘abertura’ para perspectivas múltiplas depende em grande parte 
do espectador no qual a recepção ocorre . Assim, a inserção no momento histórico traz uma 28
grande diferença. Quem viveu na RDA durante a ditadura vai fazer uma leitura diferente de 29
quem viveu no outro lado do muro de Berlim e ambos vão ser impactados de forma distinta 30
23 https://www.deutschestheater.de/ 
24 MÜLLER, Heiner. Medeamaterial e outros textos. Tradução de Christine Röhrig e Marcos Renaux 
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. p. 206 
25 William Shakespeare (1564 - 1616) foi um poeta, dramaturgo e ator inglês, tido como o maior 
escritor do idioma inglês e o mais influente dramaturgo do mundo. 
26 Franz Kafka (1883 — 1924) foi um escritor de língua alemã, autor de romances e contos, 
considerado como um dos escritores mais influentes do século XX. Em relação à morte, refiro-me 
principalmente à ‘Metamorfose’ e à morte de Gregor pelas maçãs arremessadas pelo pai. Uma morte 
nesse sentido para mim é o final da Parte II da ‘Estrada V’ quando o homem se transforma 
parcialmente em uma mesa. 
27 Termo muito usado por Heiner Müller 
28 Para mim, esse texto remete muito às múltiplas interpretações possíveis do ‘Fausto’, de Goethe, 
onde cada nova leitura descortina outras compreensões. 
29 A Alemanha Oriental, oficialmente República Democrática Alemã (RDA), foi um Estado criado em 
1949 no território da zona de ocupação soviética após a segunda guerra mundial. 
30 O Muro de Berlim foi construída em 1961 pela RDA durante a Guerra Fria para manter a divisão 
política da Alemanha. 
16 
logo após a queda do muro . Em Müller, o corpo do espectador é ‘atravessado’ e, 31
dependendo da sua ‘porosidade’, arrastado em uma ou outra direção. O objetivo não é o 
público entender algo ou receber uma mensagem predefinida. Trata-se mais de um convite 
para esvaziar-se e sentir a presença de uma polifonia, convidando cada um a se deixar levar 
para uma forma de concepção. Não há uma moral, nem soluções, são apenas fomentos para 
processos de pensamentos, trazendo impressões de profundas angústias e advertências, como 
também incompreensão e rejeição. Para mim, Müller expressou isso em seu poema 
“Schwarzfilm” do ano 1993: 32
 
Das Sichtbare 
kann fotografiert werden 
O PARADIES 
DER BLINDHEIT 
Was noch gehört wird 
Ist Konserve 
VERSTOPF DEINE OHREN SOHN 
Die Gefühle 
sind von gestern Gedacht wird 
Nichts Neues Die Welt 
Entzieht sich der Beschreibung 
Alles Menschliche 
Wird fremd 33
 
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche reflete a tensão entre a gravidade existencial da 
tragédia e a liberdade estética do público em algumas fases do seu pensamento. Considerando 
que o participante e observador tem perspectivas sobrepostas da existência, o teatro fornece 
uma participação por analogia. Nesta perspectiva, as características do teatro abrem uma 
liberdade que Nietzsche resumiu na metáfora do ‘terceiro olho’, que enxerga o teatro do 
mundo com uma certa distância e encontra um refúgio nisso, mesmo quando as paixões 
31 Durante uma onda revolucionária de libertação iniciado pelo líder soviético Gorbachev, o governo 
da Alemanha Oriental anunciou em 9 de novembro de 1989 o fim do muro. 
32 MÜLLER, Heiner. Werke 1: Die Gedichte Herausgegeben von Frank Hörnigk. Berlin: Suhrkamp 
Verlag, 1998 ‘Filme preto ’ Tradução F.D. 
33 O visível / pode ser fotografado / OH PARAÍSO / DA CEGUEIRA / O que ainda se ouve / É 
conserva / ENTOPE SEUS OUVIDOS FILHO / Os sentimentos / são de ontem Não tem / pensamento 
novo O mundo / foge da descrição / Tudo humano / Fica estranho. Tradução F.D. 
17 
parecem tomar conta do sujeito (NIETZSCHE, 2007, p.311). O teatro, visto assim, ‘abre o 
terceiro olho’ para descortinar, através dele, os outros dois mundos. 
 
Esta metáfora se destaca pela compreensão de que é preciso uma visão imaginária 
como alargamento do ponto de vista mais ‘objetivo’. É um aumento da visão para dentro, que 
permite que o indivíduo crie um distanciamento para si mesmo, para poder se enxergar. Isto 
leva ao reconhecimento implacável da possibilidade de autodestruição. De acordo com 
Trautsch (2008, p. 7), o conhecimento trágico, que acarreta a perda de confiança no mundo, 34
pode trazer a perspectiva de um auto-conhecimento distanciando, que faz com que o sujeito 
possa suportar a vida, para gradualmente compreender, que a tragédia permite uma forma 
existencial de enxergar o mundo. 
 
Em nosso mundo midiatizado é importante ressaltar, que o trágico não é um simples 
mecanismo de acionamento emocional, onde uma dimensão privada traz uma reação individual 
de pena ou de comoção. O trágico, ao qual eu me refiro aqui, é oriundo de um processo de 
construção de cena, figura ou de ações, seguido de uma cisão do estético e uma reflexão, que 
pode levar a uma compreensão distinta da apreensão do herói, sendo esse um entendimento que 
articulou uma conexão com um espectador específico. A vivência do herói é transmitida de 
forma estética, e através da projeção, compreensão e da empatia, essa assimilação pode levar a 
uma experiência compreensível do receptor, que é distinta para cada um, de acordo com sua 
subjetividade. Como então diferenciar entre o trágico e o apelo emocional? Essa diferenciação 
não é inteiramente objetiva, porque o trágico pode aparecer em muitos momentos, porém o 
primeiro divisor é a cisão do estético. Se temos apenas um acúmulo de momentos trágicos que 
querem somente atrair a atenção do espectador, nada mais vai acontecer. 
 
De acordo com Lehmann (2014, p.181), a comoção ou a identificação precisa ser 
interrompida, o espectador tem que enxergar o trágico com um distanciamento, superar a 
emoção pura e criar um separação pela conscientização do processo de apresentação. Isso pode 
acontecer através de um questionamento da sua própria presença como espectador, seu papel de 
observador, com a sua identidade presumida, que também é questionada neste processo. Se o 
34 Formado em composição, filosofia e germanística em Berlim e Londres com doutorado na 
Humboldt University, Berlim. Co-fundador da editora LUNARDI. 
18 
apelo emocional traz só uma afirmação de presença, o trágico pode acarretar a exposição ou 
uma deposição do sujeito. 
 
Um exemplo disso para mim é a performance de San Mascarenhas apresentada no 35
Deart em 2015, onde San se pendurou na árvore na frente da lanchonete, com ganchos de carne 
de açougue enfiados por um especialista de perfuração na pele das costas. Há uma transgressão 
das normas, da moral, do bom senso. Imaginei a dor com um gosto de horror, porém há uma 
mistura de prazer natransgressão, um alívio de não sentir a dor na própria pele, destarte, um 
foco muito grande imaginando como deve ser esta sensação específica de se pendurar desta 
forma. Em um segundo nível tem uma forte estetização do corpo pintado todo de branco, o 
rosto impassível e a recitação de poemas com uma intensificação da corporalidade extrema 
através de uma gota de sangue que desceu lentamente pelas costas saindo de um dos buracos 
furados. Continuamente senti uma invasão do real, a dor física, mesmo imaginando a 
preparação e o consentimento da performer. A estetização é quebrada pelo questionamento se 
eu quero ver isso, misturado com a pergunta sobre a motivação da performer para esta ação. Me 
coloquei a pergunta: por qual motivo eu me submeteria a um procedimento desse? Sendo assim, 
para mim houve uma experiência trágica e lembro dela bem até hoje. 
 
O trágico teatral como jogo 
A tragédia no teatro, sendo mais ou menos dramático, é uma possibilidade de explorar, 
através do jogo, a conflituosidade de situações específicas, que podem ser alimentadas, por 
exemplo, por interesses em questões pessoais, políticos ou culturais. Muitas vezes, essas 
indagações se inspiravam tanto em fatos reais quanto em mitos, com uma relevância real para a 
respectiva situação. Na modernidade, estes conflitos são cada vez mais difíceis de serem 
captados pela representação de ações simples e como houve uma mudança considerável dos 
paradigmas do teatro no século XX e XXI, estes não se restringem mais exclusivamente à 
lógica das apresentações dramáticas. 
 
35 San Mascarenhas é atriz e performer de São Paulo e trabalha entre outros temas com a prática da 
suspensão corporal. http://www.frrrkguys.com.br/entrevista-com-a-artista-multimidia- 
san-mascarenhas/ Acesso em 14/02/2018 
19 
Com a redução do uso dos meios dramáticos e com a valorização de outras formas 
teatrais, que deixaram a escrita teatral fora do topo da pirâmide das hierarquias, se buscou a 
tragédia em outros formatos, além do texto literário representado no formato dramático. Na 
consideração da tragédia teatral houve uma ampliação das visões para outros fatores além do 
texto. A tragédia não se encontra apenas na escrita, nem depende somente de uma dramatização 
teatral, ela se cria na presença, na pluralidade de vozes, em uma dinâmica própria e em uma 
constelação específica teatral. De acordo com (LEHMANN, 2014, p.154), o princípio básico da 
tragédia no teatro contemporâneo não é a ‘mimese’ , o foco está no jogo teatral com todas as 
suas implicações e conexões com o público, que permite uma abertura para outros horizontes, 
talvez, até, uma penetração do porvir mais profundo do que dantes. 
 
A tragédia e a morte 
O confronto com a morte é uma experiência solitária, mas os pensamentos a respeito se 
referem muito mais à morte do outro. Quando penso na minha morte, penso mais o que isso 
poderia causar aos outros, do que tento imaginar a passagem para o desconhecido. A palavra 
‘ morte’ parece uma metáfora vazia para algo desconhecido, como o nada absoluto, mas a 
experiência do vazio, sua insustentabilidade e intolerabilidade é muito pessoal. Para enfrentar 
este dilema dos seres humanos, a tragédia teatral inserida em um coletivo teatral oferece uma 
possibilidade de se aproximar à morte de uma forma muito singular. No caso de sofrer afetos 
muito fortes, penso que existe uma tendência de se unir a outras pessoas. Em um funeral ou um 
momento de grande tristeza, com emoções significantes fora do dia a dia, que vão além de uma 
comoção passageira, muitos sentem vontade de se reunir aos outros. O motivo pode ser a 
necessidade que temos para dividir o peso da perda ou para não termos que enfrentar sozinho a 
face da morte. O teatro da tragédia cria uma ponte, uma comunicação entre o mundo dos vivos 
e dos mortos, ele oferece uma aproximação a um pensamento indesejável, porém inevitável 
para a maioria em algum momento. 
 
Uma das questões da tragédia contemporânea é a mudança do significado da morte e a 
relação das pessoas com o fim da vida. Na sociedade moderna, a morte é combatida na ciência 
e na tecnologia, ela se transformou em um longínquo horizonte inimigo e ela perdeu seu 
20 
respeito como realidade cultural. A morte se tornou perversa, sem espaço de realidade, sem real 
significado, apenas pensado, no último caso, como condição final do corpo. 
 
A tragédia teatral pode oferecer uma abordagem e um significado diferente da morte 
como ela é tratada na cultura trivial, que oferece uma abundância de mortes em noticiários, 
seriados e filmes como também em guerras e catástrofes reais ou fictícias. Para Lehmann (2014, 
p.174,177), essas mortes não fomentam uma reflexão, elas representam mais um 
apaziguamento, um pseudo-tratamento, no qual as mídias atuais se especializaram, 
explorando-as, apenas para ganhar mercado. Os meios de comunicação em massa buscam 
emocionar o público apenas para ganhar mídia, porém não aprofundam o tema. Disso resulta 
um medo difuso da catástrofe, violência ou do ataque terrorista e uma sensação discreta de 
alívio de não se encontrar neste meio, misturado com sensacionalismo e um desejo de ver mais. 
 
O trágico e o sujeito 
Conforme Lehmann (2014, p.586), o homem da antiguidade sofre a experiência da 
impotência da sua autonomia de ação, contra toda a potência dos deuses do Olimpo, porém, 
desde aquela época, já alimenta uma semente de revolta contra a ordem mítica estabelecida. O 
sujeito da tragédia do século XVI e XVII se articula e se constitui pela rivalidade e luta por 
reconhecimento nas relações interpessoais. É nesta época que o sujeito começa a tomar conta 
da realidade e ter, aparentemente, algum controle sobre sua existência. É o ponto alto do 
teatro dramático, que abala e critica justamente esta consciência autocrática. No final desta 
linha temos o sujeito fraturado da contemporaneidade, com as categorias tradicionais 
dissolvidas, que eram o fundamento da concepção da pessoa dramática. Nesta dinâmica da 
história da tragédia encontramos analogias notáveis entre o teatro da antiguidade e as formas 
mais recentes de teatro. Há uma retomada da proximidade com o ritual, do conceito do coro, 
de uma medialidade além do texto, criando um outro tipo de subjetividade. 
 
Mas, ao longo de toda esta trajetória, o impulso trágico nunca desaparece 
completamente. O trágico como experiência de uma excessividade interna, de uma 
auto-transcendência do sujeito, se mantém em muitas formas teatrais, não só no drama, 
encontrando no teatro uma condição essencial de apresentação. Neste contexto, o trágico no 
21 
teatro contemporâneo investiga o sujeito fragmentado do mundo atual, tocando na antiga e 
sempre renovada experiência do excesso. A descrição do ser humano através das suas 
paixões, pretensões, aparentes ou verdadeiras loucuras e, às vezes, até pelas suas inércias ou 
incapacidades de agir, se define em grande parte pela sua luta contra padrões estabelecidos, 
sua busca por esticar os limitesalém do permitido ou do pensável. Assim, de acordo com 
Lehmann (2014, p.586), o destino fundamental do caráter trágico é seu desejo não negociável, 
na investigação por uma verdade absoluta e incontestável, em um mundo onde não há certezas 
e postulados irrefutáveis. 
 
Para Lehmann (2014, p.587), a tragédia é um formato exemplar de apresentação do 
dilema da impossível unidade humana. O trágico acontece onde a subjetividade experimenta 
seus limites e uma necessidade interna de se desvendar se torna contra si mesmo. Tem algo 
que impulsiona o ser humano para explorar suas fronteiras, parece que a vida em si não é 
suficiente, algo importante acontece quando alcançamos o limite do possível, testando as 
demarcações do âmbito do inconcebível. 
 
De acordo com Lehmann (2014, p.589), na presença do trágico, a perda de substância 
do sujeito se articula, como uma característica da realidade filosófica e sociopsicológica do 
mundo contemporâneo. Não se trata de uma liquidação do sujeito, mas de outras abordagens, 
focando ações impensáveis, tentando encontrar imagens para algo, que não se deixa enquadrar 
nos argumentos morais, filosóficos ou políticos comuns. Com a perda da segurança do 
pensamento de uma continuidade do indivíduo, sua fragmentação e reconstrução incessante, o 
conceito de unidade do sujeito se torna um mito, dividido pela Sociologia em vários papéis, 
que precisam ser negociados para formar algum resto de identidade. 
 
 Lehmann ainda argumenta (2014, p.589), que a formação da consciência do sujeito se 
dá por um campo de pistas espalhadas no inconsciente que, muito por acaso, podem constituir 
a confissão de uma ‘verdade’ que não consegue se justificar e que não garante uma verdadeira 
autoconfiança do sujeito. Isso é uma possível resposta à consciência da determinação das 
nossas ações sociais, inconscientes, culturais e biológicas, que buscam heróis compensatórios 
com verdadeiras capacidades para lidar com este mundo, porém trazendo a consequência de 
tirar a consciência de responsabilidade do indivíduo. A tragédia traz à tona esta impotência 
22 
que, diferente das imagens compensatórias de heróis, não permite uma auto-descarga, mas 
aponta para o abismo. 
 
A meu ver, a questão da identidade do sujeito contemporâneo se coloca cada vez mais 
na virtualização do nosso mundo. Identidades são apropriadas e trocadas espontaneamente, 
relações e responsabilidades são assumidas e, da mesma forma, facilmente deixadas. A falta 
de identidade é quase natural, apesar de uma sensação virulenta da experiência de desamparo 
desesperador. 
 
O teatro contemporâneo espelha essa tendência em encenações repletas de elementos 
‘pop’, vídeos, jogos frontais, discursos agressivos e quebras estilísticas criando, destarte, um 
espaço aberto, parecido com a realidade do dia a dia, preenchido por processos de 
alargamento e superficialidade apontando para uma dimensionalidade rasa da vida. O valor da 
profundidade caiu, no seu lugar ficou a vida em rede, conectada superficialmente, copiada, 
infinitamente reproduzida, encaminhada e multiplicada. A cultura e a identidade ficaram 
planas, mal preenchidas pelos fluxos de informações interligadas e infinitamente 
diferenciadas, com percepções superficiais de encontros sem profundeza. 
 
A dramatização de uma informação é um dos instrumentos usados por alguns meios de 
comunicação para explorar um fato, muitas vezes sem nenhuma importância, através dos 
afetos e emoções, com o principal objetivo de chamar atenção, de ganhar mais mídia, para 
logo em seguida ir para a próxima ‘notícia’, sem deixar nenhum vestígio de um pensamento 
mais profundo ou algum significado. Vivemos em um mundo inundado por informações, 
porém sem que estas acrescentem algo essencial às vidas. 
 
Poder-se-ia pensar que a dramatização aproxima a informação à realidade, porém se 
não tiver uma motivação específica, como por exemplo fomentar uma reflexão, a 
dramatização leva a um vazio, provavelmente sem deixar rastro, apenas para ser renovado por 
novas ‘informações’. Algumas destas informações tem a qualidade de permitir uma melhor 
dramatização, como notícias sobre catástrofes, guerras, crimes violentos, julgamentos e casos 
individuais de grandes sofrimentos de famosos. Esses acontecimentos foram usados, também, 
em tragédias, por representarem notícias atrativas, que permitiam iniciar um questionamento. 
23 
A grande diferença é que autores de tragédias buscavam por trás da superfície do terror e do 
afeto, uma profundidade humana maior, um questionamento, algo significativo para o mundo. 
Enquanto as notícias buscam apenas provocar, continuamente, uma série de afetos e emoções, 
a tragédia representa o momento da parada e interrupção, da reflexão sobre os 
acontecimentos. 
 
Para Lehmann (2014, p.593), o formato estrutural mais poderoso desta parada, desta 
suspensão, sempre foi o drama, por permitir um desdobramento de um contexto pelos meios 
dramáticos, levando a uma demora pensada na lógica interna dos acontecimentos, 
fomentando, por conseguinte, uma reflexão. Muitas mídias contemporâneas assumiram uma 
versão encurtada desta dramatização, usando a notícia da catástrofe pontualmente, sem a 
mediação do afeto com memória, reflexão e consciência crítica. O esquema do drama trágico 
como imaginário melodramático é tão comum, que as chamadas das notícias já são suficientes 
para iniciá-las. 
 
Entretanto, este microdrama só funciona na sua brevidade como melodrama, não há 
reflexão, nem profundidade de pensamento e, a meu ver, isso representa basicamente o mundo 
das mídias de comunicação social. Nas mídias socias como Facebook ou Instagram, apesar da 
nomenclatura ‘social’, observo muito pouco intercâmbio entre as pessoas. Prevalecem 
encaminhamentos de mensagens ou vídeos de origens anônimos, promovendo ações, dando 
mensagens ou divulgando receitas de cozinha de desconhecidos, tanto pelos encaminhadores 
como pelos que assistem. O que, no início, parecia fomentar uma troca maior entre um 
número aumentado de pessoas, se transformou, na minha opinião, em um mundo séptico de 
representações virtuais, quase sem conexão da pessoa consigo mesmo e entre os ‘conectados’ 
e milhares de ‘amigos’. 
 
Experiência trágica como experiência limiar 
A experiência trágica é uma experiência limiar. É uma passagem, um passo de um 
estágio para um outro e como não se trata de um acontecimento relâmpago, já que envolve 
alguns critérios, inclusive uma reflexão, remete a um transcurso, um recorte. Como a soleira 
24 
de porta, ocupando algum espaço que nem é dentro nem fora, a experiência pode levar você 
para um ou outro lado ou lhe segurar por algum tempo neste espaço de reflexão e 
questionamento. Esta ombreira ou umbral é um portal que remete à uma passagem mítica, um 
ritual, a separação de dois mundos cujo atravessamento pode transformar completamente o 
passante. A questão é onde encontrar estas transições nas sociedades ocidentais? 
 
Walter Benjamin (1982, p.617) escreve “In dem modernen Leben sind dieseÜbergänge immer unkenntlicher und unerlebter geworden. Wir sind sehr arm an 
Schwellenerfahrungen geworden.” A meu ver, a experiência trágica é uma forma de 36
experiência limiar cada vez menos experimentada devido à configuração atual da sociedade. 
Jeanne Marie Gagnebin (2014, p.38) reforça: 
 
Se o tempo na modernidade - em particular no capitalismo - encolheu, ficou mais 
curto, reduzindo-se a uma sucessão de momentos indistintos sob o véu da novidade 
(como no fluxo incessante de produção de novas mercadorias), o resultado dessa 
contração é um embotamento drástico da percepção dos ritmos diferenciados de 
transição, tanto do ponto de vista sensorial como no que diz respeito à experiência 
espiritual e intelectual. As transições devem ser encurtadas ao máximo para não se 
“perder tempo”. 
 
Penso que o desvio de pensamento não se encaixa no perfil de comportamento do 
consumidor, não há fomento à suspensão de valores, nem à indecisão . A disposição para 37
experiências limiares é ressecada, a vida é retirada, pouco se experimenta a intensidade da 
vida, nem se aproxima da dor da morte. Vejo poucos correndo riscos, a maioria padece no 
corre-corre extenuante do dia a dia e da indiferença de uma vida aparentemente administrada 
pelos padrões pré moldadas da sociedade vigente. A meu ver, a experiência trágica como um 
36 Dentro da vida moderna estas transições são cada vez mais irreconhecíveis e difíceis de vivenciar. 
Ficamos muito pobres nestas experiências limiares. Tradução F.D. 
37 Para exemplificar, quero trazer a experiência da minha filha mais velha, Sofia, que foi aprovada na 
Universidade de Miami. Lembrando da minha época de universidade na Alemanha, pensei que ela ia 
ter incentivos para refletir a sua vida, o mundo e os valores da sociedade. Constatei que a 
universidade dela, pelo menos no curso de economia, não fomenta esses pensamentos. A 
metodologia e o conteúdo são totalmente mercadológicos, é uma continuação do modelo escolar 
básico de transmissão de informações com único objetivo de inserir melhor o alumni no mercado de 
trabalho. Na minha análise muitas das universidades particulares do Brasil funcionam dessa forma, 
quando, ao invés de fomentar o pensamento crítico, apenas repassam conhecimento com o intuito de 
lucrar. 
25 
momento limiar é uma possibilidade de afetar as pessoas de forma profunda. Gagnebin (2014, 
p.40) comenta autores como Freud e Proust buscando: 
 
(…) reconquistar para o pensamento os territórios do indeterminado e do 
intermediário, da suspensão e da hesitação - contra as tentações de taxinomia 
apressada que se disfarça sob o ideal de clareza. (...) ousar pensar devagar, por 
desvio, sem pressupor a necessidade de um resultado ao qual levaria uma linha reta. 
Trata-se, portanto, de ousar abandonar as ilusões de soberania e de controle do assim 
chamado sujeito do pensar e do conhecer em prol da multiplicidade e da riqueza do 
real (...) 
 
Acho que podemos aplicar estes mesmos desejos para a experiência trágica como um 
momento de distanciamento de valores pré-fixados, de desvio e estranhamento . É uma 38
tentativa de extensão de um momento limiar escasso. Um desses instantes de experiência 
trágica natural é ameaça de vida, por exemplo, em caso de doença. Desde sempre observei 
que muitos grandes artistas passaram por uma ameaça de vida, que, a meu ver, fez eles 
repensarem seus valores para então se dedicarem à sua arte. 
 
Pré-requisitos para uma experiência trágica 
Critérios objetivos para o acontecimento de uma experiência trágica de um espectador 
são difíceis de designar, porém, Lehmann sugere a possibilidade de elaborar um construto 
teórico, com alguns critérios que podem, eventualmente, levar a uma experiência trágica. Sem 
dúvida, cada um destes critérios a seguir tem suas variações e em cada caso precisam ser 
analisados, como e até onde eles se aplicam. O objetivo é esclarecer por estes critérios como a 
experiência se constitui, para tentar facilitar a compreensão do referido fenômeno. 
 
Ação : O primeiro critério para Lehmann (2014, p.74) é a ação. Para que uma 
experiência trágica possa acontecer, faz-se necessário alguma forma de ação. Principalmente 
com o advento do teatro contemporâneo, não é possível criar uma conceituação unânime da 
constituição desta ação ou do formato respectivo. No teatro temos ação representada, a ficção, 
38 “Kafka foi o gênio do isolamento. Ensinou-nos que nada temos em comum com nós mesmos, muito 
menos com terceiros.” em BLOOM, Harold. Gênio: Os 100 autores mais criativos da história da 
literatura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p.226 
26 
mas existe ao mesmo tempo o processo da apresentação com atores, gestos e palavras. Ainda 
temos as dinâmicas que podem ocorrer entre os atores, como prevalece no teatro dramático, 
entre atores e público ou até mesmo entre os membros do público, como pode acontecer em 
uma performance. 
 
‘Phobos’ : Em segundo lugar, Lehmann afirma (LEHMANN, 2014, p.75) que, se 
tratando de experiência trágica , é preciso que o espectador passe por alguma experiência de 
medo ou terror ( phobos ). A tragédia mostra, evoca, articula o terror seja em uma figuração 
corporal, que desencadeia um temor, choque ou horror, seja pelo temor de que algo terrível 
possa acontecer. Esse momento deve ser veiculado em um contexto performático adequado, 
que deve se estender para além do aspecto literário, já que, na literatura, a relação entre autor 
e leitor é díspar da relação performance-plateia. No entanto, o medo experimentado não pode 
ser real, precisa-se resguardar um distanciamento adequado entre cena e público, para evitar 
que aconteça uma reação natural, como conflito ou rejeição. A consciência de segurança do 
público precisa ser resguardada, mas isso não significa que o temor seja menos intenso, uma 
vez que um terror imaginário pode revelar-se muito mais intenso do que um medo real. Na 
vida cotidiana experimentamos muitas vezes que a preocupação é pior do que o 
acontecimento de fato, sendo esta então apenas imaginária. 
 
Vivência estética : Ademais, seguindo o raciocínio de Lehmann (2014, p.77), faz-se 
imprescindível a construção de uma vivência estética, porque é o sentido da estetização que 
nos permite ganhar experiências a partir de sensações que, a rigor, não vivenciamos. Um 
medo criado pelo estético não se constitui absolutamente em falsa experiência, muito pelo 
contrário, por saber que a origem da sensação é teatral, este terror pode até ir além, 
propiciando uma sensação de liberdade singular. Nisso reside uma atração especial, quando o 
sujeito tem a consciência de vivenciar uma experiência real, sem contudo ter que passar pelo 
perigo real da origem da experiência. De acordo com Lehmann (2014, p.78), Hegel afirma , 39
que esta seria a única maneira pela qual o sujeito pode se aproximar suficientemente do medo 
e da morte, a ponto de poder tecer reflexões a seu respeito. 
 
39 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich Phänomenologie des Geistes. Leipzig, Verlag der Dürr’schen 
Buchhandlung, 1907, p.126 
27 
No século XVIII, Lessing recomendava na ‘Hamburgische Dramaturgie’ , que não 40 41
se deve explorar o medo à exaustão,

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