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Fenomenologia carnal: A corporeidade como um paradigma para antropologia Autor: Pedro Paulo Valerio Vaz Orientador: Sergio Baptista da Silva RESUMO Este texto buscará expor e problematizar alguns pontos da teoria do antropólogo Thomas Csordas (2008), apresentados no texto “A corporeidade como um paradigma para a antropologia” (2008). Em vez de resumir o texto do Csordas, em um exercício de um sobrevoo geral sobre seus argumentos, a proposta é apresentar o aprofundamento de alguns dos assuntos, ou seja, será feita uma análise mirada em alguns dos argumentos do antropólogo, principalmente os ligados à escola filosófica da fenomenologia e, mais especificamente, à teoria do filósofo Maurice Merleau-Ponty (2000) expostas no livro “A natureza: Curso do Collège de France” (2000). Resumidamente, a intenção desta resenha é expor pontos de contato entre a fenomenologia de Merleau-Ponty e o discurso de Csordas, mostrando alguns pressupostos que ambos assumem junto a uma problematização dos pontos considerados mais importantes. Palavra-chaves: corporeidade. fenomenologia. percepção. Introdução Nos últimos anos, dentro das ciências sociais, o tema corpo está sofrendo um “autêntico boom” (VALE DE ALMEIDA, 2004, p. 2). Nas últimas décadas, foram muitos os cientistas sociais1, tanto antropólogos como sociólogos e mesmo filósofos, que privilegiaram a compreensão do corpo em suas pesquisas. Como Miguel Vale de Almeida (2004) explica, entre as correntes teóricas que buscam compreender a noção de corpo estão, por exemplo: os pesquisadores que privilegiam uma teoria prática, outros que buscam se ancorar nas premissas da fenomenologia, outros ligados à crítica artística, também existem outros que se baseiam nos estudos de ciência, alguns outros próximos do conceito de “biopolitíca”, entre muitos outros enquadramentos teóricos (VALE DE ALMEIDA, 2004). Este texto buscará principalmente expor e problematizar alguns pontos da teoria do antropólogo Thomas Csordas (2008), apresentados no texto “A corporeidade como um paradigma para a antropologia” (2008). Para alcançar o objetivo proposto, em um primeiro momento do texto será apresentada, em uma pequena introdução, os argumentos do pesquisador David Le Breton (2011), que foi um dos responsáveis por delimitar o papel do corpo nos primordios da civilização moderna. Já em um segundo momento do texto, será exposto alguns dos pressupostos teóricos da fenomenologia carnal de Merleau-Ponty (2000), com o auxílio do filósofo Graham Harman (2005)2, para que então, em um terceiro momento, seja apresentada a proposta da corporeidade do antropólogo Csordas (2008). Neste terceiro momento, serão articulados seus principais argumentos relacionados a alguns pressupostos primários da fenomenologia de Merleau-Ponty (2000). O nascimento do corpo moderno Entre os pesquisadores que iniciaram os estudos sobre o corpo nas ciências sociais se encontra David Le Breton (2011), que, com sua obra “Antropologia do corpo e modernidade” (2011), problematizou principalmente o nascimento da noção de corpo nos primórdios da modernidade enquanto “resto” (LE BRETON, 2011, p. 96) e as consequências dessa nova invenção em uma pesquisa baseada em profunda literatura 1 Entre eles podemos citar; Thomas Csordas (1990), Aparecida Vilaça (1993), María Puig de La Bellacasa (2011), entre outros. 2 Graham Harman tornou-se um filósofo conhecido na década passada, ao colaborar com a criação da escola filosófica “realismo especulativo”, com sua teoria orientada aos objetos. histórica sobre o tema. Para Le Breton o corpo enquanto uma “realidade autônoma” (LE BRETON, 2011, p. 72) surgiu em meados do segundo milênio da história ocidental, quando, principalmente, através dos estudos de anatomistas ele foi finalmente tocado e pesquisado (LE BRETON, 2011). Como David Le Breton escreveu na última frase do capítulo “As fontes de uma representação moderna do corpo”, “o corpo nada mais é do que apenas um resto” (LE BRETON, 2011, p. 96) na modernidade. E durante todo o artigo o autor fornece os argumentos que levaram o corpo receber tal “depreciação” (LE BRETON, 2011, p. 95), que ocorreu junto à tomada de “consciência do indivíduo” (LE BRETON, 2011, p. 95) moderno, e também junto sobretudo as inovações das ciências, econômica, política e médica (LE BRETON, 2011, p. 60-72). E, como o pesquisador também afirma, esse movimento está ligado diretamente ao nascimento do “homem3 da modernidade” (LE BRETON, 2011, p. 89), que surge ligado a três principais pontos: o primeiro enquanto o humano “cindido de si mesmo” (LE BRETON, 2011, p. 89); o segundo sobre o humano cindido dos outros humanos; e o terceiro enquanto o humano cindido do cosmos. E, como o antropólogo continua a expor em seu texto, o corpo moderno é exatamente o “resíduo” (LE BRETON, 2011, p. 89) desses três movimentos. Em suma, ele é o “indício” (LE BRETON, 2011, p. 73), ou seja, é uma espécie de sintoma desses três rompimentos impostos pelo nascimento da civilização moderna e de sua epistemologia e ontologia específicas. Para entender o que Le Breton denomina enquanto o nascimento do corpo, que ocorre junto ao nascimento da modernidade, inicialmente é preciso entender o que o autor chama de sociedades “tradicionais” (LE BRETON, 2011, p. 44), as sociedades pré-modernas, ou seja, as que existiram antes da moderna, como as medievais e as renascentistas (LE BRETON, 2011, p. 43). Como Le Breton expõe, nas sociedades pré- modernas o que existe são sociedades “holistas” (LE BRETON, 2011, p. 44), nas quais o humano e o mundo são feitos da mesma “substância” (LE BRETON, 2011, p. 44), ou seja, onde existe ainda uma “correspondência” (LE BRETON, 2011, p. 95) entre a carne do humano e a carne do mundo, e assim ambos vivem em uma relação de identidade, em uma espécie de perfeição total e única. O termo holística é pensado por Le Breton através de outro pesquisador, Louis Dumont (1983), que pensa as sociedades tradicionais enquanto civilizações nas quais 3 O antropólogo utiliza a palavra “homem” para se referir aos humanos, porém durante este texto usaremos a palavra “humano”, devido à problematizações sobre o tema que foram feitas pela antropologia após a escrita do texto de Le Breton. reina uma espécie de totalidade social em que os indivíduos são radicalmente subordinados e, não têm autonomia alguma, pois vivem como imersos na unidade social em uma relação de total dependência (LE BRETON, 2011, p. 44). No mesmo sentido do parágrafo anterior, Le Breton dá o nome de “antropologia cósmica” (LE BRETON, 2011, p. 43) para o referido momento antes da modernidade, quando o humano ainda não estava separado de todo o mundo, de todo o cosmos, de todo o outro, sejam os outros não humanos ou mesmo os outros humanos. Essa exposição de Le Breton do momento anterior à modernidade, das sociedades tradicionais enquanto sociedades isoladas em um passado distante do qual a modernidade se diferencia, do qual as sociedades modernas se separam, é um argumento que coloca o antropólogo enquanto um autor moderno, no sentido de Bruno Latour (2013). Ou seja, o autor se encaixa perfeitamente na leitura de Latour realizada na obra Jamais fomos modernos (1994), pois, como o filósofo diz, a modernidade tem vários significados possíveis, porém um ponto comum reúne todos esses significados, pois sempre a modernidade é pensada enquanto “um novo regime, uma aceleração, uma ruptura, uma revolução” (LATOUR, 20013, p. 15) que sempre acontece baseada em um passado sobretudo “estável” (LATOUR, 2013, p. 15). Então, nesse sentido, podemos colocar o antropólogo Le Breton como um clássico moderno. Como os argumentos exposto acima indicam, para Le Breton a modernidade nasceu junto a um movimento de depreciação do corpo. Isso por que junto ao nascimento do indivíduo moderno ocorreutambém o movimento de deslocamento do corpo para o segundo plano, quando o corpo foi estabilizado enquanto “resto” (LE BRETON, 2011, p. 96). Nas próximas páginas desse texto serão agora apresentados argumentos de outros autores posteriores a Le Breton, que foram articulados para retirar o corpo do segundo plano e dar lhe o papel de protagonista dentro das ciências humanas. E para dar início a esse movimento serão apresentados alguns argumentos de Merleau Ponty (2000), para que logo em seguida o paradigma da corporeidade de Thomas Csordas (2008) seja exposto e problematizado. Fenomenologia carnal Como Graham Harman explica (2005, p. 53), a fenomenologia carnal de Merleau-Ponty (2000) parte do pressuposto de que ter um corpo implica em posicionar- se menos diante das coisas, e estar mais imerso ou costurado às coisas, ao mundo. Sendo assim, a fenomenologia carnal de Merleau-Ponty apresenta ao leitor a estranha sensação de se estar no mundo imerso entre as “voluptuous textures” (HARMAN, 2005, p. 3) dos objetos que o circulam, em uma imersão na qual a razão da mente não realiza a comunicação com as coisas que existem, mas a percepção do corpo é a primeira comunicação com tudo o que existe para além do humano, e também com os outros humanos. Como Merleau-Ponty resume, “não é o olho que vê, e também não é a alma. É sim o corpo que vê” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 351). Se nos argumento apresentados acima de Le Breton é sobretudo a “alma” do sujeito moderno, já separada do corpo que conhece, que é protagonista, na fenomenologia de Merleau-Ponty ocorre uma inversão onde o corpo é alçado ao papel de destaque. Nesse sentido, a fenomenologia de Merleau-Ponty começa antes da razão, antes do mundo objetivo, pois se inicia na percepção, anterior ao pensamento, e que logo se encontra no mundo pré-objetivo (MERLEAU-PONTY, 2000). A posição pré-objetiva de Merleau-Pounty, refere-se mais exatamente ao momento da percepção humana, que ocorre antes da separação entre o objeto e o sujeito. Em suma, a fenomenologia joga o leitor em um ambiente anterior aos pensamentos sobre o mundo, pois é uma filosofia da imersão do corpo no mundo (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 337). Dessa forma, é interessante que o leitor tenha em mente a experiência fundadora da possibilidade de uma filosofia fenomenológica, que é exatamente a experiência que cria uma abertura para o pré-objetivo possível. Como Graham Harman explica (2005, p. 10), a fenomenologia parte de uma primeira regra, que proíbe a utilização de qualquer teoria exterior à experiência para explicar o mundo, pois primeiramente é preciso descrever a própria experiência de estar no mundo, enquanto um corpo em meio a outros corpos. Explicando de outra forma, os sujeitos modernos acostumaram-se a conhecer o mundo com as ciências naturais sobretudo e, logo, pensam em alcançar a compreensão do mundo quando veem toda a experiência da razão diante do planeta reduzida “set of atoms and chemical and genetic codes” (HARMAN, 2005, p. 10). Isto é, para a fenomenologia de Merleau-Ponty pensar o mundo através da teoria científica materialista clássica é um erro de método, pois primeiramente o humano deve suspender tudo o que sabe e permitir que a experiência do corpo imerso no mundo o guie para atravessar o caminho do conhecimento. Então, a fenomenologia, inicialmente, é como um método de conhecimento que impede logo em seu primeiro passo o uso de qualquer teoria de mundo apreendida anteriormente, pois impõe um passo para trás, um passo em direção ao encontro espontâneo do corpo humano com o mundo. Nesse sentido, a fenomenologia convida o leitor para um mergulho no mundo através da percepção do corpo humano, que é colocado como instrumento protagonista para o conhecimento das coisas e, logo, a fenomenologia de Merleau-Ponty não convida para uma reflexão da mente sobre o mundo, pois antes de conhecê-lo com sua mente, o humano percebe o mundo com seu corpo, ou então, antes de encontrar um mundo objetivo, o humano encontra o pré-objetivo. E, como Merleau-Ponty estabelece, esse movimento de suspensão da razão para encontro direto com a experiência coloca o corpo no centro da questão, pois é justamente ele que percebe, que realiza contato com o mundo, pois o corpo é a “abertura” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 351) para o mundo, é o que nos coloca no mundo, o que nos situa no mundo. No entanto é importante notar que o corpo de Merleau-Ponty não é o material/inerte das ciências naturais, ou seja, não é mais um objeto entre os outros objetos do mundo, mas um corpo sensível a todos os outros corpos e que, assim, funciona enquanto uma “universal traslation tool” (HARMAN, 2005, p. 49) em relação às coisas do mundo. Ou seja, antes de ser mais um objeto passivo entre todos os corpos possíveis, todos objetos passivos, o que é o mundo proposto pelo movimento de objetificação das ciências naturais, o corpo fenomenológico é o sujeito ativo que permite a relação com o mundo, ou seja, o corpo é o meio de comunicação com tudo o que existe. De novo aqui estamos diante de uma inversão do corpo exposto por Le Breton, pois ao invés de passivo, depreciado, o corpo é ativo, é valorizado na fenomenologia carnal.. Dessa forma, para a fenomenologia de Merleau-Ponty o corpo humano conhece o mundo em um primeiro momento. Logo, o corpo para a fenomenologia carnal é mais um “quem” do que um “que”, é mais aquele que conhece do que aquilo que é conhecido, e assim, todos os humanos conhecem o mundo através de um mesmo corpo, ou seja, ser humano é ter um corpo humano antes de ter um pensamento humano (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 336). Nesse sentido, se o corpo é um tradutor, é porque ele é aquilo que encontra o mundo e que precisa enfrentar, o ler, o compreender, o pensar. Em suma, a fenomenologia afirma que a humanidade não é a razão, ou seja, o humano não é definido enquanto o único ser que pensa, mas o humano é “outra maneira de ser corpo” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 336), ou seja, o humano é um humano sobretudo por seu corpo, o ser humano “é uma outra corporeidade” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 336). Logo, a fenomenologia carnal impede que o conhecimento seja um movimento de voo da consciência sobre o próprio corpo e sobre o mundo, que então passa a ter uma visão total e distante das coisas, uma espécie de visão de “lugar nenhum”, pois o corpo sempre está “interposto entre o que está diante de mim, e o que está atrás de mim” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 338). Então o corpo se torna um obstáculo intransponível para que possa conhecer o mundo, pois conhecer o mundo é passar pelo corpo, é ser o corpo. Logo, o primeiro passo para se compreender o humano é compreender sua “maneira de ser corpo” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 345). Após essa breve introdução de alguns pressupostos da fenomenologia carnal, será discutida a teoria do antropólogo Csordas, que busca aproximar esses pressupostos da fenomenologia carnal em direção à antropologia, para que assim seja possível a criação de um novo paradigma antropológico, que possibilite que o corpo seja alçado ao papel de protagonismo nas pesquisas dos antropólogos. A antropologia carnal proposta por Csordas No texto “A corporeidade como um paradigma para antropologia” (2008), o antropólogo Thomas Csordas expõe que sua teoria, fortemente inspirada na fenomenologia de Merleau-Ponty, busca abrir caminho para o “colapso da dualidade entre corpo e mente, sujeito e objeto” (CSORDAS, 2008, p. 104) nos estudos antropológicos. Ou seja, a teoria apresentada pelo autor propõe que não se parta da diferença entre a natureza de um lado e a cultura do outro. Nesse sentido, a teoria de Csordas se coloca ao lado de outras, contemporâneasda antropologia, como de Eduardo Kohn (2013), Eduardo Viveiros de Castro (2001), Anna Tsing (2010) e Tim Ingold (2010), que também buscam desmoronar a famosa dualidade moderna entre natureza e cultura. E, para realizar esse movimento, segundo o antropólogo Csordas (2008, p. 102), é preciso pensar o corpo humano enquanto sujeito e não enquanto objeto, pois é o corpo humano que, em seu movimento, percebe o mundo a seu redor. O antropólogo, em seus argumentos, expõe que o corpo enquanto sujeito começa seu movimento em um mundo ainda “pré-objetivo” (CSORDAS, 2008, p. 103), em um momento no qual o corpo humano ainda está misturado com outros corpos humanos e não está separado do mundo como um todo. Nesse sentido, não é a razão, mas o corpo humano que percebe e conhece o mundo em seu movimento. Então, a objetificação do próprio corpo, e também dos outros, é um resultado secundário da reflexão (CSORDAS, 2008, p. 142). Como Harman explica de modo curioso (2005, p. 49), o corpo, para a fenomenologia de Merleau-Ponty, é o trauma original humano, no sentido psicanalítico de algo impossível de se superar e que sempre funcionará como o limite do conhecimento do mundo para aquele que está encarnado em alguma pele em movimento. Nesse sentido, sempre se conhece situado no corpo, fixado no corpo, preso no corpo, e o movimento de transcendê-lo para realizar o conhecimento é impossível. Esse movimento proposto pela fenomenologia de Merleau-Ponty contradiz a ideia da construção de conhecimento como um olho de Sirius, aquele que tudo vê e que está acima de tudo, pois a fenomenologia carnal impõe que se enxerga até o limite de seu próprio corpo, e logo nunca se vê tudo. Então, o conhecimento é possível até um certo limite e nunca se conhece todo o mundo (HARMAN, 2005, p. 3). Logo, o humano primeiro encontra o mundo com seu corpo, e seu corpo também é o limite de sua possibilidade de encontrar o mundo, ou seja, só se percebe o mundo em um corpo e, assim, o corpo é principal instrumento de conhecimento de tudo e todos que existem. A fenomenologia apresenta o corpo como entrada e limite do mundo. Nesse sentido, também Csordas busca dar um passo antes da objetificação em direção à um mundo onde ainda não exista nenhum objeto anterior, exterior e fixo, pois sua ideia principal é focar a atenção da antropologia justamente no processo de objetificação. Como o antropólogo explica no começo de seu artigo, para implodir a dicotomia natureza/cultura é preciso um novo paradigma, uma nova “perspectiva metodológica” (CSORDAS, 2008, p. 101), fundamentada e sólida, que permita repensar os dados antropológicos, para que assim seja possível propor, enquanto consequência, novas questões para os estudos empíricos da antropologia. Ou seja, a pesquisa de Csordas, ao contrário da fenomenologia apresentada na segunda parte do presente texto, pensa em problematizar principalmente os dados obtidos pelo trabalho etnográfico dos antropólogos e no texto “A corporeidade como um paradigma para a antropologia” (2008) esse movimento será feito através da exposição de diferentes rituais religiosos. Mais à frente, um desses rituais será explicado com detalhes. De acordo com Csordas, o novo paradigma deverá ser orientado sobretudo pelos passos metodológicos da fenomenologia de Merleau-Ponty, pois foi o filósofo que, através da problematização da percepção, introduziu o “princípio metodológico” (CSORDAS, 2008, p. 105) da corporeidade, que permite o abandono da dualidade mente e corpo. Isso porque, segundo Csordas, a corporeidade expõe que a própria consciência é o corpo, ou melhor, que a consciência é o corpo em movimento, pois “a consciência é o corpo se projetando no mundo” (CSORDAS, 2008, p. 105). Como foi apresentado na segunda parte deste texto, nesse ponto o movimento do corpo é considerado enquanto consciência, ou seja, é através do movimento do corpo que se conhece, que se traduz o mundo. Nesse sentido, o movimento do antropólogo é trazer os pressupostos da fenomenologia para seu trabalho, porém esses pressupostos servirão sobretudo enquanto instrumento para as pesquisas antropológicas avançarem por novos caminhos. E podemos ver como nesses argumentos o antropólogo se mostra distante do corpo exposto por Le Breton, pois Csordas abandona a dualidade corpo e mente, ao contrário de Le Breton que eleva essa dualidade a própria condição da manifestação do corpo na modernidade. Para compreender o paradigma da corporeidade de Csordas e a noção do corpo enquanto um fenômeno cultura, que está aberto a transformações culturais, o antropólogo utiliza um belo exemplo do pesquisador Maurice Leenhardt. (1947). Como Csordas descreve, o antropólogo Leenhardt, enquanto fazia seu trabalho de campo, em certo momento, perguntou para um xamã se o que os europeus inseriram nos modos de pensar dos indígenas seria a noção de “alma”. Porém, de forma surpreendente, o xamã revela que ele, e também seu povo, conheciam a noção de espírito e que o os europeus tinham trazido de novo era a noção de corpo (CSORDAS, 1994, p. 6). Ou seja, essa pequena anedota aponta que a noção de “corpo” foi encarada pelos indígenas enquanto uma novidade e não a noção de “alma”. Diante dessa anedota de campo de Leenhardt, segundo Csordas, é possível concluir que a visão indígena diz que não foi e que não é sempre que os seres humanos vivem em corpos objetivados, pois nem sempre o corpo conhecido pelas ciências modernas, enquanto anterior, exterior e fixo, existiu. Sendo assim, para os indígenas, as pessoas não são individualizadas, mas sim vivem em um mundo “sociomythic” (CSORDAS, 1994, p. 7) no qual o corpo humano está misturado com os outros corpos humanos e inclusive misturado com o mundo em geral. Ou seja, o exemplo propõe que o corpo objetificado, tal qual as ciências naturais modernas conhecem, é algo específico de nossa civilização, e justamente por isso, a objetificação é sempre um processo, pois o mundo objetivo pode apenas existir como resultado de um processo, para ser mais exato, enquanto o processo de conhecimento das ciências modernas. Logo em seguida em seu texto, Csordas apresenta outro argumento ancorado diretamente na fenomenologia, que diz: “longe de ser constante, a percepção é indeterminada por natureza” (CSORDAS, 2008, p. 106). Isso por que existe sempre algo além do que a percepção alcança, ou seja, “há sempre mais do que chega aos olhos” (CSORDAS, 2008, p. 106), e assim, a realidade e o mundo, seguem sempre com parte fora percepção humana, pois nunca é totalmente traduzível. Nesse sentido, a antropologia carnal proposta por Csordas interdita a possibilidade de se conhecer a realidade por completo, pois ela se encontra sempre além do conhecimento humano, ou seja, a realidade não é transparente, mas sempre opaca, turva. Todo esse argumento do autor está fundamentado na afirmação metafísica central da fenomenologia de que “objects always lie beyond any possibility of total presence” (HARMAN, 2005, p. 3)”. Como Csordas apresenta ainda no sentido exposto acima, perceber a realidade/ou mundo é em suma perceber sua “riqueza e indeterminação” (CSORDAS, 2008, p. 106). E, nesse sentido, o antropólogo continua a explicar sua teoria, pois o começo do movimento de conhecimento não se dá sobre “objetos anteriores à percepção” (CSORDAS, 2008, p. 106), pois não existe esse objeto transparente e total no começo do estar no mundo. Então, para Csordas, é preciso um trajeto para que objeto seja percebido enquanto fora do corpo, ou seja, é preciso um percorrer um caminho para que o objeto apareça enquanto pertencendo ao “mundo objetivo” (CSORDAS, 2008, p. 106). Isso por que o objeto enquanto anterior, exterior e fixo não éo começo da experiência. Em suma, para Corsdas o corpo está no mundo e não diante do mundo em um primeiro momento. Logo, o que Csordas faz com sua teoria é retirar a percepção dos objetos já exteriorizados do protagonismo e colocar o processo de objetificação enquanto movimento principal de construção do conhecimento. Um argumento interessante e curioso é dado por Csordas para afirmar a não necessária existência do corpo enquanto anterior, exterior à mente humana, pois, segundo o antropólogo, em vários momentos da experiência humana, é possível esquecer-se do próprio corpo, ou seja, é possível perceber o mundo sem a experiência de ter um corpo cindido do resto do mundo. Isso acontece quando, por exemplo, alguma pessoa fala por horas e, durante seu discurso, esquece do próprio corpo ou mesmo sente seu corpo como se estivesse desaparecendo. (CSORDAS, 1994, p. 8). Após essa breve introdução dos pressupostos assumidos por Csordas, a seguir, será apresentado seu exemplo etnográfico. E é principalmente o exemplo religioso trazido do trabalho de campo por Csordas que mostra o potencial de um novo paradigma da corporeidade. E esse exemplo vem de sua pesquisa realizada nas religiões pentecostais. É válido seguir os argumentos do antropólogo. Ao descrever as práticas do cristianismo carismático da América do Norte com relação ao exorcismo, ou seja, a prática de expulsão dos espíritos malignos dos corpos dos fiéis, o antropólogo percebe um problema teórico (CSORDAS, 2008, p. 113). Para Csordas, a antropologia de modo hegemônico tem pensando o espírito de um certo modo, porém a fenomenologia pode cooperar para a alteração desse modo. Como o antropólogo expõe, de modo hegemônico, e sem levar em conta a fenomenologia carnal, o processo de exorcismo começa a ser pensado pela antropologia já como o espírito definido enquanto um “objeto constituído” (CSORDAS, 2008, p. 113), que é sobretudo imaterial. E exatamente por ter a característica imaterial nessa versão hegemônica, o espírito tem o poder de transpor os limites do corpo de um humano, ou seja, pode tanto fazer o caminho de dentro para fora do corpo de alguém, o que seria uma espécie de incorporação, quanto de fora para dentro, o que seria uma espécie de expulsão, excorporação. Ou seja, nesse sentido, o espírito é algo com seus limites bem definidos, e o corpo também, por isso pode-se pensar em uma diferença de “interioridade/exterioridade” (CSORDAS, 2008, p. 113) entre eles. Com o novo paradigma da corporeidade, não se tem algum objeto como aquele visto pelo sujeito que expulsa o demônio de dentro do sujeito endemoniado, que no caso seria o objeto/demônio, diante do corpo com a possibilidade de entrar ou de sair dele, mas existe o objeto/demônio, percebido pela pessoa que se comunica com ele diretamente, que é o endemoniado, que não percebe o demônio “dentro de si”, mas sim como uma espécie de “excesso” (CSORDAS, 2008, p. 116), um transbordamento. Como Csordas explica, do ponto de vista de quem esta em contato direto com o demônio se tem a percepção de um “pensamento, comportamento ou emoção” (CSORDAS, 2008, p. 116) fora de controle. Nem exatamente externo nem exatamente interno, mas uma espécie de desequilíbrio, de inconstância, de variação, é experimentado por aquele que encontra o espírito diretamente. Nesse sentido, o paradigma da corporeidade abre espaço para um corpo ainda dissolvido no mundo e sem a percepção exata de uma parte dentro de si e de outra fora de si. Então o antropólogo continua sua explicação e, se no exemplo do espírito já objetificado no mundo os demônios são “objetos culturais” (CSORDAS, 2008, p. 115), no segundo exemplo, o do ponto de vista pré-objetivo, o espírito e é algo “espontâneo e sem conteúdo pré-ordenado” (CSORDAS, 2008, p. 115). Ou seja, a fenomenologia abre espaço para se pensar em uma posição anterior à instituição do que é dentro do corpo e fora do corpo. E no campo pré-objetivo o espírito é mais uma “transgressão ou ultrapassagem” (CSORDAS, 2008, p. 116), um excesso, uma agitação de frequências diferentes, que faz a estrutura da percepção humana tremer e trocar de frequência, o que gera como consequência a percepção da presença de algo espontâneo e indeterminado. Em suma, os espíritos percebidos pelas pessoas “possuídas” não é percebido enquanto algo de fora que invade a interioridade e também não é anulado quando expulso de dentro pra fora. É exatamente nesse sentido que a filosofia é aplicada por Csordas, pois ela é instrumentalizada pelo pesquisador para repensar os dados empíricos através do trabalho de campo dos antropólogos, pois o exemplo dos demônios mostra como eles podem ser vistos enquanto objetos ou como também pode pensar no processo de percepção de cada pessoa diante dos espíritos, antes ainda da objetificação. E é no final do artigo que Csordas propõe seu argumento mais curioso, pois, para o antropólogo, se é possível pensar em uma abordagem corporificada do espírito, através daquele que o percebe, também seria possível pensar em uma “abordagem corporificada da linguagem” (CSORDAS, 2008, p. 126). O movimento proposto por Csordas é a transformação da linguagem, aquilo que define o humano desde Aristóteles como a característica humana “imaterial” mais importante, em algo também corporificado. Para explicar seu pensamento, inicialmente Csordas expõe, em uma interpretação semiótica, que é hegemônica em seu tempo, como compreende a glossolalia. A forma como o antropólogo expõe a glossolalia para a semiótica pode ser vista enquanto algo que “rompe o mundo de significado humano” (CSORDAS, 2008, p. 128), pois ela funcionaria enquanto uma linguagem estranha o bastante para dissolver as estruturas das linguagens ordinárias hegemônicas, como as línguas portuguesa, a inglesa e outras, o que então abriria espaço para uma “mudança cultural criativa” (CSORDAS, 2008, p. 128). Em suma, para a semiótica a glossolalia é como uma “perda pós-bélica de uma língua unificada”, é como um momento no qual as estruturas das linguagens hegemônicas perdem suas definições nítidas, o que permitiria a emergência de algo, de uma novidade, de uma “nova” linguagem. Porém, Csordas, através de uma leitura fenomenológica, propõe que a glossolalia pode ser pensada enquanto uma “lucidez pré-bélica” (CSORDAS, 2008, p. 128), pois seria o resultado exatamente de um momento anterior à objetificação do mundo, ou seja, a glossolalia pode ser vista enquanto um “fenômeno da corporeidade” (CSORDAS, 2008, p. 128). Nesse sentido, a linguagem não é vista enquanto uma “representação de pensamento” (CSORDAS, 2008, p. 128) que ocorre após o trabalho de organização da razão, mas enquanto “um gesto verbal com significado imanente”. Como Csordas apresenta, essa explicação fenomenológica da glossolalia expõe que a “fala e pensamento são coextensivos” (CSORDAS, 2008, p. 128), e, logo, as palavras humanas são menos representações do pensamento e mais um “estilo articulatório” (CSORDAS, 2018, p. 128) do próprio corpo. A curiosa teoria de Csordas, coloca que o ato de falar é sobretudo um “gesto fonético” (CSORDAS, 2008, p. 128) que pode acontecer em uma “posição existencial” (CSORDAS, 2008, p. 128) específica do corpo no mundo. Em suma, para Csordas existe uma espécie de corpo inteligente, e a fala é o resultado do movimento desse corpo em um “mundo repleto de significação” (CSORDAS, 2008, p. 128), ou seja, a fala é sobretudo um “ato corporal” (CSORDAS, 2008, p. 129). Como Merleau-Ponty diz, o corpo é um instrumento de comunicação com o mundo que ocorre antes do pensamento (MERLEAU-PONTY, 2000). E essa parece a chave da fenomenologia para sua aplicação dentro das teorias antropológicas, pois o corpo então pode ser colocadocomo o instrumento comum pelo qual todos os humanos conhecem o mundo, ou melhor, como o instrumento pelo qual todos os humanos traduzem o mundo. Então o mundo objetivo é um resultado final do trabalho de percepção humana e, anterior a este trabalho, o corpo simplesmente está no mundo, em um mundo “pré-objetivo” (CSORDAS, 2008, p. 103). Conclusão apressada Como foi apresentado na terceira parte deste artigo, um dos grandes pressupostos da fenomenologia que Csordas adota é o da impossibilidade de uma total presença do objeto para quem o busca compreender, o que abre espaço para um retorno ao pré-objetivo, e para uma exposição da criação do objeto durante o processo de percepção. E na conclusão de seu artigo, o antropólogo retoma essa ideia, cintando diretamente uma frase famosa de Merleau-Ponty, expondo que o objeto não é algo anterior, e exterior a percepção, justamente por que “ele é dado como a soma infinita de uma série indefinida de visões perspectivadas em cada uma das quais o objeto é dado” (CSORDAS, 2008, p. 140, apud MERLEAU-PONTY, 2000) e como resultado dessa afirmação ontológica, que busca tratar o que existe no mundo, o que há para ser conhecido, o objeto, o mundo, nunca esta presente completamente para aquele que o observa. Em suma, essa afirmação acima impõe que o mundo nunca é exaurido pela percepção humana. Então diante da impossibilidade de totalizar qualquer objeto fora do próprio corpo completamente, cabe as teorias do paradigma da corporeidade dar um passo para trás, para não partir do objeto anterior, exterior e fixo, mas sim para a partir de um outro patamar da experiência, onde o objeto “está presente e vivo” (CSORDAS, 2008, p. 140), pois ainda não passou pelo processo das ciências naturais que o matam, no sentido de que o totalizam enquanto exterior ao corpo humano. Interessante é notar, como esses argumentos de Csordas importados da fenomenologia o fazem arriscar princípios ontológicos, no sentido de que sua teoria assume pressupostos claros sobre a estrutura da realidade. A teoria de Csordas, mesmo já pensada há décadas atrás, ainda parece ter um grande potencial, justamente por se colocar claramente contra os regimes conceituais teóricos e práticos modernos que insistem em colocar o corpo em segundo plano. Como o antropólogo coloca, sua intenção é justamente a de desmoronar a dicotomia moderna entre corpo e mente que de ao corpo a característica de algo menor, menos importante. E como Le Breton expõe em sua obra “Antropologia do corpo e modernidade” (2011), essa tendência tem fortes raízes no processo histórico de desenvolvimento das ciências modernas, o que aponta que sua alteração exigira muito trabalho dos pesquisadores das ciências sociais. Bibliografia CSORDAS, Thomas. A corporeidade como um paradigma para a antropologia. In: Corpo, Significado, Cura. Porto Alegre: Editora da UFRGS, pp. 101-146, 2008. CSORDAS, Thomas. Introduction: the body as representation and being-in-the-world. In: Experience and Embodiment, pp. 2- 28,1994. HARMAN, Graham. Guerrila Metaphysics; Phenomenology and the carpetry of things. Chicago: Open Court, 2005. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Trad. Carlos Irineu da Costa. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. LE BRETON, David. Antropologia do corpo. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. MERLEAU-PONTY, Maurice. A natureza; Curso do Collège de France. Trad. Dominique Séglard. São Paulo: Martins Fontes, 2000. VALE DE ALMEIDA, Miguel. O corpo na teoria antropológica. Revista de Comunicação e linguagens. São Paulo, v. 33, p. 49-66, 2004.
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