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TessiturasDocenteArtista-Melo-2022

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE 
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS 
 
 
 
 
 
 
EDUARDO AUGUSTO MARTINS DE MELO 
 
 
 
 
 
TESSITURAS DE UM DOCENTE-ARTISTA CAMARENSE: A BIOGRAFIZAÇÃO COMO 
CONHECIMENTO DO PROJETO DE SI 
 
 
 
 
 
 
 
 
NATAL/RN, 2022 
 
 
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EDUARDO AUGUSTO MARTINS DE MELO 
 
 
 
 
 
 
TESSITURAS DE UM DOCENTE-ARTISTA CAMARENSE: A BIOGRAFIZAÇÃO COMO 
CONHECIMENTO DO PROJETO DE SI 
 
 
 
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas da Universidade 
Federal do Rio Grande do Norte como 
requisito parcial à obtenção do título de 
mestre em Artes Cênicas. 
Área de Concentração: Práticas 
Investigativas da Cena: Poéticas, Estéticas e 
Pedagogias. 
Orientador: Prof. Dr. Adriano Moraes de 
Oliveira 
 
 
 
NATAL/RN, 2022 
 
 
 
3 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN 
Sistema de Bibliotecas - SISBI 
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART 
 Melo, Eduardo Augusto Martins de. 
 Tessituras de um Docente-Artista Camarense: a biografização como 
conhecimento do projeto de si / Eduardo Augusto Martins de Melo. - Natal, 
2022. 
 171 f.: il. 
 
 Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - UFRN, Programa de Pós-
graduação em Artes Cênicas - DEART UFRN. 
 Orientador: Adriano Moraes de Oliveira. 
 
 
 1. Tessituras - Teatro - Dissertação. 2. Atravessamentos - Teatro - 
Dissertação. 3. (auto) biografização - Teatro - Dissertação. 4. Teatro - 
Ensino - Dissertação. I. Oliveira, Adriano Moraes de. II. Título. 
 
RN/UF/Biblioteca Setorial do Departamento de Artes. CDU 792 
 
 
 
 
 
Elaborado por JOSIANE MELLO - CRB-15/570 
 
4 
 
 
 
 
 
FOLHA DE APROVAÇÃO 
 
 
 
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas como 
parte das exigências para obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas pela 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). 
 
Por: Eduardo Augusto Martins de Melo 
 
 
BANCA EXAMINADORA 
 
 
_____________________________________________________________ 
Orientador 
Prof. Dr. Adriano de Moraes Oliveira - Universidade Federal do Rio Grande do 
Norte (UFRN) 
 
 
_____________________________________________________________ 
Membro externo 
Profa. Dra. Lucia Maria Vaz Perez – Universidade Federal de Pelotas (UFPel) 
 
_____________________________________________________________ 
Membro interno 
Profa. Dra. Karenine de Oliveira Porpino - Universidade Federal do Rio Grande do 
Norte (UFRN) 
 
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RESUMO 
 
A presente pesquisa tem por objetivo realizar a 
biografização de meu trajeto enquanto docente-
artista, na perspectiva de compreender acerca 
das incursões do(s) meu(s) vivido(s) como me 
tornei artista-docente com as singularidades e 
pluralidades que me compõem. Adotei o 
procedimento metodológico “biografização”, 
oriundo do campo (auto)biografias e histórias de 
vida, como forma de compreender biografização 
do meu trajeto formativo enquanto professor da 
área de Artes, do Município de João Câmara. Os 
estudos das autoras Christine Delory-Momberger 
e Marie-Christine Josso conformam os principais 
referenciais da presente investigação. Enquanto 
fundamento epistemológico, a partir de suas 
abordagens em pesquisa (auto)biográfica e de 
histórias de vida como espaço de formação 
humana e profissional, traço um trajeto que tem 
como foco principal o eu-professor-artista atual, 
olhando para um percurso formativo que é 
singular, pois me pertence, mas que também tem 
pluralidades, pois pertence ao universo amplo de 
um docente-artista que se forma e atua no 
interior do Brasil. É por meio da compreensão dos 
sentidos da minha existência singular-plural, 
como sujeito nas esferas artística e pedagógica, 
que apresento minha biografização como uma 
das muitas possibilidades de formação para a 
formatividade e por conta disso, busco contribuir 
com pesquisas no âmbito da pedagogia do teatro 
e do ensino de arte na educação básica, 
particularmente, a do interior brasileiro. 
 
Palavras-chave: Tessituras. Atravessamentos. 
(auto)biografização. Teatro. Educação. 
 
6 
 
 
 
 
 
RESUMEN 
 
La presente investigación tiene como objetivo 
realizar la biografiación de mi trayectoria como 
docente-artista, en la perspectiva de comprender 
acerca de las incursiones de mi(s) experiencia(s) al 
devenir artista-docente con las singularidades y 
pluralidades que me componen. Adopté el 
procedimiento metodológico “biografiar”, 
proveniente del campo de las (auto)biografías y 
relatos de vida, como forma de comprender la 
biografiación de mi camino formativo como docente 
en el área de Artes, en el Municipio de João Câmara. 
Los estudios de las autoras Christine Delory-
Momberger y Marie-Christine Josso constituyen las 
principales referencias de la presente investigación. 
Como fundamento epistemológico, a partir de sus 
planteamientos en la investigación (auto)biográfica y 
las historias de vida como espacio de formación 
humana y profesional, trazo un camino que tiene 
como foco principal el yo-profesor-artista actual, 
mirando un camino formativo que es singular, porque 
me pertenece, pero también tiene pluralidades, 
porque pertenece al amplio universo de un maestro-
artista que se forma y trabaja en el campo de Brasil. 
Es a través de la comprensión de los significados de 
mi existencia singular-plural, como sujeto en los 
ámbitos artístico y pedagógico, que presento mi 
biografía como una de las tantas posibilidades de 
formación para la formatividad y, por eso, busco 
contribuir investigar en el ámbito de la pedagogía del 
teatro y la enseñanza del arte en la educación 
básica, particularmente en el interior brasileño. 
 
Palabras clave: Tesituras. cruces. autobiografía. 
Teatro. Educación. 
 
 
7 
 
 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
Primeiramente, agradeço imensamente aos meus avós, Maria de Lourdes e 
Ao meu orientador Adriano Moraes de Oliveira, pelo profissionalismo, presteza 
e sensibilidade durante todas as imersões e incursões no trajeto da minha pesquisa. 
Aos meus pais, Cristina e Zacarias, pela dádiva do dom da vida, por torcerem 
pelo meu sucesso e do jeitinho deles, me encorajarem a jamais desistir de sonhar. 
À minha companheira, Jucilene Pereira, mãe das minhas filhas Maria Eduarda e 
Laura Letícia por juntas, fortalecerem a minha base, por me protegerem e contribuírem 
para meu sucesso humano e profissional. Às minhas irmãs Elaine e Emiliane, aos meus 
irmãos João e Davi e a todos os meus familiares. 
Às professoras Dra. Karenine de Oliveira Porpino e Dra. Lúcia Maria Vaz Peres, 
pela generosidade em participar do Exame de Qualificação. 
Aos professores Robson Haderchpek, Naira Ciotti, Patrícia Leal, Jefferson 
Fernandes, Karine Coutinho, Leônidas Neto, Larissa Marques e André Carrico pelas 
valiosas contribuições, trocas e partilhas durante o cumprimento das disciplinas do 
curso. 
Às professoras Dra. Ana Caldas Lewinshon e Dra. Melissa dos Santos Lopes, pela 
supervisão no Estágio Docente. 
Aos alunos e alunas das turmas do curso de Dança e Teatro nas quais estagiei 
no Deart\UFRN. 
Ao amigo e parceiro Rennê Paulino, colaborador da minha pesquisa, que 
acompanhou todo o meu trajeto frente aos processos criativos. Ao amigo, compadre e 
irmão Isaque Sami de Andrade, pela amizade verdadeira, sincera e por sempre ter as 
palavras certeiras para cada momento. 
Às amigas professoras Izabelly Silva e Suetânia Fernandes, pela inspiração, 
incentivo e presentificação em tudo o que faço e almejo no âmbito da arte, da educação 
e da vida. 
Às primas professoras Ilana Suely e Cebelly Farias, por todo incentivo, pelairmandade e por tanto carinho. 
Ao departamento de Artes e a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 
instituição onde tive o privilégio de me profissionalizar no curso de Licenciatura em 
Teatro e agora, cursar Mestrado em Artes Cênicas. 
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LISTA DE FIGURAS 
 
Figura 1: Meus amigos de infância e eu na cacimba de seu Nascimento. 
Figura 2: Eu, nas margens da antiga cacimba de seu Cimento. 
Figura 3: Entrevista com a vovó Maria, a contadora de histórias. 
Figura 4: Registro da biografização em execução na casa dos meus avós. 
Figura 5: A minha questão de pesquisa nas mãos da minha avó Maria. 
Figura 6: Minha prima Vanessa e eu no quintal da casa da vovó Maria. 
Figura 7: Árvore Genealógica de Eduardo Martins. 
Figura 8: Hospital Regional do Município de João Câmara. 
Figura 9: Localização do Município de João Câmara. 
Figura 10: Minha irmã Elaine Cristina e eu, brincando - Fotografia 1989. 
Figura 11: Eu em cima do muro, na casa da vovó Maria. 
Figura 12: Vovó Maria e Vovô Paulo. 
Figura 13: Serra do Torreão e as margens do açude grande. 
Figura 14: Feira livre da cidade de João Câmara. 
Figura 15: Família reunida na lateral da igreja Matriz de João Câmara em noite de Natal em 
dezembro de 1995. 
Figura 16: As filhas de vovó Maria. 
Figura 17: Família reunida no quintal da casa da vovó Maria. 
Figura 18: A prancha fotográfica: Momentos marcantes da minha infância. 
Figura 19: Registro da minha primeira eucaristia na igreja Matriz de João Câmara. 
Figura 20: Aniversário do meu pai. 
Figura 21: Meu aniversário de 8 anos. 
Figura 22: Registros da minha avó Maria de Lourdes, minha irmã Elaine e eu. 
Figura 23: Registro da vovó Maria e eu em uma das tardes de quintal. 
Figura 24: Minha primeira apresentação teatral na escola – Interpretando o Cantor 
Reginaldo Rossi. 
Figura 25: Eu, ao lado da professora Diuca em uma das festividades juninas na Educação 
Infantil. 
Figura 26: Oliveira (Coroné Sabuguinho) no estúdio da rádio. Facebook de Oliveira. 
Figura 27: Zé de Pedro e eu, conversando na rua Ariamiro de Almeida. 
Figura 28: Eu, imitando Zé de Pedro, na área da casa da vovó Maria. 
Figura 29: Na imagem que segue, registrada em frente da minha casa um pouco antes de 
iniciar o arraiá, estou dançando, empolgado, e logo atrás está Zuleide, esposa do meu primo 
Bira, observando o momento que minha mãe faz o registro 
Figura 30: Dançando na sala da vovó. 
Figura 31: Dança em família na cozinha da vovó Maria. 
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Figura 32: Minha irmã Elaine e eu preparados para dançar a quadrilha junina no Colégio 
Cenecista João XXIII. Acervo pessoal. 
Figura 33: Quadrilha junina no salão do bar do meu pai. Acervo pessoal. 
Figura 34: Registros pós dança e competição das quadrilhas juninas intermunicipais em 
João Câmara/RN. 
Figura 35: Meu primo Bruno e eu almoçando no bar do meu pai. 
Figura 36: Meu aniversário surpresa de 15 anos. 
Figura 37: Minha turma de amigos e eu na cidade de Pureza/RN. 
Figura 38: Minha namorada sentada no cajueiro do sítio em que meu pai morava. 
Figura 39: Eu, com a minha filha Maria Eduarda, em nossa casa na cidade de João Câmara. 
Figura 40: Registro do dia que pisei pela primeira vez no solo do DEART\UFRN. 
Figura 41: A professora Suetânea e eu. 
Figura 42: Ensaio do cortejo da peça teatral o sangue que usamos tem pouca tinta, na Serra 
do torreão. 
Figura 43: Alunos do curso de Teatro do Projeto Chico Vila prestigiando a Professora Telma 
Rodrigues ao final do espetáculo Arlequim e seus amores. 
Figura 44: Mosaico de fotografias – alunos do IFRN\Campus João Câmara em atividades 
teatrais. 
Figura 45: Compilado de fotografas de atividades realizadas no Projeto Vida Saudável na 
Melhor Idade e do PETI - Programa de erradicação do Trabalho Infantil. 
Figura 46: Primeira turma de alunos do PETEC. 
Figura 47: Peça Teatral do PETEC – O auto da barca ambiental. 
Figura 48: Elenco da peça teatral – Túnel do Tempo. 
Figura 49: PETEC com a então Governadora do RN. 
Figura 50: Registros da calourada – acolhimento da turma do curso de teatro. 
Figura 51: Curso de Pedagogia, Aula de Estágio. 
Figura 52: Aula ao ar livre com a minha primeira turma no exercício da docência. 
Figura 53: Encerramento do ano letivo – Turma do 1° ano do Ensino Fundamental. 
Figura 54: Registro da performance Cegos no Midway Mall– dirigida por Marcos Bulhões. 
Figura 55: Personagem Stanley. 
Figura 56: Personagens Paulo (Eu) e Moema (Mariclécia Bezerra). 
Figura 57: Mostra performática: Figurino e Maquiagem. 
Figura 58: Aula de teatro – Conscientização corporal – arremesso de bastões. 
Figura 59: Eu com a minha filha Laura erguida para o alto, caminhando em direção a casa do 
meu pai. 
Figura 60: Primeira turma no exercício da docência na Escola Municipal Irene Soares da 
Silva, em Parnamirim/RN. 
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Figura 61: Primeira turma no exercício da docência na Escola Estadual Capitão José da 
Penha em João Câmara/RN. 
Figura 62: Projeto o Corpo e a Alma desenvolvido com as turmas dos anos iniciais do Ensino 
Fundamental. A proposta investigava as ações\reações do corpo, os sentimentos e 
sensações através do toque, do olhar, do enxergar o outro respeitando e valorizando as 
subjetividades. 
Figura 63: Projeto – O valor de uma amizade - dialogando com os alunos sobre a importância 
da amizade, das boas relações interpessoais, da valorização do próximo. 
Figura 64: Projeto – Jogos teatrais – Diferenças e semelhanças físicas e comportamentais 
– Respeito e valorização. 
Figura 65: Aula de teatro – Palco e Plateia. 
Figura 66: Elenco do espetáculo teatral – Os Mistérios do velho Torreão Cachimbando. 
Figura 67: Montagem da capela – Cenário do espetáculo teatral - Os Mistérios do velho 
Torreão Cachimbando. 
Figura 68: Jogo teatral na rua. Teatro inclusivo – Jogo teatral com máscaras. Ditirambo. 
Figura 69: Desfile cívico – Apresentação do projeto Artlixo – de natureza sustentável, 
unificando as áreas de conhecimentos das linguagens e das ciências naturais e humanas. 
Figura 70: Mosaico fotográfico – Registros do Museu. 
Figura 71: O camaleão em processo de mutação – Animal que simboliza a minha passagem 
neste mundo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
11 
 
 
 
 
Sumário 
 
 
Introdução 14 
Capítulo 01 27 
Fundamentos e Procedimentos Metodológicos: a biografização e as histórias de vida 27 
Por que fazer uma pesquisa (auto)biográfica? Breve justificativa 27 
A biografização como ação formativa 31 
Movimentos de minha biografização como tessituras de um docente-artista 32 
Capítulo 02 41 
Biografizando meu percurso formativo: das aprendizagens do quintal à universidade 41 
Travessia I – infância: imagens/narrativas familiares e de amizades 41 
Imagem 1: Álbum de Família – O nascimento 42 
Imagem 2: O menino arteiro 47 
Imagem 3: Os contadores de história 49 
Imagem 4: Memórias em família 53 
Imagem 5: Vovó Neuzinha, símbolo da gentileza 63 
Imagem 6: A contadora de histórias 70 
Travessia II – escola: imagens/narrativas da cidade, do contato com estranhos e 
aprendizagens do mundo 77 
Imagem 7: O porão escuro, o recreio, o arraiá 77 
Imagem 8: Memórias do rádio 80 
Imagem 9: Zé de Pedro 82 
Imagem 10: Os arraiais juninos e a dança 84 
Imagem 11: ciclos de amadurecimento, ensino médio, paternidade, responsabilidades 
 91 
Travessia III – experiências artísticas fundadoras 101 
Imagem 12: Projeto Chico Vila 101 
Imagem 13: Técnico em Cooperativismo e Teatro no IFRN e a criação do PETEC 109 
Travessia IV – a universidade 121 
12 
 
 
 
 
Imagem 14: Formação em Pedagogia 122 
Imagem 15: A UFRN e as experiências com a linguagem do teatro 126 
Travessia V – o docente-artista, imagem derradeira 137 
Imagem 16: tornar-se docente-artista 137 
Capítulo 03 150 
Análise dos atravessamentos e movimentos de constituição de meu ser artista-docente 
150 
Considerações finais 164 
Referências170 
 
 
 
 
 
 
13 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Sou [feito] de retalhos. Pedacinhos coloridos de cada vida que passa pela minha e que vou 
costurando na alma. Nem sempre bonitos, nem sempre felizes, mas me acrescentam e me 
fazem ser quem eu sou. Em cada encontro, em cada contato, vou ficando maior... Em cada 
retalho, uma vida, uma lição, um carinho, uma saudade... Que me tornam mais pessoa, mais 
humana, mais completa. E penso que é assim mesmo que a vida se faz: de pedaços de 
outras gentes que vão se tornando parte da gente também. E a melhor parte é que nunca 
estaremos prontos, finalizados... Haverá sempre um retalho novo para adicionar a alma. 
Portanto, obrigada a cada um de vocês, que fazem parte da minha vida e que me permitem 
engrandecer minha história com os retalhos deixados em mim. Que eu também possa deixar 
pedacinhos de mim pelos caminhos e que eles possam ser parte das suas histórias. E que 
assim, de retalho em retalho, possamos nos tornar, um dia, um imenso bordado de "nós". 
Cris Pizzimenti 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
https://www.pensador.com/autor/cris_pizzimenti/
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INTRODUÇÃO 
 
Peço licença para apresentar nesta escrita as 
minhas tessituras de vida, os pedaços que me compõem 
acerca dos atravessamentos que me fizeram ser quem 
sou. Nada mais sou do que um andarilho da arte, dentre 
tantos que perambulam pelo solo do município de João 
Câmara, localizado a cerca de 74 km de Natal, capital 
no Rio Grande do Norte. A minha terrinha é nutrida por 
artistas de vários gêneros culturais, sujeitos que 
carregam consigo as marcas da vida, os reflexos da arte 
e suas categorias. Nas artes cênicas: o Coroné 
Sabuguinho - Oliveira Filho, que também é radialista; O 
poeta Zé do Sertão - José Maria; A atriz e professora - 
Mayrla Kardinally. Na Música: O médico Dr: Assis 
Ataliba - autor do Hino Municipal Camarense, o 
professor violonista - Fernando Batista; e os sanfoneiros 
Tiago Santos, meu ex aluno do Ensino Médio e João 
Victor Severo - atual aluno do Ensino Fundamental. Nas 
artes plásticas: O artesão e professor - Tardele Alves e 
a artesã Telminha Pegado. Como também, os artistas 
populares, contadores de histórias, na pessoa do 
professor historiador Gino Miranda. João Câmara é 
considerada a capital regional do Mato Grande e conta 
com aproximadamente 35.360 mil habitantes, de 
acordo com o levantamento do IBGE de 2021. A 
economia deste município é impulsionada pela 
agropecuária, agricultura familiar, através da feira 
local realizada aos sábados, que recebe nossa gente e 
também, os munícipes das cidades circunvizinhas como 
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Parazinho, Jandaíra, Bento Fernandes, dentre outras. A 
indústria, o comércio, as microempresas e grupos 
empresariais fortalecem a economia, gerando emprego 
e renda. O serviço público, através dos órgãos do poder 
executivo, como educação e saúde fazem parte do 
conjunto econômico do município, além das atividades 
artesanais e culturais que apresentam os reflexos das 
minhas raízes e pertencimentos. 
Escolhi me manifestar através de recortes e 
retalhos de experiências que tive ao longo de minha 
jornada de vida, porque o que sou hoje se deve aos 
meus esforços pessoais e, principalmente, pelas 
influências que tive e tenho de meus familiares e das 
pessoas de meu interior, a cidade de João Câmara. Por 
isso, a presente jornada está tecida pelas mãos, 
olhares, sensações e emoções de tantas outras vidas - 
alunos, professores, amigos, colegas, familiares e 
parentes, além das pessoas que meus olhos e ouvidos 
puderam alcançar, que me fizeram e fazem ser quem 
sou. 
Para isso, assumo o compromisso de traçar o meu 
trajeto como ser singular-plural1 pela ótica dos 
atravessamentos da educação, da arte e da cultura em 
diferentes fases da minha vida e, com isso, tornar 
evidente o papel formativo que possui o processo de 
biografização, ancorado no campo da (auto)biografia e 
histórias de vida. Biografizar, de acordo com Delory-
Momberger, “é o processo segundo o qual os indivíduos 
 
1O binômio singular-plural faz referência a um sujeito que carrega os traços, as marcas, as influências 
de vários outros sujeitos. É um conceito usado por Marie-Christine Josso e que tem a ver com sermos 
únicos sem deixarmos de ser plurais. 
16 
 
 
 
 
constroem a figura narrativa de sua existência” (2014, 
p. 81) de forma a socializar um percurso individual e, 
com isso, inserir-se em termos formativos em um 
contexto coletivo. Portanto, nas palavras de Josso, de 
um indivíduo que sabe que “a invenção de si [pela 
narrativa] requer não só um discurso sobre si, mas 
projetos de si” (2008, p.43). 
A biografização ganhou corpo por meio dos 
gatilhos iniciais que ecoam em minha memória, 
principalmente alguns momentos marcantes que vivi na 
infância e na juventude ao contato com a arte e que 
reverberam no que faço hoje como docente-artista. Os 
escritos foram tecidos conforme as imagens daquilo que 
vivi e senti, que, portanto, me marcaram, que eram 
evocadas através das leituras de fotografias, 
entrevistas, conversas informais, depoimentos de 
parentes e amigos, visitas a espaços e localidades, onde 
determinadas imagens foram vividas e registradas. 
Problematizando a ótica dos estudos 
(auto)biográficos2 através das contribuições das 
pesquisadoras Marie-christine Josso (2004)3 no que 
tange à histórias de vida e formação; e Christine Delory-
Momberger (2008)4, nos estudos de projeto de si por 
 
2O objeto da pesquisa biográfica é explorar os processos de gênese e de devir dos indivíduos no seio do 
espaço social, a fim de mostrar como eles dão forma a suas experiências, como fazem significar as 
situações e os acontecimentos de sua existência. CHRISTINE DELORY-MOMBERGER Universidade de Paris 
13. Revista Brasileira de Educação v. 17 n. 51 set.-dez. 2012. 
3Marie-Christine Josso é socióloga e antropóloga, doutora em Ciências da Educação, professora na 
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra, especializada nas 
problemáticas da educação de adulto e na formação profissional continuada para acompanhamento, 
ensino e assistência social e à saúde. 
4Christine Delory-Momberger é Professora de Ciências da Educação da Universidade de Paris-13 Nord. 
Presidente da Associação Internacional das Histórias de Vida em Formação e da Pesquisa Biográfica em 
Educação (ASIHVIF). Possui experiências no campo da educação e tem dedicado pesquisas acerca dos 
17 
 
 
 
 
meio da biografização. Assumi, por intermédio das 
contribuições das autoras, conceber, sentir e viver a 
presente pesquisa como uma ação imbricada, 
entrelaçada e unida nas relações da minha vida para 
com todas as pessoas e experiências que teceram o 
bordado do que chamo hoje de minha vida. 
Nessa perspectiva, minha pesquisa é também um 
convite para a reflexão dos tempos e das experiências 
que nos tecem dia após dia. É uma pesquisa em que 
pude evidenciar as marcas e também as cicatrizes que 
me fazem ser o que sou e, principalmente, me fazem 
sonhar e me projetar para o futuro num processo de 
sobrevivência e na minha relação comigo mesmo e com 
os outros. 
No desenrolar da pesquisa, deixei-me atravessar 
por imagens que julgo terem colorido e acentuado meus 
percursos formativos, aquelas que atuaram como 
espécies de chaves para que as portas, janelas, frestas 
fossem abertas, permitindo que eu pudesse realizar 
escolhas ou de ter sido escolhido pelas interfaces da 
arte e da educação. Tais vivências desnudadas pelas 
imagens biografadas, elucidaram meu olhar para as 
bases formativas que resultaram na escolha da minha 
profissão, sobretudo, como influenciaram de forma 
contundente na minha formação como sujeito singular, 
constituído pelas influências plurais que estiveram 
presentes ao longo do meu trajeto de vida. 
 
estudos epistemológicos da pesquisa biográfica, na perspectivade tecer olhares para o campo de 
conhecimento inerentes a biografização, da análise dos processos de constituição individual - de 
individuação do sujeito, dos arcabouços que norteiam a ótica da identificação, do pertencimento e da 
construção de si, da subjetivação, com os elementos formativos que compõem o conjunto das interações 
do sujeito com a cultura. 
18 
 
 
 
 
Tendo como arcabouço investigativo esses 
atravessamentos imagéticos, teci meu trajeto com 
bordados feitos com fios de memórias, recheados e 
fortalecidos com lembranças de um cotidiano sentido e 
vivido, com reverência às aprendizagens de meus avós 
e com os contatos que tive com pessoas que 
estiveram/estão presentificadas em minhas ações e que 
constituem o meu imaginário. E foi por entender o 
papel da memória no bordar do meu trajeto que a 
pesquisa (auto)biográfica se impôs em percursos 
formativos como travessias que representam que a vida 
é um processo dinâmico e que a biografização é nada 
mais que uma fotografia precária de um ser que é um 
hoje, mas que pode ser outro amanhã. 
É neste emaranhado de possibilidades e 
aspirações que me permiti, através da pesquisa 
(auto)biográfica, tecer travessias demorando mais em 
registros fotográficos, incursões à lugares em que 
habitei na infância e na adolescência, em conversas e 
prosas com meus familiares e sujeitos que permeiam 
sobre meus caminhos de vida. É esse permitir-se, 
reencontrar a si mesmo enquanto indivíduo único e 
plural, que resulta na biografização, objeto principal de 
minha pesquisa. 
Depois de ter desembaraçado e arquivado às 
imagens e incursões dos meus vividos, adotei 
procedimentos metodológicos como entrevistas, relatos 
de vivências e a conversação livre com pessoas que 
compuseram e influenciaram o meu trajeto como 
19 
 
 
 
 
sujeito singular-plural, como uma forma de 
compreender melhor cada uma das minhas travessias. 
Sair de casa numa manhã de sábado, caminhar 
pelo chão de areia e mato verdinho até o sítio da vovó 
Maria, observar as tonalidades de verde do mato, ainda 
coberto da brisa caída da noite e o cheiro da terra 
molhada, resultaram na ativação de memórias que 
permitiram a composição dos meus primeiros 
rascunhos. Apostei na escolha da biografização para 
tecer os fios da minha trajetória enquanto sujeito que 
vive, respira e se ressignifica nos campos da vida. Os 
procedimentos metodológicos traçados nesta pesquisa 
evidenciam a apreciação das fotografias, dos acervos da 
família, as entrevistas com a vovó Maria, com o vovô 
Paulo, com Mainha - dona Cris -, as conversas livres nos 
inícios das manhãs e finais de tarde, com parentes e 
vizinhos, como também, a necessidade de visitar os 
sítios onde cresci, corri, brinquei no antigo Matão dos 
Nunes, a Serra do Torreão, cartão postal da cidade, 
fértil em cultura e imaginação. Além disso, tais 
procedimentos, impulsionaram o meu olhar pela ótica 
do pesquisador, que, por sua vez, estabelece relação 
direta, porém distanciada em muitos momentos, nesta 
constante relação entre mente, corpo, memórias e 
sensações. 
 As fotografias espalhadas pela sala da minha 
casa, sobrepostas em meu sofá amarelo, foram 
delineando as imagens embaralhadas em minha mente, 
trazendo à tona momentos marcantes, os 
atravessamentos que me influenciaram, aqueles que 
20 
 
 
 
 
tiveram forte representações nas bases do meu contato 
com a arte e com o mundo. 
As engrenagens desta pesquisa, para além do 
emaranhado de observações das imagens refletidas no 
imaginário e nas fotografias, nas conversações, 
principalmente com a minha avó Maria, permitiu que, 
aos poucos, eu fosse reconstruindo o meu trajeto de 
vida em linhas imaginárias e reflexivas, atreladas ao 
que estou vivendo hoje, das incursões que me tornaram 
docente-artista. 
A partir desses procedimentos metodológicos, 
escrevi imagens de momentos da minha vida, uma busca 
pela reconstituição do meu trajeto formativo, 
permitindo a conexão, a liga necessária para que eu 
reunisse os subsídios que me permitiram redesenhar as 
imagens da minha infância, juventude e da minha 
formação como docente-artista. Pesquisei com afinco 
os atravessamentos que tive da arte e da educação, a 
presença da arte em meu trajeto de vida, que julgo 
terem sido vitais para a minha formação, para o 
delineamento de quem sou, do homem, artista e 
profissional que me tornei. 
Com a presente estrutura metodológica, 
alinhavei a minha pesquisa começando pela 
reconstituição do meu trajeto como criança que viveu 
em um quintal repleto de histórias, como um aluno 
interessado, peralta e curioso, e como um artista e 
professor de teatro em processo constante de 
formação. Reconstituir o meu trajeto formativo e, 
sobretudo, evidenciar as âncoras das singularidades e 
21 
 
 
 
 
pluralidades percebidas e sentidas ao longo do meu 
caminhar, me faz refletir sobre o que fiz, o que faço e 
o que pretendo fazer como docente-artista de uma 
pequena cidade do interior brasileiro. 
É importante dizer que assumo o papel de 
biógrafo-investigador do meu eu íntimo para com aquilo 
que acredito ser o caminho que nutre a formação e 
valorização da cidadania. Nesta perspectiva, reuni 
memórias e momentos dos meus contatos e 
atravessamentos com a arte, que como um quebra-
cabeça, foram unificando imagens, dando sentido a 
essa veia artística que pulsou desde antes do meu 
nascimento, pelas tessituras dos meus antepassados, 
pelas contribuições das vozes e cores que ouvi, senti e 
assimilei ao longo do meu trajeto. 
As imagens que revelaram as experiências vividas 
em meu trajeto, alimentadas pelas vidas que ajudaram 
a fazer de mim, cria do mundo, registram o que pulsa 
em mim para tecer os primeiros fios e bordados desta 
biografização. Portanto, esse estudo nasce das minhas 
inquietações na tentativa de entender como fui/sou 
atravessado pelas artes e pela educação. Para 
fortalecer o bordado dessa pesquisa, trago os fios 
enriquecidos das autoras Delory-Momberger, (2007, 
2008, 2010) e Josso (2004, 2007, 2010, 2012), como 
referências inspiradoras que estão internalizadas na 
educação. As autoras citadas serviram como lamparinas 
que elucidaram meus caminhos, pois ambas trazem em 
seus arcabouços teóricos, escritos que me inspiram e, 
22 
 
 
 
 
portanto, fazem parte da teia da presente 
biografização. 
A dissertação está organizada em três partes: 
Capítulo 01, onde apresento o referencial teórico e 
escolhas metodológicas que ratificam as bases da 
pesquisa; Capítulo 02, onde dou conta de apresentar a 
biografização, subdividida em cinco Travessias; e, o 
Capítulo 03, onde apresento algumas reflexões sobre os 
sentidos de ter feito a minha biografização. 
Como opção de escrita, organizei meu trajeto 
biográfico, a biografização propriamente dita – e que 
conforma o Capítulo 2, em duas colunas de texto para 
lembrar um formato de revista, alinhavando escritos e 
imagens que foram delineadas nas cinco calorosas 
travessias, onde apresento as subjetividades das minhas 
vivências e envolvimento no mundo, e acima de tudo, 
como fui tocado e influenciado pelos sujeitos. 
Entendo que sou um homem que atravessa e se 
deixa atravessar pelos acontecimentos da vida, por isso 
que optei pelas travessias como estrutura de minha 
narrativa, das quais fazem parte, além de minhas 
memórias pessoais, a presença de sujeitos que 
estiveram presentes na minha jornada de vida enquanto 
artista e docente. 
Como o foco de minha pesquisa é mesmo a 
biografização, apresento a seguir, como forma de 
orientar a leitura, o conjunto das travessias que compõe 
minha narrativa biográfica. 
A Travessia I é composta por imagens da minha 
infância. Lanço mão das minhas memórias em família, 
23 
 
 
 
 
para tecer essa primeira travessia: histórias de 
familiares, relações afetivas, laços de amizade e tudo o 
que isso representana minha aprendizagem do mundo. 
Apresento a árvore genealógica da minha família de 
forma a entender e compreender de onde venho, quais 
os meus princípios e para onde posso, sempre que 
preciso, estar em chão que acolhe. 
Na Travessia II, partilho as minhas primeiras 
experiências com o mundo fora de casa e, isso ocorreu 
na escola. Faço uma trama com imagens e narrativas da 
cidade, do contato com estranhos e aprendizagens do 
mundo, sob vivências e memórias que evidenciam os 
processos de construção individual e das minhas 
relações interpessoais. É importante ressaltar que João 
Câmara é uma cidade em que a narrativa oral é 
extremamente rica e a população cresce mergulhada 
em histórias fantásticas, a maior parte delas de cunho 
popular e que busca explicar os constantes abalos 
sísmicos da região. 
A Travessia III, por sua vez, é tecida com o 
conjunto das experiências artísticas que me fizeram me 
apaixonar pelo teatro. Reúno neste tópico, as imagens 
inaugurais de meu trajeto no teatro. É nessa travessia 
que dou os primeiros passos numa carreira artística e 
docente, que ainda está em processo. Aqui, se revela 
também o processo de desnudamento que fiz no 
enfrentamento das barreiras que me atravessavam, 
oportunizando o mergulho no universo artístico. 
Na Travessia IV, sigo ainda mais meu caminho 
para o mundo: apresento a minha chegada à 
https://docs.google.com/document/d/11T5_2GZM-zO3ccmN_jVdyo3vp7KZOoo2/edit#heading=h.37m2jsg
https://docs.google.com/document/d/11T5_2GZM-zO3ccmN_jVdyo3vp7KZOoo2/edit#heading=h.37m2jsg
https://docs.google.com/document/d/11T5_2GZM-zO3ccmN_jVdyo3vp7KZOoo2/edit#heading=h.37m2jsg
https://docs.google.com/document/d/11T5_2GZM-zO3ccmN_jVdyo3vp7KZOoo2/edit#heading=h.1mrcu09
https://docs.google.com/document/d/11T5_2GZM-zO3ccmN_jVdyo3vp7KZOoo2/edit#heading=h.1mrcu09
24 
 
 
 
 
universidade e, com ela, apresento imagens de meu 
contato com o campo de conhecimento que é o teatro. 
As imagens que são expostas aqui são aquelas das 
aprendizagens inaugurais, da formação inicial e que 
resultaram no capital simbólico que é composto pelos 
títulos de Licenciado em Teatro e, também, de 
Pedagogo, uma vez que me graduei em Pedagogia, 
concomitantemente à Licenciatura em Teatro. São as 
imagens dessa travessia que ainda norteiam o meu fazer 
diário de docente-artista de um interior brasileiro. 
Na derradeira trama, a Travessia V, apresento 
imagens do exercício da docência em teatro e na 
pedagogia, das contribuições educacionais, sociais e 
políticas que tenho realizado como sujeito professor de 
teatro. Mais do que isso, busco evidenciar o orgulho que 
tenho em ser um docente-artista do interior brasileiro, 
mais especificamente do interior do RN, região do Mato 
Grande, da cidade de João Câmara. Nesta travessia, 
também dou conta de citar as principais referências e 
influências do teatro e da arte educação, que 
integraram meu cotidiano de vida, as minhas escolhas 
acerca do fazer artístico e os repertórios metodológicos 
que transpuseram e ainda transpõem didaticamente o 
meu fazer docente. 
Após apresentar as travessias, finalizo essa 
jornada de pesquisa no mestrado como mais um dos fios 
de meu trajeto. Por conta disso, apresento reflexões 
ainda provisórias e permeadas pelas memórias 
refletidas nas imagens que consegui revolver em cada 
travessia. 
25 
 
 
 
 
Para terminar essa introdução cito as palavras de 
Delory-Momberger (2014) que nos alerta que: 
 
a construção biográfica é, pois, a 
tentativa – necessariamente 
inacabada e indefinidamente 
reiterada – de reduzir a distância 
que separa o eu de seu projeto 
primordial (2014, p. 64). 
 
E é por entender que um processo de ser quem 
se é, está sempre e pronto para ser reescrito, que em 
cada travessia que teci - da infância até a fase adulta – 
restaurei memórias que elucidam a porosidade daquilo 
que culminou nas minhas escolhas e que resultam em se 
saber o meu eu, singular-plural, nesse universo das 
artes e da docência em teatro no qual me constituo. 
É importante deixar claro para você, leitor(a), 
que os escritos tecidos nesta dissertação de Mestrado 
em Artes Cênicas, corroboram um processo de 
intimidade, resgate e elucidação de memórias 
formativas de um sujeito singular-plural, influenciado 
pelas marcas da vida, sobretudo pelo toque, 
atravessamentos e - viradas de chaves - oportunizadas 
pelo contato com a arte dentro da escola, que por sua 
vez, teve os muros rompidos, e como consequência 
disso, o semear de uma vida que trilhou os caminhos nos 
trilhos e ares da educação e da arte. O trajeto de um 
andarilho da vida que se tornou um docente-artista, que 
continua acreditando na arte e na educação como molas 
propulsoras da formação para a formatividade. 
Desta forma, não dou conta de detalhar todos os 
meus atravessamentos, todas as peças teatrais, 
manifestos culturais, processos criativos vividos e 
26 
 
 
 
 
aprendidos no campo da arte educação e do teatro que 
venho por caminhar a cada dia. Mas sim, apresento as 
imagens emergidas e investigadas, conforme 
influenciaram as minhas incursões de memórias, 
aquelas em que chaves foram escavadas e portas foram 
abertas e, portanto, contribuíram fervorosamente para 
o meu crescimento e fortalecimento humano, político e 
profissional no âmbito da docência em teatro.
 
 
27 
 
 
 
 
CAPÍTULO 01 
FUNDAMENTOS E PROCEDIMENTOS 
METODOLÓGICOS: A BIOGRAFIZAÇÃO 
E AS HISTÓRIAS DE VIDA 
 
No presente capítulo, discorro de 
forma breve sobre alguns dos principais 
fundamentos do campo (auto)biografias 
e histórias de vida. Apresento o 
procedimento da biografização, o qual 
adotei como elemento metodológico 
principal de minha pesquisa e, ainda, 
relato de forma mais detalhada os 
movimentos que realizei para construir 
a minha biografização. 
 
Por que fazer uma pesquisa 
(auto)biográfica? 
 
Uma pesquisa que privilegia o 
biográfico e que se ampara em autoras 
como Chistine Delory-Momberger e 
Marie-christine Josso, trazem como 
objeto principal, os acontecimentos 
expressivos das vidas de sujeitos 
pesquisados que, por sua vez, 
contribuem para a sua formação 
profissional e, fundamentalmente, para 
uma existência plena desses mesmos 
sujeitos pesquisados. 
Quando se trata de um processo 
em que o sujeito pesquisador é também 
o pesquisado, a complexidade da ação 
de pesquisar é ampliada, pois realizar 
uma pesquisa (auto)biográfica – como é 
o caso desta pesquisa – amplifica o 
elemento de reflexibilidade do processo 
de pesquisa e, exige do pesquisador que 
investiga a sua própria história de vida, 
uma atenção maior às falas de pessoas 
que o acompanharam no percurso – a 
família, o círculos de amigos. Além 
disso, enaltece a riqueza de registros do 
trajeto, pois a compreensão de si 
mesmo em todas as dimensões que nos 
fazem seres singulares-plurais, 
envolvem um dinâmico movimento de 
aproximar-se e distanciar-se de si 
mesmo, como um jogo de pesquisa, cujo 
resultado pode e deve apresentar o 
sujeito – no caso desta pesquisa - o eu-
mesmo, com a precariedade que é 
própria de um ser social-singular. A ideia 
de ser precário é interessante na medida 
que nos coloca finitos, envolvidos com a 
vida, como ela se impõe, evidenciando a 
constante necessidade de se 
reaprender. 
28 
 
 
 
 
A pesquisa (auto)biográfica 
fundamenta-se de acordo com as 
concepções de Delory-Moberger, como 
um 
 
[...] explorar o 
processo de gênese e 
do movimento de se 
tornar indivíduo no 
seio do espaço social, 
mostrar como esses 
indivíduos dão forma a 
suas experiências, 
como dão sentido às 
situações e aos 
acontecimentos de sua 
existência. E ainda, de 
forma conjunta, a 
pesquisa mostra 
como, por meio das 
linguagens culturais e 
sociais que eles 
mesmos atualizam – 
linguagens tomadas 
aqui em um sentido 
amplo: códigos, 
repertórios, figuras do 
discurso;esquemas, 
scripts de ação, etc. - 
os indivíduos 
contribuem para fazer 
existir, para produzir e 
reproduzir a realidade 
social (DELORY-
MOMBERGER, 2012, p. 
524). 
 
Essas palavras de Delory-
Momberger me fazem pensar que meus 
movimentos de pesquisa são de duas 
ordens principais: a primeira, um 
trabalho sobre mim mesmo, minhas 
singularidades e, a segunda ordem, a do 
social, aquela dos papéis que ocupo e de 
como as pessoas me veem. Para tanto, 
no que tange a essa dimensão social do 
processo de histórias de vida, ancoro-me 
nas contribuições de Marie-Christine 
Josso, que apresenta a dimensão deste 
processo da seguinte forma: 
 
O trabalho de pesquisa 
a partir da narração 
das histórias de vida 
ou, melhor dizendo, de 
histórias centradas na 
formação, efetuado na 
perspectiva de 
evidenciar e 
questionar as 
heranças, a 
continuidade e a 
ruptura, os projetos de 
vida, os múltiplos 
recursos ligados às 
aquisições de 
experiência, etc., esse 
trabalho de reflexão a 
partir da narrativa da 
formação de si 
(pensando, 
sensibilizando-se, 
imaginando, 
emocionando-se, 
apreciando, amando) 
permite estabelecer a 
medida das mutações 
sociais e culturais nas 
vidas singulares e 
relacioná-las com a 
evolução dos 
contextos de vida 
profissional e social. 
As subjetividades 
exprimidas são 
confrontadas à sua 
frequente 
inadequação a uma 
compreensão 
liberadora de 
criatividade em nossos 
contextos em 
mutação. O trabalho 
sobre essa 
subjetividade singular 
e plural torna-se uma 
29 
 
 
 
 
das prioridades da 
formação em geral e 
do trabalho de 
narração das histórias 
de vida em particular 
(JOSSO, 2007, p. 414). 
 
A aproximação da perspectiva da 
pesquisa biográfica de Delory-
Momberger com a de Josso, me permite 
cunhar o processo de me narrar como 
uma forma de compreensão de minha 
(auto)biografia como um processo de 
formação pessoal (singular) e 
profissional (social) em que dimensões 
subjetivas são tão importantes quanto 
as dimensões objetivas. 
O fato de ter me tornado um 
docente-artista não diz tudo e não diz 
sobre outros docentes-artistas, e é por 
isso, que uma biografização apresenta o 
olhar para o interior do sujeito 
biografado, para a valorização dos 
sentimentos, das emoções e, também, 
para a valorização dos atravessamentos 
e da construção de si, num universo 
objetivo de um sujeito social que se faz 
no encontro com o outro. 
Como já dito anteriormente, 
darei conta de evocar nos presentes 
escritos - as viradas de chaves - que me 
compuseram, ou ajudaram a compor 
partes significativas deste eu que me 
enxergo, que respiro e que apresento 
para a sociedade. 
Nesse sentido, é importante 
compreender que a pesquisa 
(auto)biográfica tem como marco a 
relação com a temporalidade, 
permitindo ao pesquisador o contato 
com as dimensões do tempo, primando 
pelo autorreconhecimento de si, nos 
diversos lugares em que a formação do 
si mesmo ocorreu: vivências familiares, 
escolares, religiosas, etc, em relação à 
construção individual do si. O que uma 
pesquisa (auto)biográfica faz é 
organizar – mesmo que 
temporariamente – a narrativa das 
vivências e, ao fazer a narração delas, 
reaviva e promove um encontro do 
sujeito-pesquisador com seu trajeto 
pessoal, singular e, evidentemente, 
plural-social. Assim, a experiência do 
sujeito é feita e analisada por ele 
mesmo acerca da temporalidade e, 
neste sentido, relaciona o vivido 
inferindo as influências na sua própria 
existência. 
A relação entre o tempo e as 
dimensões que envolvem a construção 
individual do sujeito tem como pilar a 
experiência humana, ou seja, o sujeito 
30 
 
 
 
 
é capaz de caracterizar, colorir, 
materializar, dar forma às relações e 
atravessamentos que constroem e 
partilham com os demais sujeitos 
durante a vida. 
A pesquisa (auto)biográfica 
oportuniza a reflexão do sujeito acerca 
do seu agir, do pensar e do sentir frente 
às ações naturais do tempo que, por sua 
vez, opera como o senhor construtor das 
experiências. O pesquisador, nesta 
perspectiva, assume o papel de diretor, 
ou melhor dizendo, protagonista da sua 
história, que vive cada momento, que no 
presente pode olhar para o passado e 
planejar o seu futuro; que vive 
intensamente, ou não, que faz e refaz os 
significados da própria vida, que 
percebe as falhas, as superações, as 
perdas, os achados, que se provoca e 
que também é provocado pela vida e 
pelas diversas manifestações 
interpessoais. 
No campo das histórias de vida, 
Marie-Christine Josso enfatiza que o 
processo de investigação da história de 
vida e transformação do sujeito ocorre 
através de estratégias que operam entre 
dimensões singulares, introspectivas, 
mas sempre em direção ao social, à 
formação para a vida: 
 
Abordar o 
conhecimento de si 
mesmo pelo viés das 
transformações do ser 
– sujeito vivente e 
conhecente no tempo 
de uma vida, através 
das atividades, dos 
contextos de vida, dos 
encontros, 
acontecimentos de sua 
vida pessoal e social e 
das situações que ele 
considera formadoras 
e muitas vezes 
fundadoras, é 
conceber a construção 
da identidade, ponta 
do iceberg da 
existencialidade, 
como um conjunto 
complexo de 
componentes. De um 
lado, como uma 
trajetória que é feita 
da colocação em 
tensão entre heranças 
sucessivas e novas 
construções e, de 
outro lado, feita 
igualmente do 
posicionamento em 
relação dialética da 
aquisição de 
conhecimentos, de 
saber-fazer, de saber-
pensar, de saber-ser 
em relação com o 
outro, de estratégias, 
de valores e de 
comportamentos, com 
os novos 
conhecimentos, novas 
competências, novo 
saber-fazer, novos 
comportamentos, 
novos valores que são 
visados através do 
percurso educativo 
31 
 
 
 
 
escolhido. (JOSSO, 
2007, p. 420). 
 
As concepções envolvendo a 
narrativa de vida acerca da sua própria 
existência, permite ao sujeito delinear 
registros que fazem parte da formação 
singular-plural de si e também da 
história. Apresenta reverberações 
recorrentes das narrativas de vida, 
centradas nas tessituras do sujeito ao 
longo do seu processo existencial. 
Somos constituídos por 
acontecimentos, nutridos pela cultura e 
pela sociedade. De acordo com Marie-
Christine Josso "as narrações centradas 
na formação ao longo da vida revelam 
formas de sentidos múltiplos de 
existencialidade singular-plural criativa 
e inventiva do pensar, do agir e do viver 
junto" (2007, p. 413). 
Através das concepções da 
autora, podemos concluir que somos 
frutos daquilo que os nossos olhos da 
alma são capazes de alcançar, dos 
repertórios de vozes que ouvimos e 
falamos, de tudo aquilo que podemos 
tocar através da inferência, dos sentidos 
e da porosidade natural da vida. Sinto 
percorrer em meu corpo e nas memórias 
emergentes, a presença das imagens 
elucidadas dos causos, das histórias, dos 
acontecimentos vividos e narrados pelos 
meus avós Paulo Martins e Maria de 
Lourdes, das minhas vivências do quintal 
de casa, das escolas por onde passei, dos 
sujeitos que conheci e de todas as vidas 
que continuam colorindo em minha 
alma. 
Cada incursão que se materializa 
nos escritos de minha existência, 
sobrepostos nesta pesquisa, acabo por 
dar conta de ativar novas incursões 
imagéticas, trilhos para a compreensão 
do meu caminhar, do meu trajeto 
enquanto sujeito andarilho nos solos da 
vida. 
 
A biografização como ação formativa 
 
Para entender o sentido do 
procedimento biografização, é 
importante antes de mais nada, 
compreender que há uma diferença 
entre um trabalho de biografar e um 
trabalho de biografizar. Christine 
Delory-Momberger (2011), nos informa 
que, etimologicamente, a biografia é a 
“escrita da vida”. Para esta autora, 
 
(...) as culturas e 
sociedades transmitem 
e impõem, até certo 
ponto, escritas da 
32 
 
 
 
 
vida, e os indivíduos 
escrevem – biografam – 
seus próprios 
percursosde vida no 
contexto dessas 
trajetórias 
modelizantes e 
programáticas 
(DELORY-MOMBERGER, 
2011, 335). 
 
Por sua vez, o biografizar para a 
autora citada é um trabalho que o 
sujeito faz para compreender a sua 
trajetória formativa. Embora com 
semelhanças óbvias, a biografização 
entrelaça suas experiências para 
ampliar a compreensão de si por meio da 
interpretação do vivido. Christine 
Delory-Momberger, (2011) explica que: 
 
[...] a atividade de 
biografização 
apresenta-se como 
uma hermenêutica 
prática, um marco de 
estruturação e de 
significação da 
experiência que 
permite ao indivíduo 
criar uma história e 
uma forma própria – 
uma identidade ou 
individualidade – para 
si mesmo (Delory-
Momberger, 2011, 
342). 
 
A autora nos permite enxergar e 
compreender a biografização como ação 
formativa ao proporcionar a elucidação 
dos vividos do sujeito acerca dos 
elementos existentes no trajeto da sua 
história. E com isso, portanto, me 
permite enxergar também que não basta 
o encadeamento do vivido para a uma 
biografização, mas o encadeamento de 
experiências que servem de referência 
para o meu projeto de vida, que pelas 
vertentes destes escritos poderei 
enxergar a constituição das minhas 
narrativas, podendo realinhar ou até 
mesmo reescrever o meu trajeto. 
Nesta perspectiva, o ato de 
biografizar e a própria biografização, 
reforça o entendimento de que a 
formação do sujeito se dá pela sua 
capacidade de aprender a viver, a 
perpassar pelos ciclos das suas 
aprendizagens, dos enfrentamentos, das 
resoluções (ou não) dos conflitos e 
adversidades da vida em sociedade. 
Portanto, a biografização para mim, 
atua não somente como uma lamparina 
que lança fleches de luz que me guiam 
na elucidação dos meus 
atravessamentos, mas também, 
colabora para que o ato de escrita da 
vida e as múltiplas possibilidades de 
recontar os vividos, sejam processos que 
façam jus àquilo que foi percebido pela 
escolha que fiz dos traçados do meu 
33 
 
 
 
 
trajeto, e que julgo colaborar para a 
minha formação. 
É importante considerarmos 
ainda os processos de vida e as 
experiências que o sujeito atravessa 
durante as incursões que faz em seu 
caminhar – as representações daquilo 
que vive a cada passo dado. Não existe 
um “curso natural” da existência, nossas 
representações da vida são uma 
“construção” com origem na história e 
na cultura, (Delory-Momberger, 2011). 
As relações que o sujeito estabelece 
acerca dos aspectos culturais, sociais, 
históricos, as concepções políticas, a 
linguagem estabelecida – que marcam a 
sua personalidade e a costura das 
relações interpessoais – dão conta de 
estruturar as escolhas e maneiras em 
que as narrativas da vida são biografadas 
por ele. Não são escolhas totalmente 
individuais, mas sim, formas que 
carregam a bagagem das influências 
plurais. 
Tais escolhas que fiz carregam em 
minhas tessituras os elementos da minha 
formação, os desenhos da minha 
existência, os traços identitários 
socioculturais que são pigmentados 
pelas múltiplas relações que dou conta 
de firmar através da narração 
(auto)biográfica. Desta forma, podemos 
compreender a importância latente do 
olhar para as raízes históricas, 
antropológicas e culturais como fatores 
essenciais para o sujeito reconhecer-se 
em sua narrativa formativa de vida. 
 
Movimentos de minha biografização 
como tessituras de um docente-
artista 
 
Em dezembro de 2019, a 
pandemia da Covid-19 começou a 
assolar o mundo, afetando 
drasticamente a vida, os planos e os 
sonhos de muitas pessoas. Ainda não 
sabia direito o que estava ocorrendo 
quando, em março de 2020, comecei a 
dar os primeiros passos na realização de 
um sonho ao ter ingressado no Programa 
de Pós-Graduação em Artes Cênicas da 
UFRN. 
No entanto, ainda em março, com 
o anúncio da suspensão das aulas, me vi 
impotente, perdido, sem saber o que 
fazer, quais seriam os rumos da minha 
pesquisa e da minha vida. O meu projeto 
de pesquisa tinha sido idealizado para 
ser desenvolvido no campo escolar, um 
34 
 
 
 
 
estudo de caso através das intervenções 
da arte na escola, nas comunidades que 
formam o território indígena 
Mendonça5, tendo como título - O jogo 
teatral como articulador na 
investigação e mediação de culturas: 
um estudo de caso nas comunidades do 
“Amarelão, Assentamento Marajó, 
Açucena, Santa Terezinha e Serrote de 
São Bento”. 
Devido a impossibilidade do 
contato presencial com as pessoas 
devido a proliferação em massa do 
coronavírus sars-cov-2 (covid-19), tive a 
desafiante missão de reavaliar o futuro 
da minha pesquisa na academia. Então, 
na primeira reunião que tive com o meu 
orientador Adriano Moraes, realizada de 
forma remota, conversamos sobre o meu 
trajeto de vida, a minha identificação 
com o teatro e a educação. 
Ele me fez perguntas, tais como: 
de onde eu vim, o que eu pretendia para 
 
5O grupo familiar Mendonça se constituiu a 
partir de antecessores indígenas pertencentes às 
etnias Potiguara e Tapuia. Algumas famílias 
indígenas, de etnia potiguara, migraram do 
Brejo de Bananeiras – PB, a partir do século XVI, 
para o Rio Grande do Norte. O maior registro de 
migrações se deu a mais de dois séculos 
ocasionadas por situações de crise (epidemias de 
cólera, as secas, expansão colonial, etc.) 
(GUERRA, 2011). Esses indígenas que vieram da 
Paraíba foram recebidos na comunidade, uma 
o futuro, observou minha maneira de 
falar, meus gestos, minhas expressões, 
me deixando literalmente à vontade 
para expor as minhas ideias, como 
também as inquietações que assolavam 
a minha mente. 
A partir desta primeira conversa, 
o professor Adriano filtrou partes da 
minha fala, partilhou comigo os 
registros daquilo que fervilhava nos 
meus olhos e nas palavras. Foi então que 
surgiu a possibilidade de uma 
investigação desta minha relação 
identitária com o meu chão, com a 
minha cidade, com a minha família, 
meus amigos, com a arte e com a escola, 
trazendo à tona o meu trajeto formativo 
como problematização para um estudo 
potente, acerca de como me tornei 
vez que já havia o contato entre os mesmos, e 
se uniram aos indígenas que já habitavam o 
Amarelão através de laços 
familiares/casamentos. O Território Mendonça 
tem 6 aldeias localizadas em dois municípios da 
região do Mato Grande no Rio Grande do Norte, 
João Câmara e Jardim de Angicos: Amarelão, 
Serrote de São Bento, Assentamento Marajó, 
Assentamento Santa Terezinha, Açucena e 
Cachoeira/Nova Descoberta. 
https://cchla.ufrn.br/povosindigenasdorn/p_m
.html 
35 
 
 
 
 
docente-artista com as singularidades e 
pluralidades que me compõem. 
A minha biografização foi 
alinhavada e ganhou corpo através do 
delineamento das escolhas que fiz para 
me apropriar das informações que 
pareciam flutuar, saltar dos meus olhos 
e das minhas palavras. Com isso, tendi a 
elucidar as vivências e as imagens que 
estavam latentes em minhas memórias. 
Optei por iniciar as tessituras em 
escritos, fazendo incursões nas 
fotografias dispostas em meus álbuns, os 
raros registros que consegui guardar. Ao 
pegar o álbum da adolescência, retirei a 
primeira fotografia que vi; e ela foi o 
meu gatilho inicial, meu ponto de 
partida para começar a desenhar o 
caminho que resultou na materialização 
da pesquisa. 
 
Figura 1: Meus amigos de infância e eu, na cacimba 
de seu Nascimento. Acervo pessoal. 
 
A fotografia acima traz o registro 
do meu grupo de amigos da infância na 
Cacimba de seu Cimento - apelido de 
seu Nascimento, esposo de dona 
Lindalva, moradores do Matão dos 
Nunes. Da esquerda para a direita, está 
Renildo, filho do meio da minha prima 
Neuzinha; Joelson, neto do meu tio Tié; 
Isaque - meu compadre, padrinho da 
minha segunda filha Laura - filho da 
minha grande amiga Salete Andrade (in 
memorian); eu, meus primos Bruno e 
Fabinho - meu compadre,padrinho da 
minha primeira filha Maria Eduarda; e 
Lauro, filho da minha amiga dona 
Netinha. A foto foi registrada por Raone, 
36 
 
 
 
 
filho mais velho da minha prima 
Neuzinha. 
 
Figura 2: Eu, nas margens da antiga cacimba de seu 
Cimento. Acervo pessoal. 
 
Como procedimento inicial de 
pesquisa, passei a reunir fotografias, 
imagens diversas, escritos em apostilas 
e em redes sociais; com isso, fui me 
reconhecendo, reconstruindo o meu 
trajeto. 
Exercitei bastante a mente e a 
memória, buscando momentos que me 
influenciaram a ser quem sou. Tudo 
parecia ainda muito genérico, com 
poucas cores, um trajeto ofuscado, que 
necessitava bastante alinhamento. 
Inicialmente, não me dava conta do que 
viria logo mais adiante, nos próximos 
passos. Passei a me enxergar como um 
andarilho da mente, caminhando em 
minhas memórias, sonhando e refletindo 
com as imagens que eram evocadas, 
reverberadas. Em vários momentos, as 
imagens que surgiam em minha mente 
não apresentavam com exatidão aquilo 
que eu procurava, não me dava conta de 
sentir por mais de um ângulo os 
momentos vividos. 
Necessitei procurar virtualmente 
e alguns poucos, presencialmente, os 
sujeitos que fizeram parte das 
vivências, ir in loco aos espaços que 
resistiram ao tempo, tentando me 
reconectar fisicamente com as 
memórias que estavam vivas e latentes 
em mim. As conversas com a minha avó 
Maria de Lourdes, a minha contadora de 
histórias, a primeira referência da 
minha pedagogia teatral - com a 
compreensão que hoje tenho - foram 
sendo recontadas, reconstituídas, 
tornando o meu objeto de pesquisa forte 
a cada encontro. E assim, as minhas 
digitais foram sendo evidenciadas, 
elucidando os caminhos e 
acontecimentos que me influenciaram e 
37 
 
 
 
 
me transformaram no ser singular-plural 
que sou. 
Figura 3: Entrevista com a vovó Maria, a contadora 
de histórias. Acervo pessoal. 
 
As conversas com a minha avó 
Maria, com meu avô Paulo Martins, com 
a minha mãe Maria Cristina, foram me 
alimentando, injetando na minha 
pesquisa uma sensação de 
fortalecimento, de orgulho e de 
valorização da arte e da educação, e 
principalmente, a valorização da vida. 
Mesmo que fosse decisão nossa, 
um desejo latente, um propósito 
pessoal, jamais conseguiríamos dar 
conta de tudo que nos acontece, pois 
são diversas as constantes ações 
acontecendo a cada segundo em nosso 
mundo subjetivo e plural, são diversos 
acontecimentos que perpassam por nós 
e por nossos olhos, mas nem tudo é 
capaz de ser notado. 
A apreciação das fotografias 
somadas às memórias da infância, da 
juventude e da vida no interior do RN, 
foram demarcando o desenrolar da 
pesquisa. As fotografias possuem 
evidências do vivido do sujeito, 
materializam momentos, experiências 
do tempo. No entanto, conforme o 
tempo passa, as fotografias tendem a 
ganhar novos sentidos, novos anseios 
que se diferem no ato de registrar no 
presente. 
Delory-Momberger, em seus 
estudos e leituras no campo da 
biografização, apresenta a importância 
da fotografia, dos trabalhos fotográficos 
na composição dos traçados das histórias 
38 
 
 
 
 
individuais e coletivas do sujeito para 
com o mundo vivido e sentido. 
O estudo das memórias 
fotográficas como estratégia para 
alcançar as tessituras autobiográficas, 
ultrapassa a captura da imagem no 
papel fotográfico, Apresenta os 
sentidos que estão cravados nas 
entrelinhas, naquilo que os olhos são 
incapazes de alcançar ao olhar para a 
imagem física. 
As sensações que emergem ao 
olhar para uma fotografia de um 
momento vivido, só são capazes de ser 
literalmente sentidas com o gosto do 
momento, por quem de fato esteve 
presente, não necessariamente na 
fotografia, mas no momento em que ela 
foi registrada. Assim, ao pegar o álbum, 
apreciar a primeira fotografia, parti 
para uma nova incursão, a 
necessidade\vontade de ir ao lugar onde 
a fotografia foi registrada, dando início 
a um novo gatilho, a reconexão com o 
espaço físico, com as localidades por 
onde perambulei, a busca pelo 
entendimento daquilo que estava verde 
e que precisava amadurecer, dos 
elementos da pesquisa que 
necessitavam de licença poética para 
ganhar corpo. 
 
Figura 4: registro da biografização em execução na 
casa dos meus avós. Acervo pessoal. 
 
No registro fotográfico anterior, 
estou diante de muitas fotografias, 
tendo a presença física do meu avô ao 
fundo e, todo o horizonte com o qual eu 
me deparo e que possibilita 
compreender os momentos, as 
experiências e todos os encontros que 
foram formadores e, que compõem a 
minha (auto)biografia. 
Unindo a análise dos registros 
fotográficos às incursões dos espaços 
por onde vivi, iniciei um processo de 
construção de novas imagens, 
mesclando as sensações do presente aos 
39 
 
 
 
 
sentidos no passado e perspectivas de 
futuro. 
Uma importante e recorrente via 
investigativa do meu processo de 
construção individual foram as 
entrevistas com os meus familiares, 
conversas livres que ocorreram no 
quintal da minha avó, enquanto ela o 
varria, na mesa da cozinha e nos inícios 
das manhãs e finais de tarde, 
saboreando um delicioso café 
fresquinho. Como também, registros de 
áudios e imagens, dos depoimentos, das 
narrativas dos vividos, daquilo que ao 
olho nu para as fotografias não era 
possível de enxergar. 
Dentre várias entrevistas, escolhi 
a figura 3, onde estou ouvindo 
atentamente as histórias da vovó Maria6 
e, a figura 4, que materializa um dos 
momentos em que estou tecendo a 
minha biografização como síntese de 
meu percurso de investigação: uma se 
ancora no presente, no sabor das 
palavras de meus avós, parentes, 
amigos; a outra, no reencontro com 
flagrantes de experiências registradas 
ao longo de minha vida. 
 
6https://drive.google.com/file/d/1bM0KKbsyS5
u_ILa2WrTQpRExdPJ4Zf2N/view?usp=sharing 
O conjunto de elementos que 
compuseram a estrutura da investigação 
da minha pesquisa, resultaram no 
fortalecimento da biografização, 
oportunizando a liga necessária para a 
conversação entre a biografização e as 
histórias de vida como arcabouços 
metodológicos, embasados na 
epistemologia dos estudos 
autobiográficos e narrativas de vida das 
autoras Christine Delory-Momberger e 
Marie-Christine Josso. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Figura 5: A minha questão de pesquisa nas mãos da 
minha avó Maria. Acervo pessoal. 
 
40 
 
 
 
 
 
 
 
 
41 
 
 
 
 
CAPÍTULO 02 
BIOGRAFIZANDO MEU PERCURSO 
FORMATIVO: DAS APRENDIZAGENS DO 
QUINTAL À UNIVERSIDADE 
 
A escolha por utilizar o termo 
travessias para apresentar a migração 
entre as fases da minha vida, ancora-se 
na minha relação com a natureza, com 
as memórias de menino arteiro, das 
grandes navegações imagéticas, na 
poesia da minha imaginação que evoca a 
criança que ainda habita dentro do meu 
corpo vivo e emancipado pela arte.
 
Travessia I - infância: 
imagens/narrativas familiares e de 
amizades 
 
Nesta travessia, convido você 
leitor(a) a acompanhar algumas imagens 
da minha infância e, com isso, conhecer 
os cenários e as pessoas que fizeram 
parte do meu processo de chegada ao 
mundo, como também, as relações 
afetivas envolvendo minha família e 
meus amigos. 
A árvore genealógica que 
aparecerá adiante evidencia as bases de 
meu trajeto. E a partir das raízes, caule, 
folhas e frutos desta árvore vital, 
permito-me olhar para a criança que fui, 
que nasceu e cresceu em um contexto 
interiorano, mergulhado em vivências e 
traços da minha família e dos saberes e 
atravessamentos populares. 
 
Figura 6: Minha prima Vanessa e eu no quintal da 
casa da vovó Maria. Acervo pessoal.
 
42 
 
 
 
 
Imagem 01: Álbum de Família 
 
Figura 7: Árvore Genealógica de Eduardo Martins. Acervo pessoal.
 
 
 
 
43O nascimento 
 
Oh, meu Deus! o menino nasceu! 
– Já contava minha avó Maria. 
Aos 03 de dezembro de 1988, 
numa manhã de sábado, dia de feira 
livre na cidade, às 10:45h, nascia no 
Hospital Regional de João Câmara, 
município do interior do Rio Grande do 
Norte, um menino prematuro: oito 
meses de gestação e pesando menos de 
2 quilos. 
Figura 8: Hospital Regional do Município de João 
Câmara 
Figura 9: Localização do Município de João Câmara 
no mapa do Estado do Rio Grande do Norte. Fonte: 
Wikimedia Commons (2018). 
 
Era o terceiro filho de Cristina, 
agricultora, e Zacarias do bar, pedreiro, 
- como meu pai era conhecido, seu nome 
de registro é João Maria. Nasceu o neto 
de Paulo dos bodes, avô materno, 
agricultor e marchante; e Maria de 
Lourdes, avó materna, agricultora; 
Maria da Paz, avó paterna, agricultora; 
e Cabo Zacarias, policial reformado. A 
expectativa para meu nascimento era 
gigantesca, segundo me contam. 
A aflição de toda a família era 
enorme, tendo em vista as condições 
prematuras envolvendo a minha vinda 
ao mundo. 
Mainha sentiu muito medo. Ela 
estava insegura, pois havia perdido seu 
primeiro filho, justamente aos 8 meses 
de gestação, e temia pela possibilidade 
de perder seu próximo filho homem, 
44 
 
 
 
 
devido ao cenário que se encontrava, 
enfrentando complicações na gestação e 
no meu nascimento. 
Minha avó Maria de Lourdes, 
durante várias reflexões sobre este 
momento tão especial, porém cheio de 
aflições, garante que nas contas dela eu 
nasci aos sete meses de gestação e que 
ela nunca errou nas previsões. Ela fez 
várias simpatias para descobrir o meu 
sexo, colocando uma tesoura aberta, 
representando o sexo feminino, e outra 
fechada, representando o sexo 
masculino, embaixo de almofadas, para 
que mainha escolhesse um assento e 
assim, confirmar suas previsões. 
Durante a minha gestação na 
barriguinha branca de mainha, vovó ao 
iniciar os preparativos da galinha caipira 
para o almoço, separava o coração do 
animal, fazia um corte na ponta do 
órgão, sem apartar, e colocava na 
panela para cozinhar. Ao abrir a panela, 
o coração sempre esteve fechado, 
portanto, ali se anunciava que teria mais 
um netinho do sexo masculino na 
família. Se por ventura o coração da 
galinha cozinhasse e permanecesse 
aberto, conta vovó que uma menina 
estaria por vir. 
Disse-me vovó que fazia essas 
simpatias, mas nem disso precisava para 
acertar nas previsões, bastava bater o 
olho no formato da barriga, e não tinha 
exame mais certeiro que seu olho. 
Vovó conta, aos risos, porém 
trazendo pausas reflexivas, as aflições e 
mistos de sentimentos desde a saída da 
minha mãe, ali das varedas - que nós 
reconhecemos como caminhos estreitos, 
trilhas curtas - caminhos em meio ao 
mato até o hospital. Mainha, conta que 
o meu choro era alarmante e 
inconsolável; que vim ao mundo faminto 
e não tinha condições de pegar o peito 
dela, pelo fato de minha boca ser muito 
pequena, impedindo de sugar o leite. 
Os pacientes, acompanhantes e 
visitantes iam curiosos ao leito para me 
ver. Não acreditavam que aquele 
serzinho minúsculo e frágil sobreviveria. 
Mesmo assim, mainha não perdeu as 
esperanças e, bravamente, protegeu e 
cuidou de mim com muito carinho, amor 
e muita reza. 
Assim foi o início de tudo: 
sobrevivi, me fortaleci e aos poucos fui 
sendo moldado pelo entorno familiar, 
recebendo carinhosamente do meu avô 
paterno, Paulo Martins, o apelido de 
45 
 
 
 
 
“Duquinha”, o menino arteiro, porém 
querido por toda a família. Meus avós 
paternos contam que meus primeiros 
meses de vida foram os mais tranquilos. 
Apesar de eu ter nascido 
prematuro, fui respondendo bem aos 
estímulos dos familiares. Me alimentava 
bem, era muito atento aos ruídos, 
barulhos e as vozes deles - eu era muito 
observador. Minha avó conta que ao 
cantar, eu observava com atenção, 
procurando a direção da voz dela, e 
quando me segurava no colo, após ter 
sido amamentado pela minha mãe, 
cantava a musiquinha do papai Noel "Lá 
vem papai Noel comandando o batalhão, 
Duquinha vem sentando na corcunda do 
leão". Ela cantava e repetia o final da 
música, "na corcunda do leão" até eu 
adormecer em seu colo. 
Mainha conta que os moradores 
da vizinhança ficavam admirados com a 
energia e esperteza que eu tinha. 
Minha irmã mais velha, Elaine e 
eu temos menos de dois anos de 
diferença nas idades. Ela sempre foi 
uma menina centrada, obediente e 
bastante organizada. Tinha o maior 
cuidado e ciúmes dos seus brinquedos, 
em especial, de uma boneca de cabelos 
cacheados, vestido e sapatos vermelhos 
com bolinhas brancas. Tínhamos a 
diferença de menos de dois anos em 
nossas idades. Em relatos da minha mãe, 
em um certo dia, nós brincávamos 
pertinho da porta da cozinha, que por 
sua vez, dava acesso para o quintal 
quando algo inusitado aconteceu. Eu 
segurava a boneca predileta da minha 
irmã, enquanto estava nos braços do 
meu avô Paulo, no quintal de nossa casa. 
Mainha conta que eu atirei a 
boneca preferida da minha irmã em 
cima do telhado de casa e, que meu avô 
não deve ter percebido este ocorrido, 
pois por vários dias todos ficaram à 
procura da bonequinha pela casa toda. 
Minha mãe procurava a boneca 
feito agulha no palheiro, e nada dela 
aparecer. 
 
Figura 10: Minha irmã Elaine Cristina e eu, 
brincando - Fotografia 1989. Fonte: Acervo Pessoal 
 
46 
 
 
 
 
A boneca de cachinhos é um dos 
principais símbolos presentes em minha 
memória, quanto trata-se dos 
brinquedos da minha irmã. Não sei ao 
certo se fui eu mesmo que atirei a 
boneca no telhado da casa, ou se foi 
meu avô que cometeu essa artimanha, 
pelo menos ele conta que não teve nada 
com isso. Algo me diz que a bonequinha 
foi parar no telhado pelas mãos do vovô, 
pois por muitas vezes ouvi ele reclamar 
por minha mãe me deixar brincar com 
bonecas. Pois, para ele - bonecas não 
são brinquedos de meninos. Anos depois 
a bonequinha apareceu, desgastada do 
sol, porém mantendo a mesma essência 
em minhas memórias. 
Passei a ser visto e conhecido 
como uma criança extremamente 
agitada, não tinha um cristão de Deus 
que tivesse paciência, dizia minha mãe. 
Ela não sabia mais o que fazer, pois eu 
não parava quieto, as pessoas diziam 
que tinha um frivião - um menino muito 
agitado, inquieto, que não conseguia 
ficar parado num canto. 
Ninguém entendia como uma 
criança que nasceu aos 8 meses, com 
 
7O uso de “famoso” aqui é uma expressão local 
e serve para indicar alguma excentricidade da 
pessoa. 
pouco menos de 2 kg, que quase não 
vingou, era tão energético e azogado - 
um menino virado na peste, agoniado, 
como diziam alguns dos anciãos do 
bairro. Os anos foram passando e o 
menino foi crescendo e, com as energias 
a todo vapor. 
Em relatos, mainha apresentou o 
momento em que eu estava aprendendo 
a andar, já tinha dado as primeiras 
passadinhas, segurando o portão da casa 
de vovó. Ela me deixou com sua prima, 
Lúcia Pedro, filha da tia Ciça e seu Chico 
Pedro, aquele famoso7 agricultor. Lúcia, 
cansada de me segurar no braço, 
enquanto caminhava comigo na 
estradinha do Matão dos Nunes, parou 
para conversar com uma senhora que 
passava no local. Neste momento, me 
colocou no chão, segurando em suas 
pernas. Em questão de segundos, 
quando ela se deu conta, eu já ia 
descendo a passos largos, em direção ao 
caminho de casa. Este ocorrido 
repercutiu durante muitos anos, 
alimentando ainda mais a narrativa, na 
família, de eu ser um menino diferente 
dos outros. 
47 
 
 
 
 
Na época, pouco se falava em 
psicanálise, profissionais da 
psicopedagogia, arteterapeutas, nem 
tampouco em educadores que 
conheciam e praticavam métodos de 
trabalho voltados para as competências, 
habilidades e subjetividades das 
crianças. 
O diagnóstico era dado de forma 
direta e crua:esse menino é doido; leva 
para Dona Francisca curar - curandeira 
histórica do município - “procure um 
padre, mulher, para fazer uma reza boa 
nesse menino!”. 
Para alguns, o meu 
comportamento era falta de educação. 
Os conselhos dados eram: - um cipozinho 
de goiabeira resolve na hora! Ou, - dá-
lhe um chá de burro - surra - resolve 
ligeirinho! e ainda, - um sarrabulho bom 
botava esse menino nos trilhos! e por aí 
seguiam os diversos conselhos para 
minha mãe, sempre na conjuntura da 
força física na tentativa de inibir o meu 
jeito de ser e de me expressar. Penso 
que de fato, eu queria mesmo era 
apenas me comunicar.
Imagem 2: O menino arteiro 
 As festividades em família 
oportunizavam uma série de 
acontecimentos, como contação de 
histórias, contos, causos e fofocas aos 
finais de tardes, no quintal da minha 
avó. 
 Vovô Paulo e vovó Maria 
revolviam memórias de suas infâncias, 
de quando casaram e dos 
acontecimentos do cotidiano, na época 
em que não existia energia elétrica 
disponível nas casas. Nas famosas 
tardes, principalmente as de sábados e 
de domingos, eu não parava quieto, 
ficava tão ansioso que corria sem parar, 
saltando nos galhos das árvores, 
imitando as personagens das histórias 
contadas pelos meus avós e fazendo 
diversas perguntas. 
A curiosidade era uma marca que 
eu tinha e que me diferenciava dos meus 
primos. Não deixava passar 
absolutamente nada, a mente era 
extremamente fértil, gastava as 
energias brincando e aproveitando a 
liberdade que meus avós me davam 
naquele grande e bonito quintal. 
48 
 
 
 
 
 
Figura 11: Eu em cima do muro, na casa da vovó 
Maria. Acervo Pessoal. 
 
Duquinhaaaaaaa, se aquiete 
menino! Desça desse muro. Você vai cair 
menino! vovó aos gritos, preocupada 
comigo. 
Também era comum ouvir a 
minha avó dizendo: “menino, deixe seu 
avô em paz!” nos momentos que eu 
brincava de imitar o meu bisavô “Pai 
Zeca”, um dos homens mais humildes e 
queridos lá do Matão dos Nunes, 
povoado onde nasci e cresci na minha 
linda e estimada cidade João Câmara - a 
terra do algodão e do sisal, como dizia 
meu velho bisavô pai Zeca. 
Imitar o vovô era muito engraçado, 
eu saia me arrastando com sua bengala, 
cuspindo no chão, algo bem comum que 
vovô pai Zeca fazia. 
Eu partia em disparada para baixo 
da cama esperando que ele entrasse no 
banheiro, ele demorava muito tempo no 
49 
 
 
 
 
banho, tadinho, era velhinho demais. 
Quando ouvia o barulho da água sendo 
despejada da cabeça dele para o chão, 
imediatamente pegava a sua camisa, 
calça, os óculos, a bengala e o chapéu, 
me vestia de vovô e começava a imitá-lo 
pela casa. 
Todos começavam a rir, menos o 
vovô, que ficava furioso quando se dava 
conta de que eu estava atolado em suas 
roupas. Vovô pai Zeca tinha o costume de 
apertar a minha mão muito forte, sempre 
que ia lhe pedir a benção. Um costume 
que também se estendia aos meus primos 
e as crianças do bairro que chegavam 
perto dele. Muitas vezes ele apertava 
tanto a minha mão que as lágrimas 
desciam em meus olhos, mas eu me fazia 
de forte, embora sentisse bastante dor. 
 
 
Imagem 3: Os contadores de história
Meus avós maternos nutriram e 
ainda nutrem meu imaginário a cada 
história contada. 
 
 
Figura 12: Vovó Maria e Vovô Paulo. Acervo pessoal. 
 
Me recordo do conto do vampiro, 
ficava com a pele toda arrepiada, 
entusiasmado para saber como era estar 
diante de um bicho tão horripilante. 
O Vovô Paulo conta que em uma 
das madrugadas que ele se preparava 
para ir ao mercado público - seu local de 
trabalho durante décadas da sua vida - 
deu de cara com um vampiro. As 
características dele eram de um homem 
alto, com uma capa preta sobre a 
cabeça e muito ágil. Sacou seu punhal 
da bainha pendurada em sua calça e 
ficou de prontidão, vendo o vampiro 
correr rapidamente pelos quatro cantos 
do quintal. 
Quando ele menos espera, o 
vampiro o ataca com os braços abertos. 
De imediato, ele consegue apunhalá-lo, 
50 
 
 
 
 
ferindo-o no braço, arrancando parte da 
sua camisa, e rapidamente fez uma 
oração para Nossa Senhora Mãe dos 
Homens, a quem ele é devoto. Com isso, 
o vampiro foi embora e nunca mais 
apareceu. 
A vovó Maria endossa as falas do 
meu avô, às vezes a favor, outras vezes 
contrariando-o. Assim as narrativas 
acontecem. Muitas vezes, ela rebate a 
história, contando que não era um 
vampiro, mas sim um lobisomem. Como o 
quintal era extenso e o curral das cabras, 
bodes e ovelhas era um pouco distante da 
casa, nem sempre conseguiam reparar, 
proteger os animais e espiar a presença 
dos invasores, sejam vampiros, 
lobisomens ou ladrões de cabras, que 
segundo vovó, "de vez em quando, 
apareciam nos cercados do povo - dizem 
as bocas pequenas8 por aí, segundo vovó.. 
 Muitas vezes quando o vovô 
chegava lá perto da porteira do cercado, 
já dava falta de um animal. Vovó conta 
que o lobisomem carniceiro atacava em 
noites de lua cheia e, nessa noite que 
vovô Paulo teria lutado com o vampiro, 
 
8Pessoas que comentavam os incorridos na rua, 
o famoso boca a boca, as acontecimentos. 
na verdade foi com o lobisomem que ele 
se deparou. 
Não se sabe ao certo com quem 
meu avô lutou, o que marcava mesmo as 
nossas tardes eram esses valiosos 
momentos de contação de histórias. 
 Outro conto bem conhecido em 
nossa família, e na cidade, era o das três 
irmãs, Mariinha, Belíndia e Florzinha, que 
eram pedintes na cidade. Elas buscavam 
esmolas de casa em casa, e moravam às 
margens da Serra do Torreão, dentro de 
um buraco. A Vovó Maria conta que 
Belíndia, a irmã mais velha, quase não 
saia do buraco, no entanto, ordenava que 
as irmãs fossem até as casas pedir 
alimentos, peças de roupas, utensílios e 
tudo o que pudesse ser doado pelo povo 
camarense. Mais tarde, descobriu-se que 
elas eram filhas do lobisomem e que 
também se transformavam, em noite de 
lua cheia. 
 O povo tinha muito medo da 
Belíndia, pois ela custava a aparecer, mas 
curiosamente, no dia que resolvia pedir 
esmolas, na casa onde ela visitava, uma 
pessoa da família falecia. Com isso, todo 
cuidado era pouco, qualquer sinal da 
51 
 
 
 
 
presença da filha mais velha do 
lobisomem nas redondezas, as portas 
eram imediatamente fechadas. 
Meus avós narram esses contos com 
muita propriedade e convicção. Era 
incrível ver meu vô Paulo pulando, 
tirando a faca da bainha, apresentando 
aquele momento de aflição e muita ação. 
Por outro lado, vovó Maria falando 
com voz grave, imitando as filhas do 
lobisomem, caminhando pela casa, 
mostrando como era que ela fazia para 
proteger seus filhos, das irmãs que se 
transformavam em lobas. 
 Sentada em uma cadeira de 
balanço, vovó Maria com seu cachimbo 
fumaçando pedia para a meninada se 
aquietar, pois chegava o momento da 
contação de histórias. 
O conto do torreão encantado era 
uns dos mais apreciados em nossas tardes 
na casa da vovó. Ela começava dizendo 
que esse conto sempre lembrava as 
histórias contadas pelo seu pai, meu 
bisavô pai Zeca. A primeira vez que tenho 
lembranças de tê-la ouvido, foi quando 
eu tinha 6 anos de idade, enquanto me 
preparava para participar de uma 
excursão cultural do colégio. 
Figura 13: Serra do Torreão e as margens do açude 
grande. Fonte: Site da Prefeitura Municipal de João 
Câmara. 
 
Certo dia, ao saber que eu iria pela 
primeira vez visitar a serra do torreão, 
vovó me levou para perto do pé de 
goiabeira do quintal e, embaixo daquela 
árvore, que fazia uma sombrinha 
aconchegante, perguntou se eu já tinha 
ouvido falar da serra do torreão 
encantado. Respondi que não, e já 
ansioso, pedi-lhe para contar tudo. 
Ela primeiramente respondeu que 
eu encontraria muitos desafios na subida 
à serra, e que estivesse preparado, 
usando tênis, agasalho e também a 
garrafinha de água, pois no trajeto até o 
topo da serra,

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