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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL JÚLIA SOUZA DE PAULA MEDIAÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO DO PODER POPULAR NA EDUCAÇÃO: Uma análise a partir de Pistrak e da escola do trabalho soviética NATAL 2022 JÚLIA SOUZA DE PAULA MEDIAÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO DO PODER POPULAR NA EDUCAÇÃO: Uma análise a partir de Pistrak e da escola do trabalho soviética Trabalho de conclusão de curso, apresentado no curso de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em serviço social. Orientador: Profº Drº Henrique Wellen NATAL 2022 1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA Paula, Júlia Souza de. Mediações para A Construção do Poder Popular na Educação: Uma Análise A Partir de Pistrak e da Escola do Trabalho Soviética / Júlia Souza de Paula - 2022. Monografia (Graduação) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro Ciências Sociais Aplicadas, Curso de Serviço Social, Natal, 2022. Orientador: Profº Drº Henrique André Ramos Wellen. 1. Educação - Monografia. 2. Escola - Monografia. 3. Escola do trabalho - Monografia. 4. Revolução Russa - Monografia. I. Wellen, Henrique. II. Título. RN/UF/CCSA 2 MEDIAÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO DO PODER POPULAR NA EDUCAÇÃO: Uma análise a partir de Pistrak e da escola do trabalho soviética Trabalho de conclusão de curso, apresentado no curso de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em serviço social. Orientador: Profº Dr. Henrique Wellen BANCA EXAMINADORA ____________________________________________________ Profº Dr. Henrique Wellen UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN Orientador _____________________________________________________ Angely Dias da Cunha UNIDADE DE PRONTO ATENDIMENTO DE NOVA ESPERANÇA – UPA NOVA ESPERANÇA Membro externo ____________________________________________________ Profª Drª Daniela Neves UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN Membro interno 3 Dedico este trabalho ao Profº Felipe ( in memorian ), também conhecido como meu pai, que em vida me ensinou que o conhecimento é mais que um meio de ascensão pessoal – mas um instrumento de transformação da realidade. Tal concepção me motivou tanto a me interessar pelo tema, quanto a chegar neste ponto da minha formação. Dedico também ao meu avô materno, Messias Patrício de Souza ( in memorian ), que, com o conhecimento que a vida lhe permitiu ter, alfabetizou toda uma população de trabalhadores rurais feito ele – em uma sala de aula improvisada no curral de nossa família. 4 AGRADECIMENTOS Agradeço ao Movimento Estudantil, por ter sido uma dimensão importante da minha trajetória na Universidade, e onde me iniciei na militância organizada de maneira mais consistente. Nessa frente de luta, tive valiosos aprendizados não apenas com os acertos, mas com os erros coletivos – que em boa parte incentivaram meu interesse pelo tema aqui exposto. Agradeço à União da Juventude Comunista (UJC), por ter sido minha principal escola de formação política – e onde entendi verdadeiramente o significado da práxis. Agradeço ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), por me permitir ser a continuidade do que a UJC me formou, sejam quais forem as novas tarefas que eu assuma em minha vida. Agradeço à minha família, primeiramente por terem sido meus primeiros exemplos de lutadores sociais (pai, mãe, irmã) e, em segundo, por terem colaborado com a minha formação. Agradeço especialmente à minha mãe, Maria José, pelo apoio nesta reta final de escrita de monografia; e à minha filha, Giovanna, por ser motivação e alento nos dias mais nebulosos. Agradeço a tantos e tantas camaradas, amigos, companheiros, colegas e docentes, por terem feito da vida acadêmica um lugar menos árido, onde pude colher valorosos aprendizados e afetos. Estendo o agradecimento àqueles com quem a convivência teve a mesma relevância nestes últimos anos conturbados, mas em espaços que não a Universidade; em especial, à querida Júlia Isotton. Agradeço à minha amiga, camarada e comadre Beatriz Marques, por ter aceitado revisar a formatação deste presente trabalho – para além da ajuda útil, tornou este momento menos solitário. Agradeço ao meu orientador, pela sua paciência inesgotável que talvez nenhum outro teria. 5 Alcançar aquele universo que sempre se quis E que se pôs tão longe na imaginação Vai o bicho homem, fruto da semente, Renascer da nossa força, nossa luz e fé Entender que tudo é nosso, sempre esteve em nós Somos a semente, ato, mente e voz (Redescobrir - Gonzaguinha) 6 RESUMO O trabalho tem como eixo de análise a educação inscrita no processo de consolidação do Estado soviético, conseguinte à Revolução Russa em 1917, a partir das formulações elaboradas pelo educador revolucionário Moisey Mikhaylovich Pistrak (1888-1937) e transcritas no seu livro Fundamentos da escola do trabalho (2018). A metodologia aqui empregada foi a pesquisa bibliográfica qualitativa, com ênfase no autor supracitado, porém dialogando com alguns outros referenciais bibliográficos. Para tanto, foi realizado o fichamento da referida obra que constitui a espinha dorsal da análise aqui presente, de modo a capturar algumas ideias que, uma vez trazidas para este trabalho, assentam elementos para uma reflexão crítica acerca da educação e sua interface com as lutas sociais; tal reflexão, vale destacar, é mediada por uma leitura marxista da realidade – valendo-se, portanto, no materialismo histórico-dialético enquanto método de análise e interpretação dos fenômenos. Diante dos resultados alcançados com a pesquisa, pudemos desvelar algumas mediações entre trabalho, educação e emancipação, inclusive de modo a refletir sobre a pertinência de alguns aspectos da escola do trabalho soviético para a nossa atualidade. Palavras-chave: educação; escola; práxis; escola do trabalho; Revolução Russa. 7 ABSTRACT The work has as its axis of analysis education inscribed in the process of consolidation of the Soviet State, following the Russian Revolution in 1917, based on the formulations elaborated by the revolutionary educator Moisey Mikhaylovich Pistrak (1888-1937) and transcribed in his book Fundamentals of the School of work (2018). The methodology used here was qualitative bibliographical research, with emphasis on the aforementioned author, but dialoguing with some other bibliographical references. To this end, a record of the aforementioned work was carried out, which constitutes the backbone of the analysis presented here, in order to capture some ideas that, once brought to this work, establish elements for a critical reflection on education and its interface with the struggles social; such reflection, it is worth noting, is mediated by a Marxist reading of reality – thus relying on historical-dialectical materialism as a method of analysisand interpretation of phenomena. In view of the results achieved with the research, we were able to reveal some mediations between work, education and emancipation, including in order to reflect on the pertinence of some aspects of the Soviet work school for our present time. Keywords: education; school; praxis; work school; Russian Revolution. 8 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO……………………………………………………………………….. 10 2 OS FUNDAMENTOS DA ESCOLA DO TRABALHO SOVIÉTICA 2.1 Contexto e biografia de Pistrak – antecedentes históricos…………………...……16 2.2 Aspectos gerais da escola do trabalho soviética……………………………...……..20 2.3 O trabalho na escola……………………………………………………………..…...26 2.4 O trabalho educativo……………………………………………………………..…..36 2.5 A auto-organização…………………………………………………………..……….41 3 POSSÍVEIS INTERLOCUÇÕES COM A ATUALIDADE……………….………...44 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS………………………………………………….……….48 REFERÊNCIAS…………………………………………………………………………..49 9 1 INTRODUÇÃO No Brasil, historicamente a educação ocupa um lugar de destaque no bojo das lutas sociais. Seja pelo tema sensível aos interesses tanto da classe trabalhadora quanto da burguesia – e que constantemente é alvo do debate público –, seja pelo terreno que possibilita uma maior margem de autonomia aos seus atores políticos, o movimento da luta de classes em nosso país jorra diversos acontecimentos que tiveram, ativamente, a participação de sujeitos ligados ao campo da educação – em especial na figura do movimento estudantil. Desde o enfrentamento ao nazifascismo durante a Segunda Guerra, passando pela resistência à ditadura burgo-militar 1 , até a ocupação de escolas em 2015/2016 2 – contra o desmonte em áreas sociais –, temos alguns exemplos que ilustram, parcialmente, a capacidade dos segmentos educacionais impulsionarem bandeiras caras aos processos de luta potencialmente emancipatórios dos trabalhadores e da juventude. Afinal, levando em consideração uma concepção totalizante da educação, que a compreende como um complexo constitutivo da vida social e, portanto, imbuído de uma função social importante na dinâmica da reprodução social (CFESS, 2013, P. 16), há de se pensar as disputas ensejadas neste terreno como processos circunscritos pela própria luta de classes: ao mesmo tempo que são substanciados pelas contradições e embates entre as duas classes sociais fundamentais, resguardam uma valorosa potencialidade de contribuição à organização e avanço da classe trabalhadora em sua luta histórica por emancipação. Entretanto, é preciso ter clareza que afirmar esse chão das lutas sociais – conformado pelos interesses antagônicos entre capital e trabalho e do qual germina o movimento pela educação –, não necessariamente nos direciona a um horizonte de ruptura – indispensável à referida emancipação que é perseguida pela classe trabalhadora ao longo dos anos, enquanto sujeito revolucionário. Para tal, é necessário mais do que a simples negação ao capitalismo que comumente confere o tom às lutas e pautas de caráter imediato ou setorial, uma vez que Na sua luta contra o capital, o proletariado, num primeiro momento, nega a pretensão do capitalismo em supor uma igualdade entre capital e trabalho, se assumindo como uma classe distinta e particular. (...) O proletário afirma-se como classe com interesses distintos e antagônicos ao capital, quando organiza-se para buscar maiores salários ou melhores condições de vida e trabalho. No entanto, o proletariado, ao assumir-se como classe, afirma a existência do próprio capital. (...) Agora ele manifesta o inconformismo e não a submissão, reivindica a solução de 2 Informações retiradas em < https://ubes.org.br/memoria/linha-do-tempo/#1990-2015 > . Acesso em: 17 de abr. de 2022. 1 Informações retiradas em < https://www.une.org.br/memoria/historia/ > ; < https://ubes.org.br/memoria/historia/#resistencia-ditadura >. Acesso em: 17 de abr. de 2022. 10 https://ubes.org.br/memoria/linha-do-tempo/#1990-2015 https://www.une.org.br/memoria/historia/ https://ubes.org.br/memoria/historia/#resistencia-ditadura um problema ou injustiça, mas quem reivindica ainda reivindica para alguém. Ainda é o outro que pode resolver por nós nossos problemas. (IASI, 1999, p. 37) Longe de descartar a importância desse momento de negação – enquanto parte do processo de formação e elevação da consciência que permite “desnaturalizar”o atual estado de coisas –, não devemos, contudo, tratá-lo como o fim último de nossas lutas. Não é a esse movimento de “negar o capitalismo afirmando-o”, como nos fala Iasi (1999, p. 38), que corresponde a tarefa histórica dos trabalhadores de emancipar a humanidade, mas, precisamente, à completa superação das relações sociais capitalistas vigentes. Se essa superação, por um lado perpassa pela contestação legítima da ordem societária do capital – e suas múltiplas expressões nas mais diversas esferas da vida social –, por outro não se encerra nisso. Na sedimentação desse salutar processo, a construção do poder popular – defendida por organizações revolucionárias 3 – assume um caráter não só tático, como também estratégico, face ao fomento e consolidação de experiências radicalmente pautadas na democratização do poder político – e, portanto, opostas às formas de sociabilidade do capital. Mas, afinal, o que o complexo social alvo do nosso debate tem a ver com isso? Embora não esteja vinculada a processos de trabalho que produzam, diretamente, a riqueza indispensável ao acúmulo do capital, a educação, conforme falado linhas atrás, não é menos atribuída de funcionalidade quando se trata da reprodução da vida social – o que, no nosso tempo histórico, equivale à reprodução das relações sociais capitalistas. Desenvolvamos tal assertiva através das palavras de Mészáros (2008, p. 40), quando explicita que a educação formal não é a força ideologicamente primária que consolida o sistema do capital; tampouco ela é capaz de, por si só, fornecer uma alternativa emancipadora radical. Uma das funções principais da educação formal nas nossas sociedades é produzir tanta conformidade ou "consenso" quanto for capaz, a partir de dentro e por meio dos seus próprios limites institucionalizados e legalmente sancionados. Esperar da sociedade mercantilizada uma sanção ativa – ou mesmo mera tolerância – de um mandato que estimule as instituições de educação formal a abraçar plenamente a grande tarefa histórica do nosso tempo, ou seja, a tarefa de romper com a lógica do capital no interesse da sobrevivência humana, seria um milagre monumental. É por isso que, também no âmbito educacional, as soluções "não podem ser formais; elas devem ser essenciais". Em outras palavras, eles devem abarcar a totalidade das práticas educacionais da sociedade estabelecida. 3 Ver Resoluções do XV Congresso do PCB: A Estratégia e a Tática da Revolução Socialista no Brasil; Resoluções do XVI Congresso do PCB: Declaração Política do XVI Congresso do PCB e Programa de Lutas para implementação da estratégia socialista no Brasil; disponível em < https://pcb.org.br/congressos >. Acesso em: 07 dejun. de 2022. 11 https://pcb.org.br/portal2/category/s10-internacional/america-latina/s8-brasil/s4-pcb/s1-congressos Assim, retomando o que foi dito sobre a educação ser um complexo constitutivo da vida social que, como tal, traduz as contradições e interesses antagônicos de classes distintas – mas também a hegemonia de uma classe em detrimento da outra – , fica possível entender de que modo esse complexo, à medida que se configura como um campo de disputa, se esbarra nos limites já mencionados dos movimentos meramente contestatórios que esboçam uma insurgência do trabalho contra o capital. Contudo, é preciso dar um passo a mais: buscando entender, também, de que modo o campo assinalado pode alargar as potencialidades desses mesmos movimentos inscritos na luta de classes. Um passo em direção à auto-organização dos trabalhadores, que tenha em um projeto emancipatório de sociedade sua principal substância. Substância esta que deve penetrar todos os poros da vida social, não escapando, portanto, a educação. Para além de identificar o objeto da pesquisa, faz-se necessário um aceno, aqui, ao que inspirou o interesse no objeto. Não apenas enquanto profissional, mas também enquanto militante e pessoa, a universidade vem cumprindo um papel vital em minha formação. Por universidade, me refiro não apenas à sua dimensão curricular, mas também – quiçá sobretudo – à dimensão política: foi o movimento estudantil a minha porta de entrada para a luta organizada, da qual hoje me despeço – mas não sem levar um valioso acúmulo que contribuiu e contribuirá para a minha construção enquanto sujeito, bem como para a minha atuação em qualquer que for a trincheira da luta de classes que eu ocupe organizadamente. Mauro Iasi (1999), quando fala sobre a consciência enquanto um processo, sublinha que a mesma não deve ser entendida como algo dado, mas como um movimento que, longe de qualquer linearidade, está sujeito a avanços e recuos; superações e impasses. Nesse sentido, a consciência não culmina em sua forma mais madura através de um rasgo súbito que nos leva a “adquiri-la”; sequer é passível de ser adquirida, como em oposição a um suposto estado de “não consciência”. Essa forma mais madura, que chamamos de consciência revolucionária – ou consciência de classe – se desenvolve, assim como as formas distintas, a partir de uma cadeia de mediações entre a realidade concreta e a percepção subjetiva do sujeito. Trago essa reflexão – em linhas bem gerais – para o meu caso particular: se por um lado meu processo de passagem para a consciência revolucionária é anterior à minha inserção no movimento estudantil, por outro, foi nele que mais pude (re)constituí-la. Considerando que a consciência é individual, mas a ação dela 12 decorrente é social, nesse chão do M.E fui impelida a reafirmar, continuamente, um dos principais desdobramentos da consciência revolucionária: a convicção em um projeto de sociedade pautado na completa superação do capital. Devo às lutas de que participei, em boa parte, a constante reatualização dessa convicção e do compromisso militante que dela deriva. Contudo, seria falso afirmar que foram os êxitos dessas lutas que mais fortaleceram a minha posição; pelo contrário: diria que foram suas vicissitudes e limitações. É compreensível que em um movimento com tanta rotatividade de seus lutadores, como é o estudantil, as lutas sofram com uma certa descontinuidade fatal ao avanço das massas. Como também é compreensível que sua pressão, isoladamente, não reverta em algumas conquistas sociais desejadas – não cabendo ao M.E sanar a crise orgânica, na qual ele próprio se esbarra, de toda uma classe dispersa e com seus instrumentos de luta fragilizados. Porém, sem ingenuidade alguma, é preciso descortinar as várias razões que tolhem ou até sufocam um possível avanço – se quisermos honestamente superá-las. Assinalo como uma dessas razões – conferindo-lhe certa proeminência – a postura defensiva que domina o movimento estudantil. Claro, tal postura pode ser entendida como um reflexo da própria desarticulação – já mencionada – da classe trabalhadora, remetendo, inclusive, a um denominador comum na origem dessas problemáticas. Trazendo o enfoque para o debate educacional, é muito nítido, ao meu ver, que a origem dessa postura defensiva é, em grande medida, a falta de um horizonte de ruptura que norteie e consubstancie todas as esferas da luta social - incluindo, portanto, a educação. Se já não são muitos os agentes da “luta pela educação” que ventilam esse horizonte em suas retóricas agitativas, menos ainda são aqueles que empreendem esforços no sentido de entender – e propor – de que modo esse horizonte há de canalizar as ações desenvolvidas no terreno educacional – incluindo aquelas de caráter tático e mais imediato, uma vez que a tática deve existir não em sobreposição, mas subordinada à estratégia. Justamente a estratégia encontra-se esfarelada no movimento estudantil – e educacional como um todo –, mantendo sua atividade orgânica refém das conjunturas e do imediatismo. Tal conformação – em todos os sentidos da palavra – tem nos conduzido à derrota não apenas na guerra, mas em sucessivas batalhas: até mesmo as conquistas parciais e imediatas parecem longe do nosso alcance. 13 Isso tudo é objeto de inquietação minha, que permeia o interesse e envolvimento com o tema em tela. Invariavelmente, essa mesma inquietação deságua em alguns pontos de interrogação fundamentais: quando fazemos a defesa da educação, à qual educação estamos nos referindo? Uma educação emancipadora ou a educação burguesa? A educação das salas de aulas, tão somente, ou a educação que compreende os sujeitos e o processo de construção do conhecimento em sua totalidade? Seria a educação um complexo abstrato como, por vezes, algumas de nossas bandeiras sugerem? Estamos a defender os nossos reais interesses, ou os interesses dos nossos adversários de classe sob um outro verniz? Aliás, até que ponto devemos defender, e não impor os nossos interesses? São questionamentos que costumam nos remeter à crítica a alguns aspectos proeminentes da educação formal burguesa – em algumas das suas variadas vertentes. A crítica não apenas é válida, como vital para o sentido e direcionamento das nossas lutas, visto que é elaborada no processo de aproximação com a realidade através da teoria; entretanto, cabe uma ressalva. É bem verdade que a teoria, como diria Marx (2010, p. 151), também se converte em força material uma vez que se apossa dos homens. A teoria é capaz de prender os homens desde que demonstre sua verdade face ao homem, desde que se torne radical. Ser radical é atacar o problema em suas raízes. Nesse sentido, concebendo a crítica como parte do exercício de formulação teórica – conforme já mencionado –, destaco que sua “força material”, embora perpasse pela crítica a aspectosmais aparentes dos processos sociais gestados pela realidade, não se encerra nisso. Se a nós não interessa a teoria que se ocupa tão somente de “descrever” os fenômenos da realidade, de pouco serve também a “crítica pela crítica” – a crítica como um fim em si mesma. Por isso, a força a que aqui se fez menção vai, precisamente, de encontro à crítica aos fundamentos dos referidos processos, como pressuposto para uma profunda – ou radical – transformação da realidade. É certo que essa transformação não ocorrerá sem ser sobre os escombros de um velho mundo deixado para trás – que em sua vigência nos dá vários motivos não apenas para negá-lo, como para destruí-lo; porém, tampouco se fará factível sem que se projete – e forje – o novo, desde já. As sucessivas derrotas e “andadas em círculos” do movimento pela educação – como tantos outros – nos mostram que encampar o novo, a mudança societária, não condiz com uma repaginação do status quo . É, então, do lugar de alguém que testemunha essas (previsíveis) derrotas com “o pessimismo da razão e o otimismo da vontade”, que trago 14 à luz uma breve pesquisa que se propõe a examinar algumas das contribuições concretas para essa construção do mundo novo – o mundo socialista. Mais precisamente, são essas contribuições concretas aquelas fomentadas na esfera educacional, sobre o solo fecundo da mais avançada experiência de libertação da classe trabalhadora. Para tanto, será analisada a obra do educador soviético Moysey M. Pistrak, Fundamentos da Escola do Trabalho (2018), em que o autor – à luz do período pós-Revolução Russa – discorre acerca da empreitada histórica de voltar a escola para a formação de sujeitos capazes de edificar a nova sociedade – a sociedade socialista. Através dessa breve análise, pretende-se não propor uma espécie de “fórmula” ideal de sistema educacional a ser defendido; mas, sim, resgatar e apreender elementos que insuflam uma reflexão crítica capaz de submeter a educação àquilo que deve estar submetido o próprio movimento geral da classe trabalhadora: a realização da plena emancipação do gênero humano. Como Iasi (2013, p.80) bem orienta, Nossa tarefa, então, é construir as mediações que permitam que a consciência como possibilidade objetiva de um sujeito histórico se transforme em força material e se apodere das massas elevando sua consciência imediata ao nível de uma consciência revolucionária, ou como afirmou Che Guevara, quando o extraordinário se torna cotidiano é a revolução. Mas, o que fazer numa circunstância onde percebemos a necessidade da revolução, ela não é possível? Preparar as condições que a tornem possível. Eis nossa tarefa. Façamos, então, a nossa tarefa – não só factível, como urgente. Por conseguinte, busquemos a aproximação entre teoria e prática enquanto motor dessa tarefa – que é ao que se propõe o presente trabalho. Desenvolvendo tal proposta interligada com o objeto, faremos no próximo capítulo uma análise sobre os fundamentos da escola do trabalho, onde serão tratados desde seus aspectos gerais até suas características mais eminentes – de maneira mais aprofundada –, passando pelo contexto histórico que oferece o nosso objeto de análise – bem como a biografia do autor da obra estudada. Em seguida, no terceiro capítulo, procederemos com algumas reflexões que buscam identificar o nexo dos elementos abordados com a nossa atualidade. Por fim, partiremos para as considerações finais. 15 2 ANÁLISE SOBRE OS FUNDAMENTOS DA ESCOLA DO TRABALHO 2.1 Contexto e biografia de Pistrak – antecedentes históricos Remontar a obra de Pistrak – e suas respectivas contribuições para a educação – se trata de uma tarefa indispensável ao engajamento no debate educacional e, ao mesmo tempo, um exercício que extrapola o tema em foco. A bem da verdade, é no mínimo limitante – quando não desonesto – o movimento comum de analisar um pensador de modo apartado do chão histórico em que germinou seu pensamento. Embora Marx (2011) assinale que a história, ainda que feita pelos homens, não o é segundo sua livre e espontânea vontade, mas sim sob circunstâncias transmitidas em sua própria época, tal observação não deixa de ser verdadeira quando trazida para o contexto de experiências que inspiram a dilatação de possibilidades históricas. Dessa maneira, analisar as contribuições teórico-práticas de Pistrak nos induz, necessariamente, à reconstituição, ainda que parcial, do processo histórico em que é forjada sua atividade intelectual e orgânica. Moisey Mikhailovich Pistrak (1888-1937) 4 consagrou-se como um dos expoentes da construção da escola soviética, ao longo das duas primeiras décadas dessa empreitada. Valiosa contribuição trouxe, neste período, M. M. Pistrak, o qual dirigiu a instituição de ensino-educativa Escola-Comuna P. N. Lepeshinskiy. Generalizando a experiência desta escola, M. M. Pistrak tem uma série de trabalhos: Problemas atuais da escola soviética contemporânea; Escola-Comuna do NarKomPros, e outros (KOROLEV e SMIRNOV, 1961 apud PISTRAK, 2013. p. 16) 5 Doutor em Ciências Pedagógicas, professor e membro do Partido Comunista desde 1924, teve destacado envolvimento também na elaboração da pedagogia marxista na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), caracterizado por uma aguçada simbiose entre o conhecimento teórico e a intervenção prática. Sob esse critério – de orientar a prática com o que há de mais avançado na teoria e desenvolver a teoria com as lições extraídas da prática –, Pistrak conduziu importantes trabalhos no NarKomPros 6 de 1918 até 1931, incluindo a organização das Escolas-Comunas – uma das quais, ele próprio, dirigiu durante cinco anos, que foi a supracitada Escola-Comuna P. N. Lepeshinskiy 7 . A respeito disso, é preciso compreender a dimensão da tarefa que se colocava à frente de educadores da geração de Pistrak, e que se reflete na profundidade de suas contribuições. 7 Uma das mais exitosas escolas-comunas, referida também como “Escola-Comuna do NarKomPros''. 6 Comissariado do Povo para a Educação na União Soviética. 5 Nota da edição, por Luiz Carlos de Freitas (professor titular da Faculdade de Educação da Unicamp). 4 Ver Pistrak (2013, p. 16), Pistrak (2018, p. 9). 16 Em 1917, a Rússia era palco de um dos processos históricos que mudaria – para sempre – o curso da humanidade: a revolução socialista de outubro. Consolidava-se a vitória bolchevique no desenvolvimento da Revolução Russa, tanto contra o czarismo quanto contra o enfraquecido regime democrático-burguês que havia assumido o caráter da primeira fase revolucionária (a Revolução de Fevereiro). Contudo, essa estava longe de ser “a luta final”. O proletariado russo saúda a revolução com este grito que é o grito ecumênico do proletariado mundial. Grito das multidões, de combate e esperança (...) Toda a emoção de uma época está nele. As multidões revolucionárias acreditam libertar a luta final. Libertam-na verdadeiramente? (...) Trata-se, efetivamente, da luta final de umaépoca e de uma classe. O progresso – ou o processo humano – se cumpre por etapas. (...) O homem chega para partir de novo. (...) Nenhuma revolução prevê a revolução que virá depois, ainda que suas entranhas tragam seu gérmen. (...) O proletário revolucionário, portanto, vive a realidade de uma luta final. A humanidade, no entanto, do ponto de vista abstrato, vive a ilusão de uma luta final. (PAHIM, 2021, p. 32) 8 Tal vitória, sem esgotar a tarefa histórica de emancipação da classe, na verdade assentava um novo terreno de lutas; terreno esse arado pela marcha potente do poder proletário, ao mesmo tempo que cindido por condições adversas engendradas no mesmo momento histórico. Uma vez deflagrada a revolução socialista de outubro, imediatamente uma guerra civil se abateu sobre a Rússia durante um período de quatro anos: estava em jogo a consolidação do socialismo no país – dirigida pelo Partido Bolchevique – contra o estabelecimento da contrarrevolução – intentada pelas forças do Exército Branco. Em um país já assolado pelo empobrecimento remanescente da época czarista, o conflito não poderia ter outro efeito que não um cenário de terra arrasada, como nos é descrito na introdução a Pistrak (2013) 9 : A situação é extremamente precária. A guerra civil, a fome e a destruição estão por todo o país. A parte reacionária do magistério, liderada pelo Sindicato dos Professores da Rússia da época tsarista está em greve. Os revolucionários que atuam no campo educacional, entretanto, tomam de imediato as medidas organizativas necessárias para se começar a pensar um novo sistema educacional e uma nova escola. Como dirá N. C. Krupskaya (Pistrak, 1924), tudo o que sabiam é que a velha escola tsarista-verbalista não lhes servia nesta nova caminhada. Para os revolucionários, a ofensiva contrarrevolucionária não sugeria a sentença de uma derrota rumo ao restabelecimento da antiga ordem social; mas, sim, a complexificação dos desafios para o desenvolvimento da então embrionária sociedade socialista; uma sociedade que quanto mais infunde nas massas trabalhadoras uma nova consciência, convertendo-a em participação ativa na cadeia de transformações societárias encetadas pela 9 Nota da edição, por Luiz Carlos de Freitas (professor titular da Faculdade de Educação da Unicamp). 8 Texto A Luta Final , publicado originalmente na revista Mundial em 20 de março de 1925. Retirado de Textos escolhidos: marxismo, política e questão indígena / Mariátegui (2021). 17 revolução social, mais solidifica seu êxito baseado na “reciprocidade mutuamente benéfica entre os indivíduos e sua sociedade” (MÉSZÁROS, 2008, p. 81). Uma vez que tal compreensão mobiliza todas as esferas da vida social, não à toa a tarefa acolhida pelos educadores revolucionários – no campo específico de sua atuação – é captada no substrato da reflexão lançada por Lênin (1978) justo no período seguinte à Revolução de que foi principal dirigente 10 , quando afirma que a tarefa principal do proletariado e do campesinato por ele guiado é, em toda revolução socialista – e consequentemente também na revolução socialista começada por nós na Rússia a 25 de Outubro de 1917 – o trabalho positivo ou construtivo de organização de uma rede extraordinariamente complexa e delicada de novas relações de organização que abarquem a produção e a distribuição planificada dos produtos necessários à existência de dezenas de milhões de pessoa. Tal revolução só pode ser realizada com êxito com a actividade criadora histórica independente da maioria da população e, em primeiro lugar, da maioria dos trabalhadores. 11 Para o líder bolchevique, essa tarefa constitui o elemento-chave de diferenciação entre uma revolução socialista e as revoluções anteriores de caráter burguês, nas quais o que ele chama de “trabalho positivo ou construtivo de organização” (da nova sociedade) era realizado por uma minoria possuidora e burguesa, ao passo que à maioria trabalhadora era estreitamente designado o “trabalho negativo ou destruidor” – de aniquilamento da ordem feudal. Dessa destruição, abre-se lugar para novas formas de sociabilidade, porém essas formas se desenvolvem sem nenhuma correspondência à atividade criadora e auto-consciente dos trabalhadores, ao contrário: conforme Lênin ( 1978 ) bem observa, a sociedade capitalista se expande de maneira anárquica, tendo como principal força organizadora o mercado e seu crescimento espontâneo. A essa forma de sociabilidade, profundamente caracterizada pela alienação da maioria trabalhadora dos processos sociais, opõem-se os revolucionários que encampam a construção de uma sociedade efetivamente emancipada. Diante disso, a força da alternativa revolucionária ao capital reside não apenas na capacidade de derrotar militarmente a classe exploradora, mas também de organizar a produção e reprodução social da vida. Na sequência do mesmo pensamento anteriormente exposto, Lênin não apenas menciona a importância do 11 Trecho do texto As Tarefas Imediatas do Poder Soviético , originalmente publicado a 28 de Abril de 1918 no n° 83 do Pravda e no suplemento ao n° 85 do Izvéstia Vtsik. Traduzido pelas Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine , 5.ª ed. em russo, e publicado em português em Obras Escolhidas em Três Tomos , 1978, Edições Avante! — Lisboa, Edições Progresso — Moscovo. Texto e informações retirados em < marxists.org/portugues/lenin > Acesso em: 07 de jun. de 2022. 10 A Revolução de Outubro. 18 https://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/04/26.htm convencimento da maioria da população acerca da legitimidade do programa e da tática defendidos pelo partido bolchevique, como ainda discorre: Pela primeira vez na história mundial, um partido socialista conseguiu concluir, nos seus traços principais, a obra da conquista do poder e de esmagamento dos exploradores, conseguiu abordar a tarefa da administração. É necessário que nos mostremos dignos cumpridores desta dificílima (e muito grata) tarefa da revolução socialista. E necessário refletir que para administrar com êxito é preciso, além de saber convencer, além de saber vencer na guerra civil, saber organizar praticamente. Esta tarefa é a mais difícil, pois trata-se de organizar de um modo novo as bases mais profundas, as econômicas, da vida de dezenas e dezenas de milhões de pessoas. E esta é a tarefa mais grata, pois unicamente depois de a resolver (nos seus traços principais e fundamentais) se poderá dizer que a Rússia se tornou não só uma república soviética, mas também socialista. Ante ao que é referido como “administração” – e seus desdobramentos subjacentes –, faz-se necessário reafirmar o que foi abordado linhas atrás, frisando o fio condutor dessa que o próprio Lênin descreve como “dificílima e grata tarefa”, vital à continuidade da revolução: a agência ativa da classe trabalhadora – enquanto sujeito protagonista do processo revolucionário – nas mudanças societárias em curso. Essa agência, naturalmente, deve incorporara responsabilidade social de uma época, que aqui especificamente trata-se de assegurar a vitória do socialismo sobre o capital; e deve, também, conformar-se pela elaboração consciente dos sujeitos sobre os processos sociais de que são parte, estabelecendo, assim, a reciprocidade de que fala mesmo o autor contemporâneo István Mészáros (2008, p. 75), quando argumenta que os indivíduos sociais podem contribuir de maneira ativa para a realização das tarefas e desafios dados, e com isso para a significativa transformação de sua sociedade, e, ao mesmo tempo, por outro lado, são conformados de um modo significativamente internalizável, no curso das mudanças alcançadas. Com efeito, eles mesmos são também legitimamente conformados por sua própria consciência positiva do significado dos desenvolvimentos em progresso, percebendo corretamente sua parte ativa neles. Claro que essa é uma constatação pertinente aos dias de hoje, porém não menos provocada pelo acúmulo de experiências passadas – que, aliás, subjazem objetivos comuns com a atualidade. Portanto, trazendo novamente o enfoque no contexto dos anos seguintes à Revolução Russa, tal constatação poderia ter descrito o desafio em que se concebe a tarefa abraçada pelos educadores socialistas – dentre esses, Pistrak. Essa tarefa, mais precisamente, se apresenta na criação de um novo sistema educacional para a Rússia: o Comissariado Nacional da Educação, ou NarKomPros, que substitui o antigo “Ministério da Educação” da época czarista. Responsável não apenas pela educação, mas por toda a vida cultural, o referido órgão soviético foi fundado em 26 de outubro de 1917, e logo em 1918 – em ocasião da I 19 Sessão dos Professores Internacionalistas – tem-se o anúncio por P. N. Lepeshinskiy 12 da criação das Escolas Experimentais-Demonstrativas, dentre as quais incluíam-se as Escolas-Comunas – instituições cujo cerne era “resolver a questão prática de elaborar a nova pedagogia e a escola do trabalho” (PISTRAK, 2013, p. 12) 13 . Tinham como finalidade, essas escolas, criar – coletivamente – novas formas e conteúdos escolares a serem adotados nas escolas regulares de massa. É, portanto, no bojo da realização dessa grandiosa tarefa impulsionada pelo socialismo nascente, que jorram as contribuições a serem a seguir analisadas – de um educador que se confunde intimamente com seu tempo, e por isso mesmo exprime a grandeza de sua tarefa histórica. 2.2 Aspectos gerais da escola do trabalho soviética Conforme dito anteriormente, M. M Pistrak se forja como um educador que se confunde intimamente com seu tempo – assim como se confundem as ações que derivam de esforços seus e coletivos, reunidos sob a tarefa de reconstruir a educação na Rússia. À vista disso, extraímos de sua época não apenas o contexto, mas os próprios fundamentos daquilo que se constitui como carro-chefe da sua atividade enquanto educador: a escola do trabalho. Uma vez que a escola, em qualquer sociedade, “sempre foi, e não poderia deixar de ser, reflexo de seu tempo” (PISTRAK, 2018, p. 39), sob esse tempo repousam imperativos determinados que corresponderão à própria forma e conteúdo da escola – imprimindo, sobre ela, finalidades que, como o próprio Pistrak bem destaca, não são finalidades absolutas, perenes e associadas à promoção de uma subjetividade abstrata; tampouco são finalidades que se encerram, inerentemente, no desenvolvimento das ciências da pedagogia e psicologia sobre as crianças. Entretanto, sem retirar a validez dessa observação, não é isso que a educação formal burguesa permite-se revelar; do contrário, não teria êxito em sua tarefa de “produzir conformidade ou ‘consenso’ quanto for capaz” (MÉSZÁROS, 2008, p. 40), estabelecendo a dominação de classe em um âmbito imprescindível à reprodução ideológica da sociedade – que é a educação. Assumindo que “as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes” (ENGELS e MARX, 2007, p. 47), 13 Nota da edição, por Luiz Carlos de Freitas (Professor titular da Faculdade de Educação da Unicamp). 12 Membro do NarKomPros. 20 Não é surpreendente, pois, que o desenvolvimento tenha caminhado de mãos dadas com a doutrinação da esmagadora maioria das pessoas com os valores da ordem social do capital como a ordem natural inalterável, racionalizada e justificada pelos ideólogos mais sofisticados do sistema em nome da ‘objetividade científica’ e da ‘neutralidade de valor’. As condições reais da vida cotidiana foram plenamente dominadas pelo ethos capitalista, sujeitando os indivíduos – como uma questão de determinação estruturalmente assegurada – ao imperativo de ajustar suas aspirações de maneira conforme, ainda que não pudessem fugir à áspera situação da escravidão assalariada. (MÉSZÁROS, 2008, p. 64) Se a escola, sozinha, não é responsável por fixar esse consenso, tampouco se desvincula da superestrutura ideológica de uma sociedade; exerce, portanto, papel fundamental na infusão de determinados valores e concepções – que afinam-se a relações sociais engendradas sobre bases materiais específicas. Enquanto que para a escola burguesa – que é orientada para atuar como uma força mistificadora da realidade – tal discussão passa longe de ser colocada, para a escola do trabalho – no período de transição 14 – essa será uma das questões-chave para a sua fundamentação. Uma vez que a escola jamais estará apartada da realidade social – e aquilo que a caracteriza em determinado tempo histórico –, resta definir de que modo a escola se apropria da realidade em sua própria direção. Nessa esteira, e a partir da interrogação “O que é a escola do trabalho?” – em referência à escola do trabalho soviética –, Pistrak (2018) é categórico quando afirma que, em uma sociedade de classes 15 intrinsecamente atravessada pelos interesses distintos das classes antagônicas, desvelar esses interesses significa pôr em relevo os problemas da vida – sendo esses manifestações da luta de classes. Sob a ditadura do proletariado, deve-se, portanto, esclarecer o caráter de classe da escola, junto ao qual esclarece-se também “a tarefa social da classe vencedora, ou seja, a tarefa de educar as massas e assegurar o êxito da consolidação das conquistas e realizações revolucionárias” (PISTRAK, 2018, p. 40); a escola, então, enquanto parte constitutiva da superestrutura, se inscreve nessa tarefa, sendo habilitada como instrumento da nova classe dirigente. À luz do questionamento disparador anteriormente apresentado – O que é a escola do trabalho? –, é válido fazer a inferência preliminar de que a tarefa social de “consolidação das conquistas e realizações revolucionárias” delineia aquilo em que consiste a escola do trabalho soviética. Contudo, há de se ter em vista, ainda, que a supracitada tarefa exprime a contradição sobre a qual se realiza a construção de uma nova ordem societária: ao mesmo tempo em que esse novo ordenamento irrompe-se como umaalternativa revolucionária, 15 Importante destacar que o socialismo não elimina de imediato a divisão da sociedade em classes sociais, mas sim constitui a etapa de transição entre o capitalismo e a sociedade sem classes (comunismo). Portanto, permanecem as disputas e contradições entre as classes antagônicas, porém sob a hegemonia do proletariado. Ver LÊNIN, Vladimir I. O Estado e a revolução. São Paulo: Boitempo, 2017. 14 A escola do trabalho soviética. 21 cavando a superação da velha sociedade, é ineliminável que seu desenvolvimento transcorra sobre a herança antiga – defrontando-se com traços residuais da mesma sociedade que tenciona, continuamente, destruir. Se essa destruição pressupõe, concomitantemente, a criação de uma nova sociabilidade que se sintoniza com a formação de um novo sujeito (e, portanto, de uma nova cultura), É preciso ter isso em conta quando falamos (...) da cultura proletária. Jamais poderemos resolver este problema se não compreendermos com clareza que somente o perfeito conhecimento da cultura criada pela humanidade no curso de seu desenvolvimento e sua transformação permitirão criar uma cultura proletária. A cultura proletária não surge de fonte desconhecida, não é uma invenção dos que se proclamam especialistas nesta matéria. (...) A cultura proletária tem de ser o desenvolvimento lógico do acervo de conhecimentos conquistados pela humanidade sob o jugo da sociedade capitalista, da sociedade latifundiária, da sociedade burocrática.” (LÊNIN, 2015, p. 18) Essa compreensão, ilustrada por Lênin, é também sugerida por Pistrak (2018), ao pensar a escola do trabalho soviética como uma instância cujo desenvolvimento não rejeita integral e aprioristicamente os ideais de escola dos pedagogos reformistas burgueses – ou dos embriões das escolas do trabalho da Europa ocidental e América –, mas que, sim, representa um certo ligamento a esses ideais, na mesma proporção em que o regime burguês e a revolução proletária ligam-se pelo movimento dialético de uma se constituir pelas próprias condições determinadas pelo outro. Nas palavras exatas do autor, continuidade aqui se pode falar apenas na mesma medida em que existe continuidade entre o regime burguês e a revolução proletária. Da mesma forma que o novo regime é gestado nas entranhas da velha sociedade como sua (da sociedade) contradição interna, assim também a nova escola pode ser ligada até com as melhores escolas antigas pela continuidade dialética, revolucionária. (PISTRAK, 2018, p. 41) A proposta que deságua nessa “continuidade dialética” não é, portanto, de reproduzir ou conservar acriticamente os mesmos postulados da pedagogia burguesa; mas, sim, de submeter algumas das ideias e metodologias – herdadas dessa pedagogia – às finalidades da nova escola . No que se refere a tais finalidades, essas, assim como o conteúdo e a forma organizativa da escola nascente, encontrarão na construção revolucionária sua própria matéria, visto que, como Pistrak (2018, p. 41) acentua, pensar a nova escola a partir das ideias e métodos da pedagogia burguesa (por exemplo, a questão do trabalho, da auto-organização) exige um novo colorido, uma nova interpretação e, portanto, estas ideias e métodos devem partir de novas finalidades educativas, e tais finalidades, em essência, resultam inteiramente das tarefas e finalidades da própria construção revolucionária. Isto é, sob a interpretação que deriva dessa construção e sua realidade circundante, são assimiladas algumas terminologias e formas exteriores da escola burguesa; a partir disso, as mediações tecidas no âmbito da escola – constituindo seu próprio esqueleto – o são em 22 compasso com os objetivos da referida construção revolucionária em desenvolvimento. Assim é que se coloca a virada de chave para a escola do trabalho soviética, aspirante ao socialismo. Essa aspiração, por sua vez, conduz necessariamente à formação de um novo sujeito, o qual “se reconheça (...) como membro de um coletivo internacional" (PISTRAK, 2018, p. 41); ou seja, como membro da classe operária, a como se refere o autor, que complementa: “a classe operária em luta contra o regime agonizante e por uma vida nova, por uma nova ordem social na qual não haverá divisão em classes sociais.” ( ibidem ) É correto afirmar, portanto, que a formação de um novo sujeito – aqui preconizada – transborda o estágio de consciência intermediário, caracterizado pela mera identificação de uma massa de indivíduos que reconhecem em si uma classe distinta e subordinada ao capital; nesse caso, o processo incipiente de negação do status quo tropeça nos limites de ações pontuais que, embora exprimam uma importante organização coletiva – baseada nos interesses mais imediatos da classe explorada –, não extrapolam a ordem vigente do capital – mas reafirmam-a, ao passo que também a negam. Assim, reconhecer-se e afirmar-se enquanto membro da classe operária não expressa, necessariamente, o mais elevado nível de consciência; contudo, pode abrir uma uma passagem fecunda para o desenvolvimento da consciência revolucionária – ou consciência para si – que, por seu turno, podemos dizer que se confunde com a própria formação do novo sujeito. Sob essa forma de consciência, constitui-se o movimento de a classe operária “conceber-se não apenas como um grupo particular com interesses próprios dentro da ordem capitalista, mas colocar-se diante da tarefa histórica da superação desta ordem” (IASI, 1999, p. 38), o que vai de encontro à maneira como a escola do trabalho é sintetizada Pistrak (2018, p. 41): Concretamente, o trabalho consiste em que a nova geração compreenda, em primeiro lugar, em que está a essência do processo de luta que se apodera da humanidade; em segundo, que lugar a classe oprimida ocupa nesta luta; em terceiro, qual lugar deve ser ocupado por cada adolescente nesta luta; e em quarto, saber conduzir esta luta em seu próprio espaço e, ao desembaraçar-se dela, saber ocupar seu lugar na construção do novo edifício. Precisamente, tal colocação revela o objetivo vital da escola do trabalho: infundir uma nova consciência que seja, simultaneamente, produto e combustível das transformações sociais em curso – que, por seu turno, se conectam com a escola. Mas como alcançar esse objetivo, tão claro e ao mesmo tempo tão complexo? Uma vez que a escola se propõe – ou assume se propor – a atender objetivos determinados pela própria realidade social, como criar, em suas estruturas internas, mediações capazes de responder a esses objetivos? É nesse sentido que Pistrak (2018, p. 41) compreende que, em sintonia com as finalidades da 23 educação comunista, a escola deve ser orientada por ideias sociopedagógicas claras; por isso, assinala dois aspectos que estariam na base da escola do trabalho em seu respectivo período: a ligação com a atualidade e a auto-organização dos estudantes . A respeito da auto-organização, nos deteremos mais adiante. Quanto à atualidade, compreendamos sua colocaçãoenquanto um dos aspectos gerais da escola do trabalho: para esta, a atualidade não é tão somente um objeto de estudo; mas, sim, a síntese de um processo histórico que convida a escola a uma educação combinada com a intervenção ativa nessa mesma atualidade. No que consiste o processo histórico em questão, já sabemos que se trata da revolução social; ainda assim, retomemos esse contexto através das palavras de Pistrak (2018, p. 42), ao resumir a atualidade enquanto o imperialismo em sua última fase e o poder soviético como ruptura no front do imperialismo, como brecha na fortaleza do capitalismo mundial. (...) A atualidade deve ser compreendida como luta que se trava na brecha que foi aberta; toda esta luta será ampliada, exacerbada e crescerá enquanto a vitória não vem pela revolução. É claro para o autor que a atualidade, em seu tempo, manifesta o confronto aberto entre dois projetos societários antagônicos: um que representa “fragmentos do passado no presente”, enquanto o outro é anunciado pela “luta contra este passado, de transformação da vida na direção da liquidação deste passado” (ibidem, p. 43). Em face disso, Pistrak afirma o papel da escola já mencionado, de não apenas se ocupar do estudo da atualidade, mas de “penetrar na atualidade e familiarizar-se com ela, transformá-la ativamente” ( ibid. ). Para tanto, é necessário que a atualidade conflua com a escola de maneira organizada, o que, por sua vez, se inscreve no trabalho formativo da escola ( ibid .). Destarte, a colocação sobre a atualidade põe em relevo a própria natureza do trabalho formativo da escola; e sobre essa natureza, Pistrak formula algumas deduções que permitem identificar, em linhas gerais, os aspectos mais eminentes da escola do trabalho. A primeira deduçã o tange ao conteúdo do trabalho educativo. Uma vez que a atualidade reposiciona a escola ante às mudanças da vida social, é certo que o seu conteúdo – enquanto ilustração da realidade e seus fenômenos constituintes – não passa intacto por esse reposicionamento. Tal direção exige, conforme pontua Pistrak (2018, p. 43), uma “revisão de todo o conteúdo do trabalho pedagógico”, mobilizando, portanto, todas as áreas de conhecimento – às quais devem ser incorporadas as disciplinas e dados os enfoques necessários à apreensão da atualidade. Também está submetida a esse propósito premente – o da apreensão da atualidade – a segunda dedução : esta, por sua vez, concerne aos métodos de estudo do material educativo e das questões da educação. Conforme já dito anteriormente, não interessa à escola do trabalho 24 apenas estudar a atualidade, ter sobre ela um conhecimento em si mesmo; mas, sim, ter domínio dessa atualidade – conjugando o conhecimento com a incidência ativa de novos sujeitos. E, para tanto, a abordagem fragmentada – em que consiste os métodos antigos de ensino – é insuficiente. Nessa esteira, a necessidade de elaborar um novo arcabouço metodológico parte da seguinte preocupação em Pistrak (2018, p. 45): É preciso tomar os fenômenos em suas relações mútuas, nas interações e dinâmica; é preciso demonstrar que os fenômenos da atualidade são parte essencial de um mesmo processo histórico geral de desenvolvimento; é preciso esclarecer a essência dialética do meio que nos cerca. Esse raciocínio ganha corpo no sistema de complexos, que pressupõe a “unificação do ensino ao redor de grupos e fenômenos como objetos de estudo” ( ibidem ). Assim, a busca por um método de ensino unificado, na escola do trabalho, liga-se ao propósito de não apenas “transmitir” o conhecimento – ou fragmentos do conhecimento –, mas tornar inteligível a síntese de múltiplas determinações que processam a realidade – isto é, o concreto que consiste na unidade da diversidade, da qual nos fala Marx (2011). Para a escola do trabalho, tal percurso interpretativo tem sua importância à medida que conduz, de forma clara e consciente, à finalidade que Pistrak (2018, p. 46) reiteradamente coloca: “estudar a atualidade do ponto de vista da revolução social; para educar os que lutam pelos ideais da classe operária e os construtores da futura sociedade.” Nesse sentido, orientado pela necessidade de unir o conhecimento à prática, o estudo, que aqui é “o estudo da dinâmica, mutabilidade e interação dos fenômenos” ( ibidem ) condensados em um processo histórico, se defronta com um outro problema: a bifurcação do ensino entre sua assimilação passiva ou ativa. Diante disso, Pistrak ( ibid. ) assinala a “necessidade de aplicação dos princípios de pesquisa ao trabalho” – no lastro dos novos caminhos que a escola busca clarear. Dentre as indicações que iluminam esses novos caminhos, está aquela que nos introduz à terceira dedução : a indissociabilidade entre educação e ensino, bem como os fundamentos e desdobramentos dessa indissociabilidade. Se chega a ser uma constatação trivial a conjunção entre essas duas dimensões do trabalho da escola, é preciso, também, que o pensamento pedagógico se aproprie daquilo que unifica tais dimensões – que nada mais é do que a finalidade social comum a ambas (PISTRAK, 2018). Mais uma vez, voltemos à atualidade enquanto “matéria-prima” dessa finalidade social, inscrita no trabalho da escola. A abordagem da escola sobre a atualidade pode enveredar-se por dois caminhos: aquele que se reporta à atualidade como um objeto externo de estudo (PISTRAK, 2018), sem estabelecer a sua relação recíproca com a escola – e assim 25 reduzindo o trabalho formativo a um ensino livresco; ou aquele em que a escola assume sua posição, recepcionando “a tarefa de identificar-se como parte desta atualidade ” (ibidem , p. 47) que, por sua vez, é colocada para cada estudante. Isto é, é colocada uma vez que a escola empreende o trabalho de educar os estudantes sob o direcionamento que se situa na seguinte questão: “Que lugar eu, estudante, devo ocupar na atualidade, na luta entre a reação e a revolução, entre o velho e o novo?” ( ibidem ). Certamente, esse não é um questionamento descolado da totalidade social, tampouco cuja resposta se localiza em um âmbito individualizante. É um questionamento que se encontra com a formação consciente de novos sujeitos que são, antes de mais nada, sujeitos coletivos – e dirigidos por interesses coletivos. Mas, claro, é impensável o êxito desses interesses coletivos sem a compreensão dos processos sociais que os germinam; e sem, portanto, o engajamento ativo de sujeitos na realização desses interesses, à medida que os compreendem e com eles se identificam. Pistrak (2018, p. 47) não hesita em responder, preliminarmente, à pergunta sobre qual deve ser o lugar de cada estudante em sua atualidade, já descrita pelo embate agudo entre dois projetos societários antagônicos: O proletariado mundial se arma para a luta. O trabalhador e o camponês russos seguram em um braço o fuzil para defender suas conquistas, as quais, em última análise,são conquistas da revolução mundial, e em outro, a foice e o martelo para a lenta e obstinada reconstrução e recriação do que foi destruído e a construção do novo. (...) Cada estudante deve tornar-se um lutador e um construtor. Esse processo de “tornar-se um lutador e um construtor” mobiliza a escola do trabalho em todos os seus aspectos que foram, aqui, expostos em linhas gerais. Amarrando essas considerações acerca do trabalho educativo, Pistrak (2018) conclui, resumidamente, que: o conteúdo é o instrumento de luta e criação; os métodos de trabalho e organização do conhecimento são as mediações para o manejo desse conteúdo na prática; e as tarefas de ensino no trabalho educativo consistem na canalização do conhecimento para a convicção ativa. Tais considerações sedimentam a base para resoluções de problemas ante à escola, bem como para formulações mais aprofundadas sobre o trabalho educativo na escola do trabalho; formulações essas que compõem a tríade atualidade, trabalho e auto-organização (PISTRAK, 2018), a respeito da qual trataremos com mais alguns detalhes a seguir. 2.3 O trabalho na escola 26 No tópico anterior, pudemos fazer um apanhado introdutório de aspectos gerais que figuram a essência da escola do trabalho. Neste tópico, daremos enfoque a alguns desses aspectos, à medida que considerados relevantes para a reflexão acerca das contribuições da escola do trabalho e do pensamento de Pistrak para a atualidade – sem, certamente, esgotar a densidade de sua obra, tendo em vista os limites e a proposta do presente escrito. Uma vez analisando a escola do trabalho, é fundamental que partamos da seguinte colocação do problema: de que modo a questão do trabalho é formulada no âmago da escola? Guiada pela busca da síntese entre trabalho e ciência (PISTRAK, 2018), tal formulação exige que se defina um princípio comum e, decorrente disso, se estabeleça a complementaridade entre essas duas linhas do trabalho pedagógico: o trabalho e o ensino. Dessa maneira, a premissa soviética de educar pelo trabalho social ( ibidem ) pretende diferenciar-se de outras escolas que também incluem o trabalho em sua prática pedagógica, porém de modo que o “tomam (...) em sua forma abstrata, o trabalho em si mesmo, isto é, retiram do trabalho sua parte mais importante, que o une inseparavelmente com a atualidade” ( ibidem , p. 67). Tal premissa é criticada por Pistrak, quando, inclusive, faz um paralelo com a indissociabilidade entre a própria escola e a realidade, que seria equivalente à indissociabilidade que o autor identifica em relação ao trabalho perante a escola: Assim como é impossível imaginar uma escola soviética fora da vida, isolada em si, e situada nas condições ideais, digamos, de uma ilha desabitada, também é impossível tomar o trabalho de outra forma na escola, que não seja (...) como parte do trabalho social. (PISTRAK, 2018, p. 68) Portanto, combater esse movimento de apartar o trabalho “da atualidade” – ou da realidade – pressupõe, por sua vez, a compreensão do trabalho não enquanto uma atividade isolada, mas como uma “atividade necessariamente coletiva” (NETTO, 1994, p. 35) que constitui a principal instância criadora da própria realidade (ver Lessa, 1999). Essa compreensão, que irremediavelmente amarra o trabalho à atualidade, procede na análise de Pistrak (2018, p. 68-69), quando elucida que por atividade de trabalho, aqui se entende não o trabalho geral das pessoas 16 , o gasto da energia muscular e nervosa das pessoas, mas a atividade racional socialmente 16 “Todo o trabalho é, por um lado, dispêndio, no sentido fisiológico, de força humana, e é nesta qualidade de trabalho igual, [abstrato] que ele constitui o valor das mercadorias. Todo trabalho é, por outro lado, dispêndio da força humana sob esta ou aquela forma produtiva, determinada por um objeto particular, e é nessa qualidade de trabalho concreto e útil que ele produz valores-de-uso ou utilidades. Tal como a mercadoria tem, antes de tudo, de ser uma utilidade para ser um valor, assim também o trabalho tem de ser, antes de tudo, útil, para ser considerado dispêndio de força humana, trabalho humano, no sentido abstrato do termo.” Marx, K. O Capital , Vol. I, Tomo I, Cap. 1, Seção 2: Duplo Caráter do Trabalho Representado na Mercadoria. 27 necessária que determina as relações sociais das pessoas. Em outras palavras, o trabalho aqui é tomado em seu valor social (...) isto é, como base para a vida e desenvolvimento da sociedade humana. Sublinhando essa premissa de unificar trabalho e ensino – tomada pela unidade entre trabalho, atualidade e escola –, Pistrak confronta os limites do próprio GUS 17 , quando seu programa, ao tratar do trabalho nas escolas, se refere apenas ao estudo da atividade de trabalho das pessoas – isto é, dos adultos fora da escola (PISTRAK, 2018). Para o autor, a educação pelo trabalho deve interligar três eixos: o estudo da atividade de trabalho “externa” à escola; a participação das crianças em alguma atividade de trabalho; novamente o estudo, agora sobre essa participação das crianças na atividade de trabalho. ( ibidem ). Percebe-se, nesse raciocínio, uma preocupação em ensejar não apenas a aproximação dos estudantes com o trabalho, mas a apropriação , pelos estudantes, do trabalho, condição para que essa seja tomada como uma atividade autoconsciente e auto-realizadora – e que se materialize como fio condutor da relação entre a escola e a atualidade. Combinando o estudo sobre atividades de trabalho com a participação direta nessas atividades, é possível colocar tal questão fundamental – do trabalho na escola – nos termos em que trabalho e ciência – ou trabalho e ensino – se tornem partes orgânicas do cotidiano escolar, familiares à vida social das crianças (PISTRAK, 2018); preconiza-se, assim, superar quaisquer pressupostos de uma relação mecânica – e, portanto, estéril – entre trabalho e ciência. Logicamente, esse trabalho deve ser adaptado às especificidades das crianças – ao mesmo tempo que às finalidades escolares. São indicados, a partir disso, alguns tipos de trabalho; dentre esses, o autosserviço. Em que pese algumas ressalvas de Pistrak em relação a como esse tipo de trabalho é, por vezes, aplicado à escola (ver PISTRAK, 2018), o educador acentua a importância da atividade para a infusão de um “novo modo de vida”. Isto é, ele busca examinar o autosserviço como algo basilar para o desenvolvimento de uma nova etapa do modo de vida cultural ( ibidem ), que, dentro de sua particularidade, traduz a luta geral pela superação de hábitos tão antigos quanto deletérios à dignidade humana. O cerne desse pensamento pode ser captado na conexão que Pistrak faz entre o autosserviço pessoal – enquanto cuidado com a higiene, com o corpo e com pertences 17 “Conselho Científico Estatal responsável pela organização dos programas de estudo das escolas, presidido por N. K. Krupskaya, ligado à Seção Científico-Pedagógicado Comissariado do Povo para a Educação.” Nota da edição em Pistrak, M. M. Fundamentos da Escola do Trabalho . 28 pessoais – e o combate às mazelas sanitárias que ele descreve como sendo “a pesada herança de ignorância e obscurantismo” (PISTRAK, 2018, p. 72) da época anterior à concretização do poder soviético – o qual persiste na luta contra elementos residuais dessa época. Tal associação ilumina, por sua vez, o que Pistrak (2018) coloca como uma das tarefas essenciais da escola: promover a segurança social da saúde da população em seu entorno. Ou seja, tanto o trabalho – aqui na forma de autosserviço – quanto um problema da vida cotidiana – a doença e a insalubridade – são tomados pela sua determinação social; e, como tais, devem estabelecer uma importante interlocução com a escola – também tomada por essa determinação. Nessa esteira que Pistrak (2018, p. 73) acredita que “junto com o crescimento do nosso bem-estar, nós poderemos testemunhar o grande desenvolvimento de um modo de vida racional”; ou seja, o desenvolvimento baseado nas necessidades sociais – desde as mais triviais – de uma classe, dirigido de maneira em que as mediações constitutivas desse desenvolvimento sejam racionalizadas. Não à toa, o autor ainda sublinha que as condições do autosserviço devem ser “racionalmente colocadas e socialmente esclarecidas” (PISTRAK, 2018, p. 74), denotando, assim, o princípio já falado – que conjuga as necessidades cotidianas com o desenvolvimento humano e da própria racionalidade dos sujeitos. Passemos, agora, para uma outra caracterização do autosserviço: o autosserviço coletivo . Preservando o princípio de respeitar as evidentes limitações das crianças (ver PISTRAK, 2018), o autosserviço coletivo concerne à manutenção dos espaços comuns de vivência cotidiana; transcorre, dessa atividade, o objetivo de não apenas atender às necessidades de vida coletiva – que, por sinal, ainda é imatura –, mas de desenvolver esse modo de vida – forjando tanto as habilidades quanto os interesses capazes de mediar seu desenvolvimento. Nas palavras do próprio Pistrak (2018, p. 75), ele se refere não apenas a “uma melhoria do modo de vida, mas ao acesso a um novo modo de vida”, potencializado à medida que fomenta-se “não somente a habilidade, mas também a necessidade de viver e trabalhar conjuntamente” ( ibidem ). Por outro lado, é importante frisar que tal desenvolvimento – da vida coletiva – não se esvazia em uma mera abstração, resumida a valores de pró-atividade e comunhão que não possuem uma forma concreta. Esse desenvolvimento, na verdade, pressupõe a realização de conquistas objetivas correlatas às demandas tomadas em seu caráter coletivo. São essas conquistas os restaurantes sociais (Narpit) 18 , os clubes, as casas-comuna etc. (PISTRAK, 18 “Narpit: alimentação popular organizada pelo Estado.” Nota da edição em Pistrak, M. M. Fundamentos da Escola do Trabalho . 29 2018); ou seja, conquistas que tecem, diretamente, a reprodução da vida material. Desse modo, é imprescindível considerar as bases materiais sobre as quais se desenvolve essa nova vida, conforme Pistrak (2018, p. 75) aponta com clareza: Não é preciso indicar que a base para a nova vida (superior), antes de tudo, está no fortalecimento da nossa economia e sua reinvenção. Mas também, além da existência de uma base material determinada e as premissas materiais gerais, é preciso alicerçar a necessidade de seu uso na nova vida. É, portanto, necessário introduzir e estimular valores e interesses alinhados à sociedade que pretende-se construir e desenvolver; nesse percurso, o êxito processual de tal desenvolvimento é, reciprocamente, condição e termômetro do amadurecimento de tais valores e interesses. Pistrak demonstra, nesse raciocínio, a compreensão de que o desenvolvimento da historicidade – que aqui é posto como desenvolvimento de uma nova vida – é, necessariamente, resultado da “unidade dialética entre aspectos subjetivos e objetivos que compõem o fazer histórico” (IASI, 2011, p. 93), compreensão essa que nos é ofertada pelo pensamento marxiano (IASI, 2011). Também é interessante observar, a esse respeito, a maneira como as proposições de Pistrak remontam a essência do trabalho 19 ; isto é, o trabalho enquanto “a expressão das necessidades do trabalhador” (LESSA, 1999, p. 10) que, por outro lado, ao ser executado, cria novas possibilidades e necessidades – tomadas em seu aspecto não individual, mas social. Coincide com tais prerrogativas a defesa feita pelo autor de “abordar o autosserviço pessoal e coletivo com um enfoque social” (PISTRAK, 2018, p. 76), que sintetiza as considerações até agora levantadas sobre o tema do autosserviço – enquanto atividade de trabalho habilitada pela escola. Além da relação ineliminável com as necessidades sociais, há outro aspecto preconizado por Pistrak no autosserviço, que aqui fora mencionado: a racionalidade encerrada na atividade de trabalho. Detendo-se com mais atenção nesse importante aspecto, Pistrak (2018, p. 76) afirma a necessidade de abordar o autosserviço com “a explicação científica dos diferentes processos de trabalho”. Tal abordagem constitui a virada de chave para que a execução de uma atividade de trabalho deixe de ser apenas a execução de uma atividade de trabalho – tomada pela criança de maneira intuitiva e irrefletida –, para ser o conduto do pensamento da criança sobre determinada atividade a ser realizada. Esse pensamento, por sua parte, deve atuar na direção da explicação científica da questão do trabalho (PISTRAK, 2018), e essa explicação indicar as mediações mais adequadas à atividade que se pretende realizar. 19 Essência tal que, na sociabilidade capitalista, é diluída pelo processo de alienação. 30 Esse pensamento é ilustrado por Pistrak com alguns exemplos de como o autosserviço pode – e deve – ser melhor qualificado, quando submetido à racionalidade ligada à explicação científica. Exemplos triviais, como quando são levantadas com a varrição uma tal poeira que (...) mais proveitoso para os pulmões seria não varrer; as crianças ajudam no cozimento dos alimentos na cozinha, mas nenhuma delas, nem a cozinheira, têm preparação sobre nutrição desta ou daquela seção de gêneros alimentícios, e por isso, jogam no lixo às vezes as partes mais ricas em vitaminas, deixando as menos proveitosas etc. (PISTRAK, 2018, p. 76) Tão relevante quanto essa observação de como a apropriação científica incide na objetivação dos processos de trabalho – elevando a qualidade de seus resultados –, é como essa apropriação incide na própria consciência dos sujeitos inseridos em tais processos. Temos, aqui, pistas valiosas de como desnudar a capacidade teleológica 20 , tão própria dos seres humanos, em diferentes aspectos de sua formação – que, neste caso, funde a vida escolar com a vida cotidiana – e, claro, direcionar essa capacidade para a elevação da própria qualidade de vida – colocando em termos mais
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