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M ETO D O LO G IA D O EN SIN O D A A RTE | A nos fi nais d o ensino fund am ental e ensino m éd io Luciana Lourenço Paes Código Logístico 59801 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-65-5821-039-9 9 7 8 6 5 5 8 2 1 0 3 9 9 Metodologia do ensino da Arte - Anos finais do ensino fundamental e ensino médio Luciana Lourenço Paes IESDE BRASIL 2021 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2021 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Olga_C/marukopum/P-fotography/YAKOBCHUK VIACHESLAV/Sensay/Pressmaster/ Oksana Klymenko/David Tadevosian/Shutterstock CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ P144m Paes, Luciana Lourenço Metodologia do ensino da arte : anos finais do ensino fundamental e ensino médio / Luciana Lourenço Paes. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2021. 124 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-65-5821-039-9 1. Arte - Estudo e ensino. 2. Ensino - Metodologia. I. Título. CDD: 707 21-71363 CDD: 707 CDU: 7 Luciana Lourenço Paes Doutora em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com parte da pesquisa realizada em Paris, na França, na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Mestra em História da Arte também pela Unicamp. Graduada em Educação Artística, habilitação em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bacharel em Gravura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (Embap). Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 Metodologia do ensino da Arte na escola 9 1.1 Método e metodologia 10 1.2 Cultura, arte e educação 12 1.3 Arte no contexto escolar no Brasil 16 2 Diretrizes curriculares nacionais 31 2.1 Parâmetros Curriculares Nacionais 32 2.2 Base Nacional Comum Curricular 38 2.3 O problema da polivalência 43 3 Academismo e Modernismo 48 3.1 Academismo: metodologias do objeto 48 3.2 A utilidade dos manuais de técnicas artísticas 51 3.3 Modernismo: metodologias do sujeito 53 3.4 O desenvolvimento do grafismo infantil 55 3.5 O lúdico nas aulas de Arte 60 4 Contemporaneidade 66 4.1 Metodologias da superação da dicotomia sujeito-objeto 66 4.2 Abordagem Triangular 67 4.3 Cultura visual 72 4.4 Teoria crítica 74 4.5 Metodologias ativas 77 4.6 Pós-estruturalismo 80 5 Avaliação, ensino e pesquisa 87 5.1 Planejamento 87 5.2 Avaliação 91 5.3 O professor reflexivo 99 5.4 Vidas de professores 107 Apêndice 1 113 Resolução das Atividades 118 Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! As metodologias de ensino fazem parte do corpo do conhecimento pedagógico que estrutura a formação docente. Metodologia é o estudo do método. Só é possível refletir sobre o método, contudo, depois de colocá-lo em prática. Do mesmo modo, nenhum método pode ser separado do contexto de sua aplicação, ou seja, não existem métodos válidos para todas as pessoas, em todos os tempos e lugares. Ainda assim, conhecer diferentes métodos e metodologias oferece uma base para a ação pedagógica, um fundamento, um ponto de partida. Diminui, ainda que não elimine, a margem de erro durante o exercício profissional. Este livro propõe uma abordagem das diferentes metodologias de ensino da arte na escola sob uma perspectiva histórica, com ênfase nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio. Cada metodologia possui uma ligação fundamental com o contexto de sua gênese, a qual continua agindo sobre ela com o passar do tempo, depois de ter se tornado pública e objeto de críticas e revisões. Nesse sentido, a perspectiva histórica cria condições de situar essas metodologias e de avaliar sua pertinência à prática atual, preservando, ao mesmo tempo, a sua diversidade. Para os propósitos deste livro, é importante lembrar, ainda, que na escola a questão não é tanto ensinar arte, quanto formar pessoas por meio da arte. No primeiro capítulo, distinguiremos em detalhes método e metodologia. Também refletiremos sobre o conceito de arte e o processo de transformação dela em objeto de ensino na escola. Faremos ainda uma breve revisão da história do ensino da arte na educação básica no Brasil. No segundo capítulo, trataremos das relações entre metodologias e currículo. Analisaremos as diretrizes do Estado para a disciplina de Arte, como formuladas nos Parâmetros Curriculares Nacionais e na Base Nacional Comum Curricular, documentos que orientam a elaboração do currículo de cada instituição de ensino brasileira. APRESENTAÇÃOVídeo 8 Metodologia do ensino da Arte - Anos finais do ensino fundamental e ensino médio O objeto do terceiro e quarto capítulos são os métodos e as metodologias adotados no Brasil entre os séculos XIX e XXI, em correspondência com os respectivos movimentos artísticos vigentes. O terceiro capítulo trata do Academismo e do Modernismo, e o quarto, da Contemporaneidade. Finalmente, no quinto capítulo, discutiremos a organização do trabalho educativo escolar em Arte, ou seja, a realização do planejamento e da avaliação, bem como o vínculo fundamental entre ensino e pesquisa – aspectos imbricados dentro da rotina de trabalho docente e do ofício do magistério. Escolher qual é o melhor modo de ensinar ou de aprender exige sensibilidade para perceber quais são as habilidades e dificuldades de cada estudante em particular e, por isso, consiste não só em um método, como também em uma arte. Na verdade, não existem fórmulas, mas sim experiências. Esperamos que a ampliação de repertório promovida pelo contato com diferentes métodos e metodologias abordados neste livro, bem como sua análise crítica e contextualizada, leve você a ir além. Nossa esperança, enfim, é que essa consciência se configure em um instrumento que, durante a prática profissional, auxilie você a inventar o seu próprio método. Bons estudos! Metodologia do ensino da Arte na escola 9 1 Metodologia do ensino da Arte na escola Ao longo do processo de formação docente, é importante conhecer a história da disciplina de Arte no contexto escolar brasileiro. A vantagem da perspectiva histórica é que ela re- lativiza o valor dos diferentes métodos de ensino e aprendi- zagem adotados, no passado e no presente, deixando claro que não há o método, mas sim os métodos, os quais mudam ao longo do tempo. Neste capítulo diferenciaremos, inicialmente, método e metodologia e buscaremos compreender a dinâmica por trás dessas mudanças durante o processo histórico. Na sequência, abordaremos alguns conceitos-chave na investigação metodoló- gica nesse campo. Finalmente, faremos uma breve revisão histó- rica do ensino da arte na educação básica brasileira, do período colonial até os anos 1970, procurando delinear os eventos mais significativos e as diferentes tendências pedagógicas vigentes em cada momento. Durante o capítulo, portanto, procuraremos responder às perguntas: qual é a diferença entre método e metodologia? O que determina o uso de determinados métodosem detrimento de outros? Qual é o significado das palavras cultura, arte e edu- cação? Por que, apesar de esses significados serem múltiplos e variados, é importante estabelecer um ponto de vista? Como a arte se transforma em um objeto de ensino na escola? Qual é a história da disciplina de Arte no contexto escolar do Brasil? De que modo conhecer essa história pode auxiliar o professor em sua prática cotidiana? 10 Metodologia do ensino da Arte - Anos finais do ensino fundamental e ensino médio 1.1 Método e metodologia Vídeo A palavra método deriva do grego metá, “atrás, em seguida, atra- vés”, e hodós, “caminho, via, meio”. Literalmente, significa um caminho a seguir. A palavra metodologia, por sua vez, incorpora o sufixo lo- gos, “palavra, discurso, razão”, e diz respeito ao estudo dos métodos. Tecnicamente, portanto, possuem sentidos diferentes. Um método é determinado pela natureza das diferentes áreas do conhecimento em que é aplicado, seja em ciências exatas, biológicas, humanas ou sociais. Já a metodologia possui um caráter metalinguístico, pois cria uma estrutura analítica que pode ser aplicada a diferentes disciplinas com o objetivo de refletir sobre o modo como seus agentes operam ao produzir (ou reproduzir) teorias e práticas. Assim, neste livro de metodologia estudaremos diferentes méto- dos de ensino e aprendizagem da arte no contexto escolar, especifi- camente nos anos finais do ensino fundamental (6° ao 9° ano) e no ensino médio. É importante termos em mente, no percurso deste livro, que: 1) o modo como uma disciplina é ensinada e aprendida na educação básica reflete o modo como ela é ensinada e aprendida no ensino su- perior; 2) o modo como ela é ensinada e aprendida no ensino superior obedece a modelos ou paradigmas dominantes que mudam ao longo do tempo. Tais alterações de modelo ou paradigma estão relaciona- das a mudanças mais amplas, que ocorrem nos âmbitos econômico, social e cultural. Dito de modo mais específico, as pesquisas em arte e em educação no âmbito universitário têm um papel determinante no ensino da arte na escola, pois trata-se do local onde os professores são formados, e estão inscritas em uma dinâmica contínua de ascen- são, estabilização, crise e queda de paradigmas. Essa dinâmica pode ser associada a fatores externos às disciplinas, de ordem contextual. O que é um paradigma? O físico norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996), no livro A estrutura das revoluções científicas, publicado em 1962, define-o como “uma realização científica universalmente reconhecida que, durante algum tempo, fornece problemas e solu- ções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (KUHN, 1998, p. 13). Ele também usa a palavra mapa – um documento de orientação espacial que nos mostra onde estamos e aonde gosta- Disciplinas são ramos do conhecimento humano como ensinados nas universidades. A palavra é empregada também para se referir às diferentes ma- térias escolares. No livro Vigiar e Punir (1975), o filósofo francês Michel Foucault faz uma crítica aos mecanismos de controle so- cial implícitos no que ele chama de instituições disciplinares, entre elas a universidade e a escola. Saiba mais Ensinar é diferente de aprender. Ensinar é a ação de comunicar e compartilhar um saber ou fazer; aprender é a ação de organizar e assimilar o conteúdo dessa comunicação. Apesar dessa diferença conceitual, são ações indissociáveis na prática. Assim, métodos de ensino precisam levar em conta não só modos de ensinar, como também de aprender. Para refletir Metodologia do ensino da Arte na escola 11 ríamos de ir – como sinônimo de paradigma: "Como a natureza é mui- to complexa e variada para ser explorada de modo aleatório, tal mapa é tão essencial para o desenvolvimento contínuo da ciência quanto a observação e o experimento" (KUHN, 1998, p. 143). Para Kuhn, a ciência – isso vale, na verdade, para todas as discipli- nas acadêmicas – desenvolve-se conforme a seguinte estrutura: fase pré-paradigmática > ciência normal > crise > ciência extraordinária A fase pré-paradigmática corresponde a um período de grande di- vergência entre pesquisadores; a ciência normal ocorre quando um paradigma é estabelecido e teorias, conceitos e práticas são “tomados como dados”, dirigindo a pesquisa dentro do campo; a crise é a ano- malia que coloca em dúvida a validade de um paradigma e o trans- forma em objeto de crítica; por fim, a ciência extraordinária remete à revolução científica ou mudança de paradigma. Segundo o físico norte-americano, depois que uma disciplina pas- sa à fase da ciência normal, ela nunca retorna à fase pré-paradigmáti- ca e estabelece-se, com efeito, como científica. O que se repete depois é a passagem da ciência normal ao estado de crise, que pode ser se- guido ou pelo retorno à ciência normal, em que as anomalias são re- solvidas dentro do paradigma corrente, ou pela revolução científica, na qual um novo paradigma se estabelece. Na fase normal, aqueles que pensam fora do paradigma tendem a ser marginalizados dentro da comunidade científica, pois é ele que dita os critérios da boa e da má ciência. Kuhn introduziu posteriormente o conceito de incomensurabilida- de dos paradigmas para evitar a ideia de progresso como melhora sucessiva – como se o que está sendo feito hoje, dentro de uma dis- ciplina, fosse necessariamente melhor do que foi feito no passado. O autor defende que paradigmas não podem ser comparados segundo critérios neutros, ou seja, não existem meios objetivos de afirmar que um paradigma é melhor ou pior do que outro. Essa ideia tornou-se controversa no meio científico e se encontra, ainda hoje, aberta ao debate. Aprendemos diferentes métodos em nossa formação como pro- fessores e podemos optar por um ou outro de acordo com o contexto Apesar de a primeira edição ter saído há quase 60 anos, o livro A estrutura das revoluções científicas não perdeu a atualidade e continua sendo lido em diferentes áreas, das ciências exatas às humanas. KUHN, T. 13. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017. Livro 12 Metodologia do ensino da Arte - Anos finais do ensino fundamental e ensino médio de nossa atuação, mas, na prática, em cada época alguns têm prece- dência sobre outros. Cada nova proposta supera problemas ou limi- tações de uma anterior e apresenta, ao mesmo tempo, seus próprios problemas e limitações. Você deve decidir qual é o melhor método ao longo de sua própria experiência docente, de acordo com sua intera- ção com os alunos e com a equipe da escola, ajustando, dessa forma, o que você aprendeu à realidade do trabalho em sala de aula. 1.2 Cultura, arte e educação Vídeo É importante, em um primeiro momento, pensarmos sobre o que significam estas palavras: cultura, arte e educação. A sua atuação como professor de Arte estará estreitamente relacionada, de maneira cons- ciente ou não, à ideia que você tem do que seja cada um desses termos. É esperado que essa compreensão oscile ao longo da vida, mas tentar torná-la clara o ajudará a entender melhor a sua prática, o modo como organiza e encaminha as suas aulas. Eventualmente, você vai perceber também que os métodos que considera mais eficientes são aqueles pelos quais você mesmo aprendeu. Lembre-se, contudo, de que nem todos aprendem da mesma maneira. Quando buscamos o sentido da palavra cultura nos voltamos, geral- mente, ao campo da antropologia. O antropólogo norte-americano Clif- ford Geertz (1926-2006), no livro A interpretação das culturas, de 1973, afirmou que cultura não é tanto aquilo que os seres humanos fazem, mas o sentido que dão àquilo que fazem. Para o autor, os seres humanos encontram-se presos a “teias de significados” tecidas por eles mesmos. Ele chama essas teias de cultura: “um sistema entrelaçado de signos interpretáveis (ou símbolos) ao qual podem ser atribuídos os aconteci- mentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos”, ou seja, “um contexto dentro do qualeles podem ser descritos de for- ma inteligível ou densa” (GEERTZ, 1978, p. 24). Um exemplo pode ajudar a compreender melhor as ideias de Geertz. Considere alguém a certa distância que ergue o braço e balança a mão de um lado para o outro em sua direção. A pessoa está acenando. Uma descrição que optasse pelo braço erguido com as mãos em movimento seria chamada por Geertz de superficial; já a descrição que usa o verbo acenar seria chamada por ele de densa, pois leva em conta a cultura ou Metodologia do ensino da Arte na escola 13 o contexto no qual esse movimento mecânico adquire um significado para a pessoa que o faz, tornando-se um gesto. Se você não vivesse no local e esse gesto significasse uma forma de insulto, isso poderia gerar um mal-entendido. O fato é que só seríamos capazes de conversar com a pessoa que acenou para nós se entendêssemos minimamente as es- truturas conceituais que dirigem os seus atos – a sua cultura. Sem isso, o diálogo ficaria muito difícil. Figura 1 Um simples olá em diferentes culturas pode ser comunicado por meio de diferentes gestos. Ic on ic B es tia ry /S hu tte rs to ck A arte, enquanto elemento da cultura, pode ser considerada uma entre outras dimensões simbólicas da ação social, ao lado da religião, da ciência, da lei etc. Qual seria, então, a sua particularidade como ati- vidade simbólica? Muitos autores refletiram a respeito e, de fato, não existe apenas uma resposta possível. O professor e crítico literário paulista Alfredo Bosi (1936-2021), por exemplo, definiu arte como “um fazer, um conhecer e um exprimir” (BOSI, 2002, p. 8), ou seja, uma realização técnica, situada dentro de uma tradição de realizações técnicas, que é, ao mesmo tempo, uma forma de comunicação intersubjetiva. Bosi emprestou essa definição do filósofo italiano Luigi Pareyson (1918-1991). Pareyson afirma que a produção, no caso da obra de arte, Diferentes linguagens artísticas compõem o campo da arte – além das artes visuais, nas quais os métodos estudados neste livro se concentram, também a música, a dança e o teatro. Embora apresentem aspectos comuns por se situarem em um mesmo campo do saber, cada uma possui as suas particularidades e age de um modo diferente sobre os nossos sentidos. Lembrete https://www.shutterstock.com/pt/g/IconicBestiary 14 Metodologia do ensino da Arte - Anos finais do ensino fundamental e ensino médio é de um tipo particular, pois ao aspecto realizativo une-se um inventivo: trata-se de "um fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer" (PAREYSON, 1997, p. 26). O resultado produz, então, um incre- mento de realidade devido ao seu valor original. O fazer, nesse caso, é intensificado pela atividade criativa. Obras de arte são criações humanas que não apresentam uma utili- dade imediata. Embora uma roupa, uma panela, uma bicicleta ou uma cadeira sejam objetos cujas formas apreciamos em termos estéticos, isto é, pelo prazer que podem proporcionar aos nossos sentidos, na medida em que servem a uma função prática – proteger do frio, cozi- nhar, nos levar a algum lugar, descansar o corpo –, afastam-se do cam- po da arte. Por isso, o poeta Paulo Leminski chamou a obra de arte, em um artigo de jornal publicado em 1986, de inutensílio. Roupas, panelas, bicicletas ou cadeiras ficam velhas, ocasionalmente estragam, sendo descartadas e substituídas por outras; uma obra de arte pode sofrer danos materiais pela ação do tempo, ser destruída ou perdida, mas ela não pode ser substituída por outra e é possível extrair dela os mesmos benefícios, tenha sido feita hoje ou há milhões de anos. Dizer que a arte não é útil não significa dizer que não sirva para nada. O contato com ela nos ajuda a organizar nossa vida interior, que não é transparente para nós e que não se autointerpreta. Um dado estatístico corrobora essa ideia. Em meio às medidas de confinamento adotadas durante o combate à pandemia ocasionada pelo novo coro- navírus em 2020, o consumo de música, filmes e livros aumentou no Brasil, segundo pesquisa realizada em setembro do mesmo ano pelo Itaú Cultural em parceria com o Datafolha. A arte nos ajuda a ficar so- zinhos com nós mesmos ou conviver com as pessoas do nosso círculo íntimo, pois ela dialoga com aspectos da nossa vida que não costuma- mos tornar públicos: desejos, expectativas e sentimentos (alegria, te- mor, insegurança, ódio, tristeza etc.), os quais podem se chocar com a moralidade, com os quais precisamos lidar mesmo assim e diante dos quais a atividade científica pouco tem, nesse sentido, a oferecer. Ela ex- plica os fenômenos de modo racional e objetivo, mas temos que apren- der por nossa própria conta a lidar com eles no cotidiano, de modo intuitivo e subjetivo. Assim, a arte desenvolve a inteligência emocional e relacional, bem como promove o autoconhecimento. A arte também nos ajuda a pensar sobre o mundo e aquilo que acon- tece ao nosso redor. Ao nos relacionarmos com ela, saímos do nosso Qual é a diferença entre emoções e sentimentos? O neurocientista portu- guês António Damásio explica em entrevista que as emoções são reações motoras que o cérebro produz no corpo como resposta a determinados eventos; já os sentimentos são a elaboração mental dessas reações. Enquanto as emoções são públicas, os sentimentos são privados. Essa questão é desenvolvida em detalhes no Capítulo 7 de seu livro O erro de Descartes (1994). Assista ao trecho da en- trevista no vídeo António Damásio: a diferença entre emoção e sentimento. Disponível em: https://youtu. be/2COAN5Y6S9U. Acesso em: 7 jun. 2021. Vídeo https://youtu.be/2COAN5Y6S9U https://youtu.be/2COAN5Y6S9U Metodologia do ensino da Arte na escola 15 cotidiano, que tende a ser repetitivo e alienante, e entramos em um espaço de maior liberdade. É certo que levamos nossos pré-conceitos – absorvidos pelo nosso ponto de vista – para esse encontro com a obra de arte, em seus diferentes espaços e linguagens. A fronteira entre o que sabemos e o que não sabemos torna-se mais nítida nesse momen- to, e permanecer onde estamos ou cruzar a fronteira em busca de ex- periências e de conhecimentos novos é uma escolha nossa. No limite, envolve uma decisão pessoal. Aqui entra o papel da educação, mais especificamente a formal, que ocorre dentro das instituições de ensino. Pode ser que não tenhamos instrumentos que nos permitam dar esse passo e a arte nos pareça, dessa forma, desinteressante ou difí- cil. A educação é um meio de aquisição de tais instrumentos. Naquela mesma pesquisa do Itaú Cultural em parceria com o Datafolha (2020) sobre os hábitos culturais dos brasileiros durante a pandemia, por exemplo, foi constatado que quanto maior a escolaridade, maior o con- sumo de arte. Assim, é ingênuo pensar que a frequentação e o hábito da arte nasçam espontaneamente nas pessoas e que apenas o contato direto com a obra, sem nenhum tipo de mediação ou trabalho prévio, seja suficiente para que a arte se torne, de fato, um fator de aumento da qualidade de vida. Embora a experiência da obra de arte tenha um potencial educa- tivo, o tipo de educação que promove não é intencional, pois seu fim não é pedagógico – ela não quer, não é pensada para ensinar, embora de algum modo ensine. Processos educativos intencionais, dirigidos e sistemáticos – em uma palavra, pedagógicos – podem ocorrer dentro de espaços culturais, como museus, galerias, teatros e salas de espetáculo, com o objetivo de aproximar as obras do público, mas seu locus privile- giado são, sobretudo, as instituições de ensino (a escola e a academia). A palavra educação vem do latim educere, “conduzir de fora”, e edu- care, “alimentar, criar”. Nesse processo de orientar e sustentar, a edu- cação pode ser reprodutora ou crítica. No âmbito institucional, ela não pode prescindir do primeiro aspecto, o conservador, pois se trata de um espaço e um tempo organizados e controlados com o objetivo de preparar as pessoas para que elas atuem produtivamentena socieda- de. A educação, nesse sentido, adapta e molda a um sistema existente. Porém, se a educação abre mão do segundo aspecto, o progressista, a possibilidade de mudar o que não é bom – de melhorar a sociedade por meio dessa atuação – deixa de existir. 16 Metodologia do ensino da Arte - Anos finais do ensino fundamental e ensino médio 1.3 Arte no contexto escolar no Brasil Vídeo Qual é a relação entre a arte como ocorre em espaços sociais e sua abordagem em espaços educativos? Como transformar a arte em ob- jeto de ensino na escola? O que acontece com ela quando se torna um saber disciplinar? Dois pesquisadores franceses, trabalhando respectivamente no campo da educação matemática e linguística – Yves Chevallard (1946-) e André Chervel (1931-) –, apresentam dois pontos de vista opostos so- bre o assunto e que podem nos ajudar a pensar sobre essas questões. Em seu livro A transposição didática, publicado em 1985, Chevallard explica que essa transposição consiste no processo de transformação do savoir savant (“saber sábio”) de uma determinada disciplina, produ- zido por meio da pesquisa acadêmica, em savoir à enseigner (“saber a ensinar”) e, depois, com a aprendizagem efetuada, em savoir enseigné (“saber ensinado”). Para o autor, não existe uma identidade entre saber ensinado e saber sábio, mas uma relação de dependência, de modo que o saber produzido pela ciência de referência precisa ser transfor- mado para se adaptar a um outro contexto. Assim, para Chevallard, o saber científico legitima as disciplinas escolares. No artigo História das disciplinas escolares, escrito em 1988, Chervel defende que a escola não é apenas um espaço de adaptação e repro- dução de um saber preexistente, mas também de produção de conhe- cimento com caráter autônomo. Existe, em sua opinião, uma “cultura escolar”; a escola constitui um espaço de produção simbólica indepen- dente da academia. Ele não elimina, mas diminui o papel das ciências de referência no processo de transposição didática, e projeta ênfase nos objetivos da disciplina e no seu funcionamento dentro da escola. Desse modo, para Chervel, é a própria cultura escolar que legitima as disciplinas escolares. Mesmo discordando quanto ao peso de cada campo no proces- so, tanto Chevallard quanto Chervel concordam que deve existir um diálogo entre os saberes preexistentes e os ensinados na escola. Se Chevallard hierarquiza o saber produzido pelo rigor do método cien- tífico e aquele produzido em situação escolar, considerando que na Metodologia do ensino da Arte na escola 17 transposição didática há um processo de simplificação redutor, Chervel horizontaliza a relação, defendendo que as disciplinas escolares devem ser estudadas em suas especificidades e não como uma forma de co- nhecimento “menor”. Convém lembrar que, no caso da arte, há um fator que complica essas considerações: os saberes preexistentes não incluem apenas a produção acadêmica, mas também a produção artística em geral. Em primeiro lugar, ensina-se arte na escola porque se faz arte na socie- dade – aliás, é também por isso que se estuda arte na universidade. Na formação dos professores nos cursos de licenciatura, a arte, como atividade social, passa pelo filtro da cultura acadêmica/científica e pro- duz um saber específico. Na atuação desse professor, por sua vez, esse saber será filtrado novamente pela cultura escolar. É fundamental, por isso, que o professor de Arte não perca o contato com a produção artís- tica do seu tempo, em especial aquela feita no local onde vive e traba- lha, pois é dela que emana a razão de ser da sua disciplina. Essa disciplina tem uma história na educação básica. Para entender aonde chegamos hoje na disciplina de Arte, precisamos entender de onde partimos ontem. O ensino da arte existe no Brasil desde o período colonial, quando o país era colônia do reino de Portugal e a educação estava nas mãos das ordens religiosas. Nas reduções jesuíticas, complexos urbanísticos construídos em diferentes regiões para catequizar os indígenas, fun- cionavam espécies de "escolas-oficinas" que formavam artesãos em diferentes áreas: pintura, carpintaria, tecelagem, fabricação de instru- mentos musicais, entre outras. Além disso, em cada redução existia uma escola de canto coral, música e dança. Fora das reduções, os colé- gios educavam os filhos da elite. As mulheres estavam excluídas desse ensino, aprendendo em casa as “prendas domésticas”. O método seguido pelos jesuítas foi descrito no seu Ratio Studiorum (ordem dos estudos), publicado em 1599 e que permane- ceu em vigor durante 150 anos no país. No texto estão discrimina- dos a duração dos cursos, os horários, os manuais e autores a serem estudados e a pedagogia a ser adotada, baseada em memorização e repetição de conteúdos. Quando nos referimos à arte como uma área do conhecimen- to ou um aspecto da cultura, usamos a palavra com letra minúscula; já Arte, com letra maiúscula, refere-se à disciplina escolar. Atenção 18 Metodologia do ensino da Arte - Anos finais do ensino fundamental e ensino médio Figura 2 Ratio Studiorum Em 1759, os jesuítas, que possuíam então mais de 350 colégios ins- talados em todo o Brasil, foram expulsos do território pelo Marquês de Pombal, ministro do rei D. José I. Com as reformas pombalinas, in- fluenciadas por ideias do Iluminismo português, é decretado no país o ensino laico, ou seja, desvinculado da Igreja e de responsabilidade do Estado. O intervalo de 1759 até 1808, ano da mudança da família real e da corte portuguesa para o Brasil, foi marcado por uma grande desorganização do sistema educacional, cuja estrutura havia sido con- solidada durante anos de atuação dos jesuítas. As reformas ocorreram mais no papel do que na prática e deram grande ênfase ao ensino das disciplinas do campo linguístico, como Latim e Língua Portuguesa. Em 1816, uma colônia de artistas e artífices franceses instalou-se no Rio de Janeiro às custas da coroa com o objetivo de fundar na cidade uma escola de artes e ofícios. Essa colônia ficou conhecida na histo- riografia como Missão Francesa. No mesmo ano foi criada por decreto a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, pela qual o ensino artístico começou a ser implantado oficialmente no Brasil, em nível superior. Ela foi inaugurada efetivamente em 1826, mas sem o ensino dos ofícios, sob o nome de Academia Imperial de Belas Artes (AIBA). A atividade dos primeiros professores da Academia, formados den- tro dos ideais do neoclassicismo, disseminou esse programa estético no país, com base no idealismo ao imitar a natureza, no equilíbrio formal, no acabamento liso de superfície e, do ponto de vista temático, na re- Metodologia do ensino da Arte na escola 19 presentação de exemplos de virtude. Valorizava-se o domínio técnico, o conhecimento dos materiais e a cópia fiel de modelos, compostos por esculturas greco-romanas ou pinturas do Renascimento italiano. O en- sino do desenho era o eixo central do currículo acadêmico, pois consis- tia no momento da invenção propriamente dito, que precede e, assim, subjaz às demais linguagens artísticas – pintura, escultura e gravura. Charles-Nicolas Cochin. Vista de uma escola de desenho; gravura ilustrando o verbete desenho da Enciplopédia ou Dicionário de ciências, artes e ofícios, de Diderot e d’Alembert, volume XX, Paris, 1773. Durante o período imperial (1822-1889), o sistema educacional pas- sou a ser estruturado em três níveis: primário, secundário e superior. O nível primário era composto pelas escolas de ler e escrever. O se- cundário, pelas aulas régias, instauradas já na reforma pombalina e que substituíram os cursos de humanidades dos jesuítas. Eram aulas avulsas de latim, grego, filosofia, retórica, desenho e, mais tardiamente, música. Os próprios professores organizavam o trabalho e requeriam o pagamento do governo. O nível superior era composto por escolas profissionais isoladas, fora do contexto de universidades, nas áreasde belas artes, medicina, direito e engenharia. Os professores do primário e secundário eram, nessa época, autodidatas ou formados nas institui- ções de ensino da ex-metrópole. Além da denominação de ensino primário, secundário e superior, de origem europeia, foi introduzida também a de ensino profissionalizan- te. Não se tratava de um nível de ensino devidamente regulado pelo Estado, mas de iniciativas partindo de associações privadas ligadas ao setor industrial ainda incipiente. São fundados, entre 1858 e 1886, os Liceus de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, Salvador, Recife, São Paulo, Maceió e Ouro Preto, que tinham como objetivo formar mão de obra especializada para o projeto de urbanização e para a indústria nacional. 20 Metodologia do ensino da Arte - Anos finais do ensino fundamental e ensino médio No primário e secundário o ensino do desenho seguia a linha do ensino profissionalizante: o foco era o chamado desenho linear ou geométrico. Ele possuía, sobretudo, uma função utilitária, de preparo para o traba- lho e desenvolvimento de habilidades técnicas e motoras. O intelectual e político Ruy Barbosa (1849-1923) realizou análises importantes sobre o estado da educação no Brasil nos textos A refor- ma do ensino secundário e superior, de 1882, e A reforma do ensino pri- mário e várias instituições complementares da instrução pública, de 1883, apresentados à Câmara dos Deputados e mais conhecidos hoje como pareceres. Barbosa criticou o ensino baseado na retórica e na memo- rização e dominado pela Igreja Católica – em 1842, os jesuítas foram readmitidos no território, fora as outras ordens que possuíam colégios no Brasil. Destacou em sua proposta de currículo o ensino das ciências, com base na observação e na experimentação e também o da ginásti- ca, da música, do desenho e do canto, de modo a promover o cultivo do entendimento e dos sentidos. O objetivo último era desenvolver a indústria nacional para libertar o país da dependência estrangeira: Carecemos de auxiliar pela indústria a feracidade do solo, cul- tivando-o científica e artisticamente; carecemos, em segundo lugar, ainda por meio da indústria, sob outras formas, receber do solo os seus frutos, e, sem feudo a estranhos, entregá-lo ao con- sumo sob as inumeráveis metamorfoses que a fabricação opera. Mas o meio, o meio dessa transformação? O meio é introduzir fundo a ciência, praticamente aprendida, e a arte, aplicada pelo desenho, no ensino popular: o desenho na escola a par da leitu- ra e da escrita, antes, até, da escrita e da leitura; o desenho nos liceus, formando agrimensores, maquinistas, mestres de oficina. (BARBOSA, 1942, v. IX, tomo I, p. 174) Influenciado por ideias norte-americanas e europeias, Ruy Barbosa defendia que o ensino do desenho na educação popular apresentava, por um lado, um aspecto propedêutico ou introdutório, cujo fim era educar o caráter e a inteligência, e, por outro, desenvolvia o gosto e a habilidade artística, tornando as massas capazes de admirar o belo – ambas as funções voltadas ao preparo para o ingresso nas carreiras industriais. Nos seus pareceres, ele cita pedagogos como o britânico radicado nos Estados Unidos Walter Smith (1836-1886), o suíço Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827) e o alemão Friedrich Fröebel (1782-1852). Ruy Barbosa posicionava-se contra o que chamou de tirania do en- sino livresco, meramente verbalista, que reinava então sobre a rotina Em seus pareceres, Ruy Barbosa traduziu um longo trecho do livro Arte educação: escolar e industrial (1872), de Smith, para justificar a importância do desenho no programa curricular. Citou também trechos do livro de Pestalozzi, Como Gertrudes ensina suas crianças (1801), e do livro A educação do homem (1826), do discípulo de Pestalozzi, Fröebel. Os dois últimos defenderam um ensino na infância fundamentado no desen- volvimento dos sentidos e na ação mais do que na comunicação verbal, conferindo grande impor- tância, nessa formação inicial, ao desenho. Saiba mais Metodologia do ensino da Arte na escola 21 escolar. Para ele, existia, para além do mundo das palavras, o mundo da natureza, que deveria ser acessado pelo desenvolvimento dos sen- tidos; do contrário, o livro pareceria mais real do que a própria vida. Assim, em seu programa de ensino, o desenho precede – facilitando e preparando – o ensino da escrita. As ideias da sua proposta de reforma não seriam implementadas imediatamente, mas apenas alguns anos após a Proclamação da República, na reforma de 1901, pela aprovação do Código Epitácio Pessoa. No romance de Raul Pompeia (1863-1895), O ateneu (1888), que se passa em uma escola primária e secundária particular (um internato) no Rio de Janeiro do fim do século XIX, encontramos menções ao ensi- no da arte dentro de uma escola burguesa. No Capítulo 7, o narrador, um estudante chamado Sergio, descreve a exposição bienal dos traba- lhos artísticos dos alunos nas salas da própria escola, incluindo dese- nhos e pinturas que variavam dos gêneros do retrato e da paisagem a representações de arquitetura e máquinas. Ele se lembra com certo humor das etapas de seu aprendizado artístico e da postura do pro- fessor, que dava um reforço positivo quando os alunos progrediam do traço simples para a modelagem das formas com claro-escuro. Nessa progressão fica evidente o caráter reprodutivo da prática e estereoti- pado dos motivos, que eram inicialmente ajustados a figuras geométri- cas, passando da paisagem à figura humana e de animais. O professor também “retocava” os trabalhos dos alunos e selecionava os melhores para exposição, colocando neles uma moldura: Para a exposição dos desenhos foram retiradas as carteiras da sala de estudo, forradas de cetim escuro as paredes e os grandes armários. Sobre este fundo, alfinetaram-se as folhas de Carson, manchadas a lápis pelo sombreado das figuras, das paisagens, pregaram-se, nas molduras de friso de ouro, os trabalhos repu- tados dignos desta nobilitação. Eu fizera o meu sucessozinho no desenho, e a garatuja evoluíra no meu traço, de modo a merecer encômios. A princípio, o bos- quejo simples, linear, experiência da mão; depois, os esbatimen- tos de tons que consegui logo como um matiz de nuvem: depois, as vistas de campo, folhagem rendilhada em bicos, pardieiros em demolição pitoresca da escola francesa, como ruínas de pau podre, armadas para os artistas. Depois de muito moinho velho, muita vivenda de palha, muito casarão deslombado, mostrando as misérias como um mendigo, muita pirâmide de torre aldeã es- boçada nos últimos planos, muita figurinha vaga de camponesa, 22 Metodologia do ensino da Arte - Anos finais do ensino fundamental e ensino médio lenço em triângulo pelas costas, rotundas ancas, saias grossas em pregas, sapatões em curva, passei ao desenho das grandes cópias, pedaços de rosto humano, cabeças completas, cabeças de corcel; cheguei à ousadia de copiar com toda a magnificên- cia das sedas, toda a graça forte do movimento, uma cabra de Tibete! Depois da distinção do curso primário, foi esta cabra o meu maior orgulho. Retocada pelo professor, que tinha o bom gosto de fazer no desenho tudo quanto não faziam os discípulos, a cabra tibetana, meio metro de altura, era aproximadamente obra-prima. Ufanava-me do trabalho. Não quis a sorte que me alegrasse por muito. Negaram-me à bela cabra a moldura dos bons trabalhos; ainda em cima – considerem o desespero! exa- tamente no dia da exposição, de manhã, fui encontrá-la borrada por uma cruz de tinta, larga, de alto a baixo, que a mão benigna de um desconhecido traçara. Sem pensar mais nada, arranquei à parede o desgraçado papel e desfiz em pedaços o esforço de tantos dias de perseverança e carinho. Quando os visitantes invadiram a sala, notaram na linha dos tra- balhos suspensas duas enigmáticas pontas de papel rasgado. Estranhavam, ignorando que ali estava, interessante, em último capítulo, a história de uma cabra, de uma cruz, dramade deses- pero e espólio miserando de uma obra-prima que fora. As exposições artísticas eram de dois em dois anos [...]. Conse- guia-se assim uma quantidade fabulosa de papel riscado para maior riqueza das galerias. Cobria-se o metim desde o soalho até ao teto. Havia de tudo, não só desenhos. Alguns quadros a óleo, do Altino, risonhas aquarelas acidentando a monotonia cinzenta do Fáber, do Conté, do fusain [carvão]. Os futuros engenheiros aplicavam-se às aguadas de arquitetura, aos desenhos coloridos de máquinas. (POMPEIA, 2003 [1888], p. 110-111) Apesar de as mulheres estarem excluídas do ensino formal até 1827, quando a Lei Geral instituiu a abertura de escolas primárias para meninas, com matérias específicas e professoras também do sexo fe- minino, a instrução que recebiam até então em casa ou em conventos incluía o ensino artístico, especialmente pelas “prendas úteis à econo- mia doméstica”, como costura e bordado. Em 1881 são admitidas no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. Convém lembrar que elas interessavam à indústria, na qualidade de mão de obra barata. O século XIX foi marcado pela passagem da tutela da educação, antes responsabilidade das famílias e da Igreja, para o Estado e pela preocupação com a instrução pública, gratuita e laica, a qual vai se Metodologia do ensino da Arte na escola 23 acentuar na passagem para o século XX. Nesse sentido, o ensino do desenho, que já existia nos estabelecimentos que atendiam às famílias mais abastadas, passa a compor também os currículos escolares da educação popular. Na primeira metade do século XX, sucessivas reformas – reforma Carlos Maximiliano, aprovada pelo Decreto n. 11.530, de 1915; reforma Francisco de Campos, aprovada pelo Decreto n. 19.890, de 1931; e a Lei Orgânica do Ensino Secundário, aprovada pelo Decreto n. 4.244, de 1942 – reforçaram a presença do desenho nos quadros do ensino de 1° e 2° graus 1 , juntamente com a música (canto orfeônico) e, mais tarde, os trabalhos manuais. Na escola elementar, o programa de ensino incluía três tipos de de- senho: o de observação, o decorativo e o geométrico. O desenho de observação iniciava-se pela cópia de imagens, passando-se à de obje- tos e, por fim, da natureza; o desenho decorativo consistia na cópia de desenhos de ornatos, ou seja, elementos arquitetônicos e decorativos que representavam formas da natureza, como plantas e conchas, de maneira estilizada; e, finalmente, o desenho geométrico pressupu- nha o traço de formas e construções geométricas à mão livre ou com instrumentos. Desde a segunda metade do século XIX até a primeira do XX, esta- belece-se, então, uma tendência pedagógica centrada no resultado ou produto do trabalho escolar, conhecida na historiografia da educação como Pedagogia Tradicional. Nessa linha, os conteúdos eram fixados por meio de exercícios de repetição, com a finalidade de desenvolver o sentido da visão, a memória e as habilidades motoras e morais, bem como o gosto artístico. Verifica-se, como se depreende do texto citado de Raul Pompeia, uma preocupação com a exposição dos trabalhos dos alunos no desfecho dos períodos escolares, sendo que eles mesmos to- mam parte em sua organização. Tais mostras constituíam, além disso, um importante canal de comunicação entre a escola e a comunidade. A relação entre professor e aluno apresenta, nessa tendência, um caráter autoritário. A postura do professor é intervencionista, na me- dida em que o objetivo da aprendizagem é reproduzir o mais perfeita- mente possível um modelo externo. Nesse sentido, os conteúdos são trabalhados como fins em si mesmos, desvinculados da realidade so- cial e das diferenças individuais. Assim chamados desde a reforma Benjamin Constant, de 1891, até a Lei n. 9.394, de 1996, quando passam a ser referidos como ensino fundamental e médio. 1 Canto orfeônico significa canto coral sem acompanhamento musical, não exigindo treina- mento vocal prévio e voltado ao ensino de grandes massas populares. Foi instituído a partir de 1930 na escola brasileira pelo compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959), que o entendia como um meio de desenvolver a sensibilidade musical, o sentimento cívico (pelo estudo das melodias folclóricas) e a sociabilidade. Saiba mais 24 Metodologia do ensino da Arte - Anos finais do ensino fundamental e ensino médio O Movimento da Escola Nova, de abrangência internacional, surge no Brasil nos anos 1930, paralelamente ao advento do modernismo na cena artística, e é difundido nos anos 1940 e 1960. O Manifesto dos pioneiros da educação nova (1932), redigido por Fernando de Azevedo (1894-1974), defendia que a educação deveria servir aos interesses do indivíduo e não de classe, devendo estar acessível a todo cidadão. Tam- bém reivindicava a coeducação dos sexos, até então mantidos em clas- ses separadas. Apesar de defender uma escola única – pública, laica e gratuita – para todas as camadas sociais, na prática, a rede de ensino particular foi oficializada e estimulada pela legislação. A tendência pedagógica consubstanciada por esse movimento ficou conhecida como Pedagogia Nova. Seu caráter experimental fundamen- tava-se em estudos do campo da psicanálise, da psicologia cognitiva e da percepção (em especial a Gestalt, “configuração” em alemão). As pes- quisas do pedagogo belga Jean-Ovide Decroly (1871-1932), do pedago- go francês Célestin Freinet (1896-1966) e do filósofo norte-americano John Dewey (1859-1952) influenciaram a atuação dos professores no Brasil. Suas obras, pela ênfase dada ao interesse como mola propul- sora do pensamento e da expressão, bem como ao aprendizado pela experiência (individual e em grupo), ajudaram a promover a transfe- rência, que caracteriza a Pedagogia Nova, do centro de gravidade da escola do professor para o aluno. Em 1948, teve início o projeto das Escolinhas de Arte do Brasil, idea- lizado pelo artista e educador Augusto Rodrigues (1913-1993), com a primeira unidade sendo instalada nas dependências da Biblioteca Cas- tro Alves, no Rio de Janeiro, depois levada a outros estados. A proposta foi estruturada sobre a tese defendida pelo historiador e crítico inglês Herbert Read (1893-1968) em seu livro A educação pela arte, publicado em 1943, de que “a arte deve ser a base da educação” e de que “o ob- jetivo da educação é a criação de artistas – de pessoas eficientes nos vários modos de expressão” (READ, 2001, p. 12). Além disso, Read de- monstrava especial interesse pelas manifestações artísticas da criança. Nas Escolinhas de Arte o papel do professor era o de transmitir às crianças técnicas e conhecimentos sobre os materiais, bem como propiciar o melhor ambiente possível para a criação. Suas orientações reconheciam e valorizavam o desenho espontâneo, ou a livre expres- Metodologia do ensino da Arte na escola 25 são. Sobre a postura não intervencionista dos professores, Rodrigues declara: Deveríamos ter um comportamento aberto, livre com a crian- ça; uma relação em que a comunicação existisse através do fazer e do reconhecimento da importância do que era feito pela criança e da observação do que ela produzia. De estimulá-la a trabalhar sobre ela mesma, […] desviando-a da competição. (INEP, 1980, p. 34) Na esteira do movimento, que em muitos casos degenerou em um “deixar-fazer”, a arte passou a ser vista na escola elementar mais como atividade do que propriamente disciplina, com conhecimentos especí- ficos e sistematizados. Assim, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) n. 4.024, de 1961, organizou o currículo escolar em dis- ciplinas, práticas educativas e atividades complementares. No ensino gi- nasial (hoje anos finais do fundamental), a arte foi inserida entre as práticas educativas, entendidas como atividades que estimulavam o desenvolvimento da personalidade dos jovens em suas dimensões físi- ca, artística, cívica, moral e religiosa. No colegial (hoje ensino médio), a arte era uma atividade complementar, ou seja, ofertadafora do horário regular de aula. As linguagens ensinadas restringiam-se ao campo da música e das artes plásticas. Dez anos depois, a LDB n. 5.692, de 1971, instituiu a obrigatorieda- de do ensino da arte no 1° e no 2° grau sob o nome de Educação Artís- tica. Embora a terminologia tenha mudado, a conotação de atividade permaneceu. Deixam de existir matérias separadas para cada lingua- gem – Desenho, Trabalhos Manuais, Artes Aplicadas, Educação Musical –, e os professores precisam complementar sua formação: nasce aqui a polivalência. A Lei 5.692, de 1971, é considerada um marco da tendência peda- gógica dita tecnicista. Na Pedagogia Tecnicista há uma ênfase no siste- ma técnico de organização das aulas, definido pelo planejamento e do qual cada professor é o responsável. Por meio dele, o profissional deve definir os objetivos, os conteúdos, as estratégias e a avaliação das suas aulas. Com isso, a dinâmica de ensino e aprendizagem fi- cou em segundo plano. Na prática, verifica-se a ausência de bases teóricas mais fundamentadas e grande recorrência a apostilas e ma- nuais curriculares. O Decreto federal n. 51.215, de 1961, havia tornado obrigatório o ensino da Educação Musical nas escolas primária e secundá- ria. Essa nova orientação acabou substituindo a do canto orfeôni- co. Seu objetivo era desenvolver a percepção auditiva, o ritmo e a expressão corporal, estimulando a experimentação com sons e instrumentos. Foi influenciada pelos trabalhos do alemão Carl Orff (1895-1982), do suíço Emile Jaques Dalcroze (1895-1950) e do húngaro Zoltan Kodály (1882-1967). Saiba mais 26 Metodologia do ensino da Arte - Anos finais do ensino fundamental e ensino médio Nos anos 1960, o método de alfabetização de adultos proposto pelo pernambucano Paulo Freire (1921-1997) repercutiu em todo o país. In- fluenciado pelo educador e intelectual escolanovista Anísio Teixeira (1900-1971), cujas ideias pedagógicas eram uma interpretação original das de Dewey, o método de Freire coloca a comunidade como ponto de partida e de chegada do ensino. O principal instrumento da educação é o diálogo que problematiza situações vividas pelos alunos e leva à crítica da realidade ou processo de conscientização. O objetivo da educação, para Freire, é a transformação social, não a obtenção de um diploma. Ao longo de sua atuação, ele reviu sua terminologia e o seu método foi chamado sucessivamente de pedagogia do oprimido, pedagogia da esperança e, fi- nalmente, pedagogia da autonomia. Ele é abrangente o suficiente para ser adaptado a qualquer disciplina do currículo escolar. A obra de Freire é a principal referência dentro da tendência pedagógica chamada Pedagogia Realista-Progressista ou simplesmente Pedagogia Crítica. Em resumo, podemos pontuar alguns eventos e ideias importantes na história da disciplina de Arte na educação básica brasileira até os anos 1970: • A concentração do ensino das artes visuais, desde o século XIX até as primeiras décadas do XX, no ensino do desenho (de obser- vação, decorativo, geométrico) como preparação para o trabalho na indústria. • A influência das Pedagogias Tradicional e Nova sobre o ensino ar- tístico ao longo do século XX – por um lado, a ênfase nas aptidões individuais, na reprodução de modelos, no preparo para a vida prática e no desenvolvimento da inteligência; por outro, a ênfase no cooperativismo, na espontaneidade, na experimentação psi- cológica e no desenvolvimento integral da pessoa. • A promulgação da LDB n. 4024, de 1961, que transformou a dis- ciplina de Arte em "prática educativa" (no ensino ginasial, hoje fundamental) e "atividade complementar de iniciação artística" (no ensino colegial, hoje médio). • A introdução da disciplina de Educação Artística pela LDB n. 5692, de 1971 e, com ela, do professor polivalente. • O tecnicismo, no qual desembocou o foco excessivo sobre a elaboração de planejamentos, incorporados à rotina buro- crática escolar, o que deixou à sombra a própria dinâmica de ensino-aprendizagem. No documentário Paulo Freire Contemporâneo, dirigido por Toni Venturi, você pode conhecer me- lhor a trajetória e a obra de Paulo Freire, desde o projeto de alfabetização de adultos em Angicos (RN), passando pelo exílio durante a ditadura militar e a escrita de Pedagogia do Oprimido, até o estudo e a aplicação das suas ideias no Brasil e no mundo atualmente. Disponível em: https://youtu. be/5y9KMq6G8l8. Acesso em: 7 jun. 2021. Em comemoração ao cen- tenário do nascimento de Freire, em 2021, a TV Cultura promoveu um de- bate entre Mário Sergio Cortella e Sérgio Haddad em torno do pensamento do educador. Você pode conferi-lo no canal da emissora no YouTube. Disponível em: https://youtu.be/ cKH8_4dXhUM. Acesso em: 7 jun. 2021. Vídeo https://youtu.be/5y9KMq6G8l8 https://youtu.be/5y9KMq6G8l8 https://youtu.be/cKH8_4dXhUM https://youtu.be/cKH8_4dXhUM Metodologia do ensino da Arte na escola 27 • A atuação de Paulo Freire como professor e teórico, que forne- ceu um novo quadro didático-metodológico para o trabalho nas disciplinas escolares em geral e cujo fim é a transformação da realidade social. Desses eventos e ideias podemos extrair o seguinte quadro de ten- dências pedagógicas: Quadro 1 Tendências pedagógicas e suas características metodológicas Tendência pedagógica Características metodológicas Pedagogia Tradicional - Ênfase no resultado do trabalho escolar. - Baseada na reprodução de modelos. - Relação autoritária professor-aluno. - O professor interfere no trabalho do aluno. - Educação como preparação para o trabalho. Pedagogia Nova - Ênfase no processo do trabalho escolar. - Baseada na criatividade e na espontaneidade. - Relação autoritária aluno-professor. - O professor propicia um ambiente para a criação. - Educação como preparação para a vida. Pedagogia Tecnicista - Ênfase nos aspectos burocráticos da prática pedagógica. - Baseada na capacidade técnica do professor de definir as concepções e as ações antes e depois da atuação em sala. - Foco sobre mecanismos de controle e verificação. - Educação como procedimento técnico, cujo objetivo é garantir a eficácia do processo de ensino-aprendizagem. Pedagogia Realista-Progressista ou Crítica - Ênfase no contexto social do trabalho escolar. - Baseada no diálogo. - Relação horizontal professor-aluno. - O professor é um agente problematizador; ele questiona. - Educação como caminho para a ação política e transformação do contexto social. Fonte: Elaborado pela autora com base nos textos de Ferraz e Fusari, 2018, e Ghiraldelli Jr., 2015. A aplicação mecânica e irrefletida dos encaminhamentos meto- dológicos das diferentes tendências pedagógicas levou, no ensino da arte, a algumas distorções de sentido. No caso da Pedagogia Tra- dicional, conduziu ao exercício de reprodução pura e simples de um modelo, desvinculado do contexto e das diferenças individuais e, no caso da Pedagogia Nova, à liberdade total de ação, sem nenhum tipo de orientação ou parâmetro. 28 Metodologia do ensino da Arte - Anos finais do ensino fundamental e ensino médio A tendência Tecnicista, por sua vez, quando levada ao extremo, transformou o planejamento, que deveria ser um momento de re- flexão sobre a prática e de diálogo com os pares, em um pesadelo burocrático-pedagógico de preenchimento de formulários e tabe- las. Finalmente, se mal conduzida, a pedagogia libertadora de Paulo Freire pode apenas reforçar problemas estruturais, culminando na sensação de impotência e de que não se está avançando. Cada tendência pedagógica possui características historicamente definidas, mas isso não significa que, por se situarem no passado, devam ser descartadas em sua totalidade. Uma divergência nem sempre é uma refutação, assim como uma inovação não represen- ta necessariamente um avanço. Cabe ao professor avaliar em quais momentos e situações as características metodológicas de cada ten- dência podem se tornar promissoras, tendo em vistaos objetivos a serem alcançados. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os diferentes métodos (caminhos) e metodologias (estudo dos ca- minhos) adotados no ensino da arte na educação básica ligam-se à atividade de ensino e pesquisa no ensino superior (onde os professo- res são formados), à própria arte como atividade social (à sua esfera de produção e circulação independente das instituições de ensino) e à cultura escolar propriamente dita (com saberes e práticas simbólicas específicas). Essas três esferas estão conectadas durante a atuação do professor de Arte. Podemos observar, ao longo do tempo, o uso de determinados mé- todos de ensino e aprendizagem em detrimento de outros, de acordo com o contexto histórico e social. Mudanças nesse contexto levam a mudanças de paradigma, que, por sua vez, levam a mudanças de con- texto. Novas propostas surgem, enquanto outras são deixadas de lado. Assim, a arte fundamentada na estética clássica e moderna representa, no ensino, a substituição de uma prática centrada na cópia por outra centrada na criatividade e na inventividade. Metodologia do ensino da Arte na escola 29 É necessário refletir, considerando cada realidade escolar, sobre os aspectos que ainda podem ser válidos em encaminhamentos metodo- lógicos do passado e aqueles que deixaram de ter sentido. Por isso, independentemente do método ou da metodologia escolhida, deve- mos manter nosso senso crítico alerta, usando a intuição para relativi- zar conhecimentos adquiridos. Além disso, é importante manter-se em contato com a academia de algum modo, em uma perspectiva de for- mação continuada, e também com a arte que ocorre ao nosso redor. ATIVIDADES 1. Faça uma pesquisa nas bibliotecas digitais que disponibilizam dissertações e teses de diferentes universidades (dê preferência àquelas da sua cidade ou próximas) e liste os títulos dos trabalhos defendidos no último ano no campo do ensino da arte na escola que mais chamaram a sua atenção. Você pode usar os termos de busca arte+educação, arte+ensino, arte+aprendizagem ou arte+metodologia. Com base nessa lista, tente definir quais são os aspectos comuns entre as diferentes pesquisas. Você estará, nesse processo, delimitando o paradigma ao qual elas estão respondendo. 2. Procure se lembrar da sua experiência como aluno na escola e descreva alguma situação em sala, durante as aulas de Arte, que marcou você, na qual considera que aprendeu algo. Tente definir o que você aprendeu e como ou por que aprendeu. 3. Quais foram as consequências da aplicação irrefletida das Pedagogias Tradicional e Nova no campo do ensino da arte na escola brasileira? REFERÊNCIAS BARBOSA, R. Reforma do Ensino Secundário e Superior (1882). In: BARBOSA, R. Obras completas. v. IX, tomo I. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1942. BARBOSA, R. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública (1883). In: BARBOSA, R. Obras completas. v. X, tomo I ao IV. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947. BARBOSA, A. M. Redesenhando o desenho: educadores, política, história. São Paulo: Cortez, 2015. BARBOSA, A. M. O ensino da arte e do design no Brasil: unidos antes do modernismo. Revista Digital do LAV, Santa Maria, v. 8, n. 2, p. 143 -159, maio/ago. 2015. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5902/1983734819869. Acesso em: 7 jun. 2021. Vídeo http://dx.doi.org/10.5902/1983734819869 30 Metodologia do ensino da Arte - Anos finais do ensino fundamental e ensino médio BOSI, A. Reflexões sobre a arte. 7. ed. São Paulo: Ática, 2002. CHEVALLARD, Y. La transposition didactique: du savoir savant au savoir enseigné. Paris: La Pensée Sauvage, 1998. CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, n. 2, p. 177-229, 1990. FERRAZ, M. H. C. de T.; FUSARI, M. F. de R. e. Metodologia do ensino da arte: fundamentos e proposições. 3. ed. rev. ampl. São Paulo: Cortez, 2018. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978. GHIRALDELLI Jr., P. História da educação brasileira. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2015. HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. ITAÚ CULTURAL; DATAFOLHA. Hábitos culturais: expectativa de reabertura e comportamento digital. 2020. Disponível em: https://portal-assets.icnetworks.org/ uploads/attachment/file/100597/habitos_culturais.pdf. Acesso em: 7 jun. 2021. INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. 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O Brasil passa a ter orientações curriculares elaboradas pelo Estado a partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) em 1996, cujo artigo 26 previa, junto a uma parte diversificada, um núcleo comum para os currículos nacionais. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foram elaborados, então, para guiar a construção do currículo por cada escola brasileira. Métodos e metodologias são estabelecidos de acordo com o currículo escolar, por isso é importante você refletir sobre essas diretrizes, especialmente para a disciplina de Arte, o que fare- mos neste capítulo. Tenha em mente, também, que a LDB de 1996 é marcada pela racionalidade neoliberal, uma lógica normativa na qual as relações sociais são regidas pela acumulação de capital, pelo individualismo e pela concorrência. Assim, em um país marca- do por grandes diferenças entre ricos e pobres, a rede privada de ensino conquistou espaço ao lado da pública. Mais ainda, a lógica empresarial penetrou no ensino público. Duas conse- quências disso são: currículos centrados em competências, que objetivam formar indivíduos flexíveis e adaptáveis; e professores – não políticas e sistemas educacionais – responsabilizados pelo fracasso escolar. 32 Metodologia do ensino da Arte - Anos finais do ensino fundamental e ensino médio 2.1 Parâmetros Curriculares Nacionais Vídeo Vamos começar com um pouco de história, com vistas a entender as bases teóricas utilizadas pelo Estado na elaboração dos PCN-Arte para o ensino fundamental (1997) e o ensino médio (1999 e 2002). Nos anos 1970, no Brasil, foram constituídos os primeiros cursos de licenciatura em Educação Artística e também a pós-graduação em Ensino da Arte. Nos anos 1980 que se seguiram, o movimento Arte- -Educação abriu mais espaço para discussões sobre a valorização e o aprimoramento do professor de Arte. Iniciativas de organização de educadores culminaram na criação da Federação de Arte Educadores do Brasil (FAEB). Seu primeiro congresso, realizado em 1988, versou so- bre a formação do professor – uma grande preocupação dessa década – em consequência da inserção da disciplina de Educação Artística no currículo escolar pela Lei n. 5.692, de 1971, e a consequente introdução da polivalência. Após a Constituição de 1988, durante as discussões sobre a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), houve uma grande mobilização pela inclusão da obrigatoriedadedo ensino da arte na es- cola. Com a promulgação da LDB n. 9.394, em 1996, a obrigatoriedade foi sancionada nos diferentes níveis da educação básica. Na esteira da reflexão difundida pelo movimento Arte-Educação e do estímulo ou- torgado pela aprovação da referida lei, os anos 1990 trouxeram à luz novas tendências curriculares, reivindicando a identificação e o reco- nhecimento da área de arte, não mais de educação artística, com as im- plicações conceituais que essa mudança de entendimento trazia, pois a arte na escola deixava então de apresentar o status de atividade ou recreação para ganhar, efetivamente, aquele de disciplina, com um con- junto de conhecimentos sistematizados e de práticas estruturadas. As pesquisas e experiências orientadas por Ana Mae Tavares Bastos Barbosa (1936-) nos anos 1990, quando foi diretora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, levaram-na ao desenvolvimento de um encaminhamento metodológico conheci- do como Abordagem Triangular 1 . Ele foi a teoria basilar dos Parâme- tros Curriculares Nacionais definidos para a área de arte no ensino fundamental em 1997, depois de três anos de debate entre especia- listas. Antes de analisarmos o documento, então, convém entender A FAEB organiza anual- mente congressos que reúnem professores de Arte e especialistas de todo o Brasil e do exterior para comparti- lhar experiências e refletir sobre os problemas e as tendências quanto ao ensino da arte na escola. Na aba publicações do site da Federação, você pode acessar os anais desses eventos. Disponível em: https://faeb.com. br/. Acesso em: 7 jun. 2021. Site A autora o defendeu inicialmen- te como metodologia triangular, depois alterou o nome para pro- posta triangular e, finalmente, para abordagem triangular. 1 https://faeb.com.br/ https://faeb.com.br/ Diretrizes curriculares nacionais 33 melhor as origens da abordagem de Ana Mae Barbosa. Basicamente, ela estrutura a prática docente sobre três eixos fundamentais: o fazer artístico (produção), a apreciação da obra de arte (fruição) e sua con- textualização histórica (reflexão). Ana Mae Barbosa (1991; 1998; 2010) afirma que a Abordagem Triangular foi resultado da “deglutição” de três outras abordagens epistemológicas: Discipline Based Art Education (DBAE, Arte-Educação como disciplina, EUA); Critical studies (Inglaterra); e Escuelas al Aire Libre (México). O DBAE é uma abordagem (não um currículo estático) que se desen- volveu nos Estados Unidos a partir dos anos 1960, quando uma nova ênfase na arte como atividade intelectual/cognitiva, além de emocional/ afetiva, ganhou corpo, especialmente após as teorias do currículo de- fendidas por Manuel Barkan (1913-1970) . Seguiu-se, assim, uma série de iniciativas em todo o país que articulavam a apreciação estética, o conhecimento do patrimônio cultural e a expressão criativa. O termo Arte-Educação como disciplina foi cunhado nos anos 1970 para referir-se a esse movimento que deu origem a várias reformas curriculares nos Estados Unidos. Ana Mae aproximou-se do contexto do ensino da arte norte-ame- ricano exatamente nessa época, quando realizou seus estudos de mestrado e doutorado no Southern State College, em Connecticut, e na Universidade de Boston, respectivamente, interessada na influência que as obras de Walter Smith e John Dewey exerceram sobre o ensino da arte no Brasil. Ela teve contato com as ideias do DBAE por meio dos trabalhos de Elliot Eisner, Ralph Smith, Brent Wilson e Marjorie Wilson. Nos anos 1980, esses autores trabalharam sobre essa abordagem, cuja base eram as disciplinas de Produção Artística, Crítica de Arte, História da Arte e Estética. Entendiam por disciplinas um conjunto de conhecimentos e procedimentos que facilitam a investigação dentro de um campo de estudos. Assim, segundo os princípios do DBAE incorporados por esses autores, a experiência dos estudantes diante de obras de arte pode- ria ser ampliada por meio: 1) do fazer artístico; 2) da apreciação das propriedades e qualidades das formas visuais; 3) do conhecimento das contribuições que a arte e os artistas fizeram à sociedade e à cultura ao longo do tempo; e 4) do entendimento de como as pessoas tecem juízos sobre objetos artísticos. Depois de se formar em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, Ana Mae fez um curso com Paulo Freire para in- gressar como professora na Escolinha de Arte do Recife. No primeiro dia de aula, Freire pediu que os alunos escrevessem por que queriam ser profes- sores. Ela escreveu que não queria, mas estava sendo obrigada, e Freire a chamou para uma conversa, convencen- do-a de que a educação poderia ser libertadora: “foi então que me en- cantei com a educação”, afirma. Foi também nesse curso que ela teve o seu primeiro contato com a Arte-Educação. Leia a matéria completa sobre a trajetória de Ana Mae no Jornal da USP. Disponível em: http://www. jornaldocampus.usp.br/index. php/2013/04/a-trajetoria-de-ana- mae-e-o-entusiasmo-pela-arte- educacao/. Acesso em: 7 jun. 2021. Leitura http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2013/04/a-trajetoria-de-ana-mae-e-o-entusiasmo-pela-arte-educacao/ http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2013/04/a-trajetoria-de-ana-mae-e-o-entusiasmo-pela-arte-educacao/ http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2013/04/a-trajetoria-de-ana-mae-e-o-entusiasmo-pela-arte-educacao/ http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2013/04/a-trajetoria-de-ana-mae-e-o-entusiasmo-pela-arte-educacao/ http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2013/04/a-trajetoria-de-ana-mae-e-o-entusiasmo-pela-arte-educacao/ 34 Metodologia do ensino da Arte - Anos finais do ensino fundamental e ensino médio É importante observar que, na Abordagem Triangular de Ana Mae, produção artística, crítica de arte, história da arte e estética aparecem como ações integradas na prática docente – fazer, apreciar, contextuali- zar –, não como disciplinas separadas que informam essa mesma prá- tica. Além disso, o DBAE estava centrado na ideia de arte como um conjunto de objetos específicos e não como um entre outros compo- nentes da cultura visual. Em 1982, quando passou um ano como professora visitante na University of Central England, em Birmingham, Inglaterra, Ana Mae teve contato com os Critical Studies, um movimento intelectual que pensava a arte, no âmbito do ensino, como expressão e cultura e cujo fundamento na teoria crítica de base marxista apresentava conexões com o pensamento do seu mestre Paulo Freire. Dessa maneira, a ideia de que a alfabetização visual, em uma perspectiva crítica e transforma- dora, pode contribuir tanto para a realização de leituras de obras de arte quanto do mundo acrescentou uma dimensão à abordagem de Ana Mae que foge ao foco do DBAE. Finalmente, ainda nos anos 1980, pesquisando sobre o ensino da arte na América Latina, Ana Mae descobriu as Escuelas al Aire Libre no México, uma experiência do ensino da arte incentivada pelo político, educador e filósofo, então à frente da Secretaria Pública de Educação, José Vasconcelos (1882-1959), e que teve lugar nos anos 1920 e 1930 em diferentes cidades do país, em paralelo ao movimento muralista mexicano. Seu objetivo foi proporcionar aos membros das classes mar- ginalizadas (indígenas-camponesas) o acesso a um ensino centrado em sua própria cultura e criatividade, no contexto mais amplo do desenvol- vimento de uma arte com raízes nacionais. Adolfo Best Maugard (1891-1964), chefe do Departamento de Edu- cação Artística sob a gestão de Vasconcelos, publicou, em 1923, pela Secretaria de Estado, seu Método de Dibujo: tradición, resurgimiento y evolución del arte mexicano, baseado na arte popular do seu país (e não nos cânones artísticos europeus). Segundo Ana Mae, o método Maugard pretendia recuperar os padrões artísticos e artesanais mexi- canos, constituir uma gramática visual mexicana e incentivar a aprecia- ção da arte local por meio da expressão individual. Foi justamente essaatenção à arte local, associada à preocupação com a matriz indígena da cultura mexicana e a educação de seus descendentes, que atraiu Barbosa nas propostas das Escuelas e de Maugard. No livro organizado por Ana Mae Barbosa, Arte-educação: leitura no subsolo, publicado em 1997, você vai encontrar textos de Elliot Eisner, Ralph Smith, Brent e Marjorie Wilson traduzi- dos para o português. BARBOSA, A. M. (Org.). 9. ed. São Paulo: Cortez, 2005. Livro Diretrizes curriculares nacionais 35 Tendo mais claras as origens da Abordagem Triangular, a qual se encontra na base dos PCN-Arte, convém agora nos voltarmos aos do- cumentos elaborados com o objetivo de oferecer subsídios à definição das propostas curriculares das diferentes escolas públicas e privadas do país. Os PCN-Arte do ensino fundamental (1997, p. 48) sugerem, de um modo bastante amplo, que ao concluir a 8ª série, hoje 9° ano, os estudantes devem ser capazes de: • expressar e saber comunicar-se em artes, preservando uma ati- tude de busca pessoal e coletiva; • interagir com materiais, instrumentos e procedimentos variados em artes visuais, dança, música e teatro; • erigir uma relação de autoconfiança com a produção artística pessoal; • identificar e compreender a arte como fato histórico contextuali- zado nas diversas culturas; • exercer seu senso crítico, amparado em uma apreciação artística sensível. Além dessas competências, a seleção dos blocos de conteúdos re- ferentes às quatro linguagens artísticas – artes visuais, música, teatro e dança – envolve critérios que têm como base a produção (a expres- são e comunicação na prática dos alunos em cada linguagem), a fruição (cada linguagem como objeto de apreciação significativa) e a reflexão (cada linguagem como produto cultural e histórico). No caso específico das artes visuais (1997, p. 66-69), por exemplo, os blocos de conteúdo dos anos finais do ensino fundamental levam em conta: 1. a expressão e comunicação na prática dos alunos em artes visuais: experimentação com diversos materiais e suportes, análise dos resultados com base no conhecimento dos elementos básicos da linguagem visual; 2. as artes visuais como objeto de apreciação significativa: contato sensível, reconhecimento e criticidade quanto à presença das formas visuais nas múltiplas épocas e sociedades; 3. as artes visuais como produto cultural e histórico: valorização das artes visuais para a coletividade e o indivíduo e frequentação dos espaços onde acontecem. No artigo “Escuelas de Pintura al Aire Libre do México: liberdade, forma e cultura”, Ana Mae dis- corre sobre essa iniciativa de ensino da arte dirigida às populações indígenas e camponesas do México nos anos 1920. BARBOSA, A. M. In: PILLAR, A. Dutra (Org.). A educação do olhar no ensino das artes. 6. ed. Porto Alegre: Mediação, 2011. p. 85-99. Leitura 36 Metodologia do ensino da Arte - Anos finais do ensino fundamental e ensino médio Os temas transversais definidos nos PCN atravessam o ensino de to- das as disciplinas escolares e possuem, portanto, um caráter trans e in- terdisciplinar. Eles se referem à pluralidade cultural, à orientação sexual e ao meio ambiente. Os PCN do ensino médio (PCNEM, homologados em 1999) seguem a mesma orientação geral do ensino fundamental, embora destaquem, além das linguagens tradicionais, as artes audiovisuais (como o vídeo e o cinema) e informáticas (arte feita no computador). Além disso, a arte encontra-se inserida na grande área Linguagens, códigos e suas tec- nologias, junto com Português, Língua Estrangeira Moderna, Educação Física e Informática. Os PCNEM foram organizados, sobretudo, de acordo com compe- tências e habilidades a serem desenvolvidas. Dessa maneira, são lista- das ações que os alunos devem ser capazes de realizar ao concluir essa etapa, ligadas 1) à representação e comunicação (realizar produções artísticas e apreciar produtos artísticos); 2) à investigação e compreen- são (analisar, refletir e compreender diferentes processos artísticos); e 3) à contextualização sociocultural (analisar, refletir, respeitar e preser- var as diferentes manifestações artísticas, sejam nacionais ou estran- geiras, em sua dimensão sócio-histórica). Foi publicado, em 2002, um segundo documento para o ensino mé- dio, chamado de PCN+, que detalhava e complementava alguns con- ceitos expostos no anterior. No caso da Arte, destaca-se a ênfase dada às competências, que devem estar na base, ao lado do projeto políti- co-pedagógico de cada escola, do recorte de conteúdos presente no currículo. Segundo o documento, ao enfatizar competências, ou seja, “um saber mobilizar recursos para enfrentar um conjunto de situações complexas” (BRASIL, 2002, p. 182), o objetivo é facilitar a criação de pro- jetos interdisciplinares, que têm como base a articulação de competên- cias comuns à disciplina de Arte e à grande área de Linguagens, códigos e suas tecnologias, bem como a outras áreas do currículo. O que os pesquisadores da educação vêm discutindo, no entanto, é que a ênfase nas competências, no saber fazer, entra em contradição com a ideia de formação integral própria da educação básica, na qual a articulação de conhecimentos visa ao desenvolvimento do ser humano em suas diferentes dimensões, para além daquela profissional, ligada ao trabalho. A tendência de substituir uma pedagogia dos conhecimentos por outra das competências é mais ampla no campo da educação e tem raízes na racionalidade neoliberal. Você vai encontrar uma crítica fundamentada a essa tendência global no livro A escola não é uma empresa: o neo-liberalis- mo em ataque ao ensino público. LAVAL, C. Londrina: Planta, 2004. Livro Diretrizes curriculares nacionais 37 Há no PCN+, ainda, um alargamento maior do campo das lingua- gens: além do audiovisual e das tecnologias digitais mencionadas no documento anterior, são incluídas a publicidade, a arquitetura, o de- sign, entre outras, no campo de interesse da disciplina de Arte. Assim, não somente linguagens propriamente artísticas, mas também visuais, sonoras, gestuais, em geral, são passíveis de serem tomadas como ob- jeto de trabalho. Mesmo que apresentem um caráter não autoritário, evidente no próprio título por meio da palavra parâmetros, essas orientações pre- determinam, em alguma medida, a ação docente, uma vez que, ao apontar critérios para recortes de conteúdos, indicam indiretamen- te objetivos e métodos. O professor começa a trabalhar munido de um discurso pedagógico legitimado politicamente. Por um lado, esse discurso proporciona-lhe certa segurança; por outro, antecede a sua própria experiência, o que lhe deixa, paradoxalmente, sem muitos pa- râmetros para avaliar os parâmetros. É importante, desse modo, inserir esse discurso “oficial” dentro do contexto das condições de trabalho do professor da educação básica, que incluem: proporção entre o tempo em sala de aula, o tempo de pre- paração das aulas, de avaliação e de pesquisa/atualização; quantidade de alunos por sala e infraestrutura disponível (incluindo sala adequada para as aulas de Arte e possibilidade de trabalhar com reproduções de imagem, materiais plásticos, instrumentos musicais, jogos teatrais, téc- nicas corporais etc.); autonomia real para criar e conduzir as próprias aulas (em relação ao projeto curricular e à interferência dos diretores, coordenadores pedagógicos e também dos pais dos alunos); valor do salário em relação ao custo de vida; modos de avaliação institucional sobre a sua “produtividade” como funcionário; competição dentro da escola institucionalmente promovida versus a criação de um senso de coletividade e uma consciência de classe. Outra variável a ser confrontada com esse discurso é a experiência do professor dentro de cada escola em particular, tendo em vista um público com demandas específicas. Depois de realizar esse balanço en- tre o discurso oficial e a realidade das suas condições de trabalho e da sua experiência docente
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