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Foracasadentro-Cunha-2020

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
JOSÉ MAYCOM DA SILVA CUNHA
FORA DE CASA, DENTRO DO MUNDO: 
REPENSANDO AS SEXUALIDADES E AS TRAJETÓRIAS DE VIDA DE RAPAZES POTIGUARES
Natal, RN
2020
JOSÉ MAYCOM DA SILVA CUNHA 
FORA DE CASA, DENTRO DO MUNDO:
 REPENSANDO AS SEXUALIDADES E AS TRAJETÓRIAS DE VIDA DE RAPAZES POTIGUARES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
– UFRN, como requisito para obtenção do
título de mestre em Antropologia Social.
Orientadora: Elisete Schwade.
Natal, RN
2020
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN 
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. 
UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA
Cunha, José Maycom da Silva. 
 Fora de casa, dentro do mundo: repensando as sexualidades e as trajetórias de vida de 
rapazes potiguares / José Maycom da Silva Cunha. - Natal, 2020. 
 133f.: il. 
 Dissertação (mestrado) Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Pós-Graduação em
Antropologia Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020. 
 Orientadora: Profa. Dra. Elisete Schwade. 
 1. Homossexualidade - Dissertação. 2. Deslocamentos - Dissertação. 3. Família - 
Dissertação. 4. Projetos de vida - Dissertação. 5. Universidade - Dissertação. I. Schwade, 
Elisete. II. Título. 
RN/UF/BS-CCHLA CDU 39-055.34(813.2)
Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710
AGRADECIMENTOS
Devo agradecer, primeiramente, ao meu leitor em primeira mão e comentador atencioso,
Diego Pires, m’amoreux. Seu cuidado tem se tornado grande potência em meus escritos. À
minha mãe, por ser inspiração diária de luta e garra, além de ser uma sonhadora, minha
admiração. Um agradecimento especial à Socorro Gualberto, por ser uma amiga tão generosa
a quem devoto o máximo de apreço. À profa. Elisete Schwade, pela paciência durante o
processo de orientação, demonstrando serenidade no fazer antropológico que tanto dialoga
com o fazer pedagógico. Incluo também o sabor especial de seis anos de convívio, sem
sombra de dúvida, significativos para minha experiência com a Universidade. À profa. Elaine
Tânia Martins de Freitas por uma ótima experiência em “Seminário de Pesquisa”. Aos meus
colegas/as de turma que por muitas tardes compartilhamos angústias e felicidade na
elaboração de nossos projetos de pesquisa: Adara Pereira, Felipe Nunes, Ricardo Ximenes,
Cândido Firmino Júnior, Iadira Impanta, Jannayna Amorim, Jéssika Rufino, Lênora Peixoto,
Michelle Ratto, Pietra Azevedo, Sebastião Santos, Telma Bezerra, Thaís Valim e Wendell
Costa. À Telma, especialmente ao seu carinho e bilhetes cheios de energia e motivação. À
Thaís por ser uma pessoa tão boa de se conversar com a qual sempre podemos produzir algo
novo, foi um bom encontro. A Arthur Leonardo por quem tenho afinidade de alma e a quem
sempre proporciona uma boa ideia. A Cleiton Vieira, pelas conversas tão construtivas quanto
aulas, pela amizade. Ao prof. Paulo Victor Leite Lopes, pelas incomensuráveis discussões e
contribuições dentro e fora da sala de aula. Conto como positivos nossos diversos diálogo de
corredores. À profa. Angela Facundo Navia, pelo sorriso generoso e pela capacidade em
tornar cada minuto tão proveitoso quanto necessário. À profa. Rozeli Porto pelas proveitosas
discussões sobre gênero, sexualidade e saúde. À profa. Juliana Melo por sua maestria em
apresentar a beleza que há na história da Antropologia. Ao prof. Felipe Bruno Martins
Fernandes por sua leitura atenta e minuciosa desta pesquisa, assim como as excelentes
contribuições para novos caminhos de pesquisa. Aos/às amigas Roque Chianca, Leonardo
Bezerra, Luzia Oliveira, Victor Lima, Jonatas Aranha, Breno Andreyth, Jorge Galdino,
Hayanne Barbosa. À equipe da Revista Equatorial sob a liderança da profa. Angela Facundo
Navia. À Geíza Macedo e Adriano Freire por serem sempre prestativos e atenciosos, sem tal
dedicação jamais conseguiria resolver os corres burocráticos institucionais. Agradeço, por
fim, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), enquanto
financiadora desta pesquisa e por sua importância para o desenvolvimento da pesquisa e
desenvolvimento científico brasileiro. 
Fora de casa, dentro do mundo: repensando as sexualidades e as trajetórias de vida de
rapazes potiguares
Resumo
Esta pesquisa objetiva compreender de que maneira os processos de deslocamentos perpassam as
experiências de sexualidade de rapazes homossexuais que passaram a residir na cidade
Natal/RN e continuam estabelecendo intensa circulação por outros centros urbanos
potiguares. Levou-se em consideração a dinâmica interior/capital presente no imaginário
local. Para tanto, recorro ao enfoque das memórias e da produção de narrativas de vida
enquanto possibilidades de construção de quadros de experiências, nos quais o ato de transitar
entre cidades possibilita a construção subjetiva dos sujeitos. Com isso, dá-se a
instrumentalização de um olhar sobre as vivências de uma subjetividade gay, das relações
familiares, da inserção no espaço universitário e da ressignificação da própria
homossexualidade desses rapazes. Percebe-se a possibilidade de entender a maneira pela qual
os jovens homossexuais avaliam a própria trajetória e constroem suas narrativas acionando
um ou outro acontecimento, definindo o que se pode denominar de construir o passado.
Foram utilizadas entrevistas abertas definidas apenas por meio de indexadores (ou palavras-
chave), que serviram para orientação dos amigos-interlocutores no desenvolvimento de suas
histórias de vida. Esta pesquisa abrangeu entrevistas de seis amigos-interlocutores,
selecionados por seus vínculos de amizade com o pesquisador. Nesse sentido, nota-se que os
deslocamentos, em seus diversos efeitos, possibilitaram a ressignificação dos laços familiares
e sua projeção sobre os projetos de vida individuais e/ou coletivos. A relação com a
Universidade e suas políticas de Assistência Estudantil ganham destaque em decorrência de
sua importância como ponto chave de permanência no Ensino Superior e, consequentemente,
da vivência com o espaço metropolitano. 
Palavras-chave: Homossexualidade. Deslocamentos. Família. Projetos de vida. Universidade.
Out of home, within the world: rethinking sexualities and life trajectories of potiguares boys
Abstract 
This research aims to understand how the processes of displacement permeate the sexuality
experiences of homosexual boys who started to live in the city of Natal / RN and continue to
establish an intense circulation through other urban centers in Rio Grande do Norte/Brazil,
mainly taking into account the interior/capital dynamics present in the local imagination.
Therefore, I resort to the focus of memories and the production of life narratives as
possibilities for building frames of experiences in which the act of moving between cities
enables the subjective construction of subjects with regard to instrument a look at the
experiences of a gay subjectivity, family relationships, insertion in the university space and
reframe of homosexuality itself. It is possible to understand the way in which young
homosexuals evaluate their own trajectory and build their narratives by triggering one or
another event, defining what can be called building the past. Then, I used open interviews
defined only by means of indexers (or keywords) that served to guide interlocutors friendly in
the development of their life histories. This research included the interview with six
interlocutors friendly selected for their bonds of friendshipwith the researcher. From this, it is
noted that the displacements in their various effects, allowed to redefine of family ties and
their projection on the individual and/or collective life projects. The relationship with the
University and its Student Assistance Policies are highlighted due to its importance as a key
point of permanence in Higher Education and, consequently, of the experience with the
metropolitan space.
Keywords: Homosexuality. Displacement. Family. Life projects. University.
ÍNDICE DE FIGURAS
Figura 1 - Trajetória do pesquisador pelo RN............................................................................11
Figura 2 - Trajetórias dos amigos-interlocutores para Natal/RN................................................15
Figura 3 - Trajetórias de Felipe pelo RN....................................................................................40
Figura 4 - Trajetórias de Paulo pelo RN.....................................................................................45
Figura 5 - Trajetórias de João pelo RN......................................................................................47
Figura 6 - Trajetórias de Pedro pelo RN....................................................................................52
Figura 7 - Trajetórias de Tomé pelo RN....................................................................................58
Figura 8 - Trajetórias de Marcos pelo RN.................................................................................61
ÍNDICE DE QUADROS
Quadro 1 - Apresentação dos amigos-interlocutores..................................................................14
Quadro 2 - Situação socioeconômica dos amigos-interlocutores................................................15
SUMÁRIO
1 Introdução................................................................................................................................8
1.1 Dos antecedentes...................................................................................................................9
1.2 Dos amigos-interlocutores...................................................................................................11
1.3 Das entrevistas....................................................................................................................16
1.4 Da distribuição dos capítulos..............................................................................................18
2 Sobre questões iniciais de pesquisa......................................................................................20
2.1 Cenas introdutórias ao campo.............................................................................................20
2.1.1 Na Ponta do Morcego..................................................................................................20
2.1.2 Numa barbearia old school.........................................................................................21
2.1.3 pós-mobilização...........................................................................................................24
2.1.4 Esperando a dentista, uma conclusão antecipada........................................................26
2.2 Sobre narrativa biográfica...................................................................................................28
2.3 Identidade e diferença........................................................................................................30
2.4 Definindo uma abordagem: entre redes, pequenos grupos e vínculos afetivos.................34
3 A economia da vida íntima....................................................................................................36
3.1 Os amigos-interlocutores....................................................................................................36
3.1.1 Felipe...........................................................................................................................36
3.1.2 Paulo...........................................................................................................................41
3.1.3 João..............................................................................................................................44
3.1.4 Pedro...........................................................................................................................48
3.1.5 Tomé............................................................................................................................53
3.1.6 Marcos.........................................................................................................................58
3.2 A oralização da sexualidade, ou o abre e fecha do armário...............................................63
3.3 O jardim das amizades........................................................................................................73
3.4 A experiência religiosa........................................................................................................79
4 Produção de subjetividade, deslocamentos e Universidade...................................................85
4.1 Dos pontos de vista.............................................................................................................85
4.2 Sobre deslocamentos e permanências................................................................................91
4.3 Olhares sobre “o interior”...................................................................................................96
4.4 Os caminhos que levam à Universidade............................................................................99
4.5 Uma nota breve e pessoal..................................................................................................106
5 Conclusão.............................................................................................................................108
6 Referências...........................................................................................................................110
1 INTRODUÇÃO
Esta dissertação é um estudo sobre histórias de vida de rapazes homossexuais
residentes na cidade de Natal/RN. Teve-se como objetivo entender de que maneira os
processos de deslocamentos perpassam as experiências de sexualidade vivenciadas por esses
rapazes em uma cidade metropolitana, bem como a manutenção de seus vínculos familiares,
com seu local de origem e sua demanda por efetivar um projeto de vida, este por vezes
orientado à formação acadêmica. Assim sendo, este trabalho justifica-se pela contribuição aos
estudos das dinâmicas dos centros urbanos construída, sobretudo, através das diversas formas
de circulação de pessoas entre cidades, regiões, localidades; como também, aos estudos sobre
homossexualidade e memória. 
Decidi que seria adequado selecionar amigos os quais compuseram em alguma
medida o meu percurso entre diferentes localidades. Assim como alude Pierre Bourdieu
(2005, p. 88) “tomar como objeto de uma análise objetiva, até objetivista, um mundo que me
era familiar, onde eu conhecia todos os agentes pelos nomes, onde as maneiras de falar, de
pensar e de agir me pareceriam de todo natural”, e continua dizendo “e objetivar, num relance,
minha própria familiaridade com o objeto, e a diferença que o separa da relação erudita”. Do
mesmo modo, lidar com a aproximação entre pesquisador e pesquisados, nutrindo um sentido
específico de distanciamento. 
Igualmente esclarece Gilberto Velho (2010, p. 120) sobre a distinção entre distância
social e distância psicológica, “o processo de estranhar o familiar torna-se possível quando
somos capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente, diferentes versões e
interpretações existentes a respeito de fatos, situações”. Coaduno, também, com a crítica
realizada por Elisete Schwade (2016) tanto sobre a posição social ocupada pelo pesquisador
frente ao campode pesquisa, quanto das relações de poder que estão intrinsecamente
permeando o fazer antropológico. 
Ao longo do processo percebi que minha pesquisa não se tratava de um inventário
das experiências daqueles que chamarei de amigos-interlocutores, mas, acima de tudo, referia-
se ao processo de situar as experiências dos deslocamentos como significante na construção
de identidades, vínculos familiares e de amizade. Por isso, a matéria conjuntiva que interliga
as trajetórias individuais dos amigos-interlocutores é o próprio sentido do deslocamento que
8
ganha semânticas ora semelhante, ora divergente. Como aponta Geertz (2008, p. 56) “ver o
céu num grão de areia não é um ardil privativo dos poetas”, ou seja, não é pensar que os
fenômenos podem ser analisados empiricamente, mas como estes podem contribuir para
refletir processos subjacentes. Pensar o deslocamento dos amigos-interlocutores é propor uma
análise de processos subjacentes, tais como a relação com a família, amigos, local de origem e
com a Universidade. 
1.1 DOS ANTECEDENTES 
Em agosto de 2016, durante a última visita que fiz ao assentamento Vale do Lírio, no
município de São José do Mipibu/RN, para conclusão da minha pesquisa de graduação1, a
minha principal interlocutora fez-me um dos mais instigantes apontamentos naquela ocasião:
“tem caso de rapaz homossexual aqui na comunidade que precisa ser discutido. Ele teve que ir
morar na cidade”, falou ela. A interlocutora por meio de um relato rápido, situou-me que
devido ao contexto moral no qual a comunidade estava inserida, haveria muitos problemas
para o rapaz em questão “assumir-se” perante a comunidade e, respectivamente, para família.
Além disso, a saída desse rapaz da comunidade também perpassava a busca por um emprego,
uma possibilidade para efetivar a autonomia pessoal. 
Naquele momento, a ideia de acompanhar as trajetórias de vida de rapazes que
“precisavam” sair do espaço no qual foram criados e estabeleceram suas raízes (no sentido
afetivo) para se fixarem em centros urbanos, nos quais poderiam dar vazão aos desejos e
experienciar suas emoções longe dos olhos de vizinhos ou parentes, tornava-se uma semente
que germinaria meses depois. A semente entrou em estado de radícula a partir de uma
conversa que tive com meu amigo Cleiton Vieira em meados de 2017, pouco antes de me
submeter ao processo seletivo para mestrado do Programa de pós-graduação em Antropologia
Social (PPGAS) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Conversávamos
sobre nossas experiências enquanto rapazes gays, vindos do interior do estado do Rio Grande
do Norte e enquanto os primeiros de nossas famílias a ingressarem no Ensino Superior. Um
contexto que envolve, sem sombra de dúvida, o orgulho individual e familiar.
1 CUNHA, José M. S. Nas fronteiras entre o rural e o urbano: refletindo a juventude feminina do assenta-
mento do Vale do Lírio/RN. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) CCHLA/UFRN, 2017.
9
Atrelado ao intuito de compreender as trajetórias de vida dos rapazes, tal como
aquela do Vale do Lírio, estava presente uma sensação de autorreconhecimento diante do
mesmo tipo de deslocamento. Vi parte de minha trajetória individual expressa nas linhas
daquela narrativa contada em segunda mão por aquela interlocutora. Um “reconhecer-se a si
mesmo” naquela trajetória de vida. Diferentemente do rapaz citado na narrativa da minha
interlocutora do Vale do Lírio, que havia se deslocado na tentativa de ingressar no mercado de
trabalho, deixei minha região para fazer o Ensino Superior. Ambas as situações não se opõem,
mas sobrepostas demonstram a definição de um projeto que almeja melhorias de vida e o
bem-estar presente/futuro. 
Incluem-se também, nesse projeto de vida, os desejos e as emoções que cedo ou
tarde tornam-se os contornos de uma busca pelo “distanciamento” do local de origem.
Recordar a experiência do deslocamento impulsionado pelo ingresso no Ensino Superior
possibilitou-me refletir, naquela ocasião, o propósito de nossos projetos (individuais e
coletivos) e sobre a ida para a capital do Estado, Natal. A escolha pela cidade deve-se, em
meu caso, por ter familiares residindo na Região Metropolitana. Ter familiares na cidade ou
região pode constituir-se fator crucial para a eleição da localidade como ponto de partida para
o início dos deslocamentos, especialmente se tomamos com referência a pesquisa feita por
Eunice Durham (1984) que mostra o efeito e a importância de unidades familiares como
portos de chegada e acolhimento para o indivíduo que se insere num contexto de mobilidade. 
Isso se faz configurar, não em um primeiro momento, como causa para o
deslocamento, mas posteriormente, ao converte-se em esforço para que o projeto de vida seja
efetivado. Estabeleci um projeto de vida (entende-se aqui o teor coletivo dessa elaboração)
que incluía uma formação de nível superior e, para isso, tive que residir na cidade de Natal.
Esse sentimento também tinha sido alimentado durante o Ensino Médio, no Instituto Federal
do Rio Grande do Norte, no município de Ipanguaçu/RN (estudei no Instituto entre 2009-
2012). É desse período a amizade com dois dos amigos-interlocutores da pesquisa (Tomé e
Marcos, nomes fictícios como definirei no decorrer do texto). Mudei-me para a cidade de
Natal em 2013, pouco depois de completar 20 anos de idade (ver Figura 1). 
A mudança de cidade devia-se pelo desejo de ocupar uma vaga no curso de
graduação em Ciências Sociais, na UFRN. Foi o último vestibular elaborado pela própria
universidade. A partir daquele ano o ingresso nos cursos da Universidade estaria atrelado ao
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), desenvolvido pelo Instituto Nacional de Estudos
10
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), vinculado ao Ministério da Educação do
Brasil (MEC). O ENEM é o instrumento federal de avaliação do Ensino Médio no Brasil e,
atualmente, a chave de acesso ao Ensino Superior em diversas universidades públicas ou
privadas. Nestas, a possibilidade de acesso dá-se pela submissão do resultado do ENEM ao
Programa Universidade para Todos (PROUNI) ou ao Fundo de Financiamento Estudantil
(FIES), ambos são programas do MEC para ampliar o ingresso ao Ensino Superior mediante
concessão de bolsas em faculdades privadas. 
Legenda: (▪) cidade de origem/residência da família; (◤)localidade onde estudou; (●)residência atual/onde 
estuda. Fonte: Adaptado a partir de Rio Grande do Norte em OpenBrasil.org. 
Associada à permanência na Universidade está a mudança residencial. Ao chegar a
Natal morei alguns meses com alguns parentes que residiam no bairro Cidade das Rosas, em
São Gonçalo do Amarante/RN. No imaginário local, os bairros da cidade de Natal localizados
ao norte das margens do Rio Potengi são hegemonicamente rotulados Zona Norte; incluindo-
se, também, os bairros de cidades vizinhas como São Gonçalo do Amarante e Extremoz. A
minha permanência na Universidade deu-se graças aos Programas de Assistência Estudantil
(PAE) da UFRN 2,, através dos quais pude me integrar às atividades da Universidade de forma
satisfatória. Inclui-se aqui a oportunidade de morar na Residência Universitária, localizada no
2 Os Programas de Assistência Estudantil (PAE) são implementados pela Coordenadoria de Apoio Pedagógi-
co e Ações de Permanência (CAPAP) da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PROAE). Os Programas de
Assistência Estudantil da UFRN são financiados com recursos do Programa Nacional de Assistência Estu-
dantil (PNAES).
11
Figura 1 - Trajetória do pesquisador pelo RN
Campus Central, zona sul de Natal. São desse período as amizades com outros quatro dos
amigos-interlocutores (João, Paulo, Pedro e Felipe, seguindo uma cronologia de contato). 
1.2 DOS AMIGOS-INTERLOCUTORES
Gilberto Velho (2003, p. 12) afirma que “o pesquisador brasileiro, geralmenteem sua
própria cidade, vale-se de sua rede de relações previamente existente e anterior à
investigação”. Em certo ponto é verídica tal afirmação. Em minha pesquisa, vali-me das
minhas relações mais próximas e, em porcentagem delas, das mais duradouras. Defini que os
meus interlocutores seriam aqueles que me cercam afetivamente: voltei-me aos meus amigos.
Nossas histórias se entrelaçam e dialogam no que se refere ao deslocamento entre nossas
respectivas cidades de origem e a capital do Estado, da inserção no Ensino Superior, das
primeiras experiências sexuais na Capital e da própria vivência urbana de uma cidade
metropolitana. Todavia, sigo a premissa de Velho (2010) na qual o pesquisador deve buscar
sempre o confronto entre a experiência individual em relação aos projetos e os contextos dos
grupos estudados. Ou seja, contrapor aquilo que os indivíduos tomam como significantes em
suas trajetórias de vida em relação às demandas do grupo e do ambiente social do qual
adveio, tornando-se, assim, as narrativas de vida situadas, contextualizadas (BOURDIEU, 1996;
VELHO, 2003; 2010; DUARTE; GOMES, 2008). 
A produção de conhecimento baseia-se na interação comunicativa, isto é, na
intersubjetividade (FABIAN, 2013; 2014). Para tanto, a copresença fora tomada como condição
para a pesquisa etnográfica. Da mesma forma, Fabian (2014, p. 205) defende a coetaneidade
como sendo o “compartilhamento do tempo entre participantes como uma condição de
comunicação etnográfica”. É na relação da presença e da copresença que estabelecemos a
memória, tanto quanto o compartilhamento do passado. Neste momento, que se pode
denominar de modernidade (MARCUS, 1991; CLIFFORD, 2002; FABIAN, 2013), há um retorno
do “presente etnográfico”, contudo, ressignificado, reinventado; e, por meio da escrita,
produzido discursivamente (CLIFFORD, 2002; MARCUS; CUSHMAN, 1982; WAGNER, 2012;
FABIAN, 2013). 
12
Diferentemente da narrativa histórica do funcionalismo clássico, a memória é tomada
como instrumento de compreensão de diversos processos que realocam as questões de
identidade para multilocalidade, ou seja, a memória é tomada como processos de
fragmentação que implica questionamento de identidades, ao mesmo tempo, paradoxalmente,
construção de outras novas identidades (MARCUS, 1991). Na melhor das defesas, uma
experiência que é tomada subjetivamente para análise também é tomada objetivamente (cf.
GEERTZ, 2008). Assim sendo, não me receei na escolha de amigos tanto quanto Carmen Dora
Guimarães (2004) ao estudar uma rede de amizade e de relações sexuais homossexuais a
partir de seu amigo Miguel. Por meio de tal amizade, a autora conseguiu acessar uma rede de
relações entre os “entendidos” da classe média alta carioca do início da década de 1970 e
compreender de que maneira a homossexualidade era entendida/vivida pelos indivíduos
daquela época. Em particular, ao valer-me de laços de amizade para acessar narrativas de vida
de rapazes com os quais já compartilhei momentos de alegria e de tristeza, de gozo e de
aflição, possibilitou-me desvelar camadas das histórias de vida vivida, sobre as quais os
próprios amigos-interlocutores ainda não haviam refletido. 
A escolha de cada amigo-interlocutor dá-se pelo fato da posição ocupada por cada
um deles em minha trajetória pessoal, seja pelo tempo dos vínculos de amizade, seja pelo
envolvimento afetivo e sexual que tive com alguns deles. São rapazes que possuem entre 26 e
29 anos de idade. Mantenho com dois deles laços de amizade pouco mais que dez anos, como
podemos encontrar no Quadro 1. Usei-me de pseudônimos tanto para resguardar as
respectivas integridades individuais dos amigos-interlocutores, como também, de acordo com
as reflexões de Cláudia Fonseca (2008, p. 49), para “lembrar a nossos leitores e a nós mesmos
que não temos a pretensão de restituir a realidade bruta”. Afinal, a posição ocupada pelo
antropólogo enquanto mediador entre as narrativas de vida e a publicização científica do
material etnográfico impõe à produção antropológica questões éticas das quais o pesquisador
não poderá se abster, como lidar com demandas íntimas aos nossos interlocutores. 
Apesar de em algum momento da pesquisa, um amigo-interlocutor querer que seu
nome aparecesse neste trabalho, penso a noção do anonimato como característica crucial para
o desenvolvimento de uma pesquisa científica, porém, antes de tudo, enquanto um
instrumento ético-metodológico estabelecido na relação do pesquisador com seus
interlocutores (FONSECA, 2018). A imposição para que o nome não fosse sublevado da escrita
final deste trabalho implica dizer que há reivindicação de posicionamento, de presença desse
13
interlocutor no corpus dessa pesquisa; ou, até mesmo, demonstrando controle por parte do
amigos-interlocutores diante de sua própria entrevista. Contudo, argumentei que, mesmo o
desejo de apresentá-lo na escrita sob o nome “real” fosse extremamente tentador, a escrita de
um trabalho científico busca por si uma posição indelével nos registros históricos, ou seja, os
trabalhos antropológicos estão à mercê de certa maldição da “perenidade”, conhecida desde
James Frazer (cf. PEIRANO, 1992, p. 14). Os escritos etnográficos são passíveis de leituras
diversas e interpretações a posteriori, que não estão sob o domínio do antropólogo que as
“fabricaram” (GEERTZ, 2008; WAGNER, 2012).
Concordo, inclusive, com Fonseca (2008) ao que se pode delimitar como sendo os
limites do anonimato em pesquisa. O anonimato per se não implica a “proteção” do
interlocutor. Durante a minha banca de qualificação, bem me alertaram os professores Paulo
Victor Leite Lopes e Angela Facundo Navia, que outros fatores e variáveis precisariam ser
trabalhados para além da substituição do nome dos amigos-interlocutores. Assim sendo, todos
os nomes que aparecem no decorrer deste trabalho, seja dos próprios amigos-interlocutores,
dos parentes deles, dos amigos em comum, dos sujeitos citados em suas lembranças, são
fictícios, tanto quanto o reordenamento de outras variáveis que acreditei não limitar a
compreensão e a análise por parte dos/as leitor/as. 
Quadro 1 - Apresentação dos amigos-interlocutores
Amigo -
interlocutor
Idade 
(em anos) Cidade de Origem
Tempo de
amizade
(em anos) 
Formação acadêmica
Felipe 29 Jardim do Seridó 3
Licenciatura em Letras (Língua
Portuguesa)
Tomé 26 Angicos 10 Bacharelado em Educação Física
Paulo 29 Pedro Avelino 6
Bacharelado em Comunicação
Social (Jornalismo)
Pedro 28 Baía Formosa 3 Licenciatura em Geografia
João 27 Pau dos Ferros 6 Bacharelado em Psicologia
Marcos 26 Carnaubais 10 Bacharelado em Direito
Fonte: dados do autor entre 2018-2019.
14
Tomé e Marcos são amigos que mantenho contato desde 2009, quando cursei o
Ensino Médio do IFRN (campus Ipanguaçu/RN). Ambos passaram a residir em Natal no
mesmo ano em que eu, início de 2013. Nesse mesmo período, conheci Paulo e João. Com eles
tive um envolvimento sexual no período inicial em que nos conhecemos. A mesma situação se
estende para Pedro, porém a relação deu-se em período mais recente, há cerca de três anos.
Diferentemente dos “interlocutores-amantes” com os quais Wagner Xavier de Camargo
(2018) construiu sua pesquisa sobre masculinidade/virilidade de homens gays em espaços de
competição esportiva, na qual houve envolvimento sexual com os interlocutores durante a
pesquisa; os amigos-interlocutores que acionei (Paulo, Pedro e João) ganharam o epíteto de
amigos devido ao nosso envolvimento ter ocorrido em época distinta da realização desta
pesquisa, e por continuarmos nos relacionando através de outros vínculos, no caso, enquanto
amigos. 
No caso de Felipe, fomos colegas de quarto na Residência Universitária Central da
UFRN (campus Natal/RN) porcerca de três meses em 2016. Mesmo após minha saída da
Residência, continuamos a manter contato. Assim como Pedro, nutrimos uma amizade mais
recente. Meus amigos-interlocutores distribuem-se em variadas áreas de formação acadêmica
(ver Quadro 1). Dentre eles, apenas Felipe e Tomé ainda estão em estado de conclusão de seus
respectivos curso de graduação. Os demais, ou fazem parte de uma pós-graduação (ver
Quadro 2), ou estão inseridos no mercado de trabalho. Em todas as trajetórias, as fontes de
renda de cada um dos amigos-interlocutores estão, em certa medida, relacionadas à área de
formação no Ensino Superior. 
Quadro 2 - Situação socioeconômica dos amigos-interlocutores
Amigo -
interlocutor Situação acadêmica atual Fonte de renda
Requisita ajuda
financeira dos pais?
Qual frequência?
Felipe Concluindo a graduação Bolsa de apoio técnico/UFRN Não
Tomé Concluindo a graduação
Estágio remunerado em academia de
musculação
Sim, frequentemente
como complemento
mensal
Paulo
Mestrando em Ciências
Sociais/UFRN
Bolsa CAPES
Não (mas caso
necessário, os pais
auxiliam)
Pedro
Concluído/ cursando
Designer /UFRN
Professor na rede estadual de ensino Não
João
Doutorando em Psicologia
Social/UFRN
Bolsa de apoio técnico somada a
“vaquinha” dos professores
Não
15
Marcos Concluído
Advocacia e supervisor de qualidade
de teleatendimento
Não (mas caso
necessário, os pais
auxiliam)
Fonte: dados do autor entre 2018-2019.
Fonte: Adaptado a partir de Rio Grande do Norte em OpenBrasil.org.
Cada um deles têm origem em cidades distintas do Rio Grande do Norte e confluem
suas trajetórias atuais para a cidade de Natal (ver Figura 2). Durante a pesquisa mantive
contato frequente com eles por meio das redes sociais digitais como Facebook, Instagram e
WhatsApp. O agendamento das entrevistas foi possível devido exclusivamente a tais
instrumentos digitais. Primeiro, devido à agenda pessoal de cada interlocutor, pois cada um
deles possui uma rotina preenchida por obrigações acadêmicas, ou por obrigações relativas
aos vínculos empregatícios, ou por ambas as situações; segundo, nossas rotinas se
estabeleceram em percursos distintos de circulação pela cidade e, praticamente, não havia
intersecção entre eles.
1.3 DAS ENTREVISTAS
16
Figura 2 - Trajetórias dos amigos-interlocutores para Natal/RN
Utilizei-me de entrevistas sob a perspectiva de trajetórias de vida, através das quais
os amigos-interlocutores narravam abertamente sobre os fatos vividos ao longo de suas
respectivas biografias. A estrutura das entrevistas estava delimitada por palavras chaves que
chamarei de indexadores. As entrevistas foram realizadas seguindo uma sequência de
indexadores que foram definidas logo após a minha primeira entrevista em dezembro de 2018.
Naquela ocasião, deixei que o fluxo narrativo seguisse “solto”, dando total liberdade para que
o amigo-interlocutor descrevesse os detalhes, os acontecimentos, as angústias e os momentos
tragicômicos de sua trajetória. A minha interferência acontecia pontualmente quando percebia
que o interlocutor pausava mecanicamente, possível característica do momento em que a
consciência está elaborando a narrativa a partir das lembranças ou, diria Maurice Halbwachs
(1990), mediante o processo de montagem dos quadros através dos quais o passado estava
sendo lido. 
Num primeiro momento, defini enquanto indexadores as palavras: infância, família,
educação, Natal/RN e experiência homossexual. Todas estas palavras estavam relacionadas à
questão da sexualidade de cada amigo-interlocutor. Em cada momento dos indexadores, eu
realizava a pergunta: “fale-me um pouco sobre...” e adicionava um indexador. Dessa forma,
pude obter uma narrativa mais coesa quanto à sequencialidade da trajetória de vida dos
amigos-interlocutores. Logo após a segunda entrevista, revi a sequência das palavras
indexadoras e renovei para: infância, experiência sexual, educação, religião, Natal/RN,
envolvimentos amorosos e política nacional. Diante de suas próprias coerências, as narrativas
apontam que as primeiras experiências sexuais dos rapazes aconteciam exatamente nos seus
respectivos locais de origem (confirmação que não se sustentou após a terceira entrevista); por
isso, a narrativa sobre a primeira experiência sexual que era anteriormente precedida pelo
questionamento sobre a chegada à cidade de Natal, foi então redirecionada para o período
sequencial à infância. 
Acreditei que antever uma explanação sobre as experiências sexuais no momento em
que a narrativa abarcava as lembranças da infância, poderia criar uma narratividade mais
íntima do sujeito narrador com suas próprias memórias. Percebi, assim, que a sequência,
mesmo que arbitrária, estabelecia coerência quanto à narrativa dos rapazes e englobava
temáticas recorrentes das narrativas. Outro acréscimo que realizei aos indexadores foi o
questionamento sobre a atualidade do contexto político, ou seja, o olhar de cada rapaz para a
situação político-social do Brasil, seguindo a premissa de que a política nacional, de alguma
17
forma, impactaria a vida cotidiana de cada interlocutor. Como percebi a partir da segunda
entrevista, a temática sobre política tornava-se necessária. Inevitavelmente, os rapazes
passaram a inserir em suas narrativas relações com o plano político e de contexto nacional. As
opiniões de cada interlocutor me proporcionaram construir um curto esboço da visão política
dos rapazes homossexuais sobre as posições públicas dos governantes atuais e suas relações
com a vida cotidiana de cada um deles. 
Uma pontuação deve ser feita no que se refere a utilização dos termos gay e
homossexual. Embora haja uma extensa contextualização sobre suas origens e aplicações ao
longa da produção sobre gênero e sexualidade (FOUCAULT, 2015; BOZON, 2004; ERIBON,
2008; FRY, 1982; FRY; MACRAE, 1985; GUIMARÃES, 2004; MACRAE, 2018; MISKOLCI, 2017;
WEEKS, 1993), utilizo-me de ambos como sinônimos, pois são utilizados pelos amigos-
interlocutores abertamente, tanto um quanto o outro estão dentro de uma semântica que
contextualiza as identidades sexuais de cada amigo-interlocutor. Segundo reflexões de Maria
Luiza Heilborn (1996), haveria um projeto social de pessoa que é impresso nos sujeitos por
meio das denominadas marcas sociais que compõem o processo identitário, frente às
experiências eróticas. Para a autora, haveria uma vasta flexibilidade entre as práticas e as
identidades homoeróticas diante do reconhecimento do público em geral. Em virtude disso, a
elaboração de identidades sexuais não abrigaria as nuances da homossexualidade, pois
“coexistem, assim, formas não lineares de lidar com a administração sexual, o que explica a
fórmula ser/estar homossexual” (HEILBORN, 1996, p. 7). 
Desta maneira, a ambiguidade do ser/estar demonstra a não linearidade em
administrar uma identidade sexual. Se entendermos os sujeitos como capazes de assumir
múltiplas posições dentro de campos de significação e, diante disso, construir suas
subjetividades e autorrepresentações (MOORE, 2000; ORTNER; 2007 CONNELL, 2016; BUTLER,
2017, 2019), podemos então pressupor que esse processo é composto de muitas contradições
entre projetos individuais característicos dos contextos identitários de cada sujeito e os
projetos coletivos que englobam as representações exigidas socialmente. 
Ademais, um indexador apareceu apenas durante o manuseio dos dados: trabalho.
Esse indexador não constava dentre minhas opções, contudo, tornou-se recorrente nas
narrativas de vida dos amigos-interlocutores. A temática trabalho surgiu associada à busca por
mais autonomia do grupo familiar ou da estrutura institucional, quando observado o vínculo
que cada amigo-interlocutor possuía ou possui com alguma instituiçãode ensino. 
18
Os locais das entrevistas variaram de acordo com a agenda de cada amigo-
interlocutor. Paulo, Pedro e João se dispuseram a conversar comigo em locais dentro da
UFRN. Nossas respectivas conversas aconteceram no mês de fevereiro de 2019, sendo
realizado um encontro por semana. As entrevistas com Felipe e Tomé aconteceram em minha
casa, por ocasião das visitas deles: Felipe em dezembro de 2018 e Tomé em junho de 2019.
Marcos foi o único amigo-interlocutor do qual eu fui visitá-lo em casa, em janeiro e junho de
2019. Cada entrevista durou em média duas horas, a partir das quais pude construir perfis
biográficos, realizando marcações das semelhanças e das diferenças entre cada trajetória de
vida.
O material produzido nas conversas com os amigos-interlocutores me gerou grande
inquietação quanto ao manuseio e a análise mais adequada do material biográfico. Acredito
que tal sentimento é expresso por James Clifford (2002) ao descrever o trabalho de Marjorie
Shostak, Nisa, no qual a autora depara-se com uma grande quantidade de narrativas pessoais
de mulheres !kung, fruto de sua pesquisa no deserto de Kalahari. De acordo com Clifford, a
estratégia de Shostak fora converter as experiências das mulheres !kung em histórias de vida,
ou seja, utilizou-se do material fruto das subjetividades das interlocutoras na produção de uma
peça narrativa carregada de sentidos, sem a perda da polifonia presente em cada narrativa. 
Seguindo esse caminho metodológico, construí perfis biográficos dos amigos-
interlocutores, para que em seguida, subdividisse cada peça através dos indexadores definidos
anteriormente nas entrevistas. Manualmente, confeccionei pequenas fichas sob o título dos
indexadores seguidos pelo nome do amigo-interlocutor e tendo uma pequena narrativa
biográfica associada ao indexador. Após a subdivisão, acredito poder mapear as convergências
e as divergências entre as experiências vividas pelos amigos-interlocutores, possibilitando-me
entender a dinâmica de produção subjetiva do deslocamento, da relação com uma cidade
metropolitana, com a inserção em um modo de vida gay na cidade (ERIBON, 2008,
PERLONGHER, 2008; RUBIN, 2018; FRY; MACRAE, 1985).
Devo esclarecer que os perfis que se seguem ao corpo do texto são versões resumidas
de cada quadro biográfico dos quais eu tive acesso. Precisa-se ter em mente que “a vida não é
organizada facilmente numa narrativa contínua” (CLIFFORD, 2002, p. 74), pois, aquilo que
pode ser designado como “uma vida”, muitas vezes, trata-se de cortes e rearranjos de
histórias, fenômenos, situações sobrepostas ao ponto de gerar certa coerência (BOURDIEU,
19
1996) e que os perfis biográficos foram maneiras que encontrei de apresentar e situar os
amigos-interlocutores. 
1.4 DA DISTRIBUIÇÃO DOS CAPÍTULOS
No primeiro capítulo, Sobre questões iniciais de pesquisa, apresento os pressupostos
que definem a agenda de pesquisa, situando os principais conceitos e contextualizando
preliminarmente os amigos-interlocutores em suas redes de relações e trajetórias. Desenvolvo
reflexões a partir de indicadores como memória, trajetória de vida e narrativas de vida e suas
relações com a homossexualidade. Organizei os perfis dos amigos-interlocutores de maneira
que englobasse percursos, tomadas de decisões, vivências e deslocamentos por diferentes
cidades do Rio Grande do Norte, ou até mesmo pela capital do Estado. Esses processos se
condicionam nos planos espacial e temporal. Os sujeitos aos narrarem suas respectivas
trajetórias estão se situando ao longo de um caminho que inclui demandas coletivas e também
individuais; assim como a presença de diversas influências que estão atreladas ao complexo
movimento de (auto)reconhecimento. 
No segundo capítulo, A economia da vida íntima, reflito sobre as relações entre
amizade, saída do armário, as experiências religiosas e vivência da cidade metropolitana,
transpassada por relações familiares e de deslocamentos entre localidades. Para cada trajetória
de vida homossexual a presença de uma amizade surge como auxílio em um processo por
vezes de pura angústia, a saída do armário. Embora seja uma delicada equação de
revelar/ocultar somada a certa instabilidade na gestão dos sentimentos, a saída do armário é
um processo complexo, mas que encontra no momento da oralização o clímax que
reconfigura as relações interpessoais, em especial, com a família. Para se chegar a esse
momento de mais tensão, o rapaz, muitas vezes, precisa lidar com os conflitos ideológicos de
suas religiões. Os aspectos punitivo e pecaminoso nos quais a doutrina cristã banha a
sexualidade deixam marcas nas narrativas de vidas dos sujeitos e que apenas são amenizadas
pela presença de amigos e pela redescoberta da cidade e seus meandros. Amizades são
construídas por vezes através do interesse, denotando a peculiaridade dos vínculos fraternais.
20
No terceiro e último capítulo, A produção de subjetividade e a Universidade, reflito
sobre as leituras feitas pelos próprios amigos-interlocutores de seus engajamentos acadêmicos
e das relações que estabelecem com suas sexualidades. A possibilidade aqui é pensar a própria
Universidade em sua amplitude, ou seja, não limitada apenas ao ambiente físico, mas na
produção de criticidade e enquanto espaço de contato com a diversidade. Somam-se à
discussão as implicações sobre a política governamental atual e suas perspectivas através dos
olhos dos amigos-interlocutores.
21
2 SOBRE QUESTÕES INICIAIS DE PESQUISA 
Já conheceis a história. Contudo, iremos repeti-la. Todas as coisas já
foram ditas; mas como ninguém escuta, força é recomeçar sempre. 
André Gide, em O tratado de Narciso, 1891.
2.1 CENAS INTRODUTÓRIAS AO CAMPO
Nas cenas descritas a seguir, encontramos alguns ingredientes que compõem a agenda
dessa pesquisa: confluências de trajetórias e deslocamentos, construções de subjetividades e
projetos de vida individuais e/ou coletivos. 
2.1.1 Na Ponta do Morcego
Poucos dias antes do primeiro turno para as eleições presidenciais de 2018, decidi
aceitar um convite para um passeio que terminaria num pequeno momento de bebedeira. O
convite adveio de uma antiga amiga, Margarida. Estudamos juntos no Ensino Médio no
Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) no campus de Ipanguaçu. O convite incluía,
também, nossos amigos desse período: Tomé e Marcos. No meu caso, foi incluso o meu
namorado, Rafael. Conseguimos sincronizar nossas respectivas saídas de casa para o
momento exato em que pudéssemos pegar o mesmo ônibus. O destino fora a Ponta do
Morcego, uma pequena massa de terra que incide no mar e é o trecho final da Praia dos
Artistas, região leste de Natal. Fizemos um percurso que cruzou os bairros natalenses: Lagoa
Nova, Alecrim, Cidade Alta, Ribeira, Rocas, desembarcando em Santos Reis. Dali em diante
fomos caminhando. 
Andamos pelo calçadão, paralelo à Avenida Pres. Café Filho que interliga a Praia do
Meio, Praia dos Artistas e Praia de Areia Preta. Chegamos a um bar pitoresco por sua temática
náutica que incluía garçons vestidos de marinheiro e estátuas em tamanhos desproporcionais
de piratas e sanfoneiros. Escolhemos uma mesa no extremo do salão que nos proporcionava a
esplêndida visão do cais. Podíamos sentir as gotículas de água respingar quando o mar se
chocava contra as rochas que formam a Ponta do Morcego.
22
Depois da longa caminhada, esbaforidos, concluímos que aquele era um belo lugar. A
situação foi estranha pelo ar nostálgico que passamos a criar. Tomé passa a relembrar de
situações que todos nós passávamos no Ensino Médio. A ocasião de rememorar situações do
passado trouxe à tona as aflições que nós (eu, Tomé e Marcos) sentíamos durante o período do
IFRN. Concluímos que o Ensino Médio foi cruel conosco.Presenciávamos colegas sofrerem
homofobia cotidianamente; e, naquele período, cada um de nós estava em conflitos internos
em relação aos seus desejos. “Como eu poderia fazer alguma coisa naquela situação?”,
argumentou Tomé, e continuou: “na nossa turma, todo mundo sabia que a gente era veado”,
concluiu sorrindo. Entre chopes gelados, jogamos conversa fora e rimos de situações
constrangedoras dessa época. 
A homossexualidade apareceu como uma lembrança angustiada desse período e
ganhou ares mais tranquilos no momento em que a cidade de Natal entrou no cenário.
Afirmou Marcos: “O bom que aqui em Natal estamos tranquilos, nem se compara a viver no
interior”. Em contrapartida, Margarida, ouvindo a afirmação, o impele: “mas aqui em Natal
vocês também já devem ter passado por alguma situação constrangedora”. Assentimos
positivamente, concordando que morar na capital não nos tornava livre de preconceitos e
violências. Daí, Marcos pontua “mas aqui temos amigos e conhecidos, há uma proteção
maior”. 
Naquela ocasião percebi que compartilhamos algo em comum: a memória aflitiva
sobre o Ensino Médio e algumas mudanças positivas em termos mudado de cidade. Além
disso, estava intrínseca naquelas palavras, a premissa que cada um ali tinha conhecimento,
dentro de algum limite, sobre a sexualidade dos demais, porém, devido ao ambiente que
vivenciávamos naquele período, a exposição de alguma colega implicaria a nossa própria
exposição. Essa espécie de premissa ganha contornos de veracidade no momento em que se
percebe não se tratar apenas de devaneios de um pesquisador em busca de coerências
biográficas, mas, acima de tudo, corresponder a uma experiência partilhada que encontra um
lugar-comum na trajetória de tantos rapazes homossexuais. 
Ora, ocultar ou revelar algum fato íntimo compõe a complexa relação estabelecida no
conhecimento de si e do outro. Tal como desenvolve Georg Simmel (2009) sobre o segredo,
tomado enquanto um instrumento organizativo da vida subjetiva dos indivíduos estando em
relação com seu grupo ou coletivo. Manter-se em segredo é proteger uma fronteira que
estabelece segurança à personalidade do indivíduo. Guardar um segredo de outro é, por assim
23
dizer, um empreendimento de sensibilidade e reciprocidade, uma maneira, de acordo com
Simmel, de produção de amizades diferenciadas pautadas na sensibilidade para com a
diferença. 
 Terminamos aquela noite comendo cachorro-quente de um vendedor de rua em
pleno calçadão da Praia do Meio. Imaginamos, por fim, como deve ter sido inspirador à
poetisa Zila Mamede, a vista das ondas quebrando na barreira poucos metros dali, mar
adentro. 
2.1.2 Numa barbearia old school 
A ideia de passar o período das festas natalinas de forma “apresentável” é um dos
vestígios da minha cultura familiar, por isso, há certa cobrança por parte dos familiares que os
rapazes estejam com cabelo cortado e, caso tenha, com a barba bem feita. Eu e Rafael, meu
namorado, agendamos um atendimento em nossa barbearia usual. Naquela ocasião, não
consegui agendamento de horário com o barbeiro que costumo ser atendido. O único dos
barbeiros disponível no meu horário foi Tiago. Eu fiquei meio cabreiro no início, mas decidi
deixar o meu corte de cabelo com o novato. Tiago, 22 anos, rapaz branco, bastante esguio e
demonstrava ser um pouco mais alto que eu. Sua simpatia me deixou mais confortável. Dei as
coordenadas do corte de minha preferência e ele começou. 
Entre idas e vindas da tesoura, Tiago comenta sobre o período em que tivera cabelo
longo e, prontamente, anunciou que era gay. Percebi nesse momento que esse tipo de inserção
na conversa foi crucial para que ele despontasse em uma narrativa sobre sua vida: foi a
maneira que encontrou em ganhar intimidade para conversar e passar o tempo do corte de
cabelo. Soou um alarme na minha cabeça: essa assertiva não poderia ser um dado jogado ao
léu. Compreendi que estava implícito, por parte dele, que houvesse um reconhecimento de sua
narrativa por minha parte. E, assim aconteceu: ao acionar sua posição enquanto rapaz gay nos
colocou em um mesmo patamar de inteligibilidade perante a história, a qual ele estava
disposto a iniciar. 
Sua narrativa envolveu o deslocamento da cidade onde morava com os pais até a
atualidade de seus pensamentos políticos. Contou-me que era de Limoeiro do Norte no Ceará
e que fazia três anos que ele estava em Natal/RN. Tiago tentou ingressar na UFRN, porém não
conseguiu. Decidiu realizar um curso profissionalizante em barbearia. Devido a sua amizade
com um dos proprietários da barbearia que costumo frequentar, conseguiu ocupar uma vaga
24
de barbeiro associado nela. Em certo momento da narrativa, Tiago expressa um tom misto de
angústia e satisfação. Relatou que por ser gay, no início de seu trabalho naquela barbearia, ele
tinha receio de não haver a aceitação de sua sexualidade tanto por parte dos colegas de
trabalho, quanto por parte de um dos proprietários. 
O imaginário sobre uma barbearia é construído tomando a imagem de um ambiente
masculinizado e heteronormativo. Não destoa da ambientação e do design escolhido para a
barbearia que frequento: um espaço construído sob um saudosismo das barbearias clássicas do
meio-oeste estadunidense da década de 1920, somada à oferta de cerveja gelada durante o
atendimento. 
Para Tiago o ambiente lhe causou um pouco de desconforto no início do trabalho e
foi intensificado pelas piadas homofóbicas que seus colegas de trabalho incluíam nas
conversas durante o expediente. Segundo ele, o receio para com o outro proprietário foi
sanado ao perceber que houve um acolhimento paternal, pois “ele chega a tratar todos os caras
aqui como filhos, além de ser muito extrovertido em todo momento”, esclareceu. Em pouco
tempo, Tiago foi percebendo que a barbearia tornava-se um ambiente confortável para se
trabalhar. As piadas deixaram de existir entre a equipe de trabalho. “Os barbeiros passaram a
se policiar constantemente para não gerar ofensas contra mim”, pontuou. Isso se deve às
atitudes que Tiago passou a tomar no ambiente de trabalho: “eu passei a me posicionar mais
contra as falas problemáticas deles”, afirmou em certo momento. 
Criou-se um ambiente repressivo contra as discussões homofóbicas. A homofobia,
disse Tiago, “acontece atualmente apenas com os clientes”. Algum cliente, uma vez ou outra,
desanda em falar muitos absurdos, mas que são ou abafado pelos colegas barbeiros, ou por
não darem atenção à conversa do cliente, ou por intervenção do próprio Tiago no assunto em
questão. 
O espaço que poderia ser limitado pelo estereótipo heterossexual, a partir da presença
de Tiago tornou-se combativo aos preconceitos. Contou-me, também, que os colegas
barbeiros desenvolveram uma estratégia para blindá-lo de clientes homofóbicos: por haver
clientes que são fixos na frequência da barbearia, seus posicionamentos homofóbicos já são
de conhecimento da equipe, caso não tenha havido agendamento, o cliente em questão é
direcionado para qualquer barbeiro da equipe com exceção a Tiago. Nesse processo, ele acaba
por não precisar atender alguém que é expressamente homofóbico. 
25
As situações constrangedoras, segundo me narrou, se intensificaram no período
eleitoral de 2018. A clientela que antes estabelecia “limites” ao realizar alguma piada ou
contar alguma anedota, naquele período estava sem papas na língua. Desandavam em um
discurso, de acordo com Tiago, “de ódio e muito mau gosto”. Se continuou trabalhando
naquele “clima pesado” foi devido ao fato de “ter a equipe de amigos que tornava o dia a dia
mais leve”, comentou. 
Em certo momento, o espaço íntimo dos relacionamentos também foi abordado
durante a conversa. Segundo me contou, dentre os motivos que o levarama morar em Natal,
estava o namoro com um “cara do Ceará”. Esse relacionamento não foi bem visto pelos pais
que os separaram prontamente, no momento em que perceberam que se caminhava para um
envolvimento abusivo. Enviaram Tiago para o Rio Grande do Norte assim que puderam.
Mesmo assim Tiago continuou mantendo contato com o tal “cara”, porém, devido a sua
mudança para Natal, o relacionamento à distância não durou muito. A separação definitiva
ocorreu semanas depois que passou a residir em Natal. “Foi um período de paixão de
moleque”, disse Tiago, como que ressignificando o período conturbado desse relacionamento
ao aspecto dele ser muito jovem na época. 
Sua estadia na capital potiguar foi possível devido ao irmão mais velho já residir na
cidade. O projeto no qual a mudança de cidade fazia parte, incluía o ingresso de Tiago no
Ensino Superior. Etapa que não se concretizou; diferentemente do irmão que cursava
Engenharia Civil na UFRN. O ramo da barbearia é algo que Tiago expressamente gosta, mas
almeja outros campos. Segundo ele, teria planos para cursar gastronomia e começar algum
empreendimento na área. Revelou que pretende viajar para São Paulo onde mora a mãe,
separada do pai, e com ela montarem um pequeno restaurante. 
Assim que Tiago narra o seu sonho de futuro, o corte de cabelo chega ao fim.
Pareceu-me que tudo tinha sido organicamente esquematizado para que aquela narrativa
coubesse exatamente em vinte e cinco minutos, o tempo estimado para cada cliente. Fui
embora satisfeito não apenas com o corte, mas também por ter sido agraciado com mais uma
narrativa de vida. Nota-se na narrativa estabelecida por Tiago que sua sexualidade foi, num
primeiro momento, o motivo de seu deslocamento interestadual, somado a um projeto de
formação profissional incentivado pela família. Ele teria que, assim como o irmão, ingressar
no Ensino Superior. Outro aspecto é a efetivação do projeto que pode ou não se concretizar,
além de poder ou não gerar frustração com a não realização. 
26
2.1.3 pós-mobilização
No dia 29 de setembro de 2018, foram organizadas intensas mobilizações pelo Brasil
(e também fora do país) tendo como regência grupos feministas que estabeleceram forte
oposição ao, até então candidato à presidência, Jair Messias Bolsonaro, que na época tinha
28% das indicações de votos. A desaprovação com o presidenciável podia ser encontrada em
muitos extratos, mas era expressiva entre as mulheres. Naquela tarde quente de setembro,
dezenas de pessoas aderiram à convocatória do ato público contra o presidenciável. Lotaram o
cruzamento entre as avenidas Senador Salgado Filho e Bernardo Vieira, as principais avenidas
da cidade de Natal. 
Durante algumas horas, o ato conjugou diversos segmentos populares (partidos
políticos, grupos estudantis, coletivos políticos independentes e representantes de movimentos
sociais ligados aos trabalhadores rurais, aos servidores públicos e aos LGBT+). A
reverberação desse momento gerou nas mídias digitais um furor de oposição ao
presidenciável sob a hashtag “Ele não” (#elenão). A ideia por trás do ato público era mostrar
repúdio às posições preconceituosas do então presidenciável Bolsonaro, contra as minorias
(mulheres, LGBT+, negros; os nordestinos também estavam inclusos no discurso do
presidenciável). 
Ao anoitecer, finalizadas as atividades da mobilização, um grupo de amigos decidiu
beber umas cervejas. A minha sugestão foi a de um bar a poucos quarteirões da minha casa; e
seguimos a minha sugestão. Estávamos em quatro pessoas: eu, Paulo, Auta e José, com quem
eu estava conversando pela primeira vez. No bar, depois de analisarmos brevemente a
situação do ato que acontecera e chegarmos à conclusão sobre a beleza da organização dos
movimentos sociais, passamos a compartilhar as angústias da pós-graduação. A conversa
passou a girar em torno de questões acadêmicas e das construções dos respectivos projetos de
pesquisa individuais (a roda era apenas de pós-graduandos), mescladas com pontuações sobre
a conjuntura política nacional. 
Dentre tantas voltas, a posição ocupada pela Universidade na trajetória individual de
cada um passou a ser tema do momento; principalmente o status ocupado pelo jovem
universitário em relação ao grupo familiar. Auta, 28 anos, pós-graduanda em Ciências Sociais
pela UFRN, passa a narrar os estranhamentos pelos quais passou ao retornar para a localidade
onde residem seus familiares, em Capela, distrito de Ceará-Mirim. Aproveitando do ensejo,
Paulo também descreve suas angústias no que se refere à cidade na qual cresceu. 
27
Em meio àquelas histórias, surge uma pontuação em referência a um texto escrito por
Georg Simmel, O estrangeiro (2005 [1908]), no qual o autor reflete sobre a posição ocupada
pela pessoa estrangeira dentro de um determinado grupo. O indivíduo sente-se sempre
deslocado, sem pertencimento ao que o autor denomina de “constelação de significados” ou
“constelação de sentido” (Idem, p. 352; 354). Nem lá nem cá, o estrangeiro situa-se como o
indivíduo que não consegue encontrar um lugar próprio. A mobilidade, ou seja, a não-fixidez
é a sua principal característica. Assim, falamos de como cada um dos presentes naquele grupo
se encontrava como sendo um estrangeiro, um estranho diante da realidade na qual vivera. O
mesmo movimento pode ser encontrado nas trajetórias de muitos jovens que saem - “precisam
sair” - de suas cidades de origem para realizar um curso superior em cidades distantes. 
Em certo momento, logo após o garçom nos servir uma rodada de aperitivos, Paulo
comenta que em sua cidade (Afonso Bezerra, RN) a questão da sexualidade também
contribuiria para o estranhamento e o distanciamento do homossexual em relação ao local de
origem. Segundo ele, esses rapazes são encobertos pelo imaginário de “pessoa inteligente”
que, muitas vezes, saem do local para ir estudar na capital, ou até mesmo, recebem a alcunha
de loucos ou descontrolados e que, por conseguinte, são incapazes de constituir família.
Afinal, no imaginário patriarcal, o projeto de formação familiar deve constituir o cerne da
construção dos indivíduos e, aqueles que desviam para um caminho que não o definido dentro
deste projeto familiar, recebem a classificação de louco ou sem-juízo. 
Paulo narra uma situação em que estava lanchando com amigos, conhecidos e
desconhecidos em uma lanchonete em Afonso Bezerra, quando em algum momento da
conversa a sexualidade é abordada e um dos presentes, que não era conhecido por Paulo,
relata da seguinte forma: “vocês conhecem o filho de Chico, ele tem os ‘jeitos de viado’, mas
é homem”. Daí então Paulo, num salto se apresentou, deixando o grupo perplexo com sua
presença. O rapaz que realizou o comentário se assusta ao perceber que a pessoa a quem ele
se referia estava presente. Diante da situação embaraçosa, mudam de assunto. 
Para Paulo, esse exemplo é sinônimo do vigor da estrutura patriarcal. Essa estrutura
patriarcal apontada por Paulo refere-se ao sistema de disposições dos sujeitos e suas ações
baseado no gênero. As diferenças estabelecidas entre estereótipos masculinos e femininos
definem a forma de classificar os rapazes homossexuais, ou seja, o gênero serve como lupa
para antevê a sexualidade. O sistema sexo-gênero definido por Gayle Rubin (2017),
demonstra a coextensividade entre o gênero e a sexualidade; tanto é que mesmo sendo taxado
28
como “viado”, Paulo também recebeu o classificatório de ser “homem”, como se houvesse um
complemento por contradição. Nessa situação, a performance de gênero masculinizada
impõe-se sobre a homossexualidade, amenizando-a. Indica que o inverso pode ser alvo de
críticas: a performance de gênero feminilizada atrelada a homossexualidade, caracterizando a
“bicha pintosa”.Essa conversa tornou-se uma introdução para que eu pudesse refletir sobre o
imaginário das comunidades interioranas, acerca das posições ocupadas pelos rapazes
homossexuais. O fluxo narrativo de Paulo foi interrompido com a chegada à nossa mesa de
Pedro, que chegara com uma dupla de amigas. Cumprimentamo-nos e Pedro seguiu para outra
mesa com as amigas. Logo, Paulo me questiona “você conhece o Pedro?”. A pergunta rodou
em minha cabeça e quase que eu devolvo o mesmo questionamento, mas apenas respondi que
“sim”. Contudo, segundos depois, fiz o mesmo questionamento a Paulo. Sua resposta foi que
tinha conhecido Pedro há pouco tempo e conversavam apenas pelo Facebook. A conversa
seguiu uma linha aleatória, passamos a falar sobre as diferenças culturais entre as regiões
Nordeste e o Sul do Brasil (José, o rapaz presente no grupo era de Porto Alegre/RS). 
Desta noite, tomei como reflexão as representações coletivas acerca dos rapazes
homossexuais em cidades interioranas do Estado do RN; assim como a própria relação de
estranhamento e distanciamento de suas localidades de origem. Embora as pontuações feitas
na mesa de bar indiquem que o estranhamento a que se refere Paulo assemelhe-se mais a
trajetória de Auta e José, por terem saído de seus locais de origem para estudarem, do que pela
esfera da sexualidade. Acredito, nesse início, que as duas possibilidades podem servir na
construção do indivíduo estranhado em seu local de origem. 
2.1.4 Esperando a dentista, uma conclusão antecipada
No início do mês de junho, eu já tinha um percurso bem definido através do qual
minha pesquisa iria se desenvolver. Porém, tive que realizar um acréscimo às minhas
reflexões. Retornei às entrevistas, esmiucei algumas anotações e o diálogo que tive com uma
senhora na sala de espera de uma clínica odontológica, deu-me mais combustível reflexivo e o
tom de contraste que ganhou minha pesquisa. Estávamos nós, eu e a senhora cujo nome não
me foi revelado e eu sequer cheguei a perguntar, esperando pelo atendimento de nossa
dentista. Enquanto eu folheava uma edição antiga da revista Veja, apenas para me distrair, a
senhora decidiu puxar conversar comigo. Perguntou-me se eu era da cidade de Natal e, se não,
29
emendou um questionamento sobre minha cidade de origem. Bastante desinteressado narrei,
em segundos, meu percurso de Angicos para Natal. Ao perceber que podia angariar mais
informações, perguntou-me: “você mora sozinho aqui em Natal?”. Prontamente respondi com
um não e segui contando que tinha um companheiro com o qual compartilhava um
apartamento. 
A expressão da senhora mudou, seu rosto ganhou um sorriso e seguiu dizendo: “se eu
tivesse um filho homossexual, eu o aceitaria, não vejo problema nenhum”. A minha reação foi
a de retribuir com um sorriso sem dentes, mas com o ar de condescendência. Contei-lhe que
minha mãe não expressou nenhuma reação negativa no momento em que falei que era gay. Ao
contrário, sua reação foi de carinho e acolhimento. A senhora ao ouvir aquilo intensificou o
sorriso e disse: “isso é ótimo, mas é difícil ver esse tipo de coisa, principalmente nos
interiores”. 
A realidade da qual a senhora estava se baseando, de fato, existe. Ao abrir um
noticiário, não raro encontramos alguma notícia envolvendo crime por homofobia; ou ouvir
de um vizinho sobre a expulsão de casa de um parente, devido às questões relacionadas ao
gênero ou sexualidade. A negatividade é atrelada a um conjunto de ocorrências em localidades
específicas, tais como cidades não-metropolitanas, regiões mais pobres, localidades com
determinados traços culturais, seguindo a reprodução de um discurso de homogeneização dos
contextos que acaba estabelecendo barreiras. A realidade na qual o sujeito está inserido,
grosso modo, pode ofertar maior ou menor margem de liberdade para a exposição dos desejos
não-heterossexuais. 
A colocação da senhora fez-me perceber a recorrência presente nas trajetórias de vida
dos meus amigos-interlocutores: o convívio do rapaz gay com seu respectivo grupo familiar
acontece mesmo após a oralização da sexualidade tida como dissidente. Demonstrando que
aquilo que ela pontuou como “é difícil ver esse tipo de coisa”, ou seja, o oralizar, falar sobre a
homossexualidade, no sentido de revelar ou assumir, ao invés de construir barreiras entre o
rapaz e a família, possibilitou em alguns casos a maior aproximação ou, até mesmo, pode-se
levar em conta o efeito nulo, de pouco ou nenhum impacto do “assumir-se” sobre as relações
familiares. 
Da expulsão de casa ao rompimento dos laços afetivos, as consequências do
“assumir-se” para a família é diversa, como tão bem demonstra Edith Lopes Modesto dos
Santos (2010) ao analisar depoimentos de sujeitos que foram excluídos do convívio familiar
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por assumir alguma identidade sexual ou de gênero que não esteja sob a aceitação familiar; no
entanto, há também a possibilidade de fortalecimento dos vínculos, que por si deve ser levada
em consideração. 
***
A partir dessas cenas iniciais, a agenda teórica através da qual esta pesquisa pode ser
compreendida perpassa por leituras sobre narrativas de vida, memória, construção de
identidades sexuais e projetos de vida. Para tanto, realizei um conjunto reflexivo que me
serviu como instrumento de análise das trajetórias do amigos-interlocutores dessa pesquisa. 
2.2 SOBRE NARRATIVA BIOGRÁFICA
As circunstâncias pelas quais os sujeitos constroem suas narrativas são extremamente
complexas. A maneira com que cada amigo-interlocutor decidiu narrar seu percurso,
desenvolvendo-o em uma série de desconexões cronológicas dos fenômenos vivido, implica
dizer que caberia ao pesquisador apenas tentar reduzir os efeitos amenizadores da escrita
etnográfica, que suaviza as desconexões, reagrupa os segmentos heterogêneos de uma
biografia individual, buscando uma produção escrita coerente. 
Há uma fluidez na reconstrução biográfica enquanto narrada e é constante a maneira
narrativa do interlocutor de descrever um acontecimento em um contexto específico, para que
logo depois realize um “salto temporal” e inicie a descrição de acontecimentos em outro
período. Para mim, apenas demonstra a excepcionalidade da capacidade mnemônica dos
indivíduos em manusear as lembranças e (re)construir o passado. Percebo, com isso, uma
maneira singular em que cada amigo-interlocutor lidou com as próprias trajetórias,
enfatizando uma ou outra peculiaridade em sua história de vida que dialogasse com os
indexadores que eu defini previamente. 
Neste ponto, devemos ressaltar os cuidados com a abordagem de histórias de vida.
Para Bourdieu (1996), é um equívoco tomar as histórias de vida ou biografias como sendo
trajetórias lineares, ou seja, enquanto um conjunto seriado de posições sucessivamente
31
ocupadas pelo mesmo agente, ao longo de um espaço em transformações. Dirá ele que os
acontecimentos biográficos definem-se, na verdade, como sendo "alocações e como
deslocamentos no espaço social" (BOURDIEU, 1996, p. 81, grifo no original). Isto significa que
a sequência de acontecimentos narrados em uma biografia é uma seleção feita através de
movimentações do próprio agente dentro de um campo social específico e, devido a sua
capacidade de seletividade, enfatizar momentos, eventos e acontecimentos, tomados enquanto
especiais e significativos para sua história, lida em primeira mão como sendo pessoal e
individual. Bourdieu alerta também para a falta de consideração nas abordagens biográficas
das relações objetivas estabelecidas, não apenas, entre os próprios agentes, como também com
o espaço dos possíveis, um campo probabilístico de efetivação ou não dos eventos na
trajetória dos agentes sociais. 
Se levarmos em consideração umaabordagem fenomenológica da memória,
concluiremos que consiste na tentativa de capturar qual é a percepção dos indivíduos sobre o
ato de lembrar, esquecer e reinterpretar o próprio passado (BERLINER, 2005). Esse manuseio
não se dá de maneira individual e reflexivamente, para Halbwachs (1990) ao lembrarmo-nos
de algo sempre estaremos olhando para o evento não apenas com os nossos olhos, mas
também com os olhos de um Outro, ou seja, as percepções do passado estarão constantemente
sob relação necessária com a esfera do coletivo. Nas palavras de Halbwachs (1990, s.p):
Nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros,
mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com
objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós. Não é
necessário que outros homens estejam lá, que se distingam materialmente de nós:
porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se
confundem3. 
Essa concepção de multiplicidade que age sobre os (e nos) indivíduos leva
Halbwachs a estabelecer a noção de “quadros sociais da memória”, isto é, defendendo que a
memória é produzida na relação com a família, a escola, a igreja, o emprego, os amigos;
enfim, nos diversos grupos e organizações com os quais o indivíduo estabeleça contato. Ao
definirmos a relação complexa dos indivíduos com suas lembranças e a ideia de que o passado
seria uma elaboração coletiva, não podemos incorrer no risco de tomar o passado como
ilusão, ficção ou fantasia, pois, tão bem definiu Éclea Bosi (1979, p. 17): “a memória não é
sonho, é trabalho”, especialmente, um trabalho colaborativo feito a muitas mãos. 
3 E-book, sem paginação. 
32
Os quadros através dos quais as memórias são acionadas estão ancorados em noções
gerais da linguagem (cf. BOSI, 1979). Podemos defini-las como sendo as noções de
temporalidade (os indivíduos se utilizam de marcadores temporais nas narrativas: antes disso,
depois daquilo, sempre foi assim, em tal dia, certa manhã e etc.); espacialidade (para dentro,
do lado de fora, em cima de, por trás de e etc.); e de causalidade (dessa forma, devido a isso,
para que, e etc.). Essas noções que a linguagem impõe às narrativas das memórias
possibilitam a compreensão dos contextos vividos pelos interlocutores em seu teor mais
descritivo, ou seja, situando nas cenas os indivíduos, os objetos e os sentimentos.
Nesse mesmo processo de construção narrativa da memória, o pesquisador ocupa
importante posição como incentivador direto da reflexividade do ato de lembrar. Isto é, por
vezes, os meus amigos-interlocutores falaram: “sabe, eu nunca tinha parado para pensar sobre
isso...”, “olha, pensando agora, eu não entendo por que naquela ocasião eu fiz isso...”, “Eu
nunca falei sobre isso antes...”. Assertivas como estas demonstram que ao serem questionados
sobre alguma situação vivida e, por conseguinte, terem que elaborar alguma resposta coerente,
acabam por produzir uma reflexão sobre si mesmo e seu respectivo passado, o qual é
atualizado por meio e a partir dessa reflexão presente. 
A importância de seguir o fio da subjetividade através da memória é chegar-se a um
âmbito tão primitivo que não teria nome, tanto que os amigos-interlocutores denominam
algumas situações, ainda em suas infâncias, ou como “estranhas” ou como “diferentes”. Não
havia uma significação do fenômeno para esse período, mesmo assim, encontram lugares nas
narrativas de cada amigo-interlocutor. 
Segundo Philippe Lejeune (1992), há entre o autor das lembranças e o leitor delas
uma espécie de “pacto autobiográfico”, a partir do qual, através de marcações e sinalizações
prévias, o autor indica a verossimilhança entre a narrativa e o fato acontecido; isto é, cada
amigo-interlocutor manejou suas lembranças em narrativas que buscavam representar a
realidade vivida, de fato. Por isso, aquilo que podemos definir como história de vida possui
uma relação entre a história e a ficção, na medida em que os fatos da vida de alguém exigem
igualmente uma historicidade do acontecido, do experienciado. Daí a aproximação entre
narrativas e experiências. 
Para Ricoeur (1973), a relação entre temporalidade e experiência, crucial à história e
à produção dos discursos, remete tanto a um passado que impõe sua marca quanto a uma
antecipação do imprevisível, o presente. Coadunando com Anthony Giddens (2003), a
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memória seria a presentificação do passado, pois se ação dos sujeitos dá-se na espacialidade
presente, a própria memória é uma forma de “estar presente”. De fato, como apontei
anteriormente nas cenas introdutórias, o retorno ou, talvez, o resgate de experiências vividas
por parte dos amigos-interlocutores desenrola-se no instante presente: por exemplo, numa
reunião de amigos ou em quaisquer momentos nos quais impliquem o resgate de
acontecimentos comuns e compartilhados. 
Embora a flexibilidade de olhar o passado possibilite uma noção relativista da
experiência vivida, os acontecimentos passados passam a ganhar novos significados para os
sujeitos, apenas quando interpelados no presente. O efeito de falar de si impulsionou a
sistematização e o ordenamento de acontecimentos de maneira a coadunar com os
indexadores que estabeleci a priori, principalmente no que se refere aos afetos e às práticas. 
Esse campo de ressignificação das lembranças está presente nas discussões da
psicanálise freudiana (FREUD, 1980 [1914]) e aludem à flexibilidade da matéria mnemônica.
Ademais, demonstra a relevância do passado como fonte de conhecimento partindo de sua
característica principal, a multidimensionalidade semântica (BERLINER, 2005), ou seja, a
capacidade de ofertar múltiplos significados e interpretações. 
2.3 IDENTIDADE E DIFERENÇA
Partindo da premissa já defendida por outros autores sobre a característica principal
da memória ser a capacidade de construção e moldagem (BOSI, 1979; FREUD 1980;
HALBWACHS, 1990; BERLINER, 2005; ROSENTHAL, 2014), pode-se dizer que a relação da
memória e a formação dos sujeitos dá-se exatamente onde se definem a identidade individual
e, assim, também é maleável. A identidade pode ser tomada, segundo Avta Brah (2006, p.
271), “como o próprio processo pelo qual a multiplicidade, contradição e instabilidade da
subjetividade é significada como tendo coerência, continuidade, estabilidade; como tendo um
núcleo”, e continua dizendo que, embora um núcleo esteja em constante mudança, “mas de
qualquer maneira um núcleo – que a qualquer momento é enunciado como o ‘eu’”.
Para Michael Pollak (1992, p. 206), “há uma ligação fenomenológica muito estreita
entre a memória e o sentimento de identidade”. Esse sentimento de identidade aludida pelo
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autor pode ser traduzido pela noção de imagem de si, moldada automaticamente do sujeito
consigo próprio e com o outro. Discutir a construção da identidade é fundamental para
entender os limites do pertencimento ou a um coletivo ou a uma localidade ou a uma forma de
pensamento. Nesse processo de construção da identidade através do qual a memória se
enraíza como constituinte, principalmente ao dar coerência e estabilidade que a própria
estrutura da memória se organiza, pode-se daí refletir as homossexualidades em dois planos:
na relação do sujeito consigo mesmo e do sujeito com os outros que o cercam.
Estes dois planos se confluem nos chamados estudos interacionistas do desvio, tendo
como exemplos mais proeminentes Howard Becker e Erving Goffman. Em linhas gerais, os
estudos do desvio focaram na busca de entendimento acerca das estruturas institucionais e dos
mecanismos de socialização em subculturas desviantes. Para a antropóloga Gayle Rubin
(2018), no que tange às questões

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