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AULA 4 BIOÉTICA E FORMAÇÃO EM SAÚDE Prof. João Luiz Coelho Ribas 02 CONVERSA INICIAL Desde os tempos mais remotos, a vida e a morte são discutidas sob vários olhares, inclusive o da filosofia, e posteriormente o da ética e bioética, sem falar, é claro, da ciência. Nesta aula, discutiremos os princípios bioéticos envolvidos no final da vida, suas implicações e as responsabilidades dos profissionais que atuam direta ou indiretamente na área de saúde. CONTEXTUALIZANDO Desde os tempos mais remotos, Sócrates supunha que aquele que sabe morrer aprendeu a viver, e assim a vida e a morte seriam resultados de uma mesma equação, e não opostos como encaramos hoje em nossa sociedade. Séculos após Sócrates e sua filosofia a respeito de vida e morte, a morte foi descrita como finitude humana, sendo, a partir de então, encarada como algo oposto à vida, algo que não deveria ser buscado, mas sim deixado o mais longe possível. Isso é tão presente atualmente que muitas pessoas nem sequer aceitam ouvir ou falar a palavra morte, por se tratar de uma palavra que traria “mau agouro” e até mesmo poderia antecipar tal fato. No entanto, uma coisa é certa: não se morre mais como antigamente. Isso se deve especialmente em razão da hospitalização, das UTIs, do aumento dos transplantes e, claro, dos avanços nas tecnologias médicas e farmacoterapêuticas, alterando totalmente o morrer, a forma de morrer e o tempo relativo à morte, fato comprovado pelo aumento da expectativa de vida na grande maioria dos países. TEMA 1 – RESPONSABILIDADE ÉTICA Em relação aos assuntos desta aula, um fato sobre o qual precisamos pensar é que técnicas e procedimentos que dão aos profissionais de saúde “poderes” de retardar a hora da morte implicam em um acréscimo de responsabilidade ética, especialmente na hora de decidir quando é preciso desistir, aceitando o inevitável e deixando a natureza seguir seu curso normal. Com esse raciocínio surgem discussões acaloradas, que trazem como questões-chave: 03 1. Quando se origina um ser humano? 2. Quando morre um ser humano? 3. Quando é ético deixar de tentar manter vivo um ser humano? 4. Quando é ético continuar mantendo vivo um ser humano? 5. Quando é ético retirar os órgãos de um ser humano com o objetivo de transplantá-lo em outro? Questões fáceis de serem feitas, mas muito complicadas, ética e cientificamente, para serem respondidas. Nesse contexto, um assunto sempre vem à tona: a eutanásia. Juntamente, surgem as discussões sobre distanásia, ortotanásia e mistanásia. Desde tempos remotos na história da medicina, a eutanásia foi amplamente utilizada, chegando ao seu auge nas décadas de 1920 e 1930. Nessa época ela foi utilizada basicamente como uma medida eugênica, com a finalidade de “melhoramento genético” e com a justificativa, infelizmente amplamente aceita, de liberar a sociedade dos encargos que pessoas com doenças mentais, deficientes físicos e idosos teoricamente trariam. Apesar da realização generalizada em alguns países, naquelas décadas, com a única finalidade de eugenismo e “melhoramento genético”, somente a partir da década de 1960 as reflexões e discussões sobre essa prática ganharam força. Isso ocorreu especialmente em virtude dos avanços científicos e tecnológicos aos quais os profissionais de saúde tiveram acesso, os quais mudariam, a partir de então, os critérios para o estabelecimento do termo morte, de suas formas e de suas consequências. Com essas discussões bioéticas sobre o fato, além do termo eutanásia, foram definidos os termos ortotanásia, distanásia e mistanásia. TEMA 2 – EUTANÁSIA E SUICÍDIO ASSISTIDO Eutanásia: definido como boa morte ou morte apropriada. Também conhecida como suicídio assistido, é aquela em que, com a ajuda de um profissional de saúde, o paciente coloca fim à sua vida. Deliberadamente, a eutanásia teria como justificativa, para uma pessoa causar a morte de outra que está mais fraca, debilitada ou em sofrimento, o fato de ser uma forma de evitar o sofrimento acarretado por um longo período de doença e debilidade. 04 Em termos bioéticos, a eutanásia pode ganhar caracteres diferentes de acordo com sua classificação e, claro, de acordo com o tipo e a forma do consentimento por parte do paciente. Especificamente em se tratando das questões de consentimento dos pacientes, uma discussão iniciada por volta de 1937 tentou estabelecer a responsabilização do profissional de saúde que a provocou. Essa discussão (que de fato até hoje não teve nada concretamente sintetizada) teve como base uma tentativa de classificação da eutanásia pelo professor Ruy Santos, em 1928. Essa classificação baseava-se exclusivamente em quem praticava a ação. Sendo assim, ela se dividia em dois tipos, a eutanásia homicídio e a eutanásia suicídio. A eutanásia homicídio seria caracterizada quando alguém (profissional de saúde ou familiar) realizasse algum procedimento que visasse única e exclusivamente interromper a vida de um paciente. A eutanásia suicídio seria o que hoje concebemos como suicídio assistido, no qual o próprio paciente (com o auxílio de um profissional de saúde) é o executor ativo de sua morte. Essas primeiras concepções deram embasamento teórico para posteriormente definirmos as concepções referentes ao tipo de ação e ao consentimento do paciente. Assim, conforme Ribas (2017), em relação ao tipo de ação temos: • Eutanásia ativa: ato deliberado de provocar a morte do paciente, sem sofrimento, sendo esse ato concebido para fins misericordiosos. • Eutanásia passiva ou indireta: a morte de um paciente terminal ocorre quando se inicia uma ação médica ou se interrompe uma medida já utilizada, com o único objetivo de reduzir o sofrimento. • Eutanásia duplo efeito: quando a morte é acelerada como consequência indireta de ações médicas que são executadas com a finalidade de aliviar o sofrimento de um paciente terminal. • Em relação ao consentimento do paciente classificamos a eutanásia como: • Eutanásia voluntária: quando a morte é ocasionada atendendo a uma vontade explícita do paciente. • Eutanásia involuntária: quando a morte é ocasionada contra a vontade explícita do paciente, quase sempre pelo profissional achando que está “fazendo o melhor” para o paciente. • Eutanásia não voluntária: apesar de parecer ter a mesma interpretação da eutanásia involuntária, o termo é diferente, pois aqui a morte é ocasionada sem que ao menos o paciente tivesse manifestado sua posição em relação à morte, ou seja, nem contra e muito menos a favor. 05 TEMA 3 – DISTANÁSIA E O PROLONGAMENTO DO SOFRIMENTO Quando falamos em distanásia, muitas discussões vêm à tona, especialmente em relação a pacientes terminais e idosos, com destaque para questões relativas à autonomia. O problema nesse caso são as medidas tomadas pelos profissionais de saúde para esses pacientes. Podemos ilustrar com os procedimentos terapêuticos que somente podem ser obtidos com gastos, dor ou incômodos excessivos e que, ao serem utilizados, não oferecem, infelizmente, nenhuma possibilidade de benefício ao paciente, assim como as medidas caracterizadas pela ausência de motivo ou de resultado útil em um processo diagnóstico ou intervenção terapêutica. Esses procedimentos representam um prolongamento indevido do sofrimento natural. Tal ato é socialmente condenável e bioeticamente inaceitável. Claro que todo profissional de saúde busca a vida e a melhora de sua qualidade, mas isso não deve ser realizado quando focamos a quantidade de vida, seja ela da forma que for. Devemos, sim, pensar em nosso juramento de manutenção e auxílio à vida, mas muitas vezes os custos dessa manutenção são muito maiores do que nossos pacientes gostariam de pagar (pensando especificamente em prolongamentodo sofrimento com medidas artificiais e sem função da vida). Como exemplo simples dessa situação, podemos pensar na alimentação enteral por sonda nasogástrica, que é, sim, de grande validade e extremamente útil na grande maioria das vezes, mas quando esse procedimento é realizado em um paciente em estado vegetativo persistente e irreversível, será que o procedimento não passa de uma única maneira para mantê-lo vivo, prolongando seu sofrimento? Ou, de fato, é algo útil que vai contribuir com seu bem-estar? É certo que também não podemos usar isso como desculpa para, muitas vezes, “deixarmos o paciente morrer” por acharmos que não teria mais como melhorar a sua qualidade de vida e fazê-lo voltar à ativa, ou simplesmente para “liberar” vagas de UTI, por exemplo, para outros pacientes que certamente estão precisando. Ou seja, nessa situação, devemos sempre estar atentos à linha tênue que delimita a não necessidade e a aceitação de limites terapêuticos do que podemos definir e caracterizar como abandono terapêutico. 06 TEMA 4 – ORTOTANÁSIA E OS CUIDADOS PALIATIVOS Uma questão bastante importante para aqueles profissionais que trabalham com pacientes nas fases finais da vida é: Como decidir se o paciente está em fase terminal? Além de se embasar nos critérios clínicos, mas de maneira individualizada, recomenda-se que deve ser um consenso entre toda a equipe que presta assistência ao paciente. Aí entram os cuidados paliativos, que visam proporcionar mais qualidade de vida ao paciente, seus familiares e pessoas de seu convívio durante a evolução da doença. Esses cuidados andam lado a lado com os cuidados curativos, especialmente na UTI. Não estão voltados a adiar ou apressar o curso de vida do paciente, mas servem para suavizar o sofrimento causado pela doença, trazendo um maior conforto e dignidade mesmo quando a morte se aproxima. Abrangem o tratamento de sintomas físicos, como dor, vômitos, náuseas, salivação, boca seca, constipação, diarreia etc., o suporte emocional, espiritual ou religioso, o respeito às preferências do paciente e de sua família, e também a comunicação, seja com o paciente ou seus familiares. Mesmo após a morte do paciente, certos procedimentos paliativos podem acompanhar os familiares para seu conforto e apoio. Porém, convém lembrar que o médico está proibido de apressar a morte do paciente com doença incurável e terminal, mesmo que ele ou seu representante legal peçam. Ao contrário, o médico deve sempre ofertar todos os cuidados paliativos possíveis, sempre considerando a vontade anunciada. Vale lembrar que saúde não é apenas a ausência de doenças, mas um bem-estar geral; muitas vezes, os cuidados paliativos podem levar o paciente a ter um bem-estar físico, mental e social mesmo nos últimos dias de vida. TEMA 5 – MISTANÁSIA E A MORTE SOCIAL A mistanásia é outro grande problema bioético. A seguir temos três situações bastante características da mistanásia: Primeira: ocorre com a grande massa de doentes e deficientes, que por motivos talvez políticos, sociais e econômicos, não conseguem sequer chegar a ser “pacientes”, pois infelizmente nem conseguem ingressar no sistema de 07 saúde, nem ao menos passam por uma consulta e acabam morrendo por total falta de tratamento. Segunda: O doente, apesar das grandes dificuldades, consegue ser paciente, mas, após isso, acaba sendo vítima de erro médico, levando esse agora paciente à morte. Terceira: os pacientes, por motivos econômicos, científicos ou até mesmo sociopolíticos, acabam sendo vítimas de má prática dos profissionais de saúde, levando a uma total descaracterização dos serviços de saúde que deveriam ser prestados ao cidadão, independentemente de sua classe social, econômica ou cultural. NA PRÁTICA Um caso chegou ao comitê de ética para você avaliar e emitir um parecer. O caso era o seguinte: Um residente que estava de plantão em um grande hospital privado foi chamado à meia-noite para atender uma paciente de 20 anos em estágio terminal, com câncer de ovário. A paciente não respondeu à quimioterapia e estava recebendo apenas medidas de suporte. Ela estava acompanhada pela mãe quando o médico chegou. Há dois dias que não conseguia comer ou dormir. Estava com 34 kg de peso corporal e com vômitos frequentes. A paciente disse ao médico, o qual não a conhecia até aquele momento, apenas a seguinte frase: "terminemos com isso". O médico foi até a sala de enfermagem e preparou 20 mg de morfina. Voltou ao quarto e disse às duas mulheres que aplicaria uma injeção que possibilitaria à paciente descansar e dizer adeus. A paciente nada disse, nem sua mãe. Em 4 minutos a paciente morreu. A mãe se manteve erguida e pareceu aliviada. Você precisa emitir um parecer sobre o fato. O que você faria? FINALIZANDO Nesse tema, vimos a importância do desenvolvimento do raciocínio bioético, diante das questões que envolvem o final da vida, aplicável a todo e qualquer profissional da área da saúde. 08 REFERÊNCIAS BEAUCHAMP, T. L.; CHILDRESS, J. F. Princípios de ética biomédica. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2002. COHEN, C.; FERRAZ, F. C. Direito humano ou ética das relações? In: Bioética. 3. ed. São Paulo: EDUSP, 2002. CONEP. Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Disponível em: <conselho.saúde.gov.br>. Acesso em: 29 nov. 2017. FERREIRA, A. B. H. Dicionário Eletrônico. Curitiba: Positivo, 2004. GARRAFA, V. Introdução à Bioética. Revista do Hospital Universitário UFMA, São Luís, v. 6, n. 2, p. 9-13, 2005. GUILHEM, D.; DINIZ, D. A ética na pesquisa no Brasil. In: DINIZ, D.; GUILHEM, D.; SCHUKLENK, U. Ética na pesquisa. Brasília: Letras Livres/UNB, 2005. LIMA, W. M. Bioética e comitês de ética. CONEP, 2004. POST, S. T. Introduction. Encyclopedia of Bioethics. 3. ed. Macmillan Reference USA, 2004. POTTER, V. R. Bioethics: Bridge to the future. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1971. RAMOS, D. L. P.; CRIVELLO JÚNIOR, O. Fundamento da odontologia: Bioética e ética profissional. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2007. RIBAS, J. L. C. Saúde pública com ênfase em saúde da família. Disponível em: <https://pt.scribd.com/document/211293715/Aula-6-Bioetica-Prof-Joao- Luiz-Ribas>. Acesso em: 29 nov. 2017. SIQUEIRA, J. E.; ZOBOLI, E.; KIPPER, D. J. Bioética clínica. São Paulo: Gaia, 2008.
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